HQ em um Quadro: A capa de Super-Homem versus Mulher-Maravilha

por Bruno Porto

No final do ano passado escrevi um texto para a seção HQ em um quadro analisando a página de abertura do álbum Super-Homem versus Mulher-Maravilha publicado pela EBAL no final de 1978 como seu Almanaque de Quadrinhos 1979. Este texto dá sequência àquele — intitulado Paratextos ficcionais e multimodais em Super-Homem versus Mulher-Maravilha , vai ler, eu espero — ou, de certa forma, funciona como uma prequel, pois a capa antecede a história em quadrinho em si.

O mote da HQ é o confronto gerado pelo impasse entre os dois protagonistas ao assumirem posições opostas quanto ao desenvolvimento da bomba atômica durante a Segunda Guerra. O roteiro eficiente de Gerry Conway abre espaço para a arte indisputável de José Luis García-López, que se espalha generosamente pelo formato tablóide da revista. A arte final fica a cargo de Dan Atkins. e as cores são de Jerry Serpe. Garcia-López e Atkins estavam afinados pelos seis primeiros números da série Hercules Unbound (1975-1976) —  editada pouco tempo antes pelo mesmo Joe Orlando desta HQ — e Conway vinha do sucesso do primeiro crossover DC-Marvel, Super-Homem contra Homem-Aranha (publicada pela EBAL no ano anterior no mesmo formato 27cm x 36cm). Pouco anos depois, García-López desenharia também o crossover Batman Versus O Incrível Hulk, que seria publicada pela EBAL em 1982 (infelizmente não mais no formato tablóide).

De cara, a capa de Super-Homem versus Mulher-Maravilha se destaca pelo seu layout limpo, raridade em uma revista do gênero, embora a DC ainda estivesse em uma boa fase de capas devido à modernização neste setor implementada por Carmine Infantino no final dos anos 1960, como diretor editorial, e entre 1971-1975 como publisher. O fundo branco realça a imagem multicolorida das duas figuras prestes a se engalfinhar. Não imagino que exista no universo ficcional da DC dois personagens que vistam uniformes com composição de cores mais complementares — azul, vermelho, amarelo — que Super-Homem e Mulher-Maravilha, emblemáticos com suas estrelas e escudos tipográficos e águias e capas e braceletes e laços e tudo mais. Na imagem, as duas figuras contrastam cores quentes e frias em praticamente todos os elementos de seus uniformes, com exceção das botas (vermelhas para ambos). Novamente, isso tudo realçado pelo vasto fundo branco. Só anos depois descobri que a capa original tinha ao fundo a icônica imagem do Tio Sam apontando para o observador, situando a HQ no período da Segunda Guerra. Não sei se o motivo da exclusão na edição nacional passou por ideologia em tempos de ditadura militar (pouco provável), se foi para evitar parecer datado (mais provável), se foi pela figura ter pouco ou nenhum apelo para o público infantil brasileiro (bem mais provável) ou por simples apuro estético, mas foi uma belíssima bola dentro da EBAL. A relativamente recente reedição (2016) pela Panini comprova isso.

Multimodalmente, a capa deixava claro o que ia acontecer: “A LUTA A QUE VOCÊ NUNCA PENSOU ASSISTIR!”. Afinal de contas, eram dois super-heróis brigando ENTRE SI! Isso pode parecer normal nos dias de hoje, e sempre foi comum nas HQs da Marvel (onde os marrentos novaiorquinos se estranhavam o tempo todo diante dos mais singelos mal-entendidos), mas na DC todos eram amigos, ou melhor, superamigos. Não havia chance de dois Super Amigos (o desenho animado estreara no Brasil três anos antes, e a EBAL publicava o gibi homônimo) brigarem sem que um ou outro ou ambos estivessem sendo controlados mentalmente por um Brainiac da vida (ou sob os efeitos da kriptonita prateada). Um outro motivo por que essa era A LUTA A QUE EU NUNCA PENSARA ASSISTIR é que, diacho, a Mulher-Maravilha é uma MULHER e a toda criança SABE que em menina não se bate! Como assim, o Super-Homem vai BATER nela?!?!

O logotipo Superman original, da capa de Superman versus Wonder Woman (DC, 1977) e alguns dos muito logotipos utilizados pela EBAL em 1977 (contra o Homem-Aranha), 1978 (versus Mulher-Maravilha), 1979 (versus Muhammad Ali), 1977 novamente (revista Superman) e 1980 (Clássicos da Década).

O título da publicação se vale do uso dos respectivos logotipos dos personagens, traduzidos visualmente pelo departamento de arte da EBAL. A qualidade dos redesenhos do logotipo Superman feitos para esta edição e para Super-Homem versus Muhammad Ali, publicada pela EBAL no ano seguinte, era superior ao de Super-Homem contra Homem-Aranha publicada no ano anterior. Incompreensivelmente, a EBAL utilizava diferentes artes dos logotipos Superman e Super-Homem em suas publicações. É notável o malabarismo feito pelos letreiristas da editora para inserir a palavra HOMEM (e um hífen!) no espaço planejado apenas para MAN, mas muitos destes redesenhos desconsideravam a perspectiva e as formas dos caracteres originais.

Lembro-me ainda que foi nesta capa que primeiro percebi o uso do duplo hífen no logotipo da Mulher-Maravilha, seguindo a norma culta: quando é feita a translineação de uma palavra que contém hífen, como o nome composto da super-heroína, ocorre a duplicação do hífen (o de cima indica a translineação, o de baixo é  o que já fazia parte da palavra). Esse logotipo da Mulher-Maravilha é uma adaptação do lettering do segundo logo que a revista estadunidense da personagem teve, feito por Ira Schnapp e usado entre 1953-1965, e que reflete o uso da aliteração no nome original em sua versão brasileira, inclusive visualmente (os Ms de Mulher-Maravilha são os Ws de Wonder Woman de cabeça para baixo). Mas o hífen sumiria deste logotipo da revista da personagem (mas não do nome) a partir de agosto de 1980.

Você tem, então, a revista em mãos. Você pode, deve e vai abri-la, é claro, mas como é um objeto — e maior do que a maioria dos formatinhos a que está acostumado — é provável que o examine mais atentamente e, se olhar o seu verso… vai se deparar com a quarta-capa mais incrível de todos os tempos: no que pode ser a sequência imediata da imagem da frente, os dois heróis estão atracados derrubando uma coluna e uma parede (com o poster do Tio Sam — estão vendo como nem precisava dele na frente?) em Washington (Capitólio ao fundo em duotone de cyan). Fazendo um belo contraponto com a capa limpa, a ilustração da quarta-capa é sangrada para todos os lados e a imagem é multicolorida com azuis, amarelos e vermelhos. Acima do Capitólio, sou informado que esta é “Uma Verdadeira Epopéia em 72 Páginas de Quadrinhos Emocionantes!”.

Os heróis estão derrubando uma parede com o poster do Tio Sam, mas este também está quebrando uma: a quarta parede, ao se dirigir ao leitor através do texto “Para salvar o mundo EU PRECISO DE VOCÊ para acabar com a guerra entre Mulher-Maravilha e Super-Homem!”. Uma onomatopeia de BUM! explodiu minha cabeça: “COMO É QUE COLARAM UM CARTAZ COM ESTE TEXTO JUSTAMENTE NA PAREDE QUE ELES IRIAM DERRUBAR?!”, perguntava-me aos 8 anos. Aliás, será que esta luta entre os dois demorou tanto a ponto de terem tido tempo de imprimir um poster e colar pela cidade?! TENHO QUE LER ESTA HISTÓRIA!!! Sim, o leitor de quadrinhos está acostumado com a quebra da quarta parede nas capas, assim como com o uso de textos de cunho publicitário que se dirigem a ele — e eu não era diferente — mas esta questão da temporalidade da produção do cartaz no contexto da HQ tirou meu chão.