O Colecionador: radiografia de um amontoado de fracasso

por Ciro Inácio Marcondes

Imagine que as principais experiência de sua vida – de suas namoradas/os aos seus empregos e lugares que conheceu – passem sempre pela sua coleção de quadrinhos. Ou sua coleção do que quer que seja: discos de vinil, obras de arte, bonecos, etc. Sua vida é mediada pela lógica inconsútil do colecionismo: todas suas memórias remetem a um quadrinho, todos os seus quadrinhos empregam alguma lembrança. Cada assinatura na folha de rosto de um livro te remete a um evento, as dedicatórias te conduzem a lágrimas há muito derramadas.

Há uma poesia nisso tudo, uma trágica poesia, que O Colecionador (Editora Hipotética), do roteirista Djeison Hoerlle, do ilustrador Dieferson Trindade e do colorista Juliano Dalben, procura examinar.

Assim como o crítico e tradutor Érico Assis discute sobre si mesmo na apresentação do gibi, eu também não sou um colecionador de quadrinhos. Tenho sim milhares de livros em casa, espalhados por estantes malcuidadas, pelo chão, enfiados em trocentas caixas até hoje não abertas de uma mudança de mais de dois anos, muitos deles, coitados, sendo mais maltratados do que mereciam. Gosto de dizer que, mesmo nesta era em que o celular virou a nova televisão, eu gosto de livros, não de colecionar.

Na real eu não tenho condição motora ou cognitiva para colecionar (organizar por gênero e autor, limpar, lombada, saquinho plástico, autógrafo etc.)  Assim como ocorre com Érico (desta vez o protagonista de O Colecionador), o caos dos livros reflete meu digladiar quixotesco contra o mundo. Nunca lerei todos, muitos deles mereciam melhor tratamento do que recebem, e um olhar bibliotecário ajudaria a ajustar vários pontos desajustados em minha vida. Porém, ressalte-se, os livros não balizam a minha vida, nunca. Minhas memórias e experiências (as que valeram e as que não valeram a pena) pertencem a um outro departamento de minha existência, e eu não as trocaria por nenhum livro autografado.

E está aí o grande acerto de O Colecionador, ao focar na existência desse personagem mediado por esse universo cada vez mais estéril dos quadrinhos, onde a experiência e o prazer da leitura são substituídos por uma nuvem midiática (uma noosfera, segundo Edgar Morin) operada por youtubers lazarentos que esterilizam o simples ato arcaico de sentar, ler e ser consumido pela verdadeira experiência de imersão que são os livros. Érico tem um grande despertar para esse sutil existencialismo durante a narrativa do gibi, e a história dele toda parece um chamado importante para que outras pessoas presas nessa noosfera se atentem para uma vida plena e possível de se articular sem essa mediação.

A principal reflexão de O Colecionador é sobre o contraste entre as vidas não vividas colecionando com as vidas que se resgatam a partir da morte dos colecionadores. Sim, os autores carregam nas tintas melodramáticas (especialmente no final um tanto decepcionante) e Érico parece meio “nutella” com seu fastio incessante diante de tudo e todos. Porém, quando ele se embrenha numa jornada para compreender a quem pertenceram os itens de sua coleção e também aqueles que ele vai vender em seu sebo, subitamente a HQ ganha um propósito e atinge a dimensão existencialista que sugere o tempo todo, com acertos irregulares.

Mesmo assim, vale ressaltar que O Colecionador toca em questões delicadas e complexas, especialmente em se considerando que se volta contra seu próprio público, e aponta o dedo acusando seu próprio consumidor. Também vale dizer que, ao fundo de tudo isso emerge bem (como espaço registrado em quadrinhos) a cidade de Porto Alegre, com seus trocentos sebos puídos, lancherias, parques e rios meio decadentes, cenário perfeito para representar a moléstia (física e espiritual) do protagonista.

Apesar de alguns tropeços em um trabalho que busca uma envergadura existencial e filosófica, O Colecionador não deixa de dar seu recado entre a raiva, a melancolia e o saudosismo, e acho que com justiça pode ser considerado um dos bons quadrinhos brasileiros de 2025.