Quatro vezes John Romita Jr.

Quatro vezes John Romita Jr.

Nem eu nem os amigos que assinam os textos abaixo estaremos na CCXP 2018, super evento de cultura pop em São Paulo que, entre 6 e 9 de dezembro, recebe como convidados uma série de artistas, brasileiros e estrangeiros, para sessões de autógrafo, lançamentos, palestras, etc. e tal. Estivéssemos lá, o entusiasmo maior, com certeza, seria sobre a presença do desenhista americano John Romita Jr. Falo por mim, mas sei que falo também pelos comparsas de Raio Laser, que Romitinha está em nossa lista de ilustradores de quadrinhos favoritos. Sendo assim, seria sensacional poder encontrá-lo e pegar um autógrafo (um sketch, quem sabe), fazer uma foto e trocar meia dúzia de palavras para agradecê-lo pelas milhares de páginas produzidas ao longo dessas décadas todas.
Mas, qual revista autografar? Uma edição de X-Men, em formatinho, de quando Romita Jr. fazia as histórias dos mutantes tendo Magneto como líder? Ou uma Super Aventuras Marvel, com alguma história do Demolidor escrita por Ann Nocenti? Ou a edição especial Grandes Heróis Marvel - n° 50 (também em formatinho), que compila “Justiceiro - O Homem da Máfia”, com a versão parrudíssima do personagem? Quem sabe então a minissérie Homem Sem Medo, em parceria com Frank Miller (e arte final do monstro Al Williamson)? Ou talvez a one-shot Corações Negros, estrelando Motoqueiro Fantasma, Wolverine & Justiceiro?

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Elas nos quadrinhos: 11 mulheres notáveis

O envolvimento de mulheres no universo das histórias em quadrinhos cresceu consideravelmente nos últimos anos. Com isso, aumentou também o interesse delas por maior representatividade nesse meio, seja no conteúdo apresentado nas HQs ou na identificação com mais artistas do sexo feminino. De Marjorie Henderson Buell, a Marge, criadora da personagem Luluzinha, até Marjane Satrapi, roteirista e ilustradora de Persépolis, não é difícil elencar talentosas mulheres envolvidas com quadrinhos.

Quem curte Marvel e DC Comics deve estar familiarizado com os nomes das roteiristas Barbara Kesel, Gail Simone, Jo Duffy e Louise Simonson; das desenhistas Jan Duursema, Amanda Conner, Colleen Doran e Jill Thompson, da arte-finalista Rachel Dodson ou da colorista Laura Allred. Editora, Karen Berger está diretamente ligada à criação do selo Vertigo, da DC, e foi responsável por títulos como Sandman e o Monstro do Pântano de Alan Moore.

Os colecionadores de cards de super-heróis, uma mania nos anos 1990, devem se lembrar de Julie Bell, pintora que ilustrou dezenas desses cartões, sempre em ambientes fantásticos e um tanto kitsch (selvas ou espaço), com personagens musculosos (ela foi fisiculturista!) bem ao estilo da revista Heavy Metal. E por falar na publicação, como não mencionar Olivia De Berardinis e suas maravilhosas pinups? Ou a arte erótica de Giovanna Casotto? O leitor brasileiro de mangá talvez não saiba, mas muitos dos quadrinhos japoneses publicados por aqui foram criados por mulheres, caso de Peach Girl, de Miwa Ueda, Fullmetal Alchemist, de Hiromu Arakawa, e o popularíssimo Ranma ½, de Rumiko Takahashi. Mulheres deixaram suas marcas nos gibis da Turma da Mônica, desde a pioneira Emy Acosta, até hoje na empresa e uma das responsáveis pela chamada “fase fofinha” do final dos anos 1970, até, em tempos mais recentes, a roteirista Petra Leão, escrevendo para a Turma da Mônica Jovem, e a desenhista Lu Cafagi, nas graphics Laços e Lições. A finlandesa Tove Jansson é criadora da séria Mumin, capaz de encantar crianças e adultos. A obra saiu no Brasil primeiramente pela Conrad e depois pela A Bolha, ousada editora tocada por Rachel Gontijo.  E se você leu Fun home ou Você é minha mãe?, ambos de Alison Bechdel, sabe que essas graphic novels estão entre as melhores da atualidade.

Essas mulheres são apenas algumas entre muitas produzindo histórias em quadrinhos no Brasil e no mundo. Entre as brasileiras, poderiam ser citadas tantas outras que atualmente publicam suas HQs de maneira independente ou trabalham para as grandes editoras de comics. 

Aproveitando o Dia Internacional da Mulher, a Raio Laser fez uma lista com onze mulheres cujos trabalhos merecem a sua atenção. São profissionais que se destacam pela criatividade, inovação e personalidade. Curiosamente, não vemos com frequência os nomes delas em outras listas de grandes mulheres dos quadrinhos. Fica aqui a nossa reverência e respeito. (PB)

por Lima Neto, Pedro Brandt e Ciro I. Marcondes

Marie Severin - Muitos são os nomes laureados pela história quando falamos sobre histórias em quadrinhos norte-americanas, mas um dos nomes femininos que vem certamente à cabeça é o da colorista, desenhista, letrista e designer Marie Severin. Nascida em 1929, Marie entrou para os quadrinhos colorindo a edição A Moon, A Girl... Romance # 9, de Outubro de 1949, com a arte de seu irmão, John Severin. A partir daí, Marie se tornou a primeira dama da EC Comics, colorindo a maioria de suas revistas, um trabalho marcado pelo contraste entre sensibilidade e impacto que deixou sua marca nos quadrinhos de guerra escritos e desenhados por Harvey Kurtzman. Quando a editora deu início à sua famosa e controversa linha de quadrinhos de terror, Severin - católica praticante - tinha o cuidado de dar um tratamento cromático às cenas mais visualmente ofensivas com azuis fechados que tornava mais difícil, para os pais, perceber o teor dos quadrinhos que compravam para os filhos. Convidado pelo próprio editor chefe, Stan Lee, Marie Severin brilhou na era de prata da Marvel Comics, sendo a principal colorista da editora. A partir dos anos 70, Severin começou a revezar o trabalho de colorista com o de desenhista, colocando seu traço a favor de personagens como Doutor Estranho (substituindo Bill Everett, que havia entrado no lugar de Steve Ditko), HulkHomem de FerroConan e Kull, o Conquistador. Marie foi ainda o nome forte da Star Comics, selo de quadrinhos licenciados da editora, onde trabalhou em títulos como Muppet Babies e Alf. Marie Severin era uma trabalhadora braçal dos quadrinhos de super-heróis e se aposentou com a chegada do século XXI realizando alguns trabalhos como a recolorização de clássicos da EC Comics para coletâneas especiais. Marie Severin carregou a indústria nas costas, foi a grande mulher da EC comics e deve estar presente em toda lista de grandes artistas da HQ norte-americana. (LN)

Wendy Pini- Formada, de certa forma, no caldeirão contracultural dos quadrinhos alternativos dos anos 60 em San Francisco, Wendy Fletcher (depois Pini) acabou se tornando vetor de várias transformações nos quadrinhos americanos a partir do fim dos anos 70, quando lança, junto com seu marido Richard, a lendária, soberba e cultuadíssima série Elf Quest de forma inteiramente independente, seguindo o modelo dos comix underground. Os Pini fundaram a própria editora (WaRP) para lançar toda a saga original desta série fundamental para se compreender a aproximação dos quadrinhos indie com o mainstream. Espirituosa (ela fazia cosplay da Red Sonja em convenções de quadrinhos), engajada e multitalentosa, Pini concebeu junto a Richard um universo fechado, complexo e repleto de inacreditáveis detalhamentos que já previa um final definitivo no início da saga (algo inédito na época). Além de conceber o imaginário de Elf Quest, ela trabalhava os roteiros junto ao marido e, é claro, ilustrou toda a série clássica com um apaixonante estilo límpido, todo afeito ao quadrinho mainstream, mas com profunda matriz autoral e domínio narrativo. Seus elfos são esguios, de beleza quase sobrenatural, e seu traço é vivaz como poucos quadrinhos de aventura conseguiram ser.

Em qualquer circunstância do ofício da ilustração para HQs, Pini é uma mestra absoluta: cenas de ação, expressões faciais, ricos cenários e criaturas, empaginação, etc. Além de, é claro, ter levado adiante o que, para mim, é um dos grandes projetos de longo fôlego na história dos quadrinhos: Elf Quest narra, em uma longa saga cheia de desdobramentos fascinantes, a trajetória de tribos de elfos invasores em um mundo neolítico similar à Terra, mas povoado por diversas criaturas fantásticas, poderes místicos e conflitos atávicos. Este quadrinho não apenas é uma entusiasmante obra de aventura, mas também de sofisticados conflitos familiares, romances tórridos e histórias lendárias de uma cultura pensada no seio da era hippie, na esteira de Shakespeare e Tolkien, com a diferença que, aqui, a personagem feminina tem papel preponderante. Seu protagonismo não é subjugado, sua influência no destino dos elfos não é marginal. Nada menos que revolucionário. (CIM)

Ann Nocenti - Imagine ser contratado para dar continuidade a uma série de peso como Demolidor. Imagine agora que você não apenas vai dar continuidade, mas vai começar a escrever logo após o clássico Queda de Murdock. Se essa responsabilidade já parece massacrante, imagine para uma editora cujos trabalhos até o momento se resumiam a duas minisséries no universo dos X-Men. A escritora Ann Nocenti entra nesta lista justamente porque soube lidar com esse desafio como ninguém e marcou seu nome nas revistas de herói da Marvel. Seus roteiros davam continuidade a uma tendência inaugurada com a série Lanterna Verde e Arqueiro Verde (de Danny O´Neil e Neil Adams): a de levar questionamentos sobre os problemas sociais de nossa época para as páginas dos gibis de SH. Sob a pena de Nocenti, entretanto, estes questionamentos sempre apresentavam uma área cinzenta onde as respostas estavam longe de serem fáceis e as intenções dos personagens sempre guardavam um viés secreto e pessoal. Feminismo, maltrato de animais, conflitos éticos e muito mais se tornam obstáculos a serem vencidos por seus heróis que, em sua maioria, eram telas brancas sem julgamento prévio destas discussões, colocando-os lado a lado com os leitores do período. Nocenti criou personagens memoráveis como Mary Tiphoid, Longshot, Black Heart (filho do vilão demoníaco Mefisto, que em sua fase vai apresentar um visual mais bestial que o tradicional criado por John Buscema), Mojo e Espiral. Nocenti trabalhou com a maioria dos personagens da Marvel e recentemente escreve para a concorrente em títulos como Mulher-Gato e a fase recente da Katana novos 52, série bem recebida pela crítica. (LN)

Sophie Campbell - Criada como uma cópia da Mulher Maravilha pelo famigerado Rob Liefeld, a personagem Glory foi relida brevemente pelo roteirista Alan Moore e, em 2011, por Joe Keatinge, que a reinventou mais uma vez. Esta versão mais recente da heroína foi ilustrada por Sophie Campbell, que imaginou a personagem como uma mulher grandalhona com rosto de bebê e cicatrizes de batalha pelo corpo. Por falar em rostos e corpos, Campbell é conhecida por ilustrar a figura feminina em diversas silhuetas e feições de diferentes etnias, dando à série uma diversidade de tipos rara nos quadrinhos americanos. Essa abordagem caiu como uma luva na série que ela assumiu em 2015, Jem and the Holograms (inspirada no desenho animado de mesmo nome, original de 1985 e exibido no Brasil pelo SBT entre 1988-1993). Em clima de série teen, a HQ, que tem roteiros de Kelly Thompson, mostra a rotina de uma banda de rock formada por quatro garotas em busca do sucesso, em meio a intrigas, romances mal resolvidos, inseguranças e descobertas. Sob uma paleta de cores berrantes, Sophie Campbell veste as garotas com penteados e figurinos extravagantes, tudo muito exagerado, o que dá toda a graça e impõe o tom divertido e leve da série. A desenhista também é autora de uma série própria, Wet Moon, na qual apresenta as desventuras emocionais de um grupo de universitários prestes a encarar o mundo adulto, ao mesmo tempo em que aborda com naturalidade questões de sexualidade e dramas existenciais. Ah, até 2015, Sophie era Ross, quando assumiu publicamente ser trangênero. (PB)

Angela e Luciana Giussani - Todas as estrelas desta lista brilham com luz própria. São artistas que trabalharam duro para ter seus nomes marcados na história das HQ's. Mas dentre todos estes nomes, apenas as irmãs Angela e Luciana Giussani detêm no currículo a proeza de terem criado um gênero dentro das HQ's: o fumetti neri, ou “gibi negro” em uma tradução livre. Ex -modelo, casada com um editor de revistas da época, Angela Giussani era um espírito livre e empreendedor. Em 1962 ela lança a revista Diabolik, um fumetti diferente onde se misturavam erotismo e vilania. O personagem homônimo é um ladrão de joias requintado e misterioso conhecido por sua habilidade de disfarce e seu código de honra. Um anti-herói em meio a uma sociedade mais corrompida do que ele. O fumetti tinha ainda como personagens a loira e moralmente ambígua Eva Kant, companheira de Diabolik, e o inspetor Ginko, sagaz e habilidoso. O policial só não é páreo para o ladrão por ser claramente limitado por sua moral. Diabolik fez um sucesso tremendo, não apenas por seu conteúdo polêmico, mas também por ter um formato curto, de bolso e com roteiros impactantes. Na edição de número 13, a irmã de Angela, Luciana, passa a auxiliar nos roteiros e, a partir daí, elas vão se revezando e trocando com outros roteiristas nesta que é a revista mais duradoura da Itália, já ultrapassando a edição 800. A partir de seu sucesso (que chegou aos cinemas, rádio, romances, TV e foi até homenageado na revista dos X-Men na fase do escritor Grant Morrisson), toda a Itália se rendeu a uma nova linha de narrativas sádico-eróticas com personagens mascarados. Todos com uma bem posicionada letra K, como Kriminal, de Luciano Secchi assinando como Max Bunker, e arte do fabuloso Magnus (Robert Raviola); os dois autores ainda criaram o gibi Satanik, que teve posterior sucesso com a série de fotonovelas. O sucesso deste fumetti neri também criou paródias e versões, como o famoso Paperinik, o “Super Pato”, identidade heroica do Pato Donald. Tudo graças ao pioneirismo destas irmãs milanesas que mostraram ao mundo como o quadrinho pode ser palco dos desejos represados de toda uma nação, como era o caso da Itália católica do período. (LN)

Lilian Mitsunaga - Responda rápido: O que Batman – Cavaleiro das Trevas, Asterios Polyp, Gibis da Disney e a revista Animal têm em comum? Todos estão no portfólio da letrista e lenda do quadrinho brasileiro Lilian Mitsunaga. Não tem como falar de histórias em quadrinhos no Brasil e não lembrar desta profissional que ensinou mais de uma geração de fãs a ler. Esta paulista, natural de Mauá, começou a trabalhar com o letreiramento de quadrinhos em 1980 com uma historinha de quatro páginas do ursinho Puff (Pooh para os marqueteiros). De lá para cá, Lilian se tornou pedra fundamental na adaptação de quadrinhos de fora para o mercado brasileiro. Seu profissionalismo e perfeccionismo foram elementos essenciais para que o artista David Mazzuchelli liberasse a publicação de sua graphic novel, a já citada Asterios Polyp, no Brasil. O trabalho de Lilian era tão respeitado que, nos anos 80/90, a letrista teve que trabalhar com pseudônimos em diferentes editoras para não transgredir o contrato com sua casa editorial – a Editora Abril. Com a chegada dos editores de texto, Lilian se tornou pioneira no domínio desta nova tecnologia, desafiando as vozes que diziam que o trabalho de letrista iria acabar. Muito pelo contrário, ao ler qualquer gibi letreirado por esta mestra, pode-se ver como a tecnologia precisa de pessoas capazes no comando para tornar a leitura um momento de prazer. Além de Asterios, podemos encontrar as letras de Lilian em Jimmy Corrigan (um dos trabalhos mais desafiadores para a letrista), Retalhos, Habibi e Sailor Moon. (LN)

Lynn Varley - Batman: O Cavaleiro das Trevas, 300 de Esparta, Elektra Vive, Big Guy e Rusty, Ronin... não, não estamos falando aqui do laureado Frank Miller, mas sim de sua ex-esposa e parceira de trabalho Lynn Varley. Junto com o ex-companheiro, Varley revolucionou o quadrinho de super-herói e elevou o nível de qualidade das cores dos gibis americanos. Juntando a influência de veteranas como a já citada Marie Severin, somado a influências europeias e orientais de abordagem cromática, Varley fazia das cores um espetáculo expressivo, e mesmo em seu pior momento – a trágica continuação de Cavaleiro das Trevas – a colorista criou um manifesto contra a pretensa naturalidade digital das cores “photoshopadas” que infestavam o mercado de HQ's e fizeram o sucesso da editora Image. Mas enganam-se aqueles que acham que esses foram seus únicos trabalhos. Varley é um dos nomes que colaboraram com o sucesso de American Flagg, de Howard Chaykin, e coloriu o traço das histórias em preto e branco de Moebius publicadas nos Estados Unidos pelo selo Epic Comics, da Marvel. Extremamente reservada, Varley continua trabalhando em edições especias e relançamentos de seu trabalho. Mas sua paleta de cor adicionou uma vibração única em um período revolucionário dos quadrinhos, estampando seu nome para sempre na história deste meio. (LN)

Érica Awano - Descendente de japoneses, Érica Awano aprendeu a desenhar no estilo mangá com as revistas em quadrinhos vindas diretamente do Japão que circulavam entre seus familiares. Ou seja, bebeu da fonte. Isso ajuda a entender como, em 1996, quando publicou pela primeira vez, ela já dominava os recursos gráficos típicos de uma HQ nipônica numa época que elas ainda não tinham invadido as bandas brasileiras. Sua narrativa visual é econômica, mostrando apenas o necessário para a continuidade da ação, e seu estilo de ilustração é elegante e delicado, clean, expressivo sempre que necessário – como tem que ser no mangá –, mas sem os exageros típicos dos quadrinhos japoneses. Em Holy Avenger, série de grande sucesso que desenvolveu com Marcelo Cassaro, é exemplar a maneira como Awano dosa os elementos apresentados ao longo da trama em suas páginas. O roteiro de Cassaro se equilibra entre o humor e a aventura, com um pouco de drama, muita ação e, às vezes, alguma violência, aliados à ambiguidade dos personagens, caso do ladrão Sandro Galtran e da insinuante elfa Niele (praticamente nua em toda a HQ). Ainda que o público-alvo da série (que durou 42 edições e teve vários especiais) fosse o infanto-juvenil, o material era produzido sem soar condescendente ou afrontar a inteligência do jovem leitor – a expectativa de muitos deles era que a série soasse como um autêntico mangá e não uma simulação disso. Entre trabalhos para o mercado brasileiro e o internacional, a mangaká ilustrou uma adaptação de Alice no País das Maravilhas roteirizada por John Reppion e Leah Moore (filha de Alan Moore), e a HQ do game Warcraft. (PB)

Posy Simmonds - Cartunista, ilustradora de livros infantis e autora de histórias em quadrinhos, a britânica Rosemary Elizabeth “Posy” Simmonds é uma veterana conhecida por cartuns e tiras publicados em jornais ingleses. Suas criações são sagazes sátiras à sociedade contemporânea. Esses são os ingredientes da única de suas obras publicadas no Brasil, Gemma Bovery, lançada por aqui em 2006, pela Conrad. Reinvenção em quadrinhos do clássico Madame Bovary, romance de Gustave Flaubert que causou escândalo quando publicado em 1857 por apresentar como protagonista uma mulher adúltera. Na trama da HQ, Gemma é uma inglesa aborrecida que se muda com o marido para uma pequena e aconchegante cidade francesa. Lá, descobre uma sensualidade adormecida e acaba se envolvendo numa relação fora do casamento. À distância, o vizinho de Gemma, secretamente apaixonado por ela, observa tudo. Publicado em formato retangular e vertical, a obra mistura narrativa em prosa, rica em detalhes, e em quadrinhos. A autora constrói um ritmo de leitura intimista, que joga o leitor para dentro das páginas e o transforma no voyeur a acompanhar de perto a protagonista. A HQ foi transformada em filme, uma simpática comédia dramática lançada 2014. Depois de Gemma Bovery, Posy Simmonds publicou Tamara Drewe, que também virou filme (em 2010). (PB)

Cynthia Carvalho: no Brasil, Frank Miller é uma mulher, e tenho dito. Os quadrinhos do Leão Negro, concebidos pela roteirista Cynthia Carvalho, primeiro surgiram como suplemento de quadrinhos de O Globo em 1987 (com ilustrações de Ofeliano). Depois ganharam a Europa, foram interrompidos e, mais recentemente, em 2010, os arcos das histórias originais foram retomados com os desenhos sensuais de Danusko Campos. Fosse este um mundo justo, Cynthia já teria levado um HQMix de “grande mestre” (ou algo que o valha). Ou, sei lá, o próprio prêmio teria o nome dela. Nada na história dos quadrinhos brasileiros se parece com Leão Negro. Em princípio, a aparência banal de quadrinho de aventura medieval engana o leitor que não se aventurar a ler as histórias. Porém, a leitura certamente os transforma. Leão Negro é o único quadrinho brasileiro aparentado com era de bronze dos quadrinhos americanos. É como se o cinismo realista do Demolidor de Miller, o ambiente robusto do Conan de Roy Thomas e a pegada pesada do Arqueiro Verde de Dennis O’Neil se encontrassem em algo que, ainda assim, ultrapassa o alcance destas referências.

Cynthia estabelece sua saga em uma ilha de cultura e tecnologia medievais onde acompanhamos a trajetória de uma família decadente de leões antropomórficos. Este mundo brutal, capaz de deixar até um fã de Game of Thrones com os pelos eriçados, não oferece qualquer signo de misericórdia. Crianças são exterminadas, fêmeas violentadas, famílias despedaçadas em conflitos fratricidas. Como eu disse em meu texto original sobre esta HQ: como gostar destes protagonistas felinos que são nada menos que polígamos, incestuosos, escravistas, lascivos e infanticidas? Cynthia, porém, dota estes personagens com profunda inflexão para a ambiguidade. Nada aqui é panfletário, ingênuo ou binário. Todos os seus anti-heróis são (ao contrário de uma babaquice pueril como o Justiceiro) enraizados em contextos verossímeis psicológicos, familiares e diria até socioculturais. Suas mulheres, mesmo atadas a uma sociedade de total submissão, são incrivelmente astutas, de intensa sagacidade e inteligência, e põe à prova dilemas contemporâneos através de um imaginário medieval fascista. Além de roteirizar estes injustiçados quadrinhos, Cynthia lançou em 2012 um ótimo livro de contos com histórias no mesmo universo. Logicamente, faz parte das melhores coisas já lançadas no gênero por aqui. Orgulho absoluto para a “cultura pop” brasileira. (CIM)

Uma mulher sem medo e as contradições de Frank Miller

por Pedro Brandt

Já foi mais fácil gostar de Frank Miller. Primeiramente porque seus quadrinhos já foram muito melhores. E, segundo, porque sua pessoa pública, ao menos no passado, parecia mais simpática. E mais coerente. Para alguém que se disse desiludido com Hollywood depois da experiência traumática que foi escrever o roteiro de Robocop II, Miller não parece ter se importado com princípios quando fez sua horrenda adaptação cinematográfica do Spirit – personagem de seu velho amigo Will Eisner que, morto em 2005, não teve o desgosto de ver sua criação massacrada na tela de cinema.

Recentemente, o americano escreveu em seu blog sobre o movimento Occupy. O teor do texto é tão reacionário que cabe a pergunta se Miller realmente pensa aquilo tudo ou se suas palavras apenas expressam a frustração do artista com as críticas negativas recebidas por seu mais novo trabalho, Holy terror.

O no mínimo controverso Holy Terror

O rancor do discurso de Miller parece ir de encontro a muitas coisas pelas quais ele já lutou e defendeu. Existe uma pouco lembrada HQ dele lançada pela Dark Horse em 1997 chamada Tales to Offend, uma provocação ao Comics Code Authority, o famoso selo que regulava o conteúdo que poderia ser publicado em um quadrinho americano mainstream. Em Tales, FM apresenta uma história do universo de Sin City (Daddy’s little girl, publicada no Brasil em 2001 em uma one show, da editora Pandora) e duas histórias do anti-herói Lance Blastoof, um mercador da morte que viaja pela galáxia fazendo negócios escusos, nunca se preocupando com quaisquer consequências. O engraçado é que no último quadro da última história, Blastoff diz ao leitor “Nunca deixe o Sr. Oportunidade passar por vocês, crianças!”

O mais legal disso tudo é que o texto de Frank Miller sobre o Occupy acabou repercutindo bastante, fazendo com que outros profissionais dos quadrinhos se manifestassem sobre o assunto – o que acabou gerando a circulação desse tema entre o público leitor de quadrinhos.

A roteirista Ann Nocenti, por exemplo, escreveu um texto no qual expressa sua opinião sobre o Occupy. Uma visão, aliás, totalmente oposta à de Miller. O texto pode ser lido no site Bleeding Coole é, na verdade, apenas um trecho de uma entrevista maior (ainda não publicada na íntegra) na qual ela fala de vários assuntos, entre eles o Occupy e seu futuro trabalho na revista Green Arrow (Arqueiro Verde).

Parte do discurso de Ann segue abaixo:

Ann Nocenti

“Muitas pessoas têm problemas para entender o movimento Occupy porque ele é algo muito novo. É descentralizado. Não é um movimento de ‘protesto’. É amorfo, como a Internet. É, de certa forma, um estilo de vida. É apoiado por trabalhadores sindicalizados, policiais simpáticos à causa, idosos, ricos, pobres, a direita, a esquerda... e, cada vez mais, até pelo ‘1%’. Ele cruza todas as linhas de classe, raça, gênero e política. É claro que as rádios de direita estão cheia desses descrições do Occupy – ‘crianças mimadas, bufões, ralé’, etc. – porque as pessoas temem o que não entendem".

Para Ann, o Occupy não significa estar vendado, mas tomar o controle da própria vida: “Que algo está errado com este país é inegável. Que os alunos se graduem em direito com uma enorme dívida e ainda assim não possam conseguir um emprego é simplesmente errado. Que bons planos de saúde só possam ser comprados pelos ricos é simplesmente errado. Que despejar dinheiro em guerras que não podemos ‘ganhar’ é simplesmente errado. Passei um tempo no país da al-Qaeda. Dólares abastecem tudo; acabam até financiamento quartéis do Talibã. Winston Churchill disse há muito tempo que ‘olhos ocidentais nunca vão entender os caminhos da cultura tribal’. A Guerra às Drogas (*o programa do governo americano War on Drugs), a última e inútil ‘guerra’ que levou nosso país à falência, foi recentemente declarada um fracasso absoluto.

“É muito fácil e preguiçoso demais apenas criticar o que o movimento Occupy está fazendo. É muito mais difícil apoiar e tentar entender que este é um símbolo de uma natural mudança radical em nossa sociedade”.

Mulher sem medo

Talvez os leitores estejam se perguntando “quem diabos é Ann Nocenti?”. Não lembro de nenhum trabalho dela recente (até porque, segundo o próprio Bleeding Cool, ela passou os últimos anos mais próxima de projetos sociais do que dos quadrinhos), mas algumas das HQ escritas pela americana têm lugar cativo na minha memória afetiva.

Uma delas, inclusive, faz de certa forma um link com esse assunto do Occupy. É a edição de número 252 da revista Daredevil, publicada nos Estados Unidos em 1987 e no Brasil em 1989, dentro da edição 82 de Superaventuras Marvel. Detalhe curioso: o gibi em questão tem 66 páginas e duas histórias, ambas com roteiro de Nocenti, a do Demolidor e uma protagonizada por Longshot, personagem criado por ela (e idealizado visualmente por Arthur Adams). Imagino que isso tenha sido uma coincidência. Mas gosto de pensar que foi uma espécie de homenagem da equipe de quadrinhos da Editora Abril ao trabalho de Ann Nocenti – que naquela época fazia um baita sucesso com o Homem Sem Medo ao lado do desenhista John Romita Jr. (e não esqueçamos do veterano Al Williamson, responsável pela arte final).

Outra curiosidade: a edição original, americana, fazia parte de uma saga chamada Queda dos mutantes, que, em 1989, ainda não tinha chegado ao Brasil. Por isso, as referências à saga (como uma breve aparição do Arcanjo) não aparecem em Superaventuras Marvel 82.

A ilustração da capa – com o Demolidor em plena ação, no alto de uma pilha de corpos desfalecidos (uma referência às famosas pinups de Frank Frazetta) - e as chamadas “Blecaute em Nova Iorque!” e “Caos nas ruas!” dão uma indicação do que é a história. Intitulada Ataque, a trama apresenta Matt Murdock (advogado cego, alterego do Demolidor) guiando uma comunidade carente da Cozinha do Inferno (o bairro onde ele cresceu) até um hospital em uma noite sem luz em Nova York. Já com o uniforme do Demolidor, o herói e a Viúva Negra partem para as ruas para tentar controlar o tumulto e, especialmente, os arruaceiros mais perigosos.

Ao medo das pessoas do escuro somam-se outros temores. Em tempos de Guerra Fria, um bombardeio nuclear talvez fosse o maior deles. Como seria o mundo em meio aos destroços, sem lei e ordem? Balaço, integrante da galeria de inimigos do Demolidor, sabe que seria a situação ideal para causar o caos e fazer valer a lei da violência. “Em breve a cidade estará a nossos pés”, acredita o vilão.

Tal qual Will Eisner nas histórias do Spirit, Nocenti preenche a sua com personagens coadjuvantes que ajudam a contextualizar o cenário e, claro, contar outros dramas além daqueles dos heróis. Caim, por exemplo, é um adolescente confuso, dividido entre seguir os passos de Matt Murdock ou uma vida marginal. Enquanto isso, um presidiário anônimo (sem ligação com o restante da história) escapa da delegacia mas revê suas posições quando encontra um bebê abandonado em uma lata de lixo.

Sejam eles coadjuvantes ou protagonistas, os personagens são embebidos de humanidade pela roteirista. Até o Demolidor chega a perder a paciência e passar uma descompostura em Caim.  No fundo de uma história cheia de ação, tensão, drama e paranoia, Ann Nocenti encontra espaço para mostrar o lado mais iluminado do ser humano, aquele que, em meio às adversidades, busca um objetivo maior, coletivo e solidário.

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