Asterix poderia ser a melhor HQ da história? O que os novos álbuns dizem sobre isso.

por Ciro I. Marcondes

Eu costumava defender que Asterix é a melhor história em quadrinhos de todos os tempos. Hoje, acho que este tipo de categorização não faz o menor sentido, por razões bastante óbvias. Mas, a título de curiosidade, o que eu argumentava? Cabem aqui alguns critérios desta avaliação pessoal. 

Primeiro, a popularidade e a localização providencial na história das HQs.

Asterix foi publicado pela primeira vez na revista Pilote, em 1959. Os autores René Goscinny e Albert Uderzo vinham de outras publicações que se tornaram célebres: desde 55, Goscinny publicava Lucky Luke (que continuará fazendo até sua morte), desenhada pelo gigante Morris. Também em 55 ele publicou Pistolin, personagem infantil ilustrado por Hubinon. No Jornal do Tintim, publicou com o que podemos considerar a fina flor tanto do groz-nez quanto da linha clara: André Franquin (em Modeste e Pompon), Raymond Macherot (Klaxon), Bob de Moor (Monsieur Tric), além de ter produzido Humpa-Pá com Uderzo de 58 a 62. Além disso, Goscinny trabalha, nos anos 60, com Gotlib (Dingodossieurs) e Jean-Louis Tabary (Iznogoud). O homem era uma máquina de parir clássicos. Vejam bem: ele viveu um tempo nos Estados Unidos (daí o western de Lucky Luke) e conheceu Harvey Kurtzman,Will Elder, John Severin, a galera da MAD. Este certamente conhecia os caminhos de humor. 

Edição véia de Humpa-Pá

Asterix chega como um colosso de destruição e ultrapassa a popularidade de todos estas referências da BD francesa. Goscinny assume o posto de redator chefe da Pilote entre 63 e 74, deixando o perfil da revista mais voltado ao adolescente e ao jovem adulto, o que pavimenta o caminho para a Métal Hurlant e a virada moderna nas BDs. Uderzo, que já desenhara um personagem gaulês nos anos 40 (Arys Buck), realiza, ao mesmo tempo, junto ao lendário roteirista e editor Jean-Michel Charlier, a série de aviação Tanguy e Laverdure, demonstrando envergadura na hora de realizar um trabalho realista. Lucky Luke, Humpa-Pá, Tanguy, etc., o que são estas coisas perto de Asterix? Goscinny e Uderzo, por mais que tenham sido questionados por Jean Giraud (aka Moebius) nos anos 70, foram os precursores da revolução. Estão ali, no olho do furacão entre o clássico e o moderno, erigiram tijolo por tijolo a consagração da BD francesa, apresentaram estas insubstituíveis criações ao mundo. Hoje, Asterix é o quadrinho traduzido para mais línguas no mundo inteiro. Possivelmente o embaixador desta forma de arte na Terra.

Arys Buck: personagem gaulês criado por Uderzo nos anos 40

Tanguy e Laverdure: HQ de aviação ilustrada por Uderzo antes de Asterix

René Goscinny e Albert Uderzo

Porém, não é só o sucesso comercial que qualificaria Asterix para esse mérito. A universalidade do quadrinho, seu foco na luta e na resistência, sua índole preparada para sobrepujar a tirania, não de uma maneira maniqueísta e insípida como em sua contrapartida americana (os super-heróis), mas com devida complexidade histórica, cultural, psicológica, arquetípica, dialogando ao mesmo tempo com a antiguidade e com o tempo presente. Com a criança e com o adulto. Com distintas gerações. Universalidade, enfim. Que outro quadrinho tem tamanho poder de se espraiar para tantos públicos distintos? Uderzo chegou a afirmar que Asterix seria “resultado contra a invasão de quadrinhos e desenhos animados americanos”. A questão é: por mais que Asterix seja profundamente vinculado à cultura europeia e especialmente francesa, seus tropos principais (o particular contra o universal; a resistência ao imperialismo; a convivência e o antagonismo entre diferentes povos; a diversa fauna humana; o campo x a cidade, etc.) mostraram que podem ser adaptados a inúmeros contextos diferentes.

A primeira história de Asterix (O Gaulês) saiu em álbum já em 1961, ajudando a configurar a cultura que mais tarde chamaríamos de graphic novel. Goscinny acabou se revelando um mestre das situações, gags e diálogos nos roteiros da série: ele dominava o humor físico, a onomatopeia, a piada visual, os trocadilhos, o timing narrativo, tinha um vasto leque de referências, aperfeiçoou a arte da sátira. Ler um Asterix escrito por ele traz enorme satisfação e a sensação de que se está sendo genialmente bem recompensado por algo despretensioso, capaz de tocar o coração de qualquer qualidade de leitor.

E tem a arte de Uderzo, é claro. Sem um ilustrador tão brilhante, provavelmente Asterix não tivesse sequer chegado a um segundo álbum. Uderzo cria não apenas expressões e personagens marcantes: é um mestre da arquitetura, da indumentária, do design gráfico, do movimento, do encadeamento entre os quadros, das imagens panorâmicas, da reconstituição histórica. Os requadros de Uderzo são tão carregados de potência por toda parte que umedecem os olhos, contagiam sem dó. Torna-se uma emoção abrir um Asterix e passar as páginas com ilustrações tão carismáticas e energizadas. O groz-nez não foi inventado por ele, mas certamente este estilo não está mais cristalizado em nenhum outro lugar exceto no lápis de Uderzo, verdadeiro fundador de uma inteira concepção visual das coisas. De certa maneira, é um anti-Mauricio de Sousa: seus cenários são ricos, sua quadrinização complexa e bem engatada em sequências que não conseguimos parar de ler. A expressão de seus personagens é mais intensa que a própria realidade. Obelix é mais humano que a humanidade.

Asterix é isso: uma abóboda radial que não é somente clássica nem moderna, não é somente para crianças nem para adultos, e nem somente realista ou caricatural. Está ali, num polo deflagrador de uma nova cultura de quadrinhos (o início dos anos 60), a cada álbum se afirmando como arquétipo primordial desta forma de arte. Podemos citar inúmeras coisas que vieram antes dele – como Herriman, Caniff, Eisner, Hal Foster, Hugo Pratt, etc. – ,mas nenhum deles ocupa tantos lugares ao mesmo tempo. A questão, para mim, é: na corrida de longa distância, nos pontos corridos, no conjunto da obra, Asterix chega mais longe. É a virtude da onipresença.     

Goscinny morreu com apenas 51 anos, em 1977. Sofreu um ataque cardíaco enquanto fazia uma prova de esforço (!) num exame de rotina. Como bem sabemos, Uderzo assume os roteiros a partir de 1980 (O Grande Fosso). O último álbum com roteiro de Goscinny sai em 1979 (Asterix Entre os Belgas). Obviamente, os álbuns feitos somente por Uderzo devem ser desconsiderados (talvez, exceto, pelo simpático A Odisseia de Asterix). A qualidade cai não apenas nos roteiros, que se tornam óbvios, sem graça e infantiloides, como também na arte, mais esquemática, simplória e televisiva. Isso até que, em 2011, Uderzo, praticamente incapaz de desenhar mais, decide largar o osso e passar o bastão (ainda que sob controle rigoroso) para, pela primeira vez na história, uma dupla que não tenha Goscinny ou ele próprio produzirem um álbum de Asterix. Em 2013, saiu Asterix Entre os Pictos e, em 2015, O Papiro de César. Em outubro deve vir um terceiro lançamento, estranhamente nomeado Asterix e a Transitálica.   

Os dois novos álbuns

A dupla responsável pelos novos Asterix herdou um fardo que (após este preâmbulo grandinho e entusiasmado) dispensa comentários. A questão é que Uderzo não escolheu um par de “nobodies”, mas sim quadrinistas experientes e renomados na sólida tradição franco-belga.

Trocar de autores na BD clássica nunca foi um problema. Spirou teve Jijé, Franquin, Janry e outros. Os Schtroumpfs, sempre assinados por Peyo, tiveram inúmeros ghost writers. Alix, depois da morte de Jacques Martin, também passou para as mãos de terceiros. Nem todos podem ser Hergé (que também tinha assistentes), certo? Obviamente, a esta altura do campeonato, Asterix não poderia ser assim encerrado. Aquilo não é simplesmente uma instituição francesa, é uma mina de ouro. Asterix Entre os Pictos saiu numa tiragem mundial de cerca de 5 milhões de exemplares. É o quadrinho mais vendido do mundo. Seria até digno se, tal qual fizeram com Herriman e seu Krazy Kat após sua morte, declarassem que “é impossível fazer Asterix sem Goscinny ou Uderzo”. A real é que uma nova era se inicia na mitologia do baixinho gaulês e seu amigo “pluz size”.

Les Innommables, de Conrad e Yann

O desenhista recrutado foi ninguém menos que Didier Conrad, veterano da BD dos anos 70, que fez carreira na Revista Spirou e era apadrinhado de Franquin. Seu trabalho mais conhecido até então era a série Les Innommables, um sombrio registro de guerra realizado com roteiros do iconoclástico Yann. A dupla ainda realizou, entre os anos 1990 e 2000, a série Kid Lucky, um spin-off de Lucky Luke, sobre a infância do cowboy. Para o texto, no entanto, foi convocado um autor mais jovem, Jean-Yves Ferri, colaborador da clássica revista Fluide Glacial desde os anos 90. Seu trabalho mais notável foi a série Le Retour à la Terre, ilustrada pelo hoje cultuadíssimo Manu Larcenet (autor de Le Combat Ordinaire, que merece uma resenha à parte).

Asterix Entre os Pictos é conservador na medida em que é impossível não sê-lo. A realização deste primeiro álbum foi marejada por grande expectativa e uma delicada sensibilidade. Uderzo até assina a capa (ele desenhou o Obelix) junto com Conrad, como se selasse uma despedida. Dá pra perceber que tiveram de escolher, a duras penas, um entre os grandes gêneros das histórias de Asterix (encontro com os estrangeiros; exploração da própria França; encontros com os romanos; dramas pessoais dos personagens), justamente o aparentemente mais popular: a viagem ao exterior. 

Le Retour á la Terre, de Ferri e Larcenet

Foram elegidos desta vez os escoceses (na época a etnia céltica dos pictos, que o leitor de Conan deve conhecer como selvagens degenerados), e a estrutura é sim formulaica, mas, (como dizer isso?) uma fórmula para se realizar um bom Asterix não é simples. É como um algoritmo. É preciso concatenar o protagonismo de Asterix e Obelix com o dos inúmeros coadjuvantes, novos e velhos. É preciso seguir, com equilíbrio, uma mini-estrutura da clássica “jornada do herói”. É preciso trazer o povo visitado à sensibilidade do leitor a partir de parâmetros contemporâneos (eles falam, em inglês, várias passagens de músicas pop; o monstro do Lago Ness está presente) e também históricos (os pictos usam roupa à moda “highlander” escocesa e ostentam tatuagens na forma de pictogramas – também velhos e novos). É preciso incluir a poção mágica, o bardo, romanos, os piratas, etc. Como toda forma audiovisual, literária ou em quadrinhos clássica, é preciso que o leitor se sinta num lugar familiar, mas ao mesmo tempo que a experiência seja nova. Como um bom "coq au vin" francês, a receita é antiga, mas o preparo extremamente meticuloso.

Asterix Entre os Pictos pode não ser nada revolucionário (nem poderia e nem deveria) –  é um álbum simples, efetivo e divertido – mas seu principal mérito é uma busca consciente pelo estilo e estruturação que Goscinny dava aos álbuns nos anos 70. Assim, afasta-se logo o fantasma da fase infantil de Uderzo. É um remake quase obcecadamente respeitoso com a memória do material de ouro da série, e neste sentido um pouco covarde. 

Experientes, Conrad e Ferri não legam, aqui, qualquer traço de autoralidade. Neste sentido, poderíamos colocar Asterix Entre os Pictos como um fenômeno de nostalgia reverente tipo os novos Star Wars/Disney ou o reboot de Arquivo X: a proximidade clonada no original cala a boca dos fãs, mas deixa certo sabor anódino. A arte de Conrad lembra até um primeiro Uderzo (de Tanguy e Laverdure ou Humpa-Pá). Jogar na retranca parecia um bom local para se começar. 

O Papiro de César arrisca outra linha. Depois de um empate fora de casa, é possível ousar, com o auxílio da torcida. Aqui, César está escrevendo as memórias de sua trajetória como imperador (“Comentários sobre as guerras contra os gauleses”), e um capítulo versa sobre as derrotas sofridas contra certos gauleses da Armórica. O conselheiro e editor de César, um mesquinho Promocionus, o convence a limar este capítulo para não manchar a sua reputação. Porém, um dos escribas-escravos resolve fazer uma cópia clandestina e passar para Superpolemix, um gaulês do “Mensageiros Sem Fronteiras”, que decide levar o papiro até a aldeia gaulesa e publicar ("leak") o escândalo.

O papiro acaba servindo como McGuffin, mas isso não é tão importante. Ferri e Conrad se utilizam deste tópico em modelos de comunicação para pensar temas pertinentes à atualidade: desinformação, fake news, mídia, autoria, plágio, manipulação da informação, sensacionalismo, o papel do jornalista.

É ousada a maneira como os autores refletem sobre a materialidade dos meios (pombos-correio, carroças, papiros, gravações em pedra), sobre como suas circunstâncias acabam por moldar não apenas o conteúdo das mensagens, mas também a política ao redor delas, as estruturas de poder que são movimentadas de acordo com as transformações destes meios, e as maneiras de se sobrepujar a informação através dos fatos reais. Claramente mcluhaniano, este é um dos álbuns mais intelectuais de Asterix. Ferri e Conrad (sempre se programando dentro do algoritmo Goscinnyniano) desta vez ousam, mesmo que dentro de determinados limites. A grande ironia está na suposta ignorância dos gauleses, que levam o manuscrito a um velho druida na floresta para que ele o memorize e assim as histórias sejam passadas adiante. “Os escritos voam e as palavras permanecem”, chega a dizer Panoramix. 

Talvez, no final das contas, a palavra escrita, segundo O Papiro de César, tenha mais a ver com poder do que com informação. A palavra oral, esta sim, seria mídia primordial, transmitida através das agruras da memorização, um rito ancestral mais honrado e garantido. Apesar de anunciarem um apocalipse da mídia (como negar isso para 2017, diante de Trump e tudo?), Ferri e Conrad deixam uma simpática mensagem: eles são como os druidas e transmitirão a palavra de Asterix com devida deferência.  Talvez, enfim, mais Asterix, diante da ausência de Goscinny e Uderzo, seja sim supérfluo. Mas nunca esqueçamos que vivemos num lamaçal cultural pós-moderno. Então, é bom poder firmar os pés no chão de vez em quando.

Didier Conrad e Jean-Yves Ferri: os arautos