Para ficar de olho: encarando as "Perigosas Sapatas" - essencialismo e interseccionalidade

por Jota Erre

Chamo a atenção para o título original da coletânea de tiras de Alison Bechdel, publicada no Brasil em 2021 – após 13 anos da publicação original: “The essential dykes to watch out for”. A ambiguidade de empregar a palavra “essencial” se preserva, de alguma maneira, no título em português: “O essencial de Perigosas Sapatas” (Todavia, 2021). No entanto, resta ponderar que a ambiguidade do título original é mais sugestiva, mais polissêmica; e, caso o título em português optasse pelo artigo definido contraído à preposição genitiva – “das Perigosas Sapatas”, talvez a ambiguidade se aproximasse daquela do original. Ao escolher “de Perigosas Sapatas”, a opção é por caracterizar a essencialidade de uma coletânea dentro de uma tira chamada “Perigosas Sapatas”, diferentemente de tratar do que seria a essencialidade de uma perigosa sapata.

O título original me parece jogar intencionalmente com essa ambiguidade, e a autora, como personagem de seu excelente prefácio, dá a dica. Afinal, como produzir periodicamente uma tira, ou um tabloide, tendo como escopo a vida e o pensamento – e o sentimento – de mulheres lésbicas, sem tocar no assunto do que seria a essencialidade da pessoa lésbica... A palavra essencial entra como mote para debater, politicamente, o sentido do essencialismo de grupos subalternizados ou oprimidos social e historicamente, e o quadrinho de Bechdel se desenvolve, por 21 anos – período abarcado pela coletânea, em torno da problemática do que seria a essencialidade de gênero, tratando, interseccionalmente, de outras essencialidades ou identidades: de raça, de classe, de convicções políticas, de origem.

A política externa estadunidense é um dos temas mais explorados de Bechdel, à medida que se constroem os arcos das personagens, atravessadas pela perplexidade ante o horror imperialista que essa política representou no período abordado (1987-2008).

Bell Hooks, em um ensaio em que debate o essencialismo como estratégia de grupos marginalizados política e historicamente, retrata o essencialismo como estratégia dominante colonial e capitalista branca – o sujeito homem, branco, hétero, rico, anglossaxão, protestante (cristão). Os grupos marginalizados e subalternizados adotam o essencialismo como estratégia de defesa ou de contraposição a essa hegemonia também essencialista, e tomam o seu “lugar de fala” e a sua “autoridade da experiência” para tomar o protagonismo político que lhe foi usurpado nos últimos séculos, que lhe tem sido usurpado ainda na atual conjuntura. A pensadora argumenta, em Ensinando a Transgredir (Coleção Folha Pensadores, Volume 3, 2021), que uma postura educacional inclusiva acolhe a autoridade intelectual que um grupo marginalizado tem pela sua experiência vivida: o negro é o protagonista para pensar a dor do povo negro, a mulher é a protagonista para pensar a dor da pessoa mulher, a pessoa LGBTQIA + é a protagonista para pensar a dor da pessoa LGBTQIA+, a pessoa pobre é a protagonista para pensar a dor da pessoa pobre.

Ambientes coletivos que favorecem contestações teóricas e práticas do contexto político aparecem em muitos dos tabloides, como a universidade, a escola, manifestações nas ruas, a livraria e a biblioteca – ou mesmo o café.

Bechdel aborda o florescer, em suas personagens – e o desenvolvimento dialético –, desses essencialismos, e se envolve também no que seria sua complexidade concreta, ao tratar de interseccionalidades, próximas ou distantes do que seria o espectro amplo da experiência individual e coletiva no contexto político estadunidense entre o final dos anos 1980 e o final da primeira década deste século. Aí está o perigo – to watch out for –, ou um dos perigos: a compreensão da complexidade da própria intersecção de identidades, da fluidez das essencialidades identitárias em cada pessoa ou coletivo. Talvez um dos perigos ou ambiguidades mais abordados por Bechdel seja o de mulheres ou pessoas LGBTQIA + que se afastam de pautas progressistas e defendem valores conservadores.

O ritmo narrativo se intercala entre momentos de tensão ou de diálogo entre as personagens, o traço que reflete a diversidade de seus corpos se harmoniza com as falas que demarcam a sua diversidade de pensamento, contestando o que seria uma homogeneidade essencialista de grupo.

Sua abordagem, que, em compilação como ora publicada pela Editora Todavia, ganha os ares de verdadeiro romance histórico (como talvez Guerra e Paz, de Tolstói, mas numa realidade da micropolítica, e de novas concepções de famílias ou relações humanas como um todo), se inicia, pois, no momento em que Hobsbawm situa o fim do século XX em termos conceituais e práticos: o final dos anos 1980 – o famoso recorte do autor situa o início do século no estopim da Primeira Guerra Mundial. O período abordado na publicação agora traduzida para o mercado nacional vai desse final do século XX conceitual até um momento já marcante deste primeiro quarto de novo século: a crise econômica do estouro da bolha de créditos imobiliários nos EUA em 2008. Bechdel adota um estilo que explora a palavra escrita em produtos, em camisetas, em jornais – em onipresentes jornais impressos –, dando o tom de crônica jornalística de todo esse período de duas décadas. O que é periférico na cena do requadro – o jornal lido ou jogado, a revista ou livro na estante da livraria – ganha muitas vezes importância central no tabloide.

Esse percurso por duas décadas turbulentas, transição política de dois séculos acelerados e violentos globalmente, é feito pelas personagens em mergulho transversal e interseccional pelas suas angústias pessoais, sendo suas percepções temperadas com suas presenças corporais, esse corpo transgressor à normatividade hegemônica, com raivas, ironias, tristezas, perplexidades, alegrias, entusiasmos, êxtases. Cada personagem ganha o seu arco, demarcando e transgredindo o seu contexto e sua vontade no discurso mais amplo da tirinha e da coletânea em si. No início seriam como coadjuvantes orbitando o alter ego da autora, Mo, mas, durante a leitura, suas complexidades e suas atitudes lhes agregam uma independência e um protagonismo próprios. Cada arco tem um desenvolvimento autônomo, e, com ele, um repertório de visões de mundo e de críticas a contextos de opressão ou de luta, de que as personagens participam, ativamente.

Seus corpos atuam em possíveis locais de resistência cultural e política ao patriarcado: grupos de ativismo, como o pela união civil de pessoas do mesmo sexo; adolescentes que reivindicam a transição de gênero; mulheres que praticam a performance de drag king; uma livraria que trabalha com produções de mulheres; um ramo da advocacia que atua na justiça ambiental; o ambiente universitário, com todas as possibilidades teóricas e práticas para contestar o status quo patriarcal ou capitalista; coletivos de pessoas em situação de migração num país intolerante e de tendência fascista como os EUA.

Diferentes gerações e visões de mundo se debatem em encontros que não se destacam do cotidiano mais mundano, diversas cenas de interiores, de mesas, cozinhas, banheiros, com o som da TV no telejornal, constroem os arcos de cada personagem, que ganha um protagonismo próprio, superando a condição de coadjuvantes.

Num contexto de educação libertadora e humana, O Essencial de Perigosas Sapatas poderia muito bem constar na bibliografia de diversas disciplinas, tanto no ensino médio quanto no superior.

As personagens de Bechdel percorrem o período de transição de séculos em camadas que vão da micro à macropolítica, numa pegada jornalística e crítica, abordando temas contemporâneos locais e globais.