SUPERMAN - ANO UM : FRANK MILLER E JOHN ROMITA JR. ATINGEM O ÁPICE. SÓ QUE DE CABEÇA PRA BAIXO

SUPERMAN - ANO UM : FRANK MILLER E JOHN ROMITA JR. ATINGEM O ÁPICE. SÓ QUE DE CABEÇA PRA BAIXO

por Márcio Jr.

Frank Miller e John Romita Jr. se superaram. Por mais baixas que fossem as expectativas em relação a Superman: Ano Um – enésima e desnecessária recriação do mais icônico e soporífero super-herói –, a multiplatinada dupla foi capaz de entregar uma “obra” ainda pior. Dá para sentir o cheiro de longe.

É como se Miller e Romitinha tivessem chegado ao fundo do poço. E encontrado uma pá. Ou seja, estamos falando de lixo laborioso. Tempo e trabalho consumidos para forjar, meticulosamente, o ponto mais baixo da carreira de ambos. Um feito e tanto.

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Quatro vezes John Romita Jr.

Quatro vezes John Romita Jr.

Nem eu nem os amigos que assinam os textos abaixo estaremos na CCXP 2018, super evento de cultura pop em São Paulo que, entre 6 e 9 de dezembro, recebe como convidados uma série de artistas, brasileiros e estrangeiros, para sessões de autógrafo, lançamentos, palestras, etc. e tal. Estivéssemos lá, o entusiasmo maior, com certeza, seria sobre a presença do desenhista americano John Romita Jr. Falo por mim, mas sei que falo também pelos comparsas de Raio Laser, que Romitinha está em nossa lista de ilustradores de quadrinhos favoritos. Sendo assim, seria sensacional poder encontrá-lo e pegar um autógrafo (um sketch, quem sabe), fazer uma foto e trocar meia dúzia de palavras para agradecê-lo pelas milhares de páginas produzidas ao longo dessas décadas todas.
Mas, qual revista autografar? Uma edição de X-Men, em formatinho, de quando Romita Jr. fazia as histórias dos mutantes tendo Magneto como líder? Ou uma Super Aventuras Marvel, com alguma história do Demolidor escrita por Ann Nocenti? Ou a edição especial Grandes Heróis Marvel - n° 50 (também em formatinho), que compila “Justiceiro - O Homem da Máfia”, com a versão parrudíssima do personagem? Quem sabe então a minissérie Homem Sem Medo, em parceria com Frank Miller (e arte final do monstro Al Williamson)? Ou talvez a one-shot Corações Negros, estrelando Motoqueiro Fantasma, Wolverine & Justiceiro?

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A máscara e a tolice fundamental da HQ (e do filme) de super-herói

por Lima Neto

Muitas vezes, quando escuto algum comentário em uma roda de amigos sobre como seria bom se o ser humano tivesse super poderes, eu costumo responder com o mesmo comentário impaciente: “Ia ser a extinção”. Diante do silêncio que se segue, eu emendo: “Temos um exemplo fácil. Nós usamos todos os dias uma armadura de metal que aumenta nossa velocidade a níveis inacreditáveis; que nos permite nos proteger de alguns elementos; enxergar no escuro e outras vantagens que podemos classificar como super poder, pelo menos dentro do parâmetro de um Homem de Ferro. Mas junto com esse poder, temos também o dado trágico de 6 mortes por hora causados pelo trânsito, somente no Brasil em 2016”. Ok, os dados foram pesquisados para este artigo e computados pelo DATASUS em levantamento realizado este ano. 

Carros e super-poderes

Mas não estou aqui pra falar sobre trânsito, mas sim sobre essa relação nebulosa entre a ficção “super-heroística” e a realidade. Com a onipresença dos super-heróis nos cinemas, essa relação se tornou mais difusa ainda. Quem lê gibi há muito tempo sabe que, nos quadrinhos de indústria, sempre há uma tendência de aproximação ou afastamento do real. Essa relação chega mesmo a moldar uma identidade para as editoras. O drama mais cotidiano das identidades civis dos personagens da Marvel encontram uma resposta do público que é diferente da relação de “deuses na Terra” que costuma a dar o tom da editora DC. Mas em determinados períodos o realismo fica mais patente em ambas editoras, como é claro nos anos 80 e o boom dos quadrinhos de temática adulta. 

Esse flerte criativo ganha tons mais sombrios quando se insere o cinema nessa conta. E a DC saiu perdendo nesse quesito, trocando o fascínio mítico de seus personagens por um realismo dark superficial e sem alma. Super-herói é fantasia.

É sonho de poder e ação.  Como todo sonho, pode servir de complemento ou duplo pro real, mas quando se aproxima demais da realidade, a fantasia começa a rachar e o que tem por baixo pode ser bem desagradável. Se o imaginário do automóvel parecer muito mundano, podemos partir de um item de significado arquetípico no mundo, que na cultura pop em geral vai ser alimento de infinitas narrativas, mas que vai assumir um papel definidor nas narrativas industriais: a máscara.

Sem querer academizar, mas apenas ancorando um pouco, concordarmos com o pesquisador Thierry Groensteen e sua descrição da trajetória de mudança dos temas dos gibis durante o final do sec. XIX e decorrer do séc. XX. Se formos para 7 de Fevereiro de 1936 e presenciarmos o lançamento do Fantasma, o primeiro herói mascarado dos quadrinhos, encontraremos uma HQ que se tornou um marco de popularidade e que inaugurou uma categoria dentro do gênero das “histórias de viagem” – o primeiro dos três gêneros fundadores identificados por Groensteen, sendo “fantasia” e “tolice” os outros dois. O tema do deslocamento para lugares longe do alcance dos olhos era a principal fantasia descrita por proto-quadrinistas como Rodolphe Töpffer. 

A frustração de não alcançar o destino, somada à descrição visual livre que o desenho permite, transportou o tema naturalmente para o sonho. Sonho que tem sua selvageria anárquica abrandada na noção de fantasia, que vira terreno para o desenvolvimento da ficção-científica a partir dessa mistura entre viagem e fantástico. A tolice vai ser herança da caricatura e da charge e vai ser complemento quase paralelo aos gêneros de fantasia e viagem. Vai ser juntando o herói viajante, que até os anos 30 era um fora da lei, com a moralidade do herói das tramas policiais e um visual chamativo que pega emprestado das pinturas de guerra tanto quanto dos ambientes excêntricos da vida urbana das metrópoles do séc. XX. Neste ambiente encontraremos o Espírito-Que-Anda e sua máscara.

Depois do Fantasma vieram vários. E antes dele vários mascarados já existiam nas mais diversas formas narrativas e cumprindo os mais variados papéis. Mas no final do séc. XIX e início do séc. XX, a máscara tinha um papel bem claro: impedir a identificação de um criminoso pelos meios legais oficiais, meios estes que contavam com uma ferramenta que revolucionou o processo investigativo: a fotografia. No herói e, posteriormente, no super-herói, a máscara tem uma função que remete à sua origem de “perturbador da lei” como presente na narrativa de viagem, verdadeiro “anti-herói” como defende Groensteen: o criminoso. Esse arquétipo do criminoso é a contraparte do arquétipo do detetive policial, que encontra no Dupin de Poe seu personagem de estreia. O criminoso vai ser aquele que conhece e usa as falhas do complexo sistema urbano nascente com as metrópoles para viver. Na narrativa de viagem, essa mobilidade (ou moralidade) alternativa vai garantir a transição de vilão para o anti-herói que enfrenta o desconhecido com uma artimanha não-civilizada. Anti-herói porque na máscara do Fantasma também está presente a moralidade afiada do detetive que quer proteger o status quo e reestabelecer a ordem.

É essa origem anti-heróica, dos Zorros e Sombras, Lokis e Dionísios, que identifica a máscara como um ato criminoso, não passível de redenção - nem se for o caso de proteger os entes queridos, principal justificativa para os mascarados nos gibis. Protege-se a identidade para não pagar o preço, não sofrer a retaliação, de assumir a responsabilidade pelo erro cometido. O Fantasma jura vingar a família massacrada em um ataque pirata. Protege sua identidade para escapar da responsabilidade moral, e principalmente jurídica, de agir em vingança. No caso dos super-heróis, a identidade disfarçada é uma contravenção que facilita o trabalho evitando que as vidas dos parentes, amigos e amantes se tornem alvo de algum criminoso que quer cobrar respostas pelo responsável por frustrar seus planos (cuidadosamente engendrados a partir de um código moral pessoal muito mais antagônico ao status quo, pelo menos mais antagônico que usar uma máscara, diria um super-herói). Resumindo, um jeito nobre e heroico de abrir mão de uma responsabilidade.

Mas a máscara do herói só vai perder sua ambiguidade quando nos aproximamos da realidade. Ou melhor, ao nos aproximarmos da realidade social como experimentada em boa parte do séc. XX – uma narrativa moral técnico-cientificista marcada pela análise, o corte que isola as partes buscando compreender o todo. Foi um estatístico da polícia francesa, chamado Alphonse Bertillon, que notoriamente desenvolveu a primeira sistematização da análise fotográfica forense. Betillon dividiu a representação do corpo criminoso em partes que eram comparadas entre si e divididas em categorias, gerando um arquivo de identificação de criminosos que não se baseava mais no indivíduo, mas em um traço identificador. É nessa lógica que a máscara entra em cena. A ideia de que cobrir um traço identificador é o suficiente para sumir com o indivíduo procurado. Antes dessa sistematização, a fotografia forense se limitava ao registro individual de cada criminoso no momento do flagrante, gerando toda espécie de careta por parte do afrontador como estratégia de impedir a identificação. Podemos identificar o Coringa e seu sorriso distorcido como um elo perdido entre os momentos citados da foto policial. É o traço particular que é também distorção imagética congelada, que ao mesmo tempo identifica e foge a identificação. A máscara que revela.

O herói, então, vai ser identificado pelo seu crime menor. Essa identificação pelo erro vai permitir transitar pelo sistema moral e decidir, dentre todos os envolvidos em uma narrativa, qual tem o pior crime e como aplicá-lo à justiça. É essa onisciência que justifica o erro cometido pelo mascarado e que pode ser considerado, de fato, um super-poder. Uma ação fantástica e divina que não pode ser replicada pelos mortais. O Fantasma, em suas histórias, sempre age certo. A versão nascente dos super-heróis traz esse “poder” moral amarrado a um misto de conto policial e a narrativa de viagem (na forma como era mais consumida nos anos 30, a ficção científica). Essa certeza do certo é ao mesmo tempo o núcleo infantil, tolo, do super-herói desse período. Quando falo de núcleo infantil, de infantilidade, não falo de maneira pejorativa. Mas me refiro à infância como potência anárquica, fora-da-lei. Aquela infância abissal e constituinte da identidade adulta. É a tolice como confronto à razão. O Tolo místico que não deixa nem um abismo interferir em seu transitar. É movimento puro, trânsito livre pelas frestas do mundo civilizado, mas paradoxalmente atrelado a alguma forma de justiça e manutenção da lei.

Como o super poder da armadura do Homem de Ferro, esta habilidade de saber o que é certo não consegue trazer alento algum ao ser humano, caso existisse no mundo real. A própria concepção de uma comparação dessas resvala no humor ridículo da tolice, o gênero inicial que é reflexo invertido do herói narrativo. “Ridículo um homem usar uma cueca por cima das calças”, essa é a pitada de ridículo que equilibra o ato de se esquivar da responsabilidade do ato justiceiro. É o humor cinematográfico que, quando bem colocado, reforça a presença do herói na história que está sendo mostrada, por mais irreais que sejam as imagens mostradas. A tolice fundamental retira o super herói da dimensão analítica do real ao lembrar de sua origem vestigial como sátira. Retire a tolice, e o peso da realidade esmaga o que sobrar. Um exemplo do que aconteceria se um super-herói que sabe o que é certo existisse no mundo real é o fenômeno das milícias denominadas “Liga da Justiça”. 

Entre 2006 e 2016, dois grupos “paramilitares” denominados “Liga da Justiça” atuaram em estados distintos: Rio de Janeiro e Mato Grosso. A ligação entre os grupos? Apenas a certeza de estar fazendo o certo, e de que o resultado justifica o crime de chacina. O mais notório deles, que atuou entre 2006 e 2010, agia na cidade do Rio de Janeiro e vizinhanças, liderados por Adelmar do Santos e Ricardo Teixeira, respectivamente chamados de Batman e Robin. Esse vigilantismo reacionário e suas implicações morais e sociais foram um tema carro-chefe dos quadrinhos dos anos 80, especialmente no trabalho de Frank Miller, que dava forma particular a um sentimento geral de insegurança no período. Insegurança ao mesmo tempo fantástica (com o pesadelo atômico) e policial (com metrópoles abarrotadas e à beira de um colapso social). 

Como os heróis citados, ambas as milícias atuavam com um elemento em comum: a máscara. Difícil imaginar, antes da popularidade dos filmes de super-heróis, que estes personagens serviriam de inspiração para ações tão reais.  Hoje em dia a internet e as mídias sociais são o meio de divulgação de cada vez mais narrativas reais de ações extremas geradas pela certeza equivocada do que é certo. Entretanto, a máscara vem ficando em segundo lugar, como pode ser ver nas produções de Hollywood que não conseguem se livrar do vício no “star system”, ou sendo substituída pelo baile mascarado mundial que é a internet. Não cabe a este texto elaborar esta questão.

Para usar, então, o poder de estar certo, é preciso arcar com as consequências (o personagem Justiceiro é um exemplo dessa atitude), ou esquivar-se da responsabilidade usando o artifício da máscara (ação que só obtém êxito quando ciente da tolice envolvida). Sem a tolice, sem o lúdico e o e o faz-de-conta juvenil que é fundador do gênero, a bênção da onisciência vira arrogância insensível na história de super-herói. O realismo pode, sim, gerar boas histórias do gênero. Existem vários gibis que conseguem esse êxito. Mas o sucesso dessas HQs se dá graças à herança já secular da “contação de histórias” em quadrinhos. Algo que dificilmente o cinema de super-herói, como meio essencialmente ligado a um mercado quase infinitesimalmente mais caro que o de HQs, vai ter o luxo de desenvolver. E muito provavelmente nem vai precisar desenvolver.

Carros e super-poderes (2)

Tempo, mano velho: implicações loucas de MORT CINDER, obra genial de Oesterheld e Breccia

por Ciro Inácio Marcondes

Falar de Héctor Germán Oesterheld (HGO), o maior roteirista de quadrinhos argentino, é, de certa forma, falar também de Jorge Luís Borges, o maior escritor argentino (se há controvérsias, vamos deixá-las de lado no momento). Vejamos: Oesterheld é um narrador das aporias do tempo e do espaço. Basta lembrar dos diversos viajantes alienígenas d’O Eternauta, da revisitação do western em Sargento Kirk, da leitura da segunda guerra em Ernie Pike, das viagens no tempo em Sherlock Time, etc. Oesterheld, assim como Borges, se servia do fantástico (e da sci-fi, no caso de HGO) para fazer leituras de possibilidades históricas, dos limites do ser humano ao ser pressionado em estranhas condições, e em última instância das prisões e libertações que o tempo pode proporcionar.

Neste caso bastam dois exemplos de Borges: o de O Aleph, em que um único ponto no espaço-tempo permite que se viva tudo que já foi vivido por todos, em seus mais ínfimos detalhes, em um instante. E o de Funes, o memorioso, em que um personagem está preso em sua absurdamente fantástica memória fotográfica, podendo se lembrar minuciosamente de cada instante em que viveu, passando apenas a viver de lembranças, ao invés de construindo uma nova narrativa para a vida. As carreiras de Oesterheld e a de Borges não apenas coincidem em aspectos temáticos, mas também na periodicidade (ambos têm um auge de produção entre os anos 40 e 50). A faceta literária da produção em quadrinhos de HGO não esconde sua admiração por Borges. “Eu quase não leio histórias em quadrinhos. Eu leio literatura. Leio constantemente. E se Borges lança uma coisa eu vou e compro. Estas são minhas fontes. E eu o digo sem culpa. Leio bons autores: Stevenson desde criancinha, ou Salgari”.

Escrevo este preâmbulo comparando brevemente os dois grandes da Literatura e da HQ argentina para disparar primeiras ideias de minha leitura de Mort Cinder, aquela HQ que é considerada, frequentemente, como a última importante da fase clássica dos quadrinhos argentinos, e um dos momentos mais luminosos de HGO. Coloquemos assim: se O eternauta é o Grande sertão: veredas de HGO, Mort Cinder é seu Tutaméia, ou seja, a obra mais enxuta e moderna que atualiza o clássico absoluto. Se um é o Ulisses, o outro é o Finnegans Wake. Para arrematar: se O eternauta é o Pet sounds de HGO, Mort Cinder é o seu SMiLE. Entendeu? Não? Então vá googlear essas coisas.

Mort Cinder foi publicado na revista argentina Misterixentre 1962 e 1964, com desenhos do uruguaio Alberto Breccia (com quem trabalhara em Sherlock time), então o também maior ilustrador trabalhando na Argentina. Era um time, portanto, pensado e construído para a elaboração de uma obra-prima. Lembrando que a primeira Bienal Mundial de Histórias em Quadrinhos argentina ocorre em 1968, dando credibilidade a uma mídia que, em terras platinas, já havia passado do seu auge, e que Oesterheld seguirá escrevendo histórias em quadrinhos (cada vez mais engajadas) até sua desaparição pelas mãos da ditadura militar, em 1977.

Portanto, quando HGO se junta a Breccia para produzir Mort Cinder, já não havia qualquer pudor em seguir determinados padrões editoriais ou fórmulas de sucesso. Experiente também como editor, HGO quis fazer desta série um projeto pessoal, em que suas ideias borgeanas fossem colocadas à risca da maneira mais “autoral” possível. O resultado é uma obra visivelmente madura, publicada no formato de revista, mas planejada como uma série sem muitas interligações entre os episódios, que se complementam mais por conceito, pela afinidade intelectual da coisa toda, do que narrativamente. Pude adquirir um volume que contém todo o Mort Cinder por meio da linda coleção “Biblioteca Clarín de la Historieta” (Vol. 13), publicada pelo jornal Clarín na Argentina nos anos 00. Até então, afora as edições originais de “Misterix” (raras), havia apenas um edição espanhola (dos anos 80) e uma argentina (dos anos 90). Se você cruzar com isso por aí, agarre com todas as forças.

Força, por sinal, é o que transborda da arte de Breccia, um preto-e-branco com pouca sombra e muito contraste, criando uma arte sombria e gótica, influência confessada, por exemplo, para Frank Miller em Sin City. Esta arte acompanha premissa genial, francamente borgeana, mas com aquele toque “foda-se para a verossimilhança e explicações mais” típico de HGO: a história é contada da perspectiva de dois personagens bastante “sui generis”. O primeiro é o antiquário inglês Ezra Winston, que toca seu empoeirado negócio com o olhar precioso daqueles que enxergam cada objeto como se ele carregasse consigo emoções e afetos de donos antigos, de histórias de outrora. Como se cada objeto fosse efetivamente um Aleph, disparando percepções para todas as direções: máquinas do tempo.

Estas máquinas do tempo são o mote para o segundo protagonista, o próprio Mort Cinder, um imortal que retorna em sua forma adulta a cada vez que morre. HGO não inclui uma origem para a imortalidade de Mort. Sua trajetória só pode ser reconhecida nas marcas graves de seu rosto torturado (perturbador, no traço de Breccia) por milhares de mortes violentas, pelo testemunho das incontáveis brutalidades da História. Assim, Mort é menos um personagem imortal completo, com origem e mitologia próprias, que um instrumento para, por meio dos objetos de Ezra, HGO viajar no tempo e no espaço e escrever suas parábolas sociais.

Ezra Winston

O imortal como metáfora do esquecimento

A linha de desenvolvimento das histórias é bastante perceptível: nas primeiras, mais aventurescas e de sci-fi mais pulp, a dupla se envolve em tramas rocambolescas, que problematizam a viagem no tempo. Depois, porém, a estrutura que contém um objeto, uma memória de Mort e um longo flashback se torna a moeda comum para HGO ir até o Egito antigo, a Mesopotâmia ou o Peru colonial para resgatar a memória problemática de poderosos e desvalidos, projetos de poder, histórias não contadas. HGO e Breccia fazem de Mort Cinder espécie de “Dr. Who metafísico”, onde a sci-fi não precisa de dispositivos ou technobabbles para justificar suas reflexões sobre história, memória e cicatrizes do tempo. É como se dissesse: “vamos pular a parte nerd e ir direto ao que interessa: o imortal como metáfora do esquecimento”.  

Assim, se na primeira história, “Olhos de chumbo”, temos um enredo interessante, porém pulpesco, que narra o primeiro encontro entre os dois heróis e envolve cientistas malucos, planos de dominação global e escravos zumbizados tecnologicamente (neste sentido ainda lembrando O eternauta em sua versão original), logo vamos passando ao sentido metafórico (e metafísico) das outras histórias: em “A mãe de Charlie” voltamos à Segunda Guerra para descobrir o paradeiro do filho soldado de uma mãe que o espera há mais de 20 anos sentada no mesmo banco; em “A torre de Babel” voltamos ao conto bíblico para descobrir que a torre era na verdade um aparato de lançamento (desenvolvido por uma elite escravocrata) para um foguete com intenções de viajar até a Lua, plano interrompido por um alienígena que usa seus poderes para criar diferentes línguas e dissuadir a humanidade; nos dois contos da penitenciária, Mort está encarcerado e conhece diversa fauna de personagens estranhos, cada um com seus sonhos, perversidades, sede de vingança ou aspirações redentoras; em “O vitral”, Ezra é enfeitiçado por um vitral espanhol da época colonial construído (e amaldiçoado por) um índio do povo Inca que se infiltra na cultura do colonizador; em “O navio negreiro”, Mort se vê à deriva com um escravo africano e tem de tomar a decisão de salvar a si mesmo ou ao homem que o havia ajudado; em “A tumba de Lísis”, Mort e Ezra se veem envolvidos com um extraterrestre que procura sua noiva, enterrada em uma pirâmide há milhares de anos. Por fim, em “A batalha das Termópilas”, HGO retorna à clássica história relatada por Heródoto e coloca Mort como um espartano que, ao ouvir de um adivinho o futuro funesto dos soldados gregos, decide libertar um escravo antes de eles serem chacinados pelos persas.

Um passeio pelos temas e dilemas morais trabalhados por HGO e Breccia em Mort Cinder, portanto, nos colocam a par das ambições literárias do roteirista argentino. As histórias são narradas, nos recordatórios, em dura primeira pessoa literária (na voz de Ezra ou de Mort), deixando a leitura densa e carregada de insights mórbidos e impressões mais abstratas sobre os temas da ressurreição e perspectivas sobre a História e a morte. Da mesma forma, o uso instrumental da sci-fi ou da fantasia se tornam mais declarados: a viagem no tempo passa a ser tema metafísico, servindo o imortal para refletir sobre o esgotamento da memória, ou seu caráter cíclico, e ao mesmo tempo sua renovação através dos olhos cansados de Mort. A História é revista também pelos olhos dos desvalidos e esquecidos, ressaltando a perspectiva de esquerda engajada de Oesterheld (que lhe custou a vida): são histórias de escravos, prisioneiros, colonizados, soldados batidos. Neste sentido, HGO participa do amplo movimento de renovação da historiografia, procurando narrativas dos derrotados e da vida privada.

Estes temas todos são reunidos, por fim, na figura torturada de Mort, tão bem fixada no traço de Breccia, o que, num mundo justo, o tornariam um dos rostos mais icônicos dos quadrinhos. O olhar empedernido, as olheiras pesadas, o ar austero e misterioso do personagem parecem realmente carregar aquele chamado “peso” da História, protagonizado por um personagem imortal (Sísifo ou Prometeu?) que está cansado de sempre retornar para ver com seus próprios olhos o multiplicar de guerras, injustiças e carnificinas. De certa maneira, Mort Cinder é a própria História humana personificada na perspectiva de Oesterheld, duplo perfeito para os objetos silenciosos e antigos de Ezra, como o autor argentino tão bem pontua com suas próprias palavras: “As aventuras de Mort Cinder se iniciam sempre com um objeto que aparece na loja de Ezra, um antiquário. Sempre me fascinaram os objetos velhos, não por sua estética, mas sim pelas histórias que eles contêm. Todo objeto está impregnado de vida passada. Me atraem as recordações, mesmo que não sejam minhas nem de ninguém. Mort Cinder é a morte que não termina de ser. Um herói que morre e ressuscita. Em Mort Cinder há angústia, tortura.” Em Mort Cinder há, portanto, este caráter retroativo da morte, este tempo borgeano tão raro na HQ clássica, que a coloca em lugar único da trajetória da HQ mundial. Algo tão inevitável quanto essencial, perdido nos quebradas infelizmente ainda muito desconhecidas da HQ sulamericana. Há que se dar mais tempo ao tempo.            

Breccia: em seu esplendor

CAVALEIRO DAS TREVAS III, LIVRO DOIS: LEITURA PARA “NÚMERO 2” – 2º ensaio

por Márcio Jr.

A esmagadora maioria dos gibis mensais norte-americanos possui 22 páginas de quadrinhos propriamente ditos. Estamos, obviamente, falando de mainstream, comic books, super-heróis. Existem algumas justificativas para isso. A mais comum é que se o desenhista produzir uma página por dia, ao final do mês, descontando os finais de semana, ele terá feito um gibi inteiro. Faz sentido.

Minha tese, porém, é outra. Um gibi de 22 páginas corresponde exatamente ao tempo que se gasta numa ida ao banheiro para executar o glorioso “número 2”. A não ser que o roteirista seja o verborrágico Chris Claremont.

Você chega, abaixa as calças e senta no trono da privacidade absoluta – ou quase, no caso de ter filhos pequenos em casa. Ali, trabalho sujo e leitura ligeira andam de mãos dadas, numa simultaneidade que remete ao nado sincronizado. Movimentos peristálticos e satisfação mental. 22 páginas depois, missão cumprida. Missão dupla, diga-se de passagem. O gibi foi devorado do começo ao fim, sem sobras indesejáveis para momentos posteriores. E o estado da matéria no forévis ainda não se petrificou a ponto de exigir uma ducha. Todos saem ganhando.

Gibi de super-herói é, definitivamente, leitura de banheiro.

Batman: O Cavaleiro das Trevas, não.

A empreitada original de Frank Miller na mini-série de 1986 estava longe de ser leitura ligeira. Havia tramas e subtramas, overdose de informação, sofisticação gráfica e narrativa acachapante – além de cada edição ter praticamente o dobro de páginas de um comic book usual. Ou seja, torrar O Cavaleiro das Trevas no banheiro equivaleria a tomar um vinho de boa safra acompanhado de Cheetos para degustação. Algo seria fatalmente desperdiçado.

Não se trata aqui de dizer que literatura de banheiro tenha obrigatoriamente qualidade inferior. Taxionomias da modernidade não me parecem muito apropriadas para lidar com o tema. Li muitos contos de Bukowski confinado entre paredes azulejadas. O vampiro Dalton Trevisan parece talhar suas sintéticas obras-primas para estes ambientes ecoantes. Enfim, o que está em questão no W.C. é a equação que articula as seguintes variáveis: tempo, conteúdo passível de ser integralmente consumido neste tempo, fisiologia e higiene. Nada mais sacal que parar a leitura no meio de um parágrafo – ou entre dois quadros de uma HQ.

O Livro Dois de Cavaleiro das Trevas III: A Raça Superior tem 28 páginas, mas cabe direitinho na latrina. Ao contrário da seminal e inovadora série feita por Miller no século passado, é um gibi muito parecido com outros tantos que circulam atualmente. Fácil ler numa sentada.

Carrie Kelley, a Robin, está presa. No Livro Um, havia sido pega usando o manto do morcego. A edição é praticamente sobre sua espetacular fuga das garras da polícia de Gotham. Nem tão espetacular assim, a bem da verdade.

Frank Miller sempre foi um quadrinista com alma de cineasta. Seu storytelling – dos mais vigorosos que as HQs já deram à luz – tem esse componente cinemático no DNA. Invocado com cinema noir e filmes policiais, o autor sempre pareceu se deliciar em criar fugas eletrizantes. Quem se lembra de como o Mercenário escapou da prisão antes de assassinar Elektra, sabe bem do que estou falando. Neste Livro Dois de DK III, contudo, não temos Miller desenhando. Talvez, sequer esteja roteirizando pra valer. Não dá para saber ao certo o que vem de sua pena ou da de Brian Azzarello. Daí que a fuga de Carrie Kelley, ainda que possua ritmo, soa inverossímil demais, super-heroística demais. Andy Kubert, com certeza, contribui para isso.

A pouca inspiração gráfica apresentada na primeira edição da série se confirma em definitivo neste Livro Dois. Andy emula diagramações de página e enquadramentos criados por Frank Miller em Batman: O Cavaleiro das Trevas. O resultado atingido, todavia, não passa de um pastiche, uma caricatura (pobre) da obra original. 

A Gotham City que o atual desenhista nos oferece é uma triste diluição da sombria e vigorosa megalópole gótica mostrada em 1986.O próprio desenho de Andy Kubert se mostra menos cuidadoso que o habitual. E não se trata de síntese ou estilização, mas tão somente de um Andy Kubert inferior a si mesmo. Tempo curto para a produção? Não sei dizer. Mas ainda que não seja a pior arte do mundo, é muito pouco para um Cavaleiro das Trevas – mesmo este rescendendo a caça-níquel.

Existem dois tipos de arte-finalistas: aqueles que se esmeram ao máximo em manter as características do desenho original a lápis, e aqueles que se apropriam dele, imprimindo ali uma assinatura inconfundível. Klaus Janson pertence a esta segunda estirpe. É um papa da arte-final, responsável por salvar centenas de páginas criadas por desenhistas medíocres. Em DK III, infelizmente, tem se mostrado tímido e por demais preocupado em preservar o trabalho de Andy Kubert. Um erro.

Erro que se agrava se lembrarmos que, além de arte-finalista de primeiríssima linha, Janson é também um craque do desenho. Quando o próprio Frank Miller abandonou o lápis e passou a apenas escrever (e esboçar) as histórias do Demolidor, Klaus Janson assumiu o trabalho, mantendo o nível lá em cima. Alguns, inclusive, dizem que é o período mais bonito da longa primeira jornada de Miller à frente do personagem. Volto a pensar em limites de tempo para a produção de Raça Superior. De qualquer forma, tenho absoluta convicção que uma saída infinitamente melhor que a escalação de Andy Kubert como desenhista, seria deixar o velho Sr. Janson tomar conta de toda a arte de DKIII. Basta ver as capas variantes que ele criou para a série.

Consumada a fuga de Carrie, a HQ toma um novo rumo que faz avançar um pouco mais a narrativa: os kryptonianos da cidade engarrafada de Kandor são libertados pelo Átomo. Surge então Quar, que não precisa de mais de seis páginas para se apresentar por completo: líder religioso fanático e extremista, dono de um harém de esposas, assassino purificador de todos que não comungam de seu credo. Seria o Oriente Médio uma embaixada de Kandor na Terra? O espectro de Frank Miller finalmente se mostra em DKIII. 

O gibizinho deste Livro Dois é protagonizado pela Mulher-Maravilha e desenhado pelo hermano Eduardo Risso. Oba! Parceiro de longa data de Brian Azzarello – com quem fez a já clássica 100 Balas –, Risso traz munição gráfica de alto calibre para a série. O artista é um fenômeno na composição das páginas e no uso de amplas massas de sombra em preto chapado. Aqui, aparece mais leve e comedido, flutuando nas pequenas dimensões do formatinho. As cores de Trish Mulvihill são as mais inteligentes (e competentes) até o momento.

Na curta HQ, um tenso encontro entre a Mulher-Maravilha e sua filha (com o Superman) Lara – que começa a confirmar para si um papel fundamental na trama. O conflito de gerações, o embate com os pais e os questionamentos da juventude vêm à tona. São temas universais. Escapar dos clichês – ou executá-los com maestria – é condição indispensável ao sucesso de A Raça Superior

Ao final da segunda edição de DKIII, tem-se a nítida impressão que a HQ ainda não decolou. Alguns fios de trama, não muitos, foram lançados. A leitura, ligeira, não é desagradável. Mas ainda está muito aquém do relevo que um Cavaleiro das Trevas exige. Com praticamente a mesma quantidade de páginas destas duas edições, o primeiro número da série original já havia virado o mundo dos quadrinhos de cabeça para baixo. A Raça Superior ainda tem sete “livros” para mostrar que não é só mais uma leitura de banheiro, dentre tantas outras. Afinal, pelo menos aqui em casa, todo dia tem “número 2”.

Cavaleiro das Trevas III: A Raça Superior ou Frank Miller transformado em commodity - 1º ensaio

Cavaleiro das Trevas III: A Raça Superior ou Frank Miller transformado em commodity - 1º ensaio

Muito já foi dito sobre Cavaleiro das Trevas III: A Raça Superior, nova investida de Frank Miller ao universo que o consagrou por definitivo em 1986, quando do lançamento da antológica minissérie original. Considerando-se que a HQ permanece incompleta, isso só reforça um fato: Miller segue como o maior e mais influente quadrinista da indústria norte-americana desde Jack Kirby. E isso não é Ki-Suco de groselha. Com a chegada da primeira edição às bancas brasileiras, via Panini, passa a existir a possibilidade concreta de um encontro efetivo com essa nova obra – a menos para aqueles com R$ 9,90 no bolso. Assim, o que proponho aqui é uma série de ensaios, um a cada edição, sempre escritos no calor da batalha. Apesar da perda do status de unanimidade, o volume de polêmicas e discussões geradas por cada movimento de Miller mostra que o velhote (que cronologicamente nem é tão velhote assim, batendo na casa dos 59 anos) ainda tem tinta pra queimar.

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BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 1

2015 não foi exatamente o ano mais terno, mas nem por isso vamos deixar de celebrar as experiências quadrinísticas que vivemos em meio a mortes de celebridades, caos na política do nosso país, filmes aguardadíssimos e grandes eventos sobre gibis. Nos próximos dias vamos publicar as listas das melhores leituras que fizemos neste ano fora da casinha.

Cada membro do staff Raio Laser tem seus próprios critérios, e, assim como temos feito desde o princípio aqui, a escrita é livre, a abordagem é selvagem, cada um faz como quer. Eu, por exemplo, que começo, não estou fazendo uma lista dos melhores quadrinhos lançados em 2015. Peço desculpas. Não pude acompanhar uma avalanche de lançamentos de todos os tipos simplesmente porque estava concomitantemente escrevendo uma tese de doutorado (ai minha cabeça). Portanto, resolvi escrever sobre os melhores quadrinhos que li de qualquer época. Isso também é legal. A gente pode revisitar os clássicos, escrever sobre aquele volume que tinha faltado, acertar as contas com sua própria coleção. Algumas coisas li quando ainda estava na França, e outras já no Brasil. Deu, por exemplo, para falar sobre o grande Shigeru Mizuki, falecido no fim de 2015. Não é uma beleza? Esta lista não está em ordem de qualidade. Não está, aliás, em qualquer ordem significativa. Apenas pegue os textos que mais te interessarem e leia na ordem que quiser. Nos próximos dias, as muito diferentes listas dos outros caras da RL. Acompanhem! (CIM)

Parte 2

Parte 3

por Ciro I. Marcondes

1 - KITARO: LE REPOUSSANT (Kitaro, o repulsivo) – Shigeru Mizuki (Collection Paul, 2007 [1959]): o mangaka Shigeru Mizuki, falecido em 2015 com 93 anos, era ao mesmo tempo um mestre dos gêneros gekigá (quadrinho japonês mais sombrio, com auge nos anos 50 e 60) e do yokai (histórias de monstros folclóricos e fantasmas). Eu havia comprado o primeiro volume de uma edição francesa de sua obra mais famosa, GeGeGe no Kitaro, quando estive fora, e, assim que soube da morte do autor, resolvi ler para ver de qual era. Mesmo que as primeiras histórias sejam ainda um tanto primitivas (foram publicadas em 1959) e careçam de consistência, elas vão melhorando incrivelmente à medida que a leitura avança. Kitaro é uma espécie de morto-vivo, uma criança mágica das trevas, que rasgou o útero de sua mãe morta para ser o último de sua espécie. Ele é acompanhado apenas pelo sinistro olho ambulante (literalmente) de seu pai, o mais bizarro dos sidekicks. Mizuki aproveita esta ideia de errância para fazer o garoto-monstro cruzar com todo tipo de ser folclórico e criatura medieval japonesa (a estranheza aqui é grande: um deles é uma gosma; outro, uma espécie de nuvem com olho macabro; e outro é pura e simplesmente um olho com halo de trevas).

Kitaro é incrivelmente imaginativo, e as situações em que o autor coloca o menino são absurdas, de um fascinante encantamento com o mundo do oculto e do sobrenatural, ressaltando a presença feérica destes yokai em contraposição à estupidez racionalizante do mundo moderno. Mizuki lutou na segunda guerra, contraiu malária, perdeu um braço e esteve muito próximo de ser executado. Sua visão assombrada do mundo, mesmo que lírica, não deixa de ser um reencantamento em relação à indústria de matar da guerra moderna, e sobrevive. É um bom momento para todos lermos Kitaro.

2 - RADIO LUCIEN / RICKY BANLIEUE / LULU SMACK (Lulu S’maque) – Frank Margerin (Les Humanoïdes Associés / Abril Jovem, 1982, 1987, 1987 [1992 no Brasil]): trazer vida à juventude do revival rockabilly na Paris dos anos 80: esse era o propósito de Frank Margerin ao criar o personagem Lucien e sua turma de losers quando foi (prancheta debaixo do braço) trabalhar para a Métal Hurlant no início daquela década. Hoje Margerin é uma instituição francesa. Seus quadrinhos groz-nez, de enorme facilidade narrativa e imenso carisma, são tudo que podemos esperar de algo despretensioso, leve, mas tomado por vida de verdade em todos os lados. Os problemas da sua galera são coisas reconhecíveis: pegar uma moto emprestada, enfrentar um Natal chato em família, tentar montar uma banda de rock ou uma rádio pirata. Margerin é despojado, sarcástico, e uma bem calibrada lente de leitura de sua época. Dentre as três edições que li em 2015, apenas uma (Lulu Smack), saiu no Brasil, e esta é justamente uma HQ de passagem para o autor: é sua primeira história longa, que relata o nascimento de um romance, e foi até mesmo publicada como graphic novel pela Abril em 92. Preferi as histórias curtas das outras duas, mais rasteiras e com faro para ironia mais apurado. Todo Margerin, porém, é relevante, e isso faz dele um autor que precisa urgentemente de mais traduções por aqui.

3 - DOIS IRMÃOS - Fábio Moon e Gabriel Bá (Cia das Letras, 2015): nossa resenha completa desta HQ aqui.

4 - BOULES DE CUIR (Bolas de couro) – Phicil e Drac

 (Tournon-Carabas, 2012): esta foi achada no sebo, naqueles deliciosos exercícios de simplesmente se perder numa multidão de quadrinhos desconhecidos e, por puro “feeling”, ir sacando aquilo que pareça interessante e difícil de encontrar em qualquer outro lugar. Não conhecia o quadrinista francês Phicil (Philippe Gillot), que, com as cores de Drac, realizou este primoroso álbum em “quadrinhos antropomórficos de época”. Meio Crumb, meio Disney, e, lógico, bastante BD, Boules de cuir tem humor sagaz na medida certa, incrível detalhismo fotográfico em seu retrato de uma Paris do entre-guerras (sem perder a pegada cartum), e excelente punch narrativo. É uma história deliciosa: um pato verde e mala, Bec (versão francesa do Plucky dos Tiny Toons), e um ingênuo e delicado ursinho chamado Tintin se envolvem no pernicioso mundo do boxe de feira, cheio de trambiqueiros, para extraírem para si algumas lições. A ambientação do roteiro é estudada e fascinante, os diálogos têm forte personalidade e os desenhos são muito carismáticos. Verdadeira aula de quadrinhos narrativos. No aguardo, agora, do último lançamento de Phicil: “Zen, meditações de um pato egoísta”, novamente com Bec como protagonista.

5 - MULHERES – Yoshihiro Tatsumi (Zarabatana Books, 2007 [1961]): uma prostituta que recusa o ex que a abandonou pela família. Uma garota que ganha benefícios de acordo com o amante e dá seu salário a um jovem bem mais inocente. A mulher que é maltratada pelo marido, que a rejeita publicamente. Estes são alguns dos motes desta coletânea de quadrinhos dos anos 60 do grande Tatsumi, mestre e inventor do gekigá que, em uma narrativa quase pulp, situada entre o cotidiano e o íntimo grotesco, com influência do cinema noir e dos romances eróticos baratos, consegue deflagrar a vida da mulher japonesa de sua época. São agruras, contradições, crimes passionais. Certo, não é o melhor de Tatsumi, mas, sendo o único material dele publicado no Brasil, é o que temos para hoje, e uma boa amostra. Como Mizoguchi no cinema (ver Akasen chitai, 1956), Tatsumi radiografa certo ethos feminino do Japão do pós-guerra de maneira crua, cirúrgica, sem proselitismo. Para a época, é revolucionário em vários aspectos, e um quadrinho essencial dentre os publicados pela Zarabatana.

6 - PINÓQUIO (Pinocchio)

– Winshluss (Les Requins Marteaux / Globo, 2008 [2012 no Brasil): com atraso, finalmente li a celebrada adaptação de Winshluss (Vicent Paronnaud) para o Pinóquio de Collodi (e da Disney!). Eu poderia começar mencionando a estupefante qualidade gráfica, mistura de livro infantil da primeira metade do século XX com comic strips da era de outro (especialmente nas cores); poderia falar da desconstrução perturbadora da história original (um conto moralista sobre a perda da inocência), que faz varredura da podridão imoral das instituições modernas; poderia falar da genial transformação e adaptação de cada evento das histórias que o inspiraram. Mas eu gostaria mesmo é de ressaltar a coragem de Winshluss em investir numa narrativa dinâmica e quase inteiramente silenciosa. Balões viram universos de imagens a serem descobertos. Abundam expressões que trazem teatro e cinema aos quadrinhos. Páginas com geniais soluções visuais e narrativas se intercalam com os monólogos politicamente incorretos do escritor beatnik em que se transforma o Grilo Falante (Barata Joe). Winshluss comprova, ao comparar a ladainha da Barata Joe ao seu vasto acervo gráfico, que a HQ muda pode ter exuberante floresta de informações e enorme complexidade a ser decodificada. Demorou, mas valeu a espera.

7 - LES PASSAGERS DU VENT – LA FILLE SOUS LA DUNETTE (Os passageiros do vento – A garota sob o tombadilho) – François Bourgeon (Delcourt, 1979): outra instituição da BD franco-belga, François Bourgeon é um dos únicos autores de HQ de pirataria capaz de ser comparado a Hugo Pratt.

La fille sous la dunette, primeiro volume de sua longa série dos “passageiros do vento” – vencedora em Angoulême (1980) – , uma das mais populares HQs de aventura francesas, é um arroubo de elegância e cuidado com a reconstituição histórica. Passando-se em alto mar, entre a França e a Inglaterra no século XVIII, este volume é não apenas meticuloso a ponto de Bourgeon ter construído maquetes para os cenários, desenhado modelos para os navios e ter se baseado em fontes fielmente documentais. Ele é também uma aventura de tirar o fôlego envolvendo trocas de identidade, vinganças cabulosas, incríveis batalhas navais e um socializante discurso a respeito do tráfico de escravos. Além disso, o traço realista, fino, de inigualável verossimilhança, do autor, traz todo um aspecto vívido e colorido, além de lindo erotismo, a esta HQ popular, recorde de venda na França. Popular não deve (e nem pode) ser coisa ruim, e esta obra é prova concreta disso.

8 - OS MAIORES CLÁSSICOS DO DEMOLIDOR (Daredevil,the man without fear, Nº 168-192) – Frank Miller e Klaus Janson (Marvel / Panini, 1981-83 [2002]): entusiasmado com a série da Netflix, resolvi mexer nas minhas memórias de adolescente e reler a fase clássica de Frank Miller em Demolidor

, algo que sempre ficaria reminiscente em minha lembrança como “a melhor coisa que Miller já fez”. Peguei logo as reedições da Panini, que recompilam nada menos que 24 volumes desta brilhante fase, a partir do momento em que Miller assume os roteiros. Uau. Você lê esse material e parece que um trem trombou com a sua cara. Roteiros concisos, fortes, equilibrados e imediatos se unem a uma arte milleriana que, se ainda não atingiu o auge, se aproxima a um perfeito ponto de equilíbrio entre Cavaleiro das trevas e Sin City, por assim dizer. Todo Miller já está ali: a versatilidade no uso de grandes quadros horizontais, o apagamentos das arestas (influência de Eisner), liberando a sarjeta, o approach urbano (tornando a série eminentemente moderna, quase fundando a era de bronze), recursos de zoom, câmera lenta, sinestesia, quase todo tipo de letreiro em primeira pessoa (todos narram: Ulrich, o Mercenário, Foggy ), enfim, um primor absoluto. Fora isso, o carisma do herói contado por um autor jovem, vigoroso, cheio de ideias incríveis. Os duelos com o Mercenário. A ascensão do Rei do Crime. A morte de Elektra. Etc. Etc. Tempo bom, que não volta nunca mais.

9 - ORDINÁRIO – Rafael Sica (Cia das Letras, 2010): apesar do título desta HQ, Rafael Sica não é um quadrinista ordinário. As tiras mudas (sem falas) reunidas neste volume da Cia das Letras estão entre o que de mais interessante surgiu em quadrinhos (hmm) “experimentais” no cenário recente brasileiro. Com o espaço francamente subvertido pelos paradoxos intrínsecos à própria arte dos quadrinhos, ele vai criando fábulas, sonhos, anedotas, alegorias. Espécie de Liniers mais sombrio, Sica nos leva a situações e mundos onde as sombras ganham vida, onde um narciso urbano se afoga numa poça de água suja na rua, onde um homem se esconde atrás de tudo, inclusive dos espaços próprios ao quadrinho em si. São tiras existencialistas (o “ordinário” estando neste absurdo da vida que todos compartilhamos), nada banais, com apelo surrealista e cheias de dolorosos enigmas. Quadrinhos assombrados, vindos de um artista assombroso.  

10 - UNE ENQUÊTE DE L’INSPECTEUR CANARDO – LE CHIEN DEBOUT (Um caso do inspetor CanardoO cão de pé) – Benoît Sokal (Casterman, 1981): e eis que estou elegendo aqui mais quadrinhos antropomórficos com patos marrentos, desta vez sob chave “noir”, em uma história cheia de elementos diversos e pitorescos. As investigações do inspetor Canardo, um pato alcoólatra, fumante de haxixe e depressivo, são também um patrimônio da BD e O cão de pé é sua primeira aventura publicada em álbum. Antes disso, os leitores do mercado franco-belga já haviam tido contato com o pato em histórias curtas publicadas na clássica revista (A suivre), responsável por lançar toneladas de autores de BD que depois se consagrariam. Esta primeira história é um prato cheio: Canardo é mero coadjuvante na história de amor fatal vivida pelo cachorro (também) alcoólatra Fernand, que retorna à sua cidade para tentar reaver uma garota que ele descobre assassinada. Lá ele cruza o caminho de Canardo e o de um mundo de escroques: chefões do crime, cientistas loucos, femmes fatales. Os diálogos são afiados, a história é potente e magistralmente bem conduzida, e a arte do belga Sokal encontra aqui um de seus auges. A atmosfera sombria é retratada em tom cartunesco, mas isso não deixa a história menos apavorante. Escura e cínica, ela abusa de recursos do cinema noir, como o close-up nos olhos, as imagens na penumbra e as cenas de violência. Vetor da representação de uma sociedade acabada e exímio participante no jogo do reaproveitamento dos gêneros, Sokal tem em O cão de pé um debut de cinco estrelas. Hoje já são mais de 20 álbuns lançados com o pato como protagonista, e Sokal não para: além de quadrinista, ele desenvolve jogos de videogame para a Microïds. Nada mal para um cara que, no Brasil, permanece desconhecido.

11 - BARATÃO 66 - Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu, 2013): nossa resenha completa desta HQ aqui.

12 - THE GIRL FROM H.O.P.P.E.RS. – A LOVE AND ROCKETS BOOK (A garota de HoppersUm livro de Love and Rockets) – Jaime Hernandez (Titan Books / Fantagraphics, 2007 [1985-1989]): as histórias reunidas neste segundo volume da inglesa Titan Books já não têm aquele tom das primeiras que apareceram em Love and Rockets: sem naves espaciais, sem dinossauros, sem alienígenas, super-heróis e sem o insuportável Rand Race. Ou seja: é muito mais “love” do que “rockets”. Eu já tinha lido algum deste material aqui e ali, mas nunca a série completa assim, de um só fôlego. Enquanto as primeiras histórias deste monumento da HQ indie eram mais abiloladas, cheias de toques surrealistas e non-sense misturado ao humor, à coolness e àquele erotismo esperto, esta fase que se inaugura a partir de 1986 (digamos, fase “Maggie gordinha”) esfria estas tensões malucas e coloca a histórias de Maggie, Hopey, Izzy e tantas outras garotas incríveis num patamar mais “pé no chão”. O que não significa menos emoção. É justamente aqui que Jaime Hernandez vai progressivamente construindo sua saga da fictícia cidade de Hoppers (na Califórnia), habitada principalmente por famílias de origem mexicana, a partir de uma teia afetiva que não dispensa as marcas que tornaram a série (conhecida como Locas) famosa: as desventuras afetivas das personagens, os conflitos entre gangues, situações do cotidiano, os improváveis entrecruzamentos entre a luta livre feminina e o resto dos plots, etc.

Mas nada disso resume Locas. O que verdadeiramente conta ao lermos uma série assim é o mergulho no dia-a-dia microdetalhado destas personagens tão vivas que parecem transportadas diretamente de uma realidade maravilhosamente atraente. Afinal: bandas de rock, garotas descoladas, wrestling feminino, bebedeiras, romances tórridos. Quem não gostaria de viver dentro desta HQ? O que encanta, no final das contas, é aquele fator “Hopey fica com Maggie, cuja irmã fica com Speedy, que por sua vez é apaixonado por Maggie, cuja tia Rena é uma estrela da luta livre e tem vários romances no passado”, etc. Hernandez vai e volta nas histórias sem deixar a peteca cair, em longos flashbacks totalmente verossímeis, alterando a idade, o visual e o contexto dos personagens de maneira perfeitamente coerente e envolvente. Se cada fase de Locas tem seus méritos, sendo a primeira mais avant-garde e inauguradora de todo um filão dos quadrinhos, esta segunda certamente prima pela maturidade com que Jaime investiga a psicologia de suas personagens. De certa forma, isso aproxima Locas de Palomar (de Gilbert), que já nasceu, por assim dizer, completo e maduro. Um quadrinho indispensável (e todos aqueles clichês de crítica, blá blá blá).