Rapidinhas #14

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Em meio à pandemia, o show não pode parar. Continuamos tocando violino enquanto o navio afunda. Por aqui, mais pequenas resenhas de quadrinhos nacionais. Tem uns de pegada mais abstrata, tem lançamentos da editora Mino, tem Ugrito da LoveLove6, tem Periferia Cyberpunk. Dá uma olhada! (CIM)

por Márcio Jr., Marcos Maciel de Almeida, Ciro I. Marcondes e Lima Neto

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Garotos do Reservatório – Celio Cecare e Fábio Cobiaco (Mino, 2018, 208 págs.): Pode-se dizer – entre infinitas outras taxionomias – que existem dois tipos de quadrinistas: 1) os que se assentam sobre um determinado estilo e empenham toda sua energia em desenvolvê-lo; 2) aqueles que estão num constante processo de experimentação. Flavio Colin e Julio Shimamoto – baluartes do quadrinho nacional – são, respectivamente, notáveis exemplos destas diferentes abordagens artísticas. Enquanto o primeiro levou a estilização de seu traço às últimas (e maravilhosas) consequências, o segundo segue a carreira num inquieto processo de reinvenção da própria obra.

Apesar de entusiasmado admirador do mestre Colin, é à perspectiva sempre inovadora de Shima que o trabalho do veterano Fábio Cobiaco se encontra afiliado. Compare a arte deste Garotos do Reservatório com o que foi anteriormente mostrado em Mayo e V.I.S.H.N.U. e tire a prova dos nove. Cobiaco lança mão de uma notável síntese geométrica e precioso uso de retículas para acrescentar uma dimensão extra ao roteiro de estreia de Celio Cecare.

Garotos do Reservatório poderia se passar no Brasil, mas a opção por ambientar a trama nos EUA atesta o desejo de Cecare em produzir uma legítima HQ de gênero – no caso, noir. Se sai bem – principalmente por não restringir a graphic novel a uma mera aventura policial. Garotos do Reservatório é, antes de mais nada, um escrutínio acerca da adolescência, da amizade e das escolhas – às vezes capitais – que fazemos na vida. Que venham as próximas escolhas de Cobiaco e Cecare. (MJR)

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Lombra (Coleção Ugrito #19) – Gabi Lovelove6 (Ugrapress, 2019): Conhecida pelo já clássico Garota Siririca (2013), Gabi Lovelove6 voltou a atacar ano passado com o gibizinho Lombra, que aborda temas bastante caros para a autora, como preconceito, amor livre e resistência. A história começa com os momentos finais do ataque de um bando de brutamontes homofóbicos a uma garota, que momentos mais tarde se envolve com uma entidade feita de maconha. O repentino romance é interrompido por nova agressão dos bullies, ainda mais ensandecidos. Não fica muito claro se os acontecimentos são reais, ilusórios ou mera nóia. E isso é intencional. Gabi mostra-se hábil para narrar um conto relativamente complexo numa fórmula bastante restritiva: dezesseis páginas sem balões nem recordatórios, em formato A6. Ponto para a Ugra por dar espaço para quadrinistas independentes expressarem seus pontos de vista em tempos em que o estilo de vida de cada um continua a passar pelo crivo de uma sociedade intolerante e hipócrita. Bravo. (MMA)

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Onírica – Fábio Q. (Independente, 2017): Enigmático e fugaz como um sonho, Onírica é o tipo de gibi instigador de várias leituras, que se revelam vãs tentativas de decifrar o indecifrável. Trata-se de uma obra feita no formato pouco usual de pinturas encadeadas em arte sequencial. Embora a transição entre as páginas nem sempre seja fluida, mostrando-se um pouco “quadrada”, Onírica tem o mérito de ousar brincar com a nona e a terceira artes, combinação infelizmente pouco explorada. Fazendo uso de uma paleta de cores basicamente vermelha e azul, Fábio convida o leitor a percorrer uma história fora do tempo e do espaço. Seu estilo mistura elementos de colagem, pintura e desenho, lembrando um certo Dave McKean, muito famoso por desenhar as capas do irmão mais complexo da família dos Perpétuos. Dado o título do gibi, dá para perceber que a influência não é mera coincidência. (MMA)

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Fujie e Mikito – Yuri Andrey, Marcelo Costa (Mino, 2019): Fui ler Fujie e Mikito com interesse porque logo vi que era baseado numa ótima premissa. O roteirista Yuri Andrey e o ilustrador Marcelo Costa contam, em forma de quadrinho documental (com algumas liberdades poético-ficcionais), a “saga” de uma família japonesa ao imigrar para o Brasil nos anos 1950. A pesquisa é séria e o tema, cheio de potencial, muito pertinente. No entanto, com uma narrativa lacunar e uma arte estilo gekigá não muito inspirada, o livro nos devolve a sensação de que algo está faltando. Eu diria mesmo: quadros. Falta decupagem, esquadrinhamento da vida daqueles personagens. Enche-nos a sensação de que mais atenção aos detalhes poderia ter aberto melhor essas pessoas que nos parecem, ao final da leitura, ainda totalmente estranhos. Além disso, há um desequilíbrio entre a metalinguagem (na minha opinião, desnecessária), que aparece pouco, e o conteúdo propriamente documental. Nem todo mundo pode ser Eduardo Coutinho. (CIM)

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Este não é um lugar seguro – Guilherme Silveira (Selo Reverso, 2019): Georges Rocque, um crítico de arte que tive a oportunidade de estudar, afirmava que a arte abstrata era uma forma poética de comunicação. Jamais havia visto comprovação tão eficaz quanto este livro de Guilherme Silveira, que, num formato sanfonado e um grid 3x4, vai deixando acontecer, em variações minuciosas de nanquim, uma odisseia de ideias visuais que se alternam entre o plácido, o equilibrado, o desarranjado, o agressivo, o escasso e outras tantas “emoções gráficas”, por assim dizer.

Um dos meus curtas-metragens favoritos se chama An optical poem, que o alemão Oskar Fischinger realizou para a MGM em 1938. Foi o primeiro filme abstrato a ser lançado por um grande estúdio de Hollywood. Ele transmite um forte senso de ritmo e lirismo que nos eleva a aspirações maiores, como se invadíssemos uma orquestra do mundo geométrico. Silveira, notavelmente, repete esse feito aqui, usando, ao mesmo tempo, os aspectos sequencial e tabular dos quadrinhos para progredir (por que não?) numa espécie de narrativa composta somente de linhas, transformação e movimento potencial, o que nos desperta sensações mistas e emoções verdadeiras. No fim das contas, trata-se de algum “lugar” entre a rarefação e a saturação, e nada que se situe por ali pode ser seguro, já que, no final das contas, a arte é o local do risco por excelência. (CIM)  

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Periferia Cyberpunk – Vários (Draco, 2018): Trinta e quatro anos separam o Neuromancer, de William Gibson, da coletânea Periferia Cyberpunk, publicada em 2018 pela Editora Draco. O livro de Gibson popularizou o termo (surgido um ano antes no conto homônimo de Bruce Bethke publicado na revista de ficção científica Amazing Stories), enquanto que o filme Blade Runner lhe deu uma especificidade estética muito marcante, embora bastante datada. Qualquer autor que queira realizar um produto cultural que se enquadre neste gênero, irá de encontro a um dilema: seguir os ditames de obras anteriores e garantir uma identidade cyberpunk à sua obra; ou explorar o campo fronteiriço de um gênero que precisa de renovação para se manter relevante e ainda se destacar em meio às ramificações criadas a partir dele (steampunk, biopunk, etc.). A antologia de HQs Periferia Cyberpunk vai ser um irregular passeio por esta fronteira. 

A premissa do gênero gira em torno de um futuro cenário de capitalismo tardio onde a informação é a maior das riquezas, e a pirataria e a subversão de tecnologias é a principal estratégia para sobreviver, muitas vezes sob o custo do corpo físico. Na antologia da editora Draco encontramos um pouco de cada um desses aspectos. Muitas histórias reprisam clichês em roteiros e layouts confusos, outras conseguem ter consistência o suficiente para se perceber uma intenção em direção ao novo. O peso da “periferia” do título, entretanto, é rapidamente diluído com a leitura. Ela está presente no pastiche “dreddiano” de “Só os Vilão”, escrita por Airton Marinho e arte de Jader Corrêa; nas estações de metrô do Sol Nascente, maior favela horizontal do Distrito Federal, em “Iansã Ferida”, de Guilherme Wanke e arte de Braziliano; e na periferia fictícia que se construiu em torno do Cristo Redentor, que é cenário de “Babel de Cristo”, de Lucas Barcellos e arte de Jean Sinclair. No restante das histórias, a ideia de periferia se confunde com os chavões de sociedades subterrâneas, morlocks mutantes e excluídos em geral. 

Periferia Cyberpunk (assim como outras antologias da Draco que entrei em contato) se beneficiaria de uma quantidade de páginas menor, papel de melhor qualidade e impressão colorida. O papel pólem não é ideal para os tons de cinza que insistem em usar, além de que, seu tom creme atrapalha a leitura de páginas que muitas vezes já apresentam layouts confusos e reduções desconfortáveis (90% da HQ foi lida com auxílio de lupa). O amadorismo de boa parte da revista prejudicou a leitura de premissas interessantes.  Artistas como o citado Braziliano, Azrael de Aguiar (“Condomínio Paradise”) e Akemi Hayashi (“Midriasi”) apresentam traços pessoais promissores, mas ainda precisam afiar muito suas habilidades de storytelling com imagens.

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O destaque da edição está em “Fortaleza 2068”, com roteiro de Raphael Fernandes e a bela arte de Doc Goose. É a HQ mais bem estruturada e profissional do livro todo, com uma narrativa clara que adapta bem o cyberpunk em um contexto brasileiro, mesmo que deixe a questão da “periferia” de escanteio. A arte de Goose não lembra em nada os ambientes sombrios iluminados por luzes neon que estão ligados ao gênero, é bem humorada e solar, e com um humor negro um tanto brega (no bom sentido) dando ao produto final uma cara distinta, uma certa autenticidade,  como uma dessas versões super produzidas de músicas internacionais em rítmo de forró que tanto vicejam o Ceará e acabam por ganhar o Brasil todo. Nesse sentido, há uma relação periferia-centro presente na história, mas em um âmbito nacional. (LN)