Rapidinhas #18: Dia do Quadrinho Nacional 2023

Mais uma vez sob o ensejo do Dia do Quadrinho Nacional (celebrado em 30 de janeiro), esta edição das “rapidinhas” (pacote de resenhas curtas - ou nem tanto - da Raio) aborda a produção brasileira. Alguns autores são velhos conhecidos (aproveitem para clicar nos hiperlinks e conferir resenhas antigas para obras deles), outros estreiam por aqui. Uma de nossas intenções em 2023 é acelerar a prática do texto escrito novamente (sem abandonar o Lasercast, claro!), valorizando essa sofrível tradição em crítica de quadrinhos, que parece ter se tornado mais rara que encontrar um canguru no meio da floresta amazônica. E sem chatGPT, é claro! ;) (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes, Marcão Maciel e Bruno Porto

Bully Bully – Yuri Moraes e Bruno Guma (Darkside, 2022): Neste novo trabalho escrito pelo ex-roteirista da MTV Yuri Moraes, encontramos uma densa proliferação de imagens perturbadoras, às vezes aparentemente desconexas, alinhadas em três fases da vida de um homem que encontra sobressaltos exoticamente familiares na infância, na juventude e na vida adulta. Muda, a HQ nos coloca em situações de projeção-identificação no limite da interpretabilidade, dando vazão a uma imageria de pesadelo, inconformidade, solidão, inadequação, julgamento.

De Yuri Moraes, já escrevi por aqui também sobre Garoto Mickey (que na época achei um tanto pernóstico, mas precisaria reler hoje com novos olhos) e Wasteland Scumfucks: Terra do Demônio, cuja piração alucinada me rendeu ótimas impressões. Ele é um autor ao mesmo tempo cerebral, sombrio e ácido, combinação que gera quadrinhos com a capacidade de nos desarranjar em ambientes desconfortavelmente familiares, fazendo proveito da ambiguidade profunda das imagens silenciosas. Um mestre do Unheimliche freudiano, meio Edgar Allan Poe, meio Charles Burns.

Por fim, vale também um elogio generoso à arte do ilustrador Bruno Guma (de Pile Up e com uma ótima história na Harvi) que soube decodificar na minúcia essa intencionalidade bipolar de Yuri Moraes, trabalhando a cinética das páginas, o formato dos quadros, o acelerar e desacelerar das ações, fazendo a gente acreditar que estamos diante de um potencial grande narrador visual brasileiro. Inclusive, seria difícil não mencionar propriamente a cena da queda do personagem corredor, no final do livro, decupada com a maestria de um Eisenstein. Desta feita, fica logico concluir que Bully Bully é um das mais bem-vindas contribuições do quadrinho nacional em 2022. (CIM)

Pato Gigante – Gabriel Dantas (Ugrapress, 2022): O recente lançamento da Ugra Press coleciona as tiras publicadas no perfil @bifedeunicornio, de Gabriel Dantas. Pato Gigante é uma tira de 2021 publicada na página, que conta com mais de 180 mil seguidores no Instagram. O simpático gibizinho, no formato 15 x 15, conta a história de Letícia, dona de um pato gigante que serve como amigo e conselheiro para suas desventuras amorosas. Com forte teor humorístico – bastante sofisticadas para um autor de vinte e poucos anos –, as tiras resvalam para tons ora reflexivos ora existenciais, no melhor estilo Peanuts.

Embora tenha o formato tradicional de tira, com apresentação, desenvolvimento e clímax – normalmente com desfecho cômico – há sequencialidade na história, que mostra a evolução da relação entre os personagens, cujo elenco é formado pela amiga secretamente apaixonada pela protagonista e um sem número de personagens bizarros, tragicamente reais. Aparentemente superficial, as camadas de Pato Gigante se revelam mais consistentes numa segunda leitura, onde descobrimos o motivo do timing da “viagem mochileira” do pato pelo mundo, deixando Letícia privada de seu principal confidente.

Bela tacada da Ugrapress, conhecida editora independente paulistana, de lançar gibi de uma mini-celebridade da internet, promovendo saudável intercâmbio entre o “mainstream” digital e o público underground, estabelecendo pontes e criando conexões mutuamente benéficas. Corra e garanta sua versão física, antes que o Instagram desapareça, deixando na mão todos que acreditaram na passageira confiabilidade de uma coisa chamada nuvem. (MM)

Você Não me Conhece – Guilherme de Sousa (Independente / Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2021): Os anos mais críticos da pandemia podem ter passado (?), mas a marca que aqueles meses entre 2020 e 2021 encravaram na alma da gente com certeza vão nos acompanhar até o fim da nossa errática experiência com este mundo. Você Não me Conhece, do quadrinista carioca Guilherme de Sousa, revive o pesadelo de sua traumática experiência pessoal com internação na UTI e o c*ralho a quatro, em tintas vívidas, ressonando o drama e a incerteza, além da sombra constante da morte, daqueles incomuns e inexplicáveis dias. Eu mesmo tive um irmão também internado. Momentos de provocar a irrupção de uma fé torta e claudicante até mesmo no mais improvável dos ateus.

Guilherme de Sousa faz quadrinhos muito simples. Não sou fã da sua série infantojuvenil sobre a Bailarina (ainda que não seja o público-alvo), mas é preciso reconhecer que aqui o cara matou a pau. Há deboche e autoironia, o que, somados aos desenhos esquemáticos e à quadrinização bastante objetiva, ajuda no empurrar de situações de angústia que nos colocam numa máquina do tempo, direito ao olho do furacão. Guilherme tem um ótimo texto, grande compreensão de si mesmo e do contexto de seus familiares, e Você Não me Conhece serve também como purgação de diversos demônios internos que vão se agregando à tragédia da covid, releitura da vida que acredito que muitos de nós realizamos em situações semelhantes. Grande feito, até agora o melhor registro artístico que vi sobre estes anos sombrios de pandemia. (CIM)

Haya e o Tempo – Janaína de Luna e Pedro Cobiaco (Mino, 2022): Libelo animista e pacifista pela memórias dos povos originários, pela preservação do meio ambiente e por uma ação meditativa sobre a passagem do tempo, Haya e o Tempo contém ambição poética associada à sempre hipnótica e psicodélica arte de Pedro Cobiaco. Há belas passagens textuais, colocando pedras, flores e outros seres para narrarem transvisualizações míticas, algumas com quadros e arte beirando a abstração, sobre a origem do tempo, do cosmos e dos seres humanos. O chamado à aventura em questão envolve Haya, uma jovem indígena vivendo em um matriarcado, e Kurema, uma anciã já debilitada, que precisam conduzir uma grande criatura mítica (com trejeitos Miyazakiescos) pela floresta a fim de impedir uma paragem do tempo em si.

Haya e o Tempo é lindamente colorizado, com paletas que se alternam entre cores cintilantes, sombras e um acalourado vermelho que representa os antagonistas garimpeiros. De certa forma, a narrativa é básica, bastante maniqueísta, com indígenas e mulheres gentis e integradas ao seio de “Gaia”, e homens garimpeiros traiçoeiros que acabam vítimas de sua própria ambição. A jornada das duas mulheres, que apresenta um encontro de gerações com aprendizado mútuo, também não tem muita capacidade de nos surpreender. Apesar de ser indicado como “para todas as idades”, este quadrinho serviria mais para um público infantojuvenil, mesmo com a arte elaborada e algumas passagens mais filosóficas (não esperem nenhum Heidegger, no entanto) sobre o tempo e a transmigração das coisas na natureza. (CIM)

Apocalipse, Por Favor – Felipe Parucci (Lote 42, 2022): Apocalipse, por favor é uma reedição mais parruda de um gibi homônimo lançado de forma independente em 2015. Viabilizado por meio da plataforma Catarse, o quadrinho é uma bem-vinda forma de ocupar – ao menos temporariamente – o vácuo deixado pelo quadrinista Felipe Parucci, que já havia lançado outro trabalho de fôlego, o incrível Já Era. Inadequação, vontade de desaparecer e fixação apocalíptica, como se pode perceber a partir dos títulos das obras de Parucci, são uma constante em sua bibliografia básica, que conta ainda com Enxaqueca e Auto Ajuda.

Em Apocalipse, por favor, acompanhamos a história de Arthur, lobo antropomorfizado que, como todos, está bastante preocupado com o fim dos tempos, a ser causado pela iminente colisão de um meteoro com a Terra. Claro que tudo é um pano de fundo para acompanharmos as fobias e neuras do protagonista, que não consegue se encaixar num mundo em que sua função social não parece ir além de carimbar papéis e cumprir uma massacrante rotina, capaz de expurgar qualquer vestígio de humanidade. Esta é outra faceta recorrente de Parucci: demonstrar seu desdém por empregos “normais” e apreço por profissões que tragam satisfação pessoal, mesmo que isso signifique dificuldade em pagar as contas no fim do mês.

Mérito inconteste do autor é a sagacidade com que constrói os detalhes de cada cena, com boas sacadas, como cigarro “Bomboro”, remédio tarja preta “Birutil”, entre outras. Atenção para as tirações de sarro contra empregos tediosos, burocracia e qualquer símbolo que represente autoridade, como igrejas, tribunais de justiça e, claro, o governo.

Agora é aguardar novos lançamentos de Felipe Parucci. O que será que vem por aí? Só espero que não seja o fim. Apocalipse por Favor figurou entre os nossos “melhores quadrinhos lidos em 2022”. (MM)

Dias – Lume (Independente, 2022): Dias é um quadrinho todo entalhado em matrizes de xilogravura pela artista paulistana Luiza Nasser (aka Lume), num trabalho bastante especial de tonalidades sombrias, agreste (porém situado no deserto de milhões que é São Paulo), lembrando inclusive os geniais quadrinhos em xilo de artistas do começo do século XX, como o belga Frans Masereel e o americano Lynd Ward. Guardadas as devidas proporções, Dias tem sensibilidade, recursos de linguagem alternando recordatórios em terceira pessoa, sombras, silhuetas, ângulos interessantes e uma indissociabilidade importante entre o aspecto rústico das gravuras e o sentimento de solidão e inadequação da personagem principal. Trata-se de um quadrinho de sentido um tanto vago e impressionista (com arte expressionista), algo que carece ainda de uma provocação de sentido mais direcionada, mas não deixa de ser, ao mesmo tempo, um belo exemplo do trabalho de uma artista em busca de sua própria identidade. (CIM)

Dawgz – Beatriz Shiro (Ugritos, Ugra Press, 2022): Vamos combinar: nunca é demais continuar sistematicamente a achincalhar o Vagabundo da República que indignamente nos presidiu nos últimos quatro anos. Beatriz Shiro faz isso aqui com categoria. Não, pera, faz com despudor, escatologia e um jeito maravilhosamente escrotinho de pisar no famoso Bolso de Cocô, reduzindo-o a menos que um animal imundo num universo já habitado por cães antropomórficos que tratam humanos como pets. Dawgz é um quadrinho punk, sem noção e abjeto como manda a nossa melhor cartilha contemporânea (Escória Comix/Pé de Cabra), porém resistindo na dignidade com algo meio “cool” (talvez seja a referência ao Sonic Youth na capa), como se a turma do Simon Hanselmann fosse ilustrada pelo Fabio Zimbres. Enfim, doidêra, gibi curtinho da coleção Ugrito, errático com traço “foda-se” – mais um chulo exemplo pra galeria do fabuloso “gibi podre” brazuca contemporâneo. (CIM)

Harry e André – Pedro D’Apremont (Pé de Cabra, 2022): Um favorito da casa (basta checar o header deste mesmo site), o brasiliense Pedro D’Apremont acaba destoando um pouco das outras publicações da Pé de Cabra não por carecer-lhe um aspecto podrão e uma abordagem sobre subculturas extremamente nichadas, mas sim porque isto aparece acompanhado: 1) de um aspecto singelo que caracteriza os seus personagens, algo meio sitcom dos anos 90 com um tipo de humor à la John Hughes que o tornam um lente afiada para determinadas relações contemporâneas. 2) De seus desenhos perfeitos-para-animação, com despojamento linha clara + indie comics americanos + Simpsons + mangá (resultante de suas influências gráficas) que são limpos, com coloração opaca e ausente de sombras, criando um contraste muito interessante entre com os tipos de submundo retratados e (ouso dizer) uma discreta candura que faz criar afeição por seus personagens losers.

Harry e André é um projeto antigo, e talvez o mais solar de D’Apremont até aqui, se compararmos com o mais hardcore Notas do Underground e com o alopradíssimo Anexia é um Paraíso (com Gabriel Góes). Aqui acompanhamos várias historias curtas que envolvem o desenvolvimento da amizade entre dois adolescentes de perfis um tanto antagônicos que, segundo o próprio autor, são facetas diferentes de sua própria personalidade. Daí é acompanhar as desventuras desses dois pé inchados com bandas de black metal finlandesas, jogadores de RPG nazistas, festas de playboys ou um rolê de carro na melhor maneira Curtindo a Vida Adoidado. Destaque para “Coronga Story”, que encerra este volume, uma empreitada mais longa e ambiciosa, que consegue enlatar uma mixórdia maluca de videogame estilo Animal Crossing, iconoclastas tipo João Gordo e o assalto a um hospital totalmente tomado pela covid para conseguir o autógrafo sagrado num velho vinil de um velho herói punk. Impagável. (CIM)

Vou Viver de HQ, com Gabriel Bá e Fábio Moon (Série Documental. Direção de Giuliano Zanelato e Rogério Zagallo, 2022): Com seis episódios de meia hora cada, essa série documental disponível no streaming Globoplay abrange o período entre 2008 e 2022 dos gêmeos quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Bá. Assisti-lo já seria obrigatório, para você que está lendo a Raio Laser, só pelo longo registro contínuo dos bastidores da produção de quadrinhos — revelando de forma bastante completa as etapas do processo criativo e da divisão de tarefas, conceitual e braçalmente — da dupla, bem como da evolução da sua bem sucedida carreira internacional. Além disso, a série é muito bem produzida e finalizada, resultando em uma condução segura e coesa, que vale-se de depoimentos eficientemente colhidos entre familiares, amigos e colegas de trabalho, como os quadrinistas Gustavo Duarte, Becky Cloonan e Rafael Coutinho, o publicitário e desenhista Eco Moliterno (ex-colega de faculdade, assim como a dupla de diretores da série), os editores Diana Schutz e Bob Schreck, o escritor Milton Hatoum (cujo romance Dois Irmãos foi adaptado pelos gêmeos), e o diretor dos dois primeiros filmes dos Vingadores, Joss Whedon, parceiro de Moon na graphic novel Sugar Shock. Golaço histórico para o quadrinho nacional.

Há, no entanto, duas coisas que, embora não prejudiquem o excelente resultado final, destoam da amplitude conseguida pelo documentário. A primeira é uma relativa ausência, em uma série tão extensa, de projetos marcantes desenvolvidos com outros parceiros — em especial a série Casanova, com roteiros de Matt Fraction, a graphic novel Como falar com garotas em festas, adaptação da dupla para um conto de Neil Gaiman, e, mencionada apenas superficialmente, a estrondosa The Umbrella Academy, parceria de Bá com o Gerard Way.

A segunda é o próprio título do documentário, que denota um esforço que apenas não condiz com o que a série mostra, e cuja imperatividade é descartada logo na fala de abertura do primeiro episódio. Talvez possa ter sido resquício da proposta inicial do registro, quando a dupla estava desenvolvendo seu primeiro grande trabalho autoral para o mercado estadunidense — a premiadíssima minissérie Daytripper — mas periga ser exclusivamente para invocar o sonho de todo aspirante a quadrinista, e espectador em potencial. As reflexões do último episódio até tentam justificar esse mote, acrescidas de bons depoimentos de quadrinistas — Adriana Melo, Marcelo D’Salete e Rafael Albuquerque, entre outros — que se beneficiaram, de uma forma ou de outra, com os caminhos abertos pela dupla, pioneira do que pode ser considerada a segunda onda de artistas brasileiros a consistentemente atuar no mercado estadunidense de HQs. (BP)