BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 1

2015 não foi exatamente o ano mais terno, mas nem por isso vamos deixar de celebrar as experiências quadrinísticas que vivemos em meio a mortes de celebridades, caos na política do nosso país, filmes aguardadíssimos e grandes eventos sobre gibis. Nos próximos dias vamos publicar as listas das melhores leituras que fizemos neste ano fora da casinha.

Cada membro do staff Raio Laser tem seus próprios critérios, e, assim como temos feito desde o princípio aqui, a escrita é livre, a abordagem é selvagem, cada um faz como quer. Eu, por exemplo, que começo, não estou fazendo uma lista dos melhores quadrinhos lançados em 2015. Peço desculpas. Não pude acompanhar uma avalanche de lançamentos de todos os tipos simplesmente porque estava concomitantemente escrevendo uma tese de doutorado (ai minha cabeça). Portanto, resolvi escrever sobre os melhores quadrinhos que li de qualquer época. Isso também é legal. A gente pode revisitar os clássicos, escrever sobre aquele volume que tinha faltado, acertar as contas com sua própria coleção. Algumas coisas li quando ainda estava na França, e outras já no Brasil. Deu, por exemplo, para falar sobre o grande Shigeru Mizuki, falecido no fim de 2015. Não é uma beleza? Esta lista não está em ordem de qualidade. Não está, aliás, em qualquer ordem significativa. Apenas pegue os textos que mais te interessarem e leia na ordem que quiser. Nos próximos dias, as muito diferentes listas dos outros caras da RL. Acompanhem! (CIM)

Parte 2

Parte 3

por Ciro I. Marcondes

1 - KITARO: LE REPOUSSANT (Kitaro, o repulsivo) – Shigeru Mizuki (Collection Paul, 2007 [1959]): o mangaka Shigeru Mizuki, falecido em 2015 com 93 anos, era ao mesmo tempo um mestre dos gêneros gekigá (quadrinho japonês mais sombrio, com auge nos anos 50 e 60) e do yokai (histórias de monstros folclóricos e fantasmas). Eu havia comprado o primeiro volume de uma edição francesa de sua obra mais famosa, GeGeGe no Kitaro, quando estive fora, e, assim que soube da morte do autor, resolvi ler para ver de qual era. Mesmo que as primeiras histórias sejam ainda um tanto primitivas (foram publicadas em 1959) e careçam de consistência, elas vão melhorando incrivelmente à medida que a leitura avança. Kitaro é uma espécie de morto-vivo, uma criança mágica das trevas, que rasgou o útero de sua mãe morta para ser o último de sua espécie. Ele é acompanhado apenas pelo sinistro olho ambulante (literalmente) de seu pai, o mais bizarro dos sidekicks. Mizuki aproveita esta ideia de errância para fazer o garoto-monstro cruzar com todo tipo de ser folclórico e criatura medieval japonesa (a estranheza aqui é grande: um deles é uma gosma; outro, uma espécie de nuvem com olho macabro; e outro é pura e simplesmente um olho com halo de trevas).

Kitaro é incrivelmente imaginativo, e as situações em que o autor coloca o menino são absurdas, de um fascinante encantamento com o mundo do oculto e do sobrenatural, ressaltando a presença feérica destes yokai em contraposição à estupidez racionalizante do mundo moderno. Mizuki lutou na segunda guerra, contraiu malária, perdeu um braço e esteve muito próximo de ser executado. Sua visão assombrada do mundo, mesmo que lírica, não deixa de ser um reencantamento em relação à indústria de matar da guerra moderna, e sobrevive. É um bom momento para todos lermos Kitaro.

2 - RADIO LUCIEN / RICKY BANLIEUE / LULU SMACK (Lulu S’maque) – Frank Margerin (Les Humanoïdes Associés / Abril Jovem, 1982, 1987, 1987 [1992 no Brasil]): trazer vida à juventude do revival rockabilly na Paris dos anos 80: esse era o propósito de Frank Margerin ao criar o personagem Lucien e sua turma de losers quando foi (prancheta debaixo do braço) trabalhar para a Métal Hurlant no início daquela década. Hoje Margerin é uma instituição francesa. Seus quadrinhos groz-nez, de enorme facilidade narrativa e imenso carisma, são tudo que podemos esperar de algo despretensioso, leve, mas tomado por vida de verdade em todos os lados. Os problemas da sua galera são coisas reconhecíveis: pegar uma moto emprestada, enfrentar um Natal chato em família, tentar montar uma banda de rock ou uma rádio pirata. Margerin é despojado, sarcástico, e uma bem calibrada lente de leitura de sua época. Dentre as três edições que li em 2015, apenas uma (Lulu Smack), saiu no Brasil, e esta é justamente uma HQ de passagem para o autor: é sua primeira história longa, que relata o nascimento de um romance, e foi até mesmo publicada como graphic novel pela Abril em 92. Preferi as histórias curtas das outras duas, mais rasteiras e com faro para ironia mais apurado. Todo Margerin, porém, é relevante, e isso faz dele um autor que precisa urgentemente de mais traduções por aqui.

3 - DOIS IRMÃOS - Fábio Moon e Gabriel Bá (Cia das Letras, 2015): nossa resenha completa desta HQ aqui.

4 - BOULES DE CUIR (Bolas de couro) – Phicil e Drac

 (Tournon-Carabas, 2012): esta foi achada no sebo, naqueles deliciosos exercícios de simplesmente se perder numa multidão de quadrinhos desconhecidos e, por puro “feeling”, ir sacando aquilo que pareça interessante e difícil de encontrar em qualquer outro lugar. Não conhecia o quadrinista francês Phicil (Philippe Gillot), que, com as cores de Drac, realizou este primoroso álbum em “quadrinhos antropomórficos de época”. Meio Crumb, meio Disney, e, lógico, bastante BD, Boules de cuir tem humor sagaz na medida certa, incrível detalhismo fotográfico em seu retrato de uma Paris do entre-guerras (sem perder a pegada cartum), e excelente punch narrativo. É uma história deliciosa: um pato verde e mala, Bec (versão francesa do Plucky dos Tiny Toons), e um ingênuo e delicado ursinho chamado Tintin se envolvem no pernicioso mundo do boxe de feira, cheio de trambiqueiros, para extraírem para si algumas lições. A ambientação do roteiro é estudada e fascinante, os diálogos têm forte personalidade e os desenhos são muito carismáticos. Verdadeira aula de quadrinhos narrativos. No aguardo, agora, do último lançamento de Phicil: “Zen, meditações de um pato egoísta”, novamente com Bec como protagonista.

5 - MULHERES – Yoshihiro Tatsumi (Zarabatana Books, 2007 [1961]): uma prostituta que recusa o ex que a abandonou pela família. Uma garota que ganha benefícios de acordo com o amante e dá seu salário a um jovem bem mais inocente. A mulher que é maltratada pelo marido, que a rejeita publicamente. Estes são alguns dos motes desta coletânea de quadrinhos dos anos 60 do grande Tatsumi, mestre e inventor do gekigá que, em uma narrativa quase pulp, situada entre o cotidiano e o íntimo grotesco, com influência do cinema noir e dos romances eróticos baratos, consegue deflagrar a vida da mulher japonesa de sua época. São agruras, contradições, crimes passionais. Certo, não é o melhor de Tatsumi, mas, sendo o único material dele publicado no Brasil, é o que temos para hoje, e uma boa amostra. Como Mizoguchi no cinema (ver Akasen chitai, 1956), Tatsumi radiografa certo ethos feminino do Japão do pós-guerra de maneira crua, cirúrgica, sem proselitismo. Para a época, é revolucionário em vários aspectos, e um quadrinho essencial dentre os publicados pela Zarabatana.

6 - PINÓQUIO (Pinocchio)

– Winshluss (Les Requins Marteaux / Globo, 2008 [2012 no Brasil): com atraso, finalmente li a celebrada adaptação de Winshluss (Vicent Paronnaud) para o Pinóquio de Collodi (e da Disney!). Eu poderia começar mencionando a estupefante qualidade gráfica, mistura de livro infantil da primeira metade do século XX com comic strips da era de outro (especialmente nas cores); poderia falar da desconstrução perturbadora da história original (um conto moralista sobre a perda da inocência), que faz varredura da podridão imoral das instituições modernas; poderia falar da genial transformação e adaptação de cada evento das histórias que o inspiraram. Mas eu gostaria mesmo é de ressaltar a coragem de Winshluss em investir numa narrativa dinâmica e quase inteiramente silenciosa. Balões viram universos de imagens a serem descobertos. Abundam expressões que trazem teatro e cinema aos quadrinhos. Páginas com geniais soluções visuais e narrativas se intercalam com os monólogos politicamente incorretos do escritor beatnik em que se transforma o Grilo Falante (Barata Joe). Winshluss comprova, ao comparar a ladainha da Barata Joe ao seu vasto acervo gráfico, que a HQ muda pode ter exuberante floresta de informações e enorme complexidade a ser decodificada. Demorou, mas valeu a espera.

7 - LES PASSAGERS DU VENT – LA FILLE SOUS LA DUNETTE (Os passageiros do vento – A garota sob o tombadilho) – François Bourgeon (Delcourt, 1979): outra instituição da BD franco-belga, François Bourgeon é um dos únicos autores de HQ de pirataria capaz de ser comparado a Hugo Pratt.

La fille sous la dunette, primeiro volume de sua longa série dos “passageiros do vento” – vencedora em Angoulême (1980) – , uma das mais populares HQs de aventura francesas, é um arroubo de elegância e cuidado com a reconstituição histórica. Passando-se em alto mar, entre a França e a Inglaterra no século XVIII, este volume é não apenas meticuloso a ponto de Bourgeon ter construído maquetes para os cenários, desenhado modelos para os navios e ter se baseado em fontes fielmente documentais. Ele é também uma aventura de tirar o fôlego envolvendo trocas de identidade, vinganças cabulosas, incríveis batalhas navais e um socializante discurso a respeito do tráfico de escravos. Além disso, o traço realista, fino, de inigualável verossimilhança, do autor, traz todo um aspecto vívido e colorido, além de lindo erotismo, a esta HQ popular, recorde de venda na França. Popular não deve (e nem pode) ser coisa ruim, e esta obra é prova concreta disso.

8 - OS MAIORES CLÁSSICOS DO DEMOLIDOR (Daredevil,the man without fear, Nº 168-192) – Frank Miller e Klaus Janson (Marvel / Panini, 1981-83 [2002]): entusiasmado com a série da Netflix, resolvi mexer nas minhas memórias de adolescente e reler a fase clássica de Frank Miller em Demolidor

, algo que sempre ficaria reminiscente em minha lembrança como “a melhor coisa que Miller já fez”. Peguei logo as reedições da Panini, que recompilam nada menos que 24 volumes desta brilhante fase, a partir do momento em que Miller assume os roteiros. Uau. Você lê esse material e parece que um trem trombou com a sua cara. Roteiros concisos, fortes, equilibrados e imediatos se unem a uma arte milleriana que, se ainda não atingiu o auge, se aproxima a um perfeito ponto de equilíbrio entre Cavaleiro das trevas e Sin City, por assim dizer. Todo Miller já está ali: a versatilidade no uso de grandes quadros horizontais, o apagamentos das arestas (influência de Eisner), liberando a sarjeta, o approach urbano (tornando a série eminentemente moderna, quase fundando a era de bronze), recursos de zoom, câmera lenta, sinestesia, quase todo tipo de letreiro em primeira pessoa (todos narram: Ulrich, o Mercenário, Foggy ), enfim, um primor absoluto. Fora isso, o carisma do herói contado por um autor jovem, vigoroso, cheio de ideias incríveis. Os duelos com o Mercenário. A ascensão do Rei do Crime. A morte de Elektra. Etc. Etc. Tempo bom, que não volta nunca mais.

9 - ORDINÁRIO – Rafael Sica (Cia das Letras, 2010): apesar do título desta HQ, Rafael Sica não é um quadrinista ordinário. As tiras mudas (sem falas) reunidas neste volume da Cia das Letras estão entre o que de mais interessante surgiu em quadrinhos (hmm) “experimentais” no cenário recente brasileiro. Com o espaço francamente subvertido pelos paradoxos intrínsecos à própria arte dos quadrinhos, ele vai criando fábulas, sonhos, anedotas, alegorias. Espécie de Liniers mais sombrio, Sica nos leva a situações e mundos onde as sombras ganham vida, onde um narciso urbano se afoga numa poça de água suja na rua, onde um homem se esconde atrás de tudo, inclusive dos espaços próprios ao quadrinho em si. São tiras existencialistas (o “ordinário” estando neste absurdo da vida que todos compartilhamos), nada banais, com apelo surrealista e cheias de dolorosos enigmas. Quadrinhos assombrados, vindos de um artista assombroso.  

10 - UNE ENQUÊTE DE L’INSPECTEUR CANARDO – LE CHIEN DEBOUT (Um caso do inspetor CanardoO cão de pé) – Benoît Sokal (Casterman, 1981): e eis que estou elegendo aqui mais quadrinhos antropomórficos com patos marrentos, desta vez sob chave “noir”, em uma história cheia de elementos diversos e pitorescos. As investigações do inspetor Canardo, um pato alcoólatra, fumante de haxixe e depressivo, são também um patrimônio da BD e O cão de pé é sua primeira aventura publicada em álbum. Antes disso, os leitores do mercado franco-belga já haviam tido contato com o pato em histórias curtas publicadas na clássica revista (A suivre), responsável por lançar toneladas de autores de BD que depois se consagrariam. Esta primeira história é um prato cheio: Canardo é mero coadjuvante na história de amor fatal vivida pelo cachorro (também) alcoólatra Fernand, que retorna à sua cidade para tentar reaver uma garota que ele descobre assassinada. Lá ele cruza o caminho de Canardo e o de um mundo de escroques: chefões do crime, cientistas loucos, femmes fatales. Os diálogos são afiados, a história é potente e magistralmente bem conduzida, e a arte do belga Sokal encontra aqui um de seus auges. A atmosfera sombria é retratada em tom cartunesco, mas isso não deixa a história menos apavorante. Escura e cínica, ela abusa de recursos do cinema noir, como o close-up nos olhos, as imagens na penumbra e as cenas de violência. Vetor da representação de uma sociedade acabada e exímio participante no jogo do reaproveitamento dos gêneros, Sokal tem em O cão de pé um debut de cinco estrelas. Hoje já são mais de 20 álbuns lançados com o pato como protagonista, e Sokal não para: além de quadrinista, ele desenvolve jogos de videogame para a Microïds. Nada mal para um cara que, no Brasil, permanece desconhecido.

11 - BARATÃO 66 - Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu, 2013): nossa resenha completa desta HQ aqui.

12 - THE GIRL FROM H.O.P.P.E.RS. – A LOVE AND ROCKETS BOOK (A garota de HoppersUm livro de Love and Rockets) – Jaime Hernandez (Titan Books / Fantagraphics, 2007 [1985-1989]): as histórias reunidas neste segundo volume da inglesa Titan Books já não têm aquele tom das primeiras que apareceram em Love and Rockets: sem naves espaciais, sem dinossauros, sem alienígenas, super-heróis e sem o insuportável Rand Race. Ou seja: é muito mais “love” do que “rockets”. Eu já tinha lido algum deste material aqui e ali, mas nunca a série completa assim, de um só fôlego. Enquanto as primeiras histórias deste monumento da HQ indie eram mais abiloladas, cheias de toques surrealistas e non-sense misturado ao humor, à coolness e àquele erotismo esperto, esta fase que se inaugura a partir de 1986 (digamos, fase “Maggie gordinha”) esfria estas tensões malucas e coloca a histórias de Maggie, Hopey, Izzy e tantas outras garotas incríveis num patamar mais “pé no chão”. O que não significa menos emoção. É justamente aqui que Jaime Hernandez vai progressivamente construindo sua saga da fictícia cidade de Hoppers (na Califórnia), habitada principalmente por famílias de origem mexicana, a partir de uma teia afetiva que não dispensa as marcas que tornaram a série (conhecida como Locas) famosa: as desventuras afetivas das personagens, os conflitos entre gangues, situações do cotidiano, os improváveis entrecruzamentos entre a luta livre feminina e o resto dos plots, etc.

Mas nada disso resume Locas. O que verdadeiramente conta ao lermos uma série assim é o mergulho no dia-a-dia microdetalhado destas personagens tão vivas que parecem transportadas diretamente de uma realidade maravilhosamente atraente. Afinal: bandas de rock, garotas descoladas, wrestling feminino, bebedeiras, romances tórridos. Quem não gostaria de viver dentro desta HQ? O que encanta, no final das contas, é aquele fator “Hopey fica com Maggie, cuja irmã fica com Speedy, que por sua vez é apaixonado por Maggie, cuja tia Rena é uma estrela da luta livre e tem vários romances no passado”, etc. Hernandez vai e volta nas histórias sem deixar a peteca cair, em longos flashbacks totalmente verossímeis, alterando a idade, o visual e o contexto dos personagens de maneira perfeitamente coerente e envolvente. Se cada fase de Locas tem seus méritos, sendo a primeira mais avant-garde e inauguradora de todo um filão dos quadrinhos, esta segunda certamente prima pela maturidade com que Jaime investiga a psicologia de suas personagens. De certa forma, isso aproxima Locas de Palomar (de Gilbert), que já nasceu, por assim dizer, completo e maduro. Um quadrinho indispensável (e todos aqueles clichês de crítica, blá blá blá).  

Quatro irmãos

por Ciro I. Marcondes

Lá pelos idos de 2002 eu era apenas um estudante de Letras e me lembro que, em uma aula de Literatura Brasileira Contemporânea, entre a prosa lacônica e enfadonha de João Gilberto Noll e os textos histéricos, wanna be contemporâneos de Marcelino Freire, caiu nas minhas mãos Dois irmãos, o hoje já clássico segundo romance de Milton Hatoum, publicado em 2000, sobre a eterna rivalidade de um par de irmãos gêmeos no seio de uma família libanesa-brasileira na Manaus do século XX. Nunca tinha ouvido falar. Li com voracidade, porque, na verdade, não se trata de um livro que simplesmente lemos, mas sim que consumimos.

Ao contrário dos autores citados, Hatoum fazia-se contemporâneo usando uma linguagem simples: não flertava com o cinema, não abusava de discursos indiretos livres e narrativas frouxas que se confundem com a errância do autor, e não fragmentava seus personagens em mil diferentes excertos para tentar redefinir o que seria um romance. Pelo contrário, buscava delinear cada aspecto de seu texto, e a polifonia da história se dava através de um vai-e-vem que engancha o passado no futuro sistematicamente. Sua modernidade residia, portanto, nos tipos de sincretismo entre as várias possibilidades de Brasil que são oferecidas ao leitor numa Manaus que hoje parece ainda mais remota e indefinível.

Hatoum segue, logicamente, a tradição antropofágica do modernismo brasileiro, mas seu interesse maior, em Dois irmãos, parece ser se alinhar na consistência narrativa do romance, em tratar da minúcia insubstituível da família, nas agudezas do ambiente, nos cantos recônditos da História. Algo, assim, que tem Capitães de areia, Viva o povo brasileiro, Incidente em Antares. Naquela ocasião, foi-me concedida, como monitor, a oportunidade de lecionar uma aula sobre o livro. Talvez tenha sido a primeira aula que dei na vida para uma turma de faculdade, não sei. Como era de praxe, juntei os pedaços do livro, cataloguei-os buscando um sentido unívoco, equilibrado, que projetasse para um significado maior. Tipo de hermenêutica burra. Lembro de ter concluído que o narrador da história, o mestiço Nael, seria espécie de alegoria do futuro do Brasil: mesclado, moderno, filho da vaidade e do dandismo de um dos gêmeos da história, Omar, e da disciplina matemática do outro, Yaqub. Como se resumisse em si próprio todo um processo civilizatório. As pessoas acharam que minha leitura superinterpretava o romance. Também acho que sim. Hoje, lendo a adaptação para os quadrinhos que os outros gêmeos, Bá e Moon, realizaram do romance, pude redescobrir este livro e refazer minha própria leitura. Foi uma entusiasmente redescoberta.

Bá e Moon fizeram a adaptação de Dois irmãos com deferência em relação ao texto fonte. Talvez até excessiva. O romance é recontado na mesma estrutura narrativa do original (se não em engano), com a mesma ordem narrada dos eventos, incluindo flashbacks, inversões e subnarrações feitas pelos personagens. Diálogos e caixas recitativas são mantidos como na letra de Hatoum, e há pouca perversão (ou subversão) do material literário no material gráfico. Isso não é ruim. Resolveram não mexer na vaca sagrada. Neste sentido, a adaptação que eles fizeram do O alienista foi um pouco mais longe.

Mesmo assim, não falta quadrinhos ali. Longas passagens silenciosas realizando uma devassa gráfica da fauna, da flora e da arquitetura colonial de Manaus, assim como (algo que eles fazem com maestria) a divisão dos quadros na página perfeitamente adaptada às funções emocionais do roteiro, e por fim economia no texto dos letreiros (algo que não ocorre em nove entre dez adaptações literárias para os quadrinhos) fazem de Dois irmãos um perfeito modelo de como transferir a complexa experiência literária para a não menos complexa experiência dos quadrinhos, sem que um fira as belezas intrínsecas do outro. O fato de as quatro primeiras páginas serem apenas quadros sem falas, com detalhes da paisagem e da arquitetura do cenário, acena para uma introdução que diz “aqui é quadrinho, meu filho”, e funciona bem. O fato de ser tão exemplar, porém, faz desta uma linda adaptação, mas não um quadrinho particularmente brilhante. O excesso de zelo acabou matando um pouco a autoria dos gêmeos, que está à flor da pele, por exemplo, em Daytripper. Fico curioso ao imaginar a história (ao invés do preto e branco chapados) em verdejante colorido.

Diante de tudo isso, resta a contagiante história de Milton Hatoum. Ela se passa em Manaus, entre os anos 1910 e 1960, e atravessa gerações de uma família de imigrantes libaneses. Neste meio, o melting pot de formação da sociedade manauara: índios, africanos, estrangeiros de todos os tipos, as várias formas de comércio, bares, comidas típicas, e todo tipo de organização social. O foco é a cultura libanesa. Podemos sentir, nas ilustrações caricaturais, mas detalhistas, dos gêmeos, o mormaço fluvial da paisagem, o cheiro dos peixes, a agitação febril da cidade. E assim é também o conflito eterno dos irmãos gêmeos da história: a violência passional de Omar; o calculismo paciente de Yaqub. Mais do que uma síntese qualquer de qualquer futuro que o Brasil viesse a ter, estes gêmeos, numa paisagem profundamente local e instigante, aspiram ao universal.

Se, num texto shakespeariano como A comédia dos erros, a questão dos gêmeos se centra na aparência que anula as diferenças (provocando a confusão e o riso), em Dois irmãos, tipo de tragédia mais shakesperiana que o próprio Shakespeare, são as diferenças que se aviltam, revelando um abismo de oposições por trás da máscara familiar, do corpo idêntico. Conto do duplo terrível, onde um é a visão infernal do outro, Dois irmãos aposta também numa origem dupla para a rivalidade e a tragédia: em uma (tragédia shakespeariana), é a origem familiar, o detalhe da criação, a minudência do afago da mãe, ou um amor de infância, que produz o conflito bestial. E em outra (tragédia grega), é o destino, o cosmos: os gêmeos nasceram assim.

Diferentes, ao que parece, são os gêmeos Fábio e Moon, parceria de irmandade para além do sangue, sem que cada um perca sua natural individualidade. Para realizar uma empreitada tão difícil, tiveram que marcar e recriar cada expressão fácil dos inúmeros personagens da história, com seus trejeitos, vícios de fala, suas belezas particulares. Assim, momentos muito elaborados no romance (um irmão que é acorrentado, um poeta que é morto pela ditadura, uma mulher descrita como de excepcional beleza) são traduzidos num vislumbre, em um grande requadro, em um lampejo de quadrinhos que se sobressai sobre a literatura. Desta forma, por diferentes que possam ser a trajetória destes quatro gêmeos, é nestes momentos que eles se tornam também quatro irmãos.     

Três dias em Hicksville: cobertura do FIQ!

por Lima Neto

Prólogo -  Hicksville: uma pequena resenha

Há alguns meses atrás chegou às minhas mãos a graphic novel Hicksville, de Dylan Horrocks. Não conhecia a revista ou seu autor com profundidade e a comprei baseado num burburinho difuso que a fazia se destacar um pouco dentre as outras possibilidades de compra, além da bela capa um tanto Jayme Hernandez. 

Hicksville é um mistério. Acompanhamos o jornalista especializado em quadrinhos Leonard Batts a uma jornada pelos confins da Nova Zelândia em busca de elementos para escrever a biografia definitiva de um astro fictício dos quadrinhos contemporâneos chamado Dick Burguer. Sua busca o leva à pequena cidade de Hicksville, localizada “no cu do hemisfério sul”, uma espécie de Twin Peaks onde todos os habitantes – do banqueiro ao zelador – são apreciadores, críticos e potenciais criadores de histórias em quadrinhos. A investigação de Batts não é fácil. Tudo que ele descobre é que toda a cidade odeia Burguer e suas criações e que ninguém vai revelar nada relacionado a este ódio... e que café não é uma bebida popular na Nova Zelândia. 

No clímax da história, em uma festa comunitária anual chamada Hogan's Alley Party (para aqueles que não são nativos da cidade, Hogan's Alley é o nome da tira que apresentou ao mundo o Menino Amarelo e consolidou as páginas dominicais como um sucesso da imprensa do final do século XIX), vemos toda a comunidade da cidade fantasiada de seus personagens de quadrinhos preferidos. São tantas referências visuais, mundiais e específicas da Nova Zelândia, que a sensação é inebriante: Capitão Haddock, Fu Manchu, Mestre do Kung Fu, Ferdinando, Terry de Terry e os Piratas, etc. Esta festa é o ápice de uma sensação de valorização superlativa das HQs que emana de todas as páginas de Hicksville

Dick Burguer é um mega astro de Hollywood graças às adaptações milionárias de seus quadrinhos para o cinema. A revista para a qual o repórter Batts trabalha paga uma viagem ao outro lado do mundo para construir um perfil de um quadrinista. A mágoa envolvida em torno do que aconteceu na cidade e sua estrela internacional é tão intensa que a sensação que se tem é que o mundo gira em torno das histórias em quadrinhos. E esta sensação é o dado mais fantástico da trama. É o elemento que quebra com o realismo das interações entre os personagens e a cidade. Totalmente irreal...

...ou será que não?

FIQ 2015

Este texto é um levantamento do Festival Internacional de Quadrinhos 2015, ocorrido entre os dias 11 e 15 de Novembro. Um levantamento bem pessoal, deixando claro, pois cheguei a Belo Horizonte somente no dia 13, sexta-feira. Mas a ideia é bem por ai. Estas linhas não pretendem ser um substituto da experiência de participar do FIQ. Muito pelo contrário, elas vão mostrar um pequeno diário que busca expor a sensação de que, por alguns dias, eu estive em Hicksville. E lá sempre é uma festa. 

Dia 13 de Novembro

Uma semana de poucas horas de sono não tiraram a excitação de que nos próximos três dias eu iria respirar quadrinhos, ou pelo menos mais quadrinhos do que eu já respiro normalmente. A chegada é aquele ritual apressado – guarda mala, toma banho, almoça e vai pra Serralheria Souza Pinto, o tradicional espaço físico onde ocorre o evento. A própria localização do lugar já é peculiar: um enorme galpão no centro-sul de Belo Horizonte, embaixo de um viaduto que também serve de área de lazer e sempre ocupado aos sábados pelo pessoal do Hip Hop. Logo ao lado da Serralheria está o Parque Municipal Américo Renne Gianetti, um dos parques mais bonitos que eu já vi com uma vastidão de árvores que compõem um ambiente bucólico, porém não livre dos problemas sociais que estão presentes na maioria dos grandes centros: uma comunidade de cidadãos dependentes de entorpecentes que tomam as ruas e becos sem o alento de nenhum cuidado social, apenas obedecendo ao contrato implícito de que, se não mexerem com a população, estarão salvaguardados de intervenção policial. Todo o centro de Belo Horizonte refletia esta descrição, o que ajuda sempre a lembrar à multidão de apreciadores de quadrinhos o verdadeiro significado de “sarjeta”. Como evento de quadrinhos, o FIQ se posiciona lado a lado com um “underground” de Belo Horizonte, refletindo sua relação com as possibilidades subversivas do meio, mas sempre como um potencial de integração e não segregacionista. É muito significativo que o FIQ ocorra neste lugar. 

Diferente de edições anteriores, a versão 2015 parecia um pouquinho menor. Não havia uma área de salas de aula onde ocorriam as oficinas bem no meio do saguão principal, e também faltava o diário do FIQ, publicação que resumia os acontecidos do dia anterior. Mesmo assim a sensação é de finalmente estar em casa, reencontrar os amigos. A falta de uma área de salas abria espaço para mais mesas de artistas, e ainda era pouco. Foram mais de 200 lançamentos, muito mais do que qualquer orçamento poderia acompanhar. Apliquei então uma metodologia simples: apenas iria meter a mão no bolso depois que visse todas as bancas e mesas de lançamentos. Olharia tudo com calma e tirei uma fotografia das publicações que me pareciam interessantes. A tarefa não foi tão fácil quanto parece. No final do primeiro dia, registrei apenas uma parede e meia de mesas de artistas e standes de editoras. 

Chaykin e Mike McKone

Este FIQ 2015 teve como tema principal o papel da mulher nos quadrinhos. Longe de ser recente, esta discussão encontra eco na quantidade enorme de mulheres com lançamentos programados. Não por acaso, as palestas e a escolha dos convidados eram reflexo deste tema. Cada vez mais as HQs vêm perdendo seu papel de entretenimento masculino adolescente para se assumir com arena de discussão e atuação das minorias. Gail Simone, Babs Tar, Marcelo D'Salete, Jen Wang, Marguerite Abouet e até mesmo Howard Chaykin, cada autor tinha um discurso a expressar e buscar repercussão na imensa quantidade de visitantes. Seja através do tema principal, o  feminismo, seja passando pelas minorias étnicas, raciais e sexuais, até à sempre urgente necessidade de aceitação seus apetites sexuais (sim, estou me referindo a Chaykin). 

Um fanboy e Howard Chaykin

Neste meu primeiro dia ocorreu a palestra com Howard Chaykin no auditório do evento (batizado de  Mateus Gandara como uma emocionante lembrança desse artista que carregava todo mundo com sua ferrenha empolgação). Bem-humorado, Chaykin interpretava um papel pouco visto entre os artistas norte-americanos: longe de ser simpático, o autor de American Flagg era provocador e carismático. Sempre com um “fuck” no discurso, o que acabava atraindo a atenção dos olhares para o tradutor de libras tentando descobrir quais eram os gestos correspondentes ao palavrão, Chaykin atirava para todos os lados. Ofendia alguns fãs de maneira jocosa, destratava a industria dos EUA e resmungava pelo fato de seu traço não ser mais apreciado nos quadrinhos de hoje. Howard Chaykin estava se sentindo bem à vontade. Fez uma pequena biografia onde revelava as origens precoces de suas experiências sexuais (achou quando muito pequeno uma caixa de revistas pornográficas - “não eram do tipo Playboy” - que construíram sua sexualidade) e revelou os interesses fashionistas muito presentes em seu trabalho dos anos 80. Chaykin soava como um dos personagens amargurados de Hicksville. Entretanto, esta amargura não escondia sua felicidade por estar lá. Como ele próprio disse, “nada me deixa mais feliz do que ser reconhecido e respeitado." 

Jeff Smith!

Cheguei ainda a tempo de conseguir um autógrafo do autor de Bone, Jeff Smith. Aguentar uma fila de 40 minutos para conseguir um autógrafo é, para muitos, muito mais uma chance de trocar alguns dedos de prosa com um artista que você admira do que agregar valor a quadrinhos que podem ser revendidos. Esse aspecto é muito valorizado pelos artistas internacionais, e eles consideram o público brasileiro muito mais como carente de atenção do que como mercenários profissionais caçadores de autógrafos. 

Mas é de noite que a sensação de estar em um mundo paralelo em que todos leem quadrinhos se acentua. Neste lado B da sexta-feira de FIQ, fomos todos a um complexo de bares no centro da cidade, bem próximo do local do evento, apelidado de “maleta”. É nesta outra mesa redonda que as conversas se aprofundam. Artistas famosos, estrelas internacionais, críticos e estudiosos das HQ´s, todos se acotovelam entre as mesas para comemorar e relaxar. Bebi e conversei com gente como Evandro Esfolando – autor de quadrinhos e divulgador das HQs e do rock nas escolas públicas do DF; Dandara Palankof – amiga íntima, tradutora da Mythos e ex-editora da HQM, responsável por retornar a publicação de Strangers in Paradise no Brasil (mesmo que por um breve período); Márcio Júnior – Pesquisador dos quadrinhos e vocalista da banda Mechanics de Goiânia, publicou recentemente o livro COMICZZZT! Rock e Quadrinhos: possibilidades de interface; Daniel Lopes – um dos editores da DC Comics no Brasil e atuante nos vídeocasts do site Pipoca e Nanquim; Paulo Floro – Jornalista da revista O Grito! Marcos Maciel – fundador da Kingdom Comics. Todos com os pulmões devidamente hiperventilados de histórias em quadrinhos. 

O livro de Márcio Júnior

A conversa variava entre comentários sobre os lançamentos, levantamentos sobre os eventos e troca de experiências editoriais, isso sem contar o saudável papo furado que fazia de todos seres humanos normais. Destaco dentre as conversas o acalorado e um tanto deprimente bate-papo com Márcio Jr. e sua realista visão do mercado. Para Márcio, se as editoras estão trabalhando com tiragens de 1000  exemplares, isso quer dizer que existem apenas 1000 leitores de quadrinhos no Brasil inteiro e que um evento como o FIQ, por mais festivo que seja, é uma reunião de todos esses leitores para trocar gibis que eles mesmos produzem entre si. Difícil não ver um pouco de verdade neste ponto de vista, e muito fácil esquecê-lo ao se colocar a cabeça no travesseiro às 4 da manhã sabendo que vai acordar daqui a 4 horas para mais festa.

Dia 14 de Novembro

O sábado marcava 38 graus nos termômetros e, no dia mais cheio de FIQ, a temperatura parecia o triplo! O calor só dava para aguentar com os din-dins (ou chup-chups, ou sacolés, etc...) de fruta que eram vendidos no evento. Salvaram minha vida e de muitos outros habitantes da vila dos quadrinhos. Outra possibilidade de salvamento era a área de descanso localizada na frente do auditório, devidamente mobiliada com pufs, bancos e muito ar condicionado. 

Este sábado de FIQ foi o mais cheio por diversos motivos, mas o principal deles foi a presença de

Maurício de Souza

. Com a intenção de celebrar e divulgar seu bem sucedido projeto de Graphic Novels, o pai da Mônica e do Cebolinha não apenas compareceu, como teve a mesa de autógrafos mais cobiçada de todo o evento! Crianças se espremiam, adultos choravam, jovens admiravam a longevidade deste polêmico criador que aparentava a fragilidade de seus oitenta anos. Entretanto, de todos os eventos que ocorreram neste dia, apenas consegui assistir a uma palestra – a entrevista com a americana autora da graphic Koko Be Good, Jan Wang. A entrevista foi mediada por outra quadrinista que merece atenção: Lu Cafaggi – cujo belo  e vaporoso traço deu um rosto para todo o evento. Lu se destacou junto com seu irmão - Vittor Cafaggi – pela produção do primeiro álbum da Graphic MSP, intitulado Laços, e que teve também uma continuação recente.

A razão de eu não conseguir participar das palestras foi a continuação da saga logística de visitar todos os estandes e mesas de artistas antes de comprar qualquer coisa. A essa altura, já previa que alguns lançamentos se esgotariam antes que eu terminasse e por isso concebi um plano para adiantar o processo: eu iria pular toda banca que vendesse prints de Guerra nas Estrelas ou cujo trabalho fosse um quadrinho de zumbi. Isso garantiu que no domingo, o último dia, eu já pudesse ir atrás do que eu iria comprar após realizar um verdadeiro tetris monetário em que encaixava a intenção de compra com a realidade orçamentária. Mas o domingo não viria antes de mais uma rodada de cerveja no “maleta”, novamente acompanhado dos amigos e rodeado das celebridades dos quadrinhos... surreal descreve bem o sentimento.

Dia 15 de Novembro

Levemente de ressaca e já com um cheirinho de saudade no ar. É assim que se inicia o dia 15 de Novembro, o último do FIQ. E ele teve a temperatura um pouco mais amena e a quantidade menor de pessoas dava uma agrádavel sensação de conforto. Dei início às compras com o novo (e lindo) álbum de Lélis, Goela Negra, publicado pela editora Mino - e corri pra que ele assinasse sua obra com uma de suas miniaturas de aquarelas. O processo está filmado e poderá ser visto em breve aqui na Raio Laser. De Lélis passei para a mesa de Marcelo D´Salete, onde comprei seu último livro, Cumbe, e levei para assinar, bater um papo e observar o pincel seco do autor construir sua arte em seu peculiar traço sujo e direto. O combo de autógrafos termina com o paraibano Shiko, um dos autores com mais quadrinhos circulando pelo evento. Da sessão de autógrafo no stand da Mino, eu saí com quatro títulos deste desenhista de traço belo e formalista, porém de alma agressiva e explícita. Após a sessão, dei prosseguimento às aquisições escolhidas após o levantamento extenso dos dias anteriores. Mais na frente vamos publicando resenhas desse material, mas pela foto dá pra se ter uma ideia do espírito da coisa. 

Shiko

O domingo fecha com a aguardada mesa redonda da escritora Gail Simone. Em sua palestra ela fala de sua experiência ao sair do salão de beleza em que trabalhava para sua seção de crítica e humor no site Comic Book Resources, e como virou uma das escritoras proeminentes do feminismo dentro da indústria dos quadrinhos. Seu blog intitulado “Women in refrigerators” se tornou sinônimo da denúncia da utilização instrumental das personagens femininas a favor do protagonista masculino dentro das grandes editoras e sua passagem por títulos como “Birds of Prey”, “DeadPool”, “Secret Six”, “Wonder Woman” e “Batgirl” a transformou em uma estrela conhecida por seu estilo bem humorado e atual (mesmo que bastante formalmente convencional, na opinião pessoal deste narrador). 

Gail Simone

Mesmo não tendo acompanhado todo o evento, não foi difícil perceber como a temática se desenvolveu em suas mesas redondas e atrações. A sexualidade livre e prazerosa de Chaykin não passa muito longe da liberdade feminista de Simone, ou da presença maciça de novos rostos de diferentes nacionalidades, todos buscando seu espaço nesta mídia que há muito deixou de ser de massa, mas que ainda tem frescor o suficiente para se reinventar para o futuro. No fim das contas, o FIQ não deixa de ser um refúgio, uma ilha em que se reúnem os últimos sacerdotes de uma religião em franco processo de esquecimento. Porém, como em Hicksville, as pessoas responsáveis por resguardar estas histórias e a maneira de contá-las vão cumprir seu dever com prazer e partilhando de um sentido comunitário em torno das HQs que vai contra este movimento consumista internacional onde todo o fluxo do desejo é transferido para uma megacorporação midiática. Enquanto houver FIQ, haverá pequenas publicações e um público caridoso para consumi-las. Como em Hicksville, o FIQ é uma cidade pequenina onde todos leem gibis. Onde todos partilham de uma ligação afetiva com a narrativa de imagens reprodutíveis – dos clássicos obscuros do início do século XX até os super-heróis que assolam todos os países. Somos todos consumidores e guardiões dessas histórias. 

Se você gosta de quadrinhos, de todo gênero, não deixe de visitar o FIQ pelo menos uma vez na vida! Com certeza você vai achar algum bairro nessas ruas apertadas e abarrotadas de gibis onde vai se sentir tão em casa que seu peito dói quando termina. 

Eu irei em todos!

Até o próximo FIQ! 

HQ em um quadro: a sensibilidade sinestésica do Demolidor, por Stan Lee e Bill Everett

Planos-detalhe descrevem a incrível capacidade de Matt Murdock em aguçar seus sentidos (Stan Lee, Bill Everett, 1964): "Do ponto de vista estritamente físico, o olho sente a cor. Experimenta suas propriedades, é fascinado por sua beleza. A alegria penetra na alma do espectador, que a saboreia como um gourmet, uma iguaria. O olho recebe uma excitação semelhante à ação que tem sobre o paladar uma comida picante. Mas também pode ser acalmado ou refrescado como um dedo quando toca uma pedra de gelo. Portanto, uma impressão inteiramente física, como toda sensação, de curta duração e superficial. Ela se apaga sem deixar vestígios, mal a alma se fecha." Quem escreveu estas palavras foi o lendário Wassily Kandinsky, pintor fundador do DerBlaue Reiter expressionista e pioneiro (além de mestre absoluto) da arte abstrata. Kandinsky era sinestésico, e tinha uma visão profundamente espiritual, além de técnica, da arte. Para ele, um quadrado, um círculo, uma cor, um ponto, etc., possuíam uma vibração originária, um tipo de comungação natural com aspectos não-visíveis da realidade, e a combinação entre estes elementos produz poderosas novas vibrações, e cabe à arte o controle destes efeitos. A sinestesia é uma condição neurológica em que diferentes estímulos são misturados nas vias neurais até chegar aos seus respectivos córtex (visual, auditivo, etc.), misturando os sentidos. As pessoas sentem gostos e cheiros ao verem cores. Sensações de frio ou calor ao se depararem com determinados nomes ou palavras. Números possuem cores específicas. As possibilidades combinatórios dos sinestésicos são muitas, e os casos são muito diferentes entre si.

Daí o estalo na minha cabeça ao ler a primeiríssima história do Demolidor, "A origem do Demolidor", escrita por Stan Lee e ilustrada por Bill Everett, que contém uma sequência com quatro quadros detalhando minuciosamente a natureza dos super poderes de Matt Murdock: "Meu paladar tornou-se tão altamente desenvolvido, que posso dizer exatamente quantos grãos de sal existem num pedaço de pretzel...". Os super sentidos não são colocados exatamente como sinestésicos (não há entrecruzamento entre eles), mas há de se admirar o ímpeto imaginativo de Stan Lee: o texto que descreve os sentidos beira a elocubração científica, e dá a medida exata, com exemplos muito lúcidos, daquilo que o Demolidor pode fazer: "Até meus dedos tornaram-se incrivelmente sensíveis! Posso dizer quantas balas há numa arma apenas pelo peso do cano...". 

A ideia de que o Demolidor seja um personagem sinestésico, ou hiper-sinestésico, é em si revolucionária não apenas para um super-herói (já que esta condição era praticamente não-documentada pela ciência na época), mas muito interessante para o desenvolvimento das habilidades narrativas em quadrinhos. A partir destes quatro quadros plantados em sua primeira história, toda história do Demolidor passaria pelo mesmo desafio: como representar esta hiper-sensibilidade sinestésica em um meio feito apenas de imagens planas e palavras como os quadrinhos? Quadrinhos não trabalham com cheiros, com sons, com movimento, com o tato que não seja a própria textura rude da página em si. E pior: aquilo que os quadrinhos possuem de mais elaborado, que é a sua concepção visual, está ausente da sensibilidade do Demolidor. Cego, ele pode ser tudo que os quadrinhos não são, mas não pode ser a única coisa que eles são. 

Lee e Everett optaram por uma solução simples: apesar da qualidade quase literária na precisão descritiva do texto, as imagens são elementares. Uma orelha para audição, um nariz para o olfato, dedos para o tato, e a boca para o paladar. Metonímias autoevidentes, mas que bastaram para estabelecer um paradigma: O Demolidor seria um personagem eternamente diferente, enclausurado, amaldiçoado pela incongruência de seus poderes (um cego tão ágil quanto o Batman) e pela ineficácia de seu meio (os quadrinhos) em transfigurar sua sinestesia. E isso não se restringe aos quadrinhos. Tanto no filme com Ben Affleck quanto na nova série, a única forma de trazer a sinestesia à tona para um contexto audiovisual é fazer o Demolidor "ver" (literalmente, pois imagens emergem) através dos outros sentidos. Paradoxo que é, claramente o Demolidor não se limita isso. 

Miller: virtuoso Frank Miller, na edição 169 de Daredevil (1980), enfrentando as mesmas dificuldades, mas transformando-as num trunfo de seus quadrinhos virtuosos, com soluções narrativas incrivelmente imaginativas, procurou sofisticar a representação dos efeitos sinestésicos dos poderes do Demolidor. Neste caso, Murdock está atrás de um refém capturado pelo Mercenário. Este refém está doente, tosse muito e ainda perdeu suas pastilhas para garganta. Nos balões de pensamento, lemos o Demolidor: "O Mercenário fuma e está escondendo alguém com dor de garganta... uma situação que só tende a piorar sem as pastilhas. É uma pista fugaz, mas é tudo que tenho." Na página seguinte, vemos três meta-requadros com uma imagem do Demolidor sentado, na penumbra, no topo de um prédio, escutando. No primeiro plano de cada um destes requadros, três pequenos outros quadros mostram o que ele ouve: um pneu freando, uma buzina de carro, uma chaleira, um despertador, uma goteira. "O demônio se concentra, Sons mais delicados murmuram de milhares de emissões diferentes. Ele os abafa." Miller usa estes delicados quadros com detalhes do que Murdock pode ouvir em transições de aspecto (a famosa "transição número 5" de McCloud), sugerindo que o Demolidor seja capaz de captar a "vibração" (da qual fala Kandinsky) presente em cada som, modulando a audição à mais ínfima sensibilidade, chegando ao paroxismo de ouvir uma tosse em meio a uma metrópole. E o melhor: isso é transferido ao leitor combinando três elementos simples dos quadrinhos: os letreiros recitativos, que dão a dimensão da sensibilidade do herói; os quadros grandes ao fundo com o Demolidor sentado, dotando a cena de temporalidade; e os quadros pequenos em sua aleatoriedade, representando não uma condição temporal, mas uma inteiramente sensitiva, com seus barulhos e imagens representadas. 

Talvez seja por essas e outras que o Demolidor tenha sobrevivido, apesar de sua aparente simplicidade, como um personagem extremamente querido pelo público da Marvel, que sempre recruta seus roteiristas-estrela para repaginá-lo. Afinal, o desafio de reinventar o Demolidor é o desafio eterno de superar seus paradoxos, que, enquanto tais, são naturalmente insuperáveis. Este palíndromo, este vai-e-vem na representação da sensitividade do personagem, é sua caraterística mais "desafiadora", e assim ainda será enquanto os quadrinhos não deixarem de ser uma mídia de limitado potencial sinestésico, mas de enorme recursividade imaginativa. (CIM)        

Rapidinhas Raio Laser #04

E as aguardadas quickies estão de volta, com pouca alteração no formato além do título em português (o que pareceu mais conveniente) e a estreia de resenhas rapidíssimas (para zines e coisas de leitura muito rápida). Lembrem-se: as resenhas são voltadas para o mercado (in)dependente e podem surgir coisas de anos anteriores que estavam encalhadas aqui. Muito do que a gente resenha nos foi enviado pelo correio. Então, não dê mole (se tiver coragem): mande seu material para a Raio Laser no seguinte endereço:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Ciro I. Marcondes

Menina Infinito Nº 1Fábio Lyra (Beleléu, 2015, 36 p.): os quadrinhos de Fábio Lyra seguem um certo padrão: são singelos, com seu traço um tanto duro (sem sombras e gradações), entulhados de referências de bandas indie, noise e shoegaze dos anos 80 e 90, e um pouco lacônicos.

Menina infinita, sua nova série pela Beleléu, não foge à regra e, em meio a citações a Death From Above, Ride, Eugenius e Jesus and Mary Chain, somos inseridos dentro de uma apática festinha de apartamento marejada por este tipo de referência, com gente (já nem tão) jovem explorando as possibilidades afetivas deste ambiente já desgastado e um tanto melancólico, buscando romance xôxo e umas brejas quentes. Se o resultado não é ruim (há uma delicadeza e um humor sutil – para iniciados – que cativam), também carece de urgência. Muito curtinha, a revista não engrena não apenas pelo tamanho, mas pelo apego excessivo ao banal, algo que não acontece nos dramas íntimos de Adrian Tomine, ou nas tramas rocambolescas de Jayme Hernandez, que são claras inspirações.

Menina infinito ainda está longe de seus mestres, peca um pouco por uma quadrinização sem ambição e talvez tenha mais referências que conteúdo, mas ainda está na número 1, e, quando se trata de séries, sabemos que o piloto é sempre um parto difícil. A ver as edições restantes.

Baratão 66 – Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu, 2013, 193 p.): em termos de romance gráfico, Baratão 66 é a grande pedida no quadrinho brasileiro contemporâneo. Não tem pra ninguém. Hilário, cheio de recursos, enraizado num ambiente profundamente brasileiro, esta HQ é tudo que o quadrinho de ativismo ingênuo, o quadrinho blasé/minimalista, o quadrinho punk/doido sem referência e o quadrinho sentimental-vinte-e-poucos-anos não são. Ou seja, o roteiro de Bruno Azevêdo, que gira em torno de uma família de mulheres que gerenciam um puteiro em São Luís, vai contra quase tudo que têm sido as tendências do quadrinho brasileiro. Do delineamento psicológico dos personagens, aos seus nomes, à composição dos coadjuvantes, ao timing do humor, à engenhosidade da trama, e até à multiplicidade de registros multimídia (cartas, fotos, postais), Baratão 66 dá o tom exato de como se fazer uma leitura do Brasil em quadrinhos. É o encontro de dois mundos: o da visita à cidadezinha brasileira e seu bestiário de putas, taxistas, michês, policiais e políticos mentecaptos, com uma problematização social do Brasil que está lá como substrato, mas não passa incólume, sempre em chave de ironia. Como se fosse o encontro de Angeli com Érico Veríssimo, ou algo que o valha.  Há baixaria na medida certa, há referências e easter eggs para os que gostam, e há uma arte meio inspirada em cordel, mas sem perder a leveza do pop, que não nos deixa desgrudar os olhos. Uma preciosidade talhada na safadeza e na estultice brasileiras. 

Aerolito Nº 2 e 3 – Lucas Marques, Bruno Prosaiko, Túlio Mendes, Cauê Brandão (Semear, 2014 e 2015, 48 p. cada): a Aerolito é uma nova publicação de jovens quadrinistas brasilienses interessados em narrativas de maior fôlego e histórias mais elaboradas, quase sempre com um pé no insólito e coisas extraordinárias, mas os temas variam bastante. Tive a satisfação de escrever a apresentação da número 1. O acabamento é ótimo, e as capas, paródias de pinturas famosas, são divertidas, cheias de cores e intenções vibrantes. Se na número 1 as histórias ainda careciam de maturidade e traziam um aspecto um tanto amadorístico, nos números seguintes há uma melhora realmente visível, mesmo que pontuada por growing pains, coisa de quem tá começando. O destaque vai para a qualidade autoral do traço carismático de Bruno Prosaiko, que trabalha histórias de verniz mais surrealista. Falta aos roteiros, porém, um equilíbrio entre ambição de (falsa) “profundidade” às histórias e um resultado efetivo nesse sentido. Mesmo “sérias”, estas histórias ainda soam infantis. Melhor partir logo para a fantasia juvenil e desvairada.

Também um tanto desequilibrado, Lucas Marques alterna o traço, o estilo e os temas a cada edição, dando a impressão de ser um artista um pouco desorientado na sua busca por um caminho, sendo confuso e poluído em “Mister Lonely”, mas acertando na mosca no traço limpo, caricatural e despojado na ótima “Rarimish, o messias”, a melhor história de todas as Aerolito. O humor pode ser uma boa. Já Túlio Mendes, atrás dos outros, precisa melhorar a ação e o dinamismo tanto dentro dos quadros quanto entre eles (e soltar o traço!), para fazer as histórias fluírem melhor, além de abandonar quaisquer pretensões de histórias muito “adultas”. Não é um desperdício do seu tempo ler o trabalho destes erráticos quadrinistas, mas há um salto ainda entre o que estas histórias oferecem por trás de sua suposta ousadia e a envergadura do projeto editorial. 

Pigmaleão – Diego Sanchez (Circuito Ambrosia, 2014, 52 p.): e eis que o quadrinista carioca Diego Sanchez, anos depois da “treta de 2012”, retorna às páginas de Raio Laser. Zoações à parte e zero de ressentimento de ambas as partes (o cara é gente boa), temos em mãos este delicado, intuitivo e esotérico Pigmaleão, um salto quântico em relação ao que ele havia apresentado em Peixe fora d’água. Aqui, temos uma história de requadros sem arestas cuidadosamente costurada em torno da iconografia do Tarô de Marselha, a partir de sonhos dentro de sonhos de um jovem processando um relacionamento irreparável em seu inconsciente profundo. Se o tema não é lá dos mais originais (o mito de Pigmaleão para a fantasia masculina da mulher ideal também acabou se tornando um clichê), Sanchez nos conquista com a beleza minimal de seus desenhos (lembra o francês Lewis Trondheim), com o movimento delicado e sinuoso das diagonais de seus quadros, com os intervalos e silêncios que exemplificam sua maturidade narrativa, com o erotismo refinado a partir do qual elabora afetos e mágoas. Memórias inventadas são um bom tema para um tipo de arte que embaralha imagens em diversos níveis e plataformas, e neste ambiente Sanchez encontra porto seguro para expiar seus tormentos e inquietações. 

Coral – Taís Koshino (Selo Piqui, 2015, 22 p.): seria injusto criticar Coral apenas pelo amadorismo de seus desenhos. Certo, Taís Koshino não é uma desenhista profissional, mas, até aí, críticas a um estilo rude e até grosseiro poderiam ser levantadas contra desde Gary Panther, passando por Arnaldo Branco, e até a Henfil ou Wolinski. A questão mesmo é que a excelência nos desenhos deixou de ser pré-requisito para se fazer quadrinhos, goste-se disso ou não.

Coral é o trabalho mais maduro da autora, em sua busca silenciosa por autoconhecimento, em sua experimentação com as divisões e cores dos quadros, com a espessura do lápis, tudo eivado com um tom escapista e melancólico. Temos, por exemplo, a bela exploração de um certo discurso indireto livre em quadrinhos, marcado pelos planos em primeira pessoa, que terminam num quadro magritteano. Sem estardalhaço e sem recursos apelativos, a autora vai cavando sua subjetividade radical na cena dos quadrinhos independentes brasileiros, por meio da poesia e da abstração. Mesmo assim, ainda falta a Coral um norte que a livre da esterilidade do teimoso dadaísmo aleatório e da aversão ao próprio leitor no momento em que a produção de sentido se faz mais necessária. E, neste caso, produzir uma arte simplesmente naïf não ajuda. 

Velhaco’s – André Aguiar (TocasTudios, 2013, 14 p.): Velhaco’s é uma aventura bate-pronto cheia de fuleiragem misturando universos do skate, do cyberpunk, do antropomorfismo, do videogame vintage, etc. A coisa é curta e rasante como um esporro, e o desenhista e roteirista André Aguiar não economiza nas tintas rabiscadas, como se se aproveitasse de uma arte-final de improviso, para narrar a história de dois maloqueiros na missão doida de salvar um gatinha de robôs, policiais, coisas assim. É como se o filme Warriorstivesse um spin-off underground na revista Animal. Se o resultado parece tolo e esquecível, é porque não tinha como ser diferente. O punk não pode ser eterno. 

GoróLuiz Berger (Org., Gordo Seboso, 2013, 76 p.): histórias de bebedeira. Esta simples premissa poderia ser motivo de esta publicação de 2013 ser nada mais que pura tosqueira. Porém, um bom punhado dos autores do gibi resolveu usar a birita como gatilho para criar situações pitorescas, histórias policiais e até reflexões existenciais. Editado por Luiz Berger, o rei da escatologia, Goró de certa maneira demonstra como o quadrinista brasileiro contemporâneo consegue se virar em qualquer situação, topar qualquer empreitada, transformar merda em ouro. Abraham Diaz, por exemplo, cria espécie de True Detective dos mendigos birituns numa história, cheia de recursos, de traição, espionagem e morte. Eduardo Belga tem aqui um de seus trabalhos mais impressionantes em quadrinhos, levando o conceito de “porre” para além de qualquer limite, num texto que nada deve a um Pedro Juan Gutiérrez. No final, esmagados pela night de sexo dantesco, pela consciência moral e pelo excesso de “Ph de buceta”, o leitor é esmigalhado junto com autor e personagens.

O quadrinista Victor Bello traz a melhor contribuição da revista, “Mijo de Cristo tem poder”, possivelmente uma das histórias mais profanas jamais publicadas. Com quadrinização minuciosa e bem feita (digna de um Daniel Clowes bananense), o autor conta a história de um padre que faz uma cachaça com o mijo de Cristo. Os detalhes são escrotérrimos, com gags infames em timing perfeito. Vale mencionar ainda a boa contribuição do americano Josh Bayer, que, numa história rabiscada e um tanto preguiçosa, recobra aleatoriamente sua relação com festas regadas a bebida e com o álcool em si. Segura o suficiente para trazer mais consistência à revista, que poderia dispensar algumas pin ups e outras histórias curtas e rasas que são puro filer. Mesmo assim, vale tomar uma cerva pra celebrar.

Know-Haole Nº 2Diego Gerlach (Vibe Tronxa, 2013, 14 p.): Gerlach é um quadrinista punk e sua linguagem é a da mais pura malacaiagem das ruas, uma coisa febril e violenta, onde os personagens parecem estar sempre sob efeito de tóxicos estimulantes, noiados e sem rumo. O leque de referências aparece por toda história dos quadrinhos e desenhos, com paródias de Droopy, Dick Tracy e Disney, passando por coisas mais underground. Gosto de dizer que ele dá a mesma pala crackeira do Gabriel Góes e seu irrefreável Kowalski, e também que me lembra a dupla espanhola Gallardo e Mediavilla, de Makoki, algo extraído diretamente da estética alucinada dos anos 80. E esta década é referência para Gerlach. Suas histórias são de encontros fortuitos e desvairados nas ruas, com tipos urbanos bizarros, linguagem de mala e abreviações de internet, e muito de suas qualidades está em embaraçar estas referências todas num estilo inconfundível.

Know-Haole 2 traz algum do seu melhor material, com as histórias entrecruzadas de Gilso, um cachorro de rua que se fode numa treta com outro mendigo; e a de Charlindo, um pato loser que tem um colapso nervoso ao tomar um choque elétrico. A história funciona como um furacão alucinado de visões turvas e impressões doentias das coisas. Mas atenção: é quadrinho de rua, é quadrinho de doidão. Sem pudores por aqui.

A Última Bailarina – Guilherme de Sousa (Korja dosQuadrinhos, 2014, 52 p.): não é que este seja um trabalho especialmente ruim. Ele tem algum carisma e um conceito: três personagens pitorescos (um ursinho de pelúcia machão – onde eu vi isso? –; uma garota bailarina abobalhada e ingênua; e um unicórnio efeminado) precisam resistir a um apocalipse zumbi. Os desenhos são “fofos” (ainda que muito pobres em composição e cenário) e algumas gags funcionam (ainda que com problemas de ritmo), mas os problemas se sobrepõem: primeiro, QUEM aguenta mais histórias genéricas com zumbis, seja em chave de ironia ou não? Segundo: personagens grosseiramente estereotipados, sem se definirem enquanto adultos ou infantis. Terceiro: cacoetes de animação, com uma história que anda em círculos procurando preencher o espaço de 15 minutos de duração. Enfim, por quê lançar um livro luxuoso, com boa impressão e gramatura, com este material, eu tenho minhas dúvidas. 

Rapidíssimas (zines):

GaiolaMorgana Mastrianni

(Independente, 2013, 12 p.): misturando influências de expressionismo e teatro kabuki, a autora tece uma intrigante narrativa muda sobre máscaras (literais e metafóricas), tangendo o inconsciente feminino em eficiente simbolismo em quadrinhos.

Re/Forma – Luís Aranguri (Aparato/Independente, 2014, 10 p.): o quadrinho abstrato ainda é uma novidade conceitual no Brasil, mas o trabalho (simples e efetivo) de Luís Aranguri inspira a imaginar (guardadas as proporções) o que Kandinsky ou Mondrian poderiam ter pensado sobre o meio. Aqui, o autor provoca um esfacelamento gradual do espaço em quadrinhos a partir do próprio uso da leitura sequencial e de seus recursos, produzindo um quadrinho que se autossabota, um antiquadrinho.

Pirata Perna Curta

Nº 1 – Chico, Thiago Fagundes, Lucas Feat, Mayra (Pirate Books/Independente, 2015, 14 p.): à parte um bom conto cáustico de Lucas Feat, o material desse zine parece coisa de iniciante, um tanto insípido, lembrando tiras amadoras de Facebook, com pin-ups dispensáveis e quadrinhos muito destoantes entre si. A intenção é um espírito meio Mad, mas o resultado tá mais pra Will Tirando.

Quer Dançar? – Guilherme de Sousa (Independente, 2013, 32 p.): uma história muda e amalucada que envolve sexo casual, um feto largado no esgoto e a proliferação de uma raça de homens-crocodilo num estilo meio Marcelo Cassaro funciona muito melhor do que a empreitada mais “ambiciosa” do autor (acima). Eis o caminho. 

Recreio com rock e quadrinhos

Recreio com rock e quadrinhos

Rock e histórias em quadrinhos são expressões artísticas que têm caminhado juntas na trajetória recente da banda brasiliense Quebraqueixo. Em 2010, o quarteto lançou seu segundo disco, A banda desenhada, projeto que inclui, além de CD, HQ de acabamento luxuoso, com capa dura, e histórias adaptadas das letras da banda feitas por 14 talentosos quadrinistas de Brasília.

Realizado com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura do GDF, o projeto teve como contrapartida uma série de shows e oficinas de histórias em quadrinhos em escolas da rede pública do Distrito Federal em 2011. Alunos, professores e a banda gostaram da experiência e, em 2014, o Quebraqueixo emplacou o Festival Itinerante Rock e Quadrinhos. Também viabilizado pelo FAC, o projeto rendeu 12 edições no ano passado e, pelos próximos meses, continuará passando por escolas do DF.

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Batman e seu pretenso realismo

Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar que gosto muito do personagem criado por Bob Kane, e que constantemente leio e releio HQs de Batman, incluindo o arco da Era de Prata escrito por Denis O'Neil, o não menos relevante O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, a obra cult A piada mortal, de Alan Moore, como também o igualmente impactante Asilo Arkham, de Grant Morrison.

Considero todas as obras mencionadas verdadeiras referências do gênero super-heróis e não tenho dúvidas de que tais obras auxiliaram na iconização do personagem, conferindo a ele uma tonalidade quase mítica. Essas HQs foram fundamentais na constituição de um rico imaginário para os leitores, não somente pela excelente qualidade das tramas, como também por apresentarem o famoso arquétipo do vigilante detetivesco pulp em um mundo mais próximo ao nosso, mais palpável, mais cotidiano e atual (em seus respectivos contextos), ou seja, por mostrarem ações e relações mais plurais, no sentido de apresentarem os defeitos e as obsessões de Bruce Wayne e uma série de elementos humanos que antes eram camuflados ou suprimidos pelas cenas de sopapos regados a onomatopeias policromáticas, carros góticos bizarros e equipamentos ao estilo Mandrake.

O mesmo vale para o excelente filme O cavaleiro das trevas, de Christopher Nolan, e seu senso de pretenso realismo e pragmatismo em torno do ambiente ficcional e dos coadjuvantes do Batman, incluindo o famoso vilão Coringa e sua lógica hobbesiana no que tange ao instinto de sobrevivência imanente a todos nós. Fora todo o senso estético do filme regado a uma ação e a uma fotografia que deixam de lado o excesso de computação gráfica para dar lugar a cenários, modelos, fios, máscaras, efeitos de câmera e afins, tudo com o propósito de alcançar um impacto mais "realista", segundo palavras do próprio diretor em entrevistas.

Nolan e seu pretenso realismo

Pois bem. A questão que coloco se resume a esse "pretenso realismo inerente" em torno do Batman, um realismo comumente apregoado por artistas, roteiristas, leitores e aficionados, à exaustão. Mais de uma vez perguntei a amigos, conhecidos e fãs do personagem sobre filme de Nolan e a reposta usual se deu em torno da frase: "gostei porque achei realista". O mesmo vale para opiniões de botequim no que concerne ao personagem em si. Quantas opiniões seguiam a cartilha do "eu gosto muito mais do Batman do que do Super porque ele é mais realista, porque não passa de um homem comum".

Em primeiro lugar, o fato de um personagem ser aparentemente próximo a um homem comum não o faz ser necessariamente realista, isso porque "ser humano" é algo que vai além das características fisiológicas de nossa natureza mortal (como daquele sujeito que em todos os sentidos parece um mero mortal, mas que possui um senso moral sobre-humano, no sentido de ser incorruptível em qualquer situação). Em segundo lugar, porque não basta existirem personagens aparentemente comuns para que uma obra seja realista, como bem comprova o conto Alice no país das maravilhas e tantos outros personagens como a gente que visitam lugares completamente míticos, fabulosos e fantasiosos (por acaso um homem comum não ficaria completamente insano no País das Maravilhas, tal como ficou o Chapeleiro Louco?). Em terceiro lugar, porque, apesar de parecer humano, Batman, em todas as mídias onde foi representado (incluindo a caricata série de TV dos anos 1960 estrelada por Adam West) fez coisas que pessoas comuns jamais fariam, tais como lutar com os punhos e diversas bugigangas contra criminosos munidos com armas de fogo, estando envolto em uma capa e travestido de morcego. Desculpem por escrever e acentuar o óbvio, mas sobreviver durante anos esmurrando criminosos pelos becos escuros de uma cidade fictícia chamada Gotham está longe de ser algo palpável e realista segundo critérios válidos e racionais.

Batman seria tão realista quanto James Bond, Sherlock Holmes, Indiana Jones, Rambo e todos os demais personagens que apenas se parecem com pessoas comuns à primeira vista, mas que fazem coisas fisicamente e intelectualmente impossíveis para qualquer um de nós, mortais do mundo real. Se pararmos para pensar um pouco, concluiremos que é mais próximo da realidade um alienígena super-humano vergando uma ridícula cueca por cima das calças (até porque não sabemos como é a moda em Krypton) do que seres humanos sem poderes quaisquer realizarem tudo aquilo que todos os personagens citados acima conseguem.

Rambo: tão realista quanto Batman

Isso sem falar no fato de que nenhum filho de qualquer mega empresário do mundo real se tornaria, sob quaisquer circunstâncias reais, o Batman, mesmo após a morte traumática dos pais em um beco lúgubre e sujo. Isso é facilmente comprovado pela própria realidade que nos cerca: existem milhares de pessoas no mundo real, filhos de empresários ou não, que perderam entes queridos em assaltos e crimes quaisquer e nenhum deles, sob quaisquer circunstâncias ou situação se transformou em algo próximo ao Batman pelo que se sabe. Ou seja, realismo é aquilo que em situações reais acontece e não aquilo que em situações reais não acontece.

This is real life, bitch!

Estou falando aqui de um sujeito trajando roupas de morcego que literalmente sai saltitando pelos arranhas céus de uma grande metrópole ou mesmo que se locomove velozmente pelas vias públicas em um carrão estranho e estilizado. Nem vale argumentar que existem, pelas vielas de alguma grande metrópole, indivíduos fantasiados como o Batman.

Caso existam, bem, tais indivíduos devem ser completamente incompetentes no combate ao crime (eu nunca vi no jornal qualquer manchete do tipo, "famoso gângster nova-iorquino foi preso pelo vigilante mascarado denominado Mosca") e provavelmente se tornaram vigilantes após leitura de alguma HQ dessa natureza (casos excepcionais em que a realidade imita a ficção).

Realmente não existe nada de realista no conceito do Batman enquanto personagem ou metáfora da vida urbana mortal das grandes cidades, nada de realista no conceito de alguém vergando um collant cinza de morcego enquanto combate os mais perigosos delinquentes com equipamentos diversos e ultrassofisticados para levá-los à justiça. O que temos é um mero cenário que lembra em alguns aspectos o mundo real, um protagonista ficcional voltado para entreter crianças e adolescentes a partir de aventuras irreais, no máximo passando por situações que lembram alguns aspectos da vida real.

Normalmente obras realistas tratam de pessoas e temas comuns ao extremo, do cotidiano, de relacionamentos e situações usuais, ainda que representem personagens e obras de ficção. Podemos chegar ao mais próximo do realismo em um documentário, uma foto ou sequência de fatos narrados, um texto de cunho puramente descritivo, uma narrativa de acontecimentos, talvez um diário de vida, uma entrevista de história de vida. Mas, mesmo assim, são todas apenas representações da realidade, claro, uma visão que toma certas partes pelo todo, visto que nenhuma obra consegue e nem se pretende abarcar o todo real do mundo e das coisas reais do referido mundo (uma leitura da obra do filósofo Michel Foucault ou mesmo do historiador Roger Chartier poderia auxiliar nas divagações inerentes entre realidade e representação do real).

Batman e a eterna obsessão pelo realismo

Mesmo assim, muitos argumentarão que em paralelo a outros tantos personagens das HQs, o Batman seria um dos mais realistas. Como apontado mais acima, eu já expressei minha opinião que isso não se confirma de fato, que o personagem está longe de qualquer realismo em suas premissas fundamentais, tratando-se sim de um conceito eminentemente infanto-juvenil. O que acho do Batman, e considero que o filme de Nolan fez isso como ninguém, é que ele pode ter um alto grau de verossimilhança se bem estruturado e trabalhado narrativamente com esse propósito e isso não significa ser realista, mas sim ser mais palpável dentro de seu absurdo ficcional, de sua irrealidade inerente.

Em termos conceituais, o termo latino veri similis (de onde advêm a palavra verossimilhança), tratado por retóricos e oradores do porte do político e senador romano do século I a.C, Cícero, significava algo que, em dada situação, poderia ser aproximado ao real, ainda que não fosse a realidade concreta, mas sim um espelho do real, mesmo que a imagem representada não fosse a coisa em si e até pudesse ser distorcida ou invertida. Verossimilhança significava que "se aconteceu tal coisa, em dada situação, poderia acontecer isso ou aquilo a partir do fato e isso após uma análise sobre o que se sabia sobre o assunto em questão, ainda que fosse algo inexistente e irreal".

Assim, o que era verossímil não era necessariamente verdade ou realidade enquanto tal. Como bem afirmou Aristóteles sobre o assunto, "seria verossímil que namorados se amassem e inimigos se odiassem, ainda que não fosse verdadeiro ou real que isso acontecesse em todos os casos ou em algum caso específico, pois existiam namorados que em dadas situações se odiavam e inimigos que se amavam".

Em outras palavras, um sujeito do porte do Batman não seria considerado realista em hipótese alguma na visão de qualquer orador grego ou latino de renome e nem para qualquer um de nós que saiba minimamente a diferença entre realidade e representação, verdade e verossimilhança. O que posso sustentar com tudo isso é que, em algumas obras, principalmente no supracitado filme de Nolan, Batman e seu ambiente ficcional, incluindo muitos de seus coadjuvantes, possuem certa verossimilhança.

Ora, apesar de Batman não ser verdadeiro ou real, apesar de ser irreal qualquer ideia de um sujeito fantasiado de morcego lutando contra o crime, é verossímil na obra de Nolan, que, dada a ideia de que isso seria a tônica de uma obra ficcional, tal personagem irreal faça, em dada situação, coisas palpáveis e verossímeis segundo o que se apresenta na obra. Em outras palavras, o filme do Nolan se utilizou de alguém irreal ao extremo, o Batman, e deu-lhe coisas palpáveis para ele segundo graus elevados de verossimilhança, dando um aspecto apenas pseudo-realista às narrativas, tudo isso auxiliado pelo fato de os espectadores que viram o filme confundirem conceitos como os de verdade, realidade, representação e verossimilhança.

Nolan e outros tantos roteiristas que apresentaram doses de pseudo-realismo ao Batman estavam afirmando que, dado o absurdo de tudo isso, tal conduta ou ação seriam verossímeis em dada situação, ainda que em essência toda a situação envolvendo um sujeito vestido de morcego seja irreal ao extremo. Diversos exemplos podem ser citados a partir do filme de Nolan, como a pretensa realidade de pânico coletivo apresentado ao longo da narrativa ou o experimento sociológico do Coringa ao final do filme, ou mesmo uma entrevista em que um promotor público, Harvey Dent, afirma ser na verdade o Batman.

A partir dessa grande confusão conceitual do que seja realismo e verossimilhança, muitas pessoas passaram a tratar algo irreal como papável sob diversos critérios realistas, esquecendo-se de que se trata de algo palpável apenas sob critérios verossímeis. Mas vejam, por poder ser verossímil, e isso apenas em algumas obras ou arcos, Batman é um personagem bastante interessante, talvez muito mais próximo de arquétipos junguianos do que qualquer outra personagem do universo ficcional de super-heróis.

Ano um, de Miller, é uma das obras mais verossímeis envolvendo Batman

O Batman representado como um sujeito real se tornou uma tradição dos quadrinhos, seguindo a onda dos escritores nerds que passaram a figurar nas grandes editoras de quadrinhos a partir do final da década de 1960. Autores como Roy Thomas, Denis O'Neil, John Byrne, Cris Claremont, Frank Miller, dentre outros, se tornaram famosos e reconhecidos ao trazerem toques de verossimilhança a personagens de quadrinhos mainstream de super-heróis, ainda que a tradição desses quadrinhos tenha difundido a fórmula de que se tratava de narrativas realistas ou pior, que os personagens eram realistas em essência.

Esse engano se deu por motivos variados e cito aqui algumas conclusões de Grant Morrison sobre o assunto na obra Superdeuses. Por um lado, afirma o roteirista inglês, se trata de uma teimosia do mundo adulto que se nega a aceitar a distinção entre fantasia e realidade (diferentemente das crianças, que brincam de faz de conta sem culpa, sabendo que tais brincadeiras não são reais e nem devem parecer assim). Por outro lado, desvela a vontade de um público adulto que cresceu lendo HQs voltadas para crianças e adolescentes e que quer continuar com seu hobby de leitores assíduos sem a necessidade de explicarem os motivos de ainda serem leitores de um gênero de fantasia. Além disso, tal movimento se deve a diversificação e ampliação do público consumidor das HQs da indústria cultural mainstream ao longo dos anos 1960-1970, visto que as grandes empresas de quadrinhos procuravam maximizar seus lucros vendendo narrativas infantis para adultos que, em razão de trabalharem, tinham mais poder aquisitivo.

Morrison e sua leitura de Batman

O fato é que o ethos do realismo nas narrativas de super-heróis permaneceu, e muitos leitores, espectadores e fãs acreditam piamente nessa premissa, qual seja, de que pessoas de collants contra o crime podem ser realistas se representadas em situações verossímeis. Como uma mera carapaça, o realismo nos super-heróis não passa disso, sugerindo apenas uma fórmula para vender narrativas de um gênero eminentemente infanto-juvenil. De minha parte, saber dessa distinção entre realidade e verossimilhança em nada muda meu gosto pelos quadrinhos de super-heróis, sejam aqueles mais escapistas ou mais verossímeis. Ao contrário.

Tal como afirmado por Mark Waid e Kurt Busiek em diversas entrevistas, eu aceito o gênero de super-heróis em sua natureza eminentemente infanto-juvenil, seu irrealismo inerente ou seu pseudo-realismo regado a verossimilhança. Aceito, me divirto com algumas narrativas e sigo adiante com meu hobby. O que gosto de Batman não é o fato de ele ser real ou de expressar qualquer espelho do mundo real, mas por ser verossímil às vezes em sua irrealidade inerente, por ser eminentemente ficcional e incrivelmente mítico.