Andei por Entre as Frestas...: flor intermedial no árido deserto da modernidade

por Ciro I. Marcondes

Um deserto urbano em paisagens com fiações descompensadas, prédios em ruínas, pistas mal-cuidadas, cabines telefônicas destruídas, hidrantes ejetando água, poeira, postes, descampados, arame farpado, pipas, tênis jogados ao léu. Tudo isso servindo como cenário ilustrado em minuciosas retículas, fotografias reaproveitadas, quadrinhos à deriva num fluxo de imagens que imita uma consciência multimídia em processo – uma espécie de transumanidade pensando em registros diversos, coisa de louco.

Assim é a base gráfica de Andei por Entre as Frestas e te Trouxe Flores, Pedras e Algumas Miudezas, obra de Paulo Crumbim que saiu em 2022 pela editora Mino com o propósito talvez de ressignificar o registro, pensar por meio das arestas abertas da mídia, fazer um não-quadrinho que seja capaz de chacoalhar as maneiras convencionais de se encarar esta forma de arte no Brasil.

Autor, junto com Cris Eiko, do simpático Quadrinhos A2 e de duas Graphic MSP do Penadinho, Crumbim vem trabalhando há alguns anos nos zines experimentais que formam o coração do que vemos e lemos em Andei por Entre as Frestas. Eu já havia tomado contato com esses zines ao ser jurado de um prêmio de quadrinhos há alguns anos, mas ver esse material reunido e melhorado aqui – formando um todo (des)conexo que pensa o Brasil desde a cracolândia em São Paulo, ao infame processo Copa do Mundo-impeachment-Bolsonaro, passando por uma poética cyberpunk da quebrada – dá outra noção da ambição e fôlego do autor, que pode, agora, figurar entre os principais quadrinistas brasileiros contemporâneos.

Por que isso? Andei por Entre as Frestas compila densas 274 páginas de manifestações experimentais sobre temas, projetos de histórias, reflexões de teóricos e ativistas, personagens fofinhos e referências múltiplas, numa espécie de panorama entrelaçado do inconsciente óptico de um Brasil desaparafusado e febril, do jovem periférico errante às instituições repressoras que policiam nossa capacidade de sonhar e transformar a sociedade. Crumbim se utiliza quase sempre da linguagem dos quadrinhos, mas “transbordantes”, ou seja, sem compromisso com ficcionalidade, documentalidade, linearidade, em requadros sangrados que se desintegram de acordo com a necessidade do fluxo interno de pensamentos e reflexões inerentes à obra.

Assim, Andei por Entre as Frestas vai unir poesia urbana (literária e visual) com design, fotografia, games e remixes num passeio surrealista (tipo o mistério de um bebê gigante parido de dentro de uma parede) que lembra, guardadas as devidas proporções, experimentos literários de T.S. Elliot (The Waste Land) ou de Haroldo de Campos (Galáxias), porém com acentuada premissa social, focado no imperativo da luta de classes. Consequentemente, esta obra de Crumbim se junta a outros quadrinhos erráticos e não menos fundamentais do nosso cânone, como Incidente em Tunguska (Pedro Franz) e Música Para Antropomorfos (Fabio Zimbres e Mechanics), na necessidade de romper a ordem racional da caretice tradicional de certos quadrinhos e explorar mídias distintas como se fossem um fenômeno só.

Música para Antropomorfos e Incidente em Tunguska: antecedentes

Unir quadrinhos, poesia e mídia não é um troço fácil. Crumbim não produz aqui para um público domesticado, mas sim consciente de que a vanguarda nem sempre é propriamente lida em sua época. O design de suas ilustrações e pirações lembra o experimentalismo inquietante que o artista inglês Stanley Donwood imprime nas capas e encartes dos discos do Radiohead. Assim como também na música da célebre banda de Oxford-UK, o objetivo aqui parece ser provocar um misto de indagação constante e abertura de caminhos intermediais, buscando uma linguagem que soe alienígena e pop ao mesmo tempo. Porém tendo como preceptores uma comunidade de manos capazes de, como no poema de Drummond, fazer brotarem flores do árido concreto da modernidade.