Quadrinhos pra incomodar: Belga e Berger

Quando eu e Pedro Brandt lemos

O lobisomem/A múmia  e Chuva de merda, percebemos que, por díspares que possam parecer estas HQs, havia um certo substrato comum que as unificava, e justificava que as suas resenhas fossem publicadas juntas. Estes dois quadrinhos não são apenas igualmente incômodos (em sentidos diferentes), mas trabalham releituras da própria tradição do quadrinho brasileiro. Afinal de contas, se tivemos uma longa tradição de quadrinhos de horror (especialmente nos anos 50 - aquelas coisas de Colonnese, Jayme Cortez, Colin, Shimamoto, etc.), esta geração mais underground contemporânea traz novamente o horror à tona, mas sem as ingenuidades da nossa era de ouro. O corpo, suas purulências e excrescências, se torna aqui o objeto de análise e horror. Se Belga o faz por meio de metáforas doentias, Berger usa o humor punk. É tudo lindo. E incômodo. Seguem os textos, um de minha autoria, e outro do Pedro. (CIM)

Anatomia de um filha da puta nada ordinário

por Ciro I. Marcondes

O quadrinista e artista plástico Eduardo Belga não é um filha da puta qualquer. Digo isso sem fazer qualquer julgamento e sem querer enfiar-lhe uma camisa de força moralista. Digo isso porque, ao que me parece, ele pertence à estirpe dos desgraçados mutarellianos, ou seja, a um universo de infelizes glorificados por suas paixões abstrusas, por sua dedicação implacável aos seus prazeres secretos, pela honestidade brutal com que aceitam, compreendem e reproduzem a natureza de seus próprios corpos, em um processo infinito de expiação de si próprios. Filhas da puta quaisquer somos nós, eu e você que está me lendo agora, com nossos túmulos de recalques e icerbergs de traumas submersos, buscando pequenas portas para perversões dentro de um pesado sistema interno de regras e regulações.

Estas impressões nos marcam após lermos o primeiro trabalho solo de Belga, O lobisomem / A múmia, lançado pela coleção Franca do selo Narval, de Rafael Coutinho, que tem a intenção de explorar com liberdade radical a mais profunda intimidade de seus artistas. Bem, atiçar um artista como Belga com uma proposta dessas é mexer num vespeiro de vespas marinhas, e o resultado não é apenas desconcertante. É estarrecedor. A edição é dupla, e precisa ser virada do avesso para se ler cada “história” alternadamente. Na jaqueta que serve como capa, três rostos do próprio Belga, desenhados com precisão anatômica: um deles esfacelado, atropelado; outro já reconstituído, costurado; e outro de defunto maquiado, pronto para o enterro. É um aviso fúnebre do que está por vir.

As duas histórias representam o próprio Belga como personagem de suas fantasias, ambas em fetiches extremos: em “O lobisomem”, ele parte do mote dos Stooges (“I wanna be your dog”) para, em grandes quadros panorâmicos (sem qualquer decupagem, portanto), levar a fantasia de Iggy Pop a uma literariedade gráfica obviamente perturbadora, e de maneira autorrepresentada: Belga é prefigurado como um cachorro (macho ou fêmea), e, acompanhado de frases como “pra andar por aí cheirando o cu dos outros” e “pra achar uma carniça e me refestelar nela”, ele surge como desejo cru e primitivo, sem qualquer cerimônia, como se fosse a própria antítese do pudor. Na segunda, “A múmia”, ele é espécie de cientista/taxidermista que parte de um esqueleto puro, sentado e olhando-o de frente, e, passo a passo, constrói a sua bizarra boneca erótica em cima dele, para depois consumar o ato necrofílico a partir de uma decupagem seca, desta vem em quadrinhos.

À parte a identificação óbvia com a morbidez e parafilias, em um estilo gótico atualizado (a associação com monstros “clássicos” folclorizados pela literatura vitoriana, como o lobisomem e a múmia, não é à toa), sobressai-se, na arte de Belga, sua visão refinada de anatomista. Como se pode ver em sua mínima preocupação com a decupagem, a narrativa e a mise-en-page em si, ele não está muito interessado em fazer quadrinhos. Suas dimensões referenciais são ainda mais longínquas. Logicamente, poderíamos parar nas menções a Mutarelli ou Crepax, mas eu gostaria de recuar mesmo às lições de anatomia de Da Vinci, a Courbet, Francis Bacon ou Lucien Freud. Está evidente que, para Belga, a expressão máxima da arte reside na representação do corpo, em sua transubstancialidade, seu eterno estado de metamorfose, casulo para um estado libidinal permanente do qual ele não é mero reflexo, mas sim simetria, duplo consagrado no corpo do próprio mundo. Daí o até mesmo delicado e meticuloso trabalho em ilustrar passo a passo, em “O lobisomem”, a morte do cachorro a partir da evisceração, e a reconstrução do corpo, a partir das dinâmicas do desejo, por meio da taxidermia em “A múmia”. Mesmo o leitor pode fazer as vezes de “Dr. Frankenstein” ao destacar, do encarte, partes de action figures (“bonequinhos”) e construir, por si próprios, suas versões dos corpos do lobisomem e da múmia.

Conversando com Belga sobre sua obra repulsiva e genial, veio a confissão de que havia, neste trabalho, a ideia de dialogar também com o pop, com estes monstros imaginários, com estas imagens dos contos de terror. Repensando o quadrinho após ouvir este relato, percebi o quanto isso fazia sentido se pensarmos que o pop (seja na figura do “lobisomem juvenil” de O garoto do futuro ou na múmia de Brandan Fraser), pudico, anódino e asséptico (tal qual a chamada “cultura nerd” que nos assombra hoje em dia), precisa deste empurrão em direção à filhadaputagem de Eduardo Belga para abrir os seus olhos e perceber que seus ídolos caídos são feitos deste mesmo material espúrio e em putrefação.

Assim, torna-se educativo ver a múmia, originalmente concebida pelos antigos como valise para a

 vida eterna, se transformar em objeto de necrofilia (ressaltando as pulsões de vida e morte freudianas). Da mesma forma, o cachorro, hoje a coqueluche de brinquedo de uma burguesia assustada demais para encarar sua própria reprodutibilidade, retorna à sua forma instintiva, canibal e incestuosa, num frenesi libidinoso baixo demais para podermos nos recordar que isso também está dentro de nós. Não à toa, isso me lembrou o lobisomem estuprador com que Coppola representou o Drácula em seu filme. Mas Belga foi além. Sua filhadaputagem foi desnudar estas relações literalmente até os ossos, e este ultrajante é a matéria prima com que ele constrói sua arte.

Gostaria de terminar este texto devolvendo outra canção punk ao Belga, pensando em sua própria hipotética resposta a estas palavras.

Vamos de Misfits:

an omelet of disease awaits your noontime meal

her mouth of germicide seducing all your glands

i ain't no goddamn son of a bitch

you better think about it baby

O Lobisomem/A Múmia

De Eduardo Belga. 56 páginas (cor/p&b). Lançamento: Cachalote. R$ 28

Poesia de banheiro elevada à arte

por Pedro Brandt

Gostar de Chuva de merda não é para qualquer um. Calma! Estou me referindo ao título da coletânea de quadrinhos de Luiz Berger lançada recentemente em parceria pelas editoras Gordo Seboso e Ugra Press.

São 52 páginas (produzidas entre 2011 e janeiro de 2015) de escatologia nas quais convivem diarreias, caganeiras, flatos, coprofagia, sexo doentio, canibalismo, cocô, doenças venéreas, vômitos, infanticídio, fezes, satanismo, gente feia, demência, zoofilia, excrementos, cerva vagabunda, drogas, sangue, suor e vísceras.

Pode não parecer, mas trata-se de um trabalho fino. Explico: Berger está naquela categoria de autores que conseguem fazer o grotesco palatável, convidativo aos olhos, tal qual Crumb, Marcatti, Ed “Big Daddy” Roth e Basil Wolverton – todos, imagino, referências no trabalho dele. Berger aplica volume e elasticidade com muita destreza em seus desenhos, e consegue deixar tudo muito sujo e carregado na medida. O resultado é visível o suficiente sem parecer limpo e sem nublar a compreensão das páginas, todas muito bem-construídas, com angulações e enquadramentos diversos. A plasticidade dos desenhos e a quase fofura da aparência dos personagens – por mais paradoxal que isso possa parecer – mais atraem do que repelem. Quem se lembra da Gang do Lixo sabe do que estou falando.

Ajuda a digestão o sempre presente alívio cômico das HQs. É quase como se não estivéssemos lidando com assuntos tão intestinais. A sensação é diferente, por exemplo, de quando lemos quadrinhos bizarros e carregados de uma carga psicológica tensa, opressora, que exigem mais estômago, como os mangás de Suehiro Maruo e as obras antigas de Lourenço Mutarelli. Com o grotesco suavizado, por assim dizer, cabe ao leitor se divertir – sem peso na consciência – com as situações repugnantes apresentadas pelo autor.

Como dito anteriormente, a bizarria e o ultraje está por todo lado. Enquanto o carismático Rato Robson se lembra com afeto da gatinha que lhe passou uma DST, o Dr. Zárgov nos apresenta seu plano de dominação mundial. Seu Raimundo, por sua vez, entra numa espiral de loucura, e Juan, o pervertido, nos apresenta uma galeria de freaks. Sobra até para o marinheiro Popeye, Luluzinha e Bolinha. Detalhar as tramas – curtas, de rápida leitura – seria estragar o prazer de quem decidir se aventurar com Chuva de merda.

As histórias funcionam muito bem, especialmente pela arte e pelo domínio da narrativa gráfica. Mas não dá pra não perceber que os argumentos têm algo de lugar comum, como se já tivéssemos lido essas histórias antes ou as escutado na mesa de um bar qualquer. 

Isso, entretanto, não diminui a qualidade do trabalho de Berger aqui compilado. Pelo contrário. Elevar a poesia de banheiro ao estado de arte é tarefa para os realmente talentosos.

Chuva de merda

De Luiz Berger. 52 páginas (16 coloridas). Lançamento: Gordo Seboso e Ugra Press. Tiragem: 500 exemplares. R$ 18.

HQ em um quadro: Jung, Kafka e Van Gogh no mundo do quadrinho noir silencioso, por Thomas Ott

Personagem noiado caminha por cenário noir com grana e uma arma (Thomas Ott, 2008): conheci o trabalho do suíço Thomas Ott, surpreendentemente, lendo trabalhos teóricos. Em especial o de Marion Lejeune, que trata especificamente de histórias em quadrinhos sem falas, onde o curioso caso das repetições em deslizamentos gráficos ocorre com frequência na obra de Ott. Talvez não tenha sido tão surpreendente assim, já que o trabalho do suíço tem uma riquíssima elaboração gráfica, intrigante abordagem temática e parece mais desafiador a cada página que viramos. O quadro que vemos aqui pertence ao seu último trabalho, de 2008, chamado simplesmente 73304-23-4153-6-96-8 (precedido por El número na edição argentina que me chegou em mãos, da editora Loco Rabia). Ele mostra um homem enlouquecido por poder, sexo e dinheiro após entrar em uma espiral de sincronicidades jungianas provocadas por um número (sim, o do título) anotado em um papel que ele guardou de um homem condenado à morte. Ott, um perfeccionista que trabalha com a técnica do scratchboard (que consiste em riscar sobre cera pintada de preto), exprime verdadeiro terror alucinatório ao misturar o impressionismo de um Van Gogh (de onde ele tira o delineamento e o preenchimento) com o expressionismo em noir de Billy Wilder ou Robert Siodmak, revelando uma cidade engastada e old-fashioned, com personagens solitários, perdidos e diminuídos em labirintos urbanos que parecem extraídos diretamente dos anos 40. 

Este clima paranoico e labiríntico toma conta não apenas do apelo visual da HQ, inteiramente sem falas - cuja narrativa é francamente impulsionada pelas tais repetições gráficas, que acabam se transformando em um completo vocabulário silencioso -, mas também no tema circular, que vai ganhando doses e doses de surrealismo, fazendo-nos partir da ansiedade de um Kafka para chegar ao insólito de um David Lynch. Afinal, o número 73304-23-4153-6-96-8, a partir do momento em que é adquirido pelo homem soturno, passa a se repetir a cada instante de sua vida, sempre na mesma ordem, como se em coincidências absurdas e inacreditáveis (o que fundamenta uma realidade latente, segundo a teoria da sincronicidade jungiana), levando-o, obviamente, às raias da loucura. Este quadro, já no fim do processo, em contundente splash-page, materializa o aspecto sombrio e repetitivo da HQ, conduzida em silêncio com habilidade de quem tem profunda afinidade com o universo puro das imagens e suas co-ocorrências. Verdadeira obra de arte. (CIM)

A fortaleza dos quadrinhos

por Pedro Brandt

Qualquer colecionador de quadrinhos que se preze frequenta – ou em algum momento da vida frequentou – bancas e livrarias que vendem revistas usadas. É nesses estabelecimentos, popularmente conhecidos como sebos, que o leitor tem a chance de encontrar não apenas aquele quadrinho há muito tempo procurado, mas também conhecer outros tantos que, não fosse a visita a esses locais, provavelmente jamais saberia da existência.

Em tempos de Internet, a compra de quadrinhos ficou muito mais fácil. Achar um gibi antigo, raro, ou mesmo a edição do mês anterior está ao alcance de alguns cliques. Mas num passado não muito distante, “garimpar” revistas nos sebos era a alternativa mais viável. Para não dizer a única. Não foram poucas as surpresas que encontrei nesses lugares, as pechinchas pagas, as trocas honestas.

Uma banca, em especial, tem lugar cativo na minha memória afetiva da pré-adolescência. Localizada na quadra 511 Sul (Brasília), entre uma loja de materiais de construção e uma tradicional loja de colchões, a Banca Fortaleza foi, durante muito tempo, uma das principais referências na cidade para se comprar e trocar revistas.

A Fortal, hoje

A Fortal, como eu e meus amigos a apelidamos, era dividida em três partes: do lado direito ficavam os livrinhos de romance tipo Sabrina, Julia, etc., do lado esquerdo, os quadrinhos e, ao fundo, as revistas de mulher pelada (muita Playboy, Sexy, a saudosa Ele & Ela e, eventualmente, até as vintage Homem e Status).

Eu estudava perto da Fortaleza e quando ia a pé ou de ônibus para a colégio era inevitável dar uma passada na banca. Naquela época, completar uma coleção era mais do que ler todas as histórias, era um investimento: ingenuamente, eu e meus amigos pensávamos que algum dia aquelas revistas, especialmente as coleções completas, valeriam uma pequena fortuna.

A Fortal era uma banca poeirenta, com pouca iluminação, e, geralmente, bagunçada. Vi baratas entre os gibis algumas vezes. Mera formalidade. Sujar as mãos é parte da garimpagem. O grande lance – pelo menos para mim sempre foi – era entrar ali sem saber o que poderia ser encontrado. A surpresa do tesouro é parte da graça. Foi assim, quase por acaso, que comprei uma edição encadernada de

Batman – O cavaleiro das trevas por módicos R$ 3. E por menos do que isso, incontáveis Heróis da TV, Super Aventuras Marvel, X-Men, Wolverine, Homem-Aranha, DC 2000, Liga da Justiça, Crypta, Ken Parker, Monstro do Pântano, Lobo Solitário, minisséries, edições especiais...

Não achar nada também era comum. Aliás, mais comum do que achar alguma coisa interessante.

Tive a sorte de começar a frequentar a Fortaleza antes de um “acontecimento” que mudaria a forma como o comércio de quadrinhos era praticado no Brasil até então: a chegada, em 1996, da versão brasileira da revista americana Wizard. Quem leu a revista, tanto a gringa, quanto a nacional, deve se lembrar que, além de entrevistas, matérias e resenhas sobre o universo dos quadrinhos, ela também publicava um guia de preços de revistas. Isso fez com que os sebos abrissem os olhos para um potencial até então desconhecido e aumentassem os preços. Isso numa época em que com R$ 10 você comprava pelo menos três revistas em quadrinhos novas.

O interior da Papil

À medida que fui conseguindo os quadrinhos que queria, o acervo da Fortaleza, só renovado sazonalmente (eles vendiam basicamente comics dos anos 80 e 90), foi me afastando de lá. 

Por anos, passei ali, de carro, e pensei em fazer uma visita. E foi numa dessas ocasiões que vi a banca fechada e... chamuscada. A Fortaleza tinha pegado fogo. Fiquei imaginando os super-heróis, as musas desnudas e as mocinhas românticas, todos apertados dentro daquela lata de sardinha gigantesca, desesperados enquanto o fogo consumia as páginas que habitavam. Teria sido um ato de vandalismo? Um acidente? Um incêndio proposital para conseguir o dinheiro do seguro? Ou a Fortaleza nunca pegou fogo e a banca em chamas foi apenas um sonho?

Não foi, como me confirmou Carlos, o homem atualmente por trás do balcão da Fortaleza, quando estive lá, este ano. Em março deste ano, fui até lá perguntar. A banca realmente pegou fogo – não se sabe a causa do incêndio – há alguns anos e ficou muito tempo fechada até reabrir. Carlos me contou que a Fortaleza é uma das bancas mais antigas de Brasília e foi “fundada” há quase 50 anos por seu pai, Seu Antônio, falecido recentemente. A Fortaleza pós-incêndio é igual à sua versão anterior. Provavelmente, mais bagunçada.

A Papil, hoje

Perto dali, mais especificamente na quadra 512 Sul, encontra-se uma outra banca de usados. O vendedor, Romeu, é o mesmo cara que trabalhava na Fortaleza das antigas, da época em que eu a frequentava. Resolvi puxar conversa. Ele me explicou que é dono da Papil, como se chama a banca dele. A Papil tem poucos quadrinhos. Curiosamente, também tem pouco de seu antigo carro-chefe, as revistas de mulher pelada. Tem sim, um pouco de tudo, entre livros, revistas de todos os tipos, DVDs e também discos de vinil. Bagunçada, claro. Mas os preços, ainda bastante convidativos. Procurei, mas não achei nada que eu quisesse. Como tantas outras vezes ali (ou quase ali). Saí de mãos abanando. Por um instante, tive 13 anos outras vez.

Romeu@Papil

Mundos de Aldebaran: dainbaía de hâmbrios

A história de vida do amigo Marcos Maciel de Almeida se confunde com a história dos quadrinhos em Brasília. Ávido leitor de comics, este fã de Beatles, Monstro do Pântano e Warriors – Os selvagens da Noite foi fundador, junto com Nonato Natinho, da Kingdom Comics, primeira loja especializada em quadrinhos da capital brasileira. Marcos foi sócio da Kingdom até 2007, quando vendeu sua parte no negócio. A paixão pelos quadrinhos, entretanto, nunca diminuiu. Apresentei Aldebaran para o Marcos como uma das séries mais impressionantes que eu li recentemente. Ele foi atrás da obra, leu e teve a mesma percepção sobre a HQ. Aproveitei o entusiasmo do Marcos e perguntei se ele gostaria de escrever suas impressões sobre Aldebaran. O texto – esperamos que o primeiro de muitos – segue abaixo. (PB)

por Marcos Maciel de Almeida

Dinbaía de Hâmbrios: essa estranha expressão me veio durante um sonho. Não consta nos dicionários. Apesar disso, não consigo deixar de pensar que teria algum significado para mim. É como se já tivesse esquecido o que é, ou talvez seja algo que ainda conhecerei no futuro.Usei esse exemplo para tentar explicar a sensação de familiar estranhamento que a leitura de Mundos de Aldebaran causou em mim. A HQ, escrita e desenhada pelo brasileiro Luiz Eduardo de Oliveira – mais conhecido pelo acrônimo LEO – já é publicada desde 1994 no mercado franco-belga.

Mais que uma história de ficção, o carioca LEO lançou as bases de um novo futuro para humanidade, que enfim logrou colonizar outros planetas. Em um deles, Aldebaran, os colonos foram deixados à própria sorte. Os terráqueos nunca mais retornaram a essa parte do universo, e, por essa razão, os habitantes não tiveram outra alternativa senão caminhar sozinhos.

Nessa HQ singular, os personagens são o pano de fundo para o cenário, e não o contrário. OK, Marc e Kim são dois bons protagonistas, mas parecem coadjuvantes para a geografia e a fauna dos mundos dessa nova realidade. Sobreviventes de uma vila destruída pela Mantrisse – criatura misteriosa cujas aparições servem como fio condutor da saga – a dupla tem uma química interessante, mas que parece ter sido criada somente para permitir o desenrolar de situações que, gradualmente, desvendam os mundos exóticos construídos por LEO. Em busca de respostas para sua catástrofe pessoal, Marc e Kim acabam conhecendo diversas pessoas que também tiveram suas vidas afetadas pela Mantrisse, numa investigação que os levará a outros planetas e a se deparar com seres e provações tão bizarros quanto incomuns.

A primeira aparição da Mantrisse foi bastante traumática para Marc e Kim, habitantes da vila de Arena Blanca em Aldebaran. A cidade natal da dupla foi erradicada após a passagem da criatura. Nada permaneceu de pé, e eles só conseguiram escapar com a roupa do corpo. Familiares e amigos também não foram poupados da onda de destruição. Esse foi o preço pago pelo fato de os habitantes não terem ouvido Driss, forasteiro que os tinha avisado do perigo que se aproximava. Os raros sobreviventes da catástrofe pouco a pouco se encontram, e descobrem que Driss é um homem procurado pelas autoridades de Aldebaran, planeta marcado pelo autoritarismo de líderes religiosos prontos a eliminar qualquer ameaça ao status quo. Outra personagem de destaque, ligada a Driss, é Alexa, que também tem um passado em comum com a Mantrisse. Gradualmente, o autor revela a conexão de ambos com a criatura, a partir de um encontro que mudaria para sempre seus destinos.

O contato de Marc e Kim com Driss os torna procurados pela lei, já que esse último é um fator de instabilidade para o governo, que não consegue compreender e tampouco controlar sua agenda. A baixa cooperação da dupla com as autoridades faz com que eles sejam presos. A precariedade da situação os torna mais suscetíveis a fazer alianças arriscadas, com personagens de índole duvidosa, como o velho Pad, cujo auxílio nunca vem de modo gratuito. Esse personagem mostra-se um mestre da manipulação, sempre hábil a encaminhar as circunstâncias para obter benefício próprio. Sem grandes alternativas, Marc e Kim são compelidos a seguir a orientações de Pad, o que nem sempre se revela uma boa decisão.

Com o passar do tempo, Marc e Kim conseguem reunir um grupo de pessoas interessadas no mistério da Mantrisse. Ou talvez tenha sido a Mantrisse quem os selecionou para seus propósitos secretos. O fato é que todos ficarão cara a cara com a indecifrável criatura, num encontro que marcará o conflito final com os líderes de Aldebaran e trará consequências radicais para cada um dos participantes. Esses fatos marcam o desfecho do primeiro ciclo da história.

O grande mérito de LEO é não economizar na criatividade. Sim, os mundos de Aldebaran são bastante semelhantes à Terra, mas quando o autor decide mostrar a fauna e a vegetação alienígenas, a imaginação viaja longe. Os seres dos outros planetas parecem estranhos não por sua aparência, mas pela autenticidade que parecem transmitir. Assim, pode-se dizer que seriam espécies menos extra-terrestres que comuns, talvez até menos ficcionais que reais. Quem pode dizer em que formas evoluiriam os animais de nosso planeta diante de outras necessidades de adaptação? Talvez essa seja a explicação para a sensação de familiaridade/estranhamento com as criaturas de Aldebaran: perceber que elas poderiam estar aqui em nosso plano de existência, não fossem os desígnios secretos da natureza.

Os cenários também são de tirar o fôlego. Partindo de soluções aparentemente simples, LEO cria uma ambientação inovadora, que inclui despenhadeiros verdejantes no deserto, oceanos gelatinosos e pântanos habitados por seres terríveis. O senso de composição nunca parece exagerado ou inverossímil. É uma realidade coesa e espontânea, que independe de quaisquer outros universos exteriores, como o nosso.

Quanto às ilustrações, LEO revela-se um desenhista apenas regular, que carece de estilo e marcas pessoais. Entretanto, essa deficiência é compensada por sua grande habilidade em criar seres únicos, que poderiam habitar paraísos ou pesadelos. Sua originalidade é decorrente da capacidade de produzir figuras pouco convencionais, como gorilas aquáticos, répteis humanoides e vegetais flutuantes, muitas vezes revestidos por cores inesperadas, o que confere um clima bastante lisérgico ao universo criado. Seu domínio da figura humana é inquestionável, como comprovam as inúmeras cenas de sexo que permeiam a trama.

Um dos pontos altos da narrativa são as pitadas de suspense habilmente despejadas. Aos poucos os leitores vão depositando maior confiança no autor, já que ele entrega o que dele se espera. As migalhas de mistérios são gradualmente solucionadas e prontamente substituídas por outras, para que nosso apetite não seja saciado. Aqui não há espaço para embromações ou cenas desnecessárias. A história já está pronta, bastando degustá-la. Não há o temor de que surgirão soluções previsíveis ou meros tapa buracos. O autor tem algo a contar e vai fazê-lo a seu modo, porque está seguro da qualidade do enredo. Isso não quer dizer que a história não se permita surpresas ou reviravoltas, pelo contrário. O inesperado está ali, na esquina, pronto para derrubar nossas convicções. 

Com 18 álbuns já lançados no mercado franco-belga, pela Editora Dargaud, Aldebaran teve 10 histórias publicadas em 5 edições duplas no Brasil pela Panini, entre 2006 e 2007. Se puder, não hesite em mergulhar nessa dainbaía de hâmbrios. Serão águas não navegadas, mas insolitamente conhecidas.

A iniciativa ENQUADRINHOS

Novidade nos bancos de poeira do planalto central! Eu já venho dizendo que algo acontece na química que constrói os quadrinistas do Distrito Federal. Por aqui, paredes dos túneis das tesourinhas e passarelas por debaixo do eixão são encantadas e coloridas por pôsteres, lambe-lambes, ilustrações, grafites e stencil com poesia vagabunda. Bem ou mal, a linguagem gráfica ganha cada vez mais adeptos e os quadrinhos, enquanto forma de comunicação mais versátil e modelável do séc. 21, se inscrevem como mais uma forma de identidade da nossa jovem capital.

Pois eis que uma inciativa do grupo GIBI (que meigo), integrado por estudantes de pós-graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (incluindo o professor Lima Neto, membro da RAIO LASER), formalizou a criação de um evento que dá um passo além tanto na formulação teórica e científica quanto na criação artística em quadrinhos no território brasileiro. Trata-se do ENQUADRINHOS - 1° ENCONTRO DE QUADRINHOS DE BRASÍLIA (16 a 18 de setembro de 2015). Diferentemente de outros eventos semelhantes que também ajudam a consolidar o estudo dos quadrinhos como campo acadêmico, o Enquadrinhos, despojado, vai se focar em um formato mais breve (o pôster) e apostar no mérito de dar oportunidades iguais de apresentação tanto para o pesquisador quanto para o artista: existem as modalidades de inscrição "acadêmica" e "artística". 

Além dos trabalhos, divididos em quatro abrangentes eixos temáticos, o Encontro contará com quatro pauladas em forma de palestras, realizadas por gente de calibre tanto em produção acadêmica, quanto em editoração, quanto em realização artística: Paulo Ramos, Edgar Silveira Franco, Henrique Magalhães e Rafael Coutinho. Tudo isso ajuda a se pensar uma confluência dialógica entre artistas, pesquisadores e editores, elaborando a única sinergia possível para a continuidade e ampliação do movimento vibrante que ocorre com os quadrinhos no Brasil atualmente, mas que corre (sempre) o risco de morrer na praia graças à marginalização que o meio sofreu em todas as suas áreas de atuação desde... bem, desde sempre.

É hora de consolidar o grande momento dos quadrinhos no Brasil. Não apenas com uma morosa institucionalização e legitimação técnica e intelectual, mas sim com pensamento vigoroso, transformador, capaz de entender e modelar os processos que este meio de comunicação e arte move na sociedade. E isso não é possível sem que mercado, academia e os próprios artistas pensem conjuntamente. É o que o Encontro está propondo. Artista ou pesquisador, vai lá e se inscreve sem medo! É até 13 de julho. (CIM)

NORMAS PARA ELABORAÇÃO DE POSTER

1 – O EnQuadrinhos receberá resumos de trabalhos acadêmicos e projetos de produção em quadrinhos de inscritos ligados ao ensino superior. Os resumos aprovados serão transformados em posters para exibição durante o evento e se dividirão em duas categorias: Poster acadêmico e pôster artístico.

2 - Para que o pôster proposto aprovado seja apresentado é obrigatória a inscrição formal do autor, ou um dos co-autores no site do evento: www.enquadrinhos.net.br

3 - Cada poster poderá ter 01(um) autor principal e até 02 (dois) co-autores;

4 - Os resumos aprovados deverão ser adaptados para o formato de pôster e enviados para confecção até a data prevista (conferir nos informativos do site). O pôster impresso deve ser apresentado ao público por, no mínimo, um de seus responsáveis em um horário pré-determinado para apreciação geral e avaliação por parte da comissão científica;

5 - É obrigatório que o autor responsável pela inscrição forneça os seguintes dados: Título do Trabalho e nome de todos os autores com seus respectivos vínculos institucionais. Importante - Esses dados serão utilizados para confecção do certificado. O preenchimento incorreto é de inteira responsabilidade dos autores, e não implicará em troca de certificados posteriormente;

6- Prazo para sumissão de resumos: impreterivelmente até dia …, através do site www.enquadrinhos.net.br;

7 - Os posters devem obedecer as medidas de 120cm de altura e 80cm de largura, ou seja, obedecendo a orientação de retrato. Deverão estar expostos com clareza no poster: título, autores e instituição de origem na parte superior com o logotipo da respectiva instituição;

8 – O arquivo digital do pôster deve ser enviado no formato PDF atentando para o gerenciamento das cores em CMYK (cores para impressão);

9 - Abaixo do título e da identificação deve constar, em letra de tamanho inferior à utilizada no texto, a forma de contato com os autores;

10 - A área de apresentação deve conter as informações referentes aos objetivos da pesquisa, processo metodológico, corpo da pesquisa, discussão e referências bibliográficas (no caso de poster científico);

11- Deverá ser reservado 15 cm de altura na parte inferior do poster onde será colocada a identificação do Encontro (logotipo do encontro e das agências de fomento participantes assim como os apoiadores privados);

12 - Cada trabalho exposto receberá um certificado.

13 - Os certificados estarão disponíveis no site do evento em data que ainda será determinada.

Teia de aranha em quadrinhos

por Ciro I. Marcondes*

Uma casa de madeira junto a um farol na praia. Um homem tremendo, em aparente estado de intensa angústia e sofrimento, espera na porta. Uma bela mulher nua o observa da janela. O homem fuma, cospe sangue, o mar bravio se agita. Ele segue neste estado tremeluzente, elétrico, impassível. Um carro sai pela enseada. Uma história de pesadelo tem início. Quem são este homem e esta mulher? O que significam estas cenas? A que tipo de interioridade se conectam? De que inconsciente óptico fazem parte?

Estas imagens fazem parte do começo de Torpor, que o pernambucano Mateus Acioli lançou em 2014 pelo selo Narval para a coleção “Franca”, que é uma espécie de carta branca para os quadrinistas mais talentosos desta geração independente expressarem sua intimidade artística, suas ideias mais livres e radicais. São imagens que anunciam um submundo onírico e oblíquo, de difícil penetração, mas de acesso livre a um fluxo de impressões fortes, revisitando os universos selvagens do sexo e do torpor da vida e da morte. Trata-se de uma história silenciosa e carregada de uma iconografia que varia entre a psicanálise e o ocultismo, sempre com uma ação desconfortável na mente.

A primeira impressão que temos ao nos depararmos com os quadrinhos de Acioly é a de um certo desdém. O nosso, pela frouxidão da narrativa, pelas lacunares arestas abertas, que parecem, de início, um recurso fácil; e o dele, pelo “desleixo” no desenho, bastante simples, minimalista, onde até o traçado dos requadros é tremido e irregular. Avançando em leituras e releituras desta obra cíclica e infernal, percebemos, porém, que esta impressão é um erro. É como acontece com outros quadrinistas de estilo elementar, como Rafael Coutinho ou o francês Johann Sfar: estes quadrinhos estão em função de um olho arquetípico. Não são nem narração, nem documento e nem poesia, mas são todos ao mesmo tempo.

A escolha por uma obra quase inteiramente silenciosa não é por acaso. A jornada de um homem em direção ao segredo do seu desejo e, por fim, à experiência da morte, necessita de um arrojo que as palavras não comportam – a não ser que estejam em estado de poesia, quando aparecem aqui –, e a imagem crua e selvagem, sem referente, aparece como uma solução. Ela liga o torpor febril do protagonista à linguagem do sonho, e a associação livre, por meio da metamorfose destas imagens, se mescla a uma grande variedade de propostas para as páginas e os quadros. O resultado é um mapa de signos de morte e desejo que se apropriam do homem em seu estado limítrofe. Imagens da natureza se mesclam a estes signos para trazer também um sentido fugidio, profano e espectral para a figura feminina, não muito longe do que Lars Von Trier fez em Anticristo.

Através de uma rica cena da experiência de quase-morte, potente como uma martelada, somos definitivamente abatidos por esta história em quadrinhos sintética e intensa. Ela enfim nos domina com seu impressionismo cheio de sinestesias, e qualquer desconfiança inicial se dissipa. As imagens finais (um sino rachado, uma caveira com pinos, um salto feminino), o que significam? Mais do que elaborar um discurso para os personagens, elas cumprem bem a função de hipnotizar e deixar em estado de torpor também o leitor. Em transe, automaticamente recapitulamos os signos do início, reabrimos a revista, voltamos reiteradamente a este entrelugar que a obra nos coloca. Um triunfo milimetricamente calculado, uma teia de aranha em quadrinhos paranoicos. Sejamos vítimas dela. 

*Publicado originalmente no jornal Suplemento

Nº 03 

A Era Hiboriana de Conan e suas Nações

É com satisfação que trazemos mais um colaborador aqui para as fileiras da Raio Laser. Marco Collares vem da área da História e contribui com um texto nada menos que excelente sobre os fundamentos historiográficos da Era Hiboriana de Robert E. Howard (ou seja; CONAN). É um texto que vai além do óbvio e que nos mostra as sutilezas com que a contemporaneidade se infiltra nos discursos de ficção histórica. Quanto ao Marco, deixo ele mesmo se apresentar. Obrigado Marco. (CIM)

Sou professor de história no RS, formado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e mestre em história e cultura política pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Franca/SP. Me especializei em história antiga, mais especificamente em Império Romano, estudando autores latinos do porte de Cícero, César, Tito Lívio, Salústio, etc. Meu gosto pela história antiga é da juventude, da época em que acompanhava de perto as HQs e outras mídias (agora é uma paixão mais esporádica e seleta, mas acompanho boas estórias, e quando falo em outras mídias, falo de cinema, games, RPGs, séries televisivas, animes, etc).

por Marco Collares

Um tema bastante interessante diz respeito aos chamados "usos do passado", mais especificamente, a forma como as sociedades de outros tempos e lugares são representadas no contexto presente, ou melhor, em algum contexto mais contemporâneo, com toda a carga ideológica, conceitual e temática inerentes ao ambiente sócio histórico, político e cultural do referido contexto. Como bem afirmado pelo historiador medievalista da Escola dos Annales, Marc Bloch: "o passado em si não é o objeto do historiador, mas sim a importância do presente para a compreensão do passado e vice versa".

Isso significa que quaisquer fontes, documentos e textos, quaisquer conjunto de enunciados, quaisquer obras da literatura, ou mesmo quaisquer artefatos culturais de naturezas diversas (sejam tais artefatos iconográficos, gráficos ou materiais) que tratam de algum passado, seja histórico ou munido de traços históricos, todos esses documentos dispõem de signos, significantes e significados inerentes ao contexto presente de consecução dos mesmos.

Nesse ponto estamos próximos daquela arrebatadora verdade acerca das obras do Aedo Homero, a Ilíada e a Odisseia. Que verdade seria essa? Ora, os poemas narravam eventos em torno da Guerra de Troia e depois desses eventos, narravam sobre o retorno de um de seus heróis, Odisseu (Ulisses em latim) para sua terra natal, a Ilha de Ítaca, tratando-se assim de eventos que teriam ocorrido por volta do ano 1200 A.C, no final do chamado Período Minoico-Micênico da história grega. Porém, quase todas as questões sobre os conhecidos poemas não circunda somente na enfadonha Questão Homérica de definição da real autoria dos poemas, mas sim no fato de que o poeta (ou poetas, segundo alguns autores) colocou diversos traços de sua própria época histórica no passado retratado, traços históricos de um período posterior chamado de Período Homérico da Grécia Antiga (e o nome “Período Homérico” não se deve a esse fato?), com elementos culturais, políticos e sociais desse período.

O que depreendemos dessa verdade? Que os brilhantes estudos de historiadores renomados do porte de Jean-Pierre Vernant ou de Pierre Vidal-Naquet sobre o Período Homérico não deixam de lidar com os supracitados "usos do passado", visto que eles procuraram compreender, entre tantas outras coisas interessantes, quais são os elementos históricos do período de compilação e difusão do corpus homérico, quais são os aspectos sociais, políticos e culturais do mundo do autor da obra e os que foram inscritos e misturados, conscientemente ou não, ao passado mítico narrado pelo poeta.

Não se pode deixar de mencionar, claro, que grande parte desse processo ocorreu devido aos aspectos inerentes do que se costuma denominar de tradição oral, tradição essa que usualmente transforma completamente os eventos narrados oralmente, devido às contínuas recitações de poemas e narrativas proferidas de "boca em boca". Em outras palavras: o anacronismo é inerente quando se repassa um fato oralmente, pois cada um conta uma história diferente da original.

É nesse sentido que trato o tema do título deste post, "A Era Hiboriana, de Conan e suas Nações". Isso porque o criador da personagem Conan, da Ciméria, o escritor pulp texano Robert E. Howard, não criou somente um personagem isolado. Ele consolidou igualmente todo um gênero literário e narrativo denominado de Sword and Sorcery (Espada e Feitiçaria), gênero que se difundiu sobremaneira no século XX e que atrai milhões de pessoas aos cinemas no mundo inteiro, com filmes do porte de O Senhor dos Anéis.

Howard criou, para além de tudo isso, um verdadeiro "mundo meta-histórico", ou seja, uma era ficcional com elementos de nosso mundo histórico chamado por ele de Era Hiboriana. Seria na verdade uma espécie de Era Histórica anterior ao nosso período Neolítico da Pré-História, onde haveria um conjunto diversificado e complexo de civilizações e sociedades que, segundo a própria mitologia criada pelo texano, teriam sido destruídas em um grande cataclisma, evento esse que teria sido o marco inicial da história cronológica da humanidade como a conhecemos, munida de sua evolução linear convencional comumente difundida em livros de história e, principalmente, em livros didáticos.

O que chama a atenção, no entanto, é que Howard se utilizou de elementos culturais, políticos, religiosos e sociais de civilizações históricas conhecidas, tanto as ditas civilizações do chamado “Mundo Antigo” quanto as sociedades estruturadas na “Idade Média Europeia” e até oriental, em uma espécie de miscelânea de povos e culturas, com representações de povos que apresentam semelhanças com os gregos e romanos antigos, com os mongóis do medievo, com os árabes e europeus do medievo, os japoneses, os chineses e os egípcios antigos, os persas, os mesopotâmicos, os eslavos, normandos, os magiares e tantos outros.

A Era Hiboriana seria assim uma espécie de “Era de Pré-Civilizações Históricas”, datada mais ou menos em 10.000 A.C, uma espécie de "contexto histórico-ficcional" de diversos povos e culturas que, segundo Howard, teriam sido destruídas e apagadas da memória da história convencional em meio a um fenômeno climático, ainda que tais povos tivessem traços daquelas culturas e civilizações que viriam a surgir a posteriori. Se parece confuso, bem, isso é apenas o começo. Isso porque a Era Hiboriana seria um passado semiesquecido de nossa própria memória histórica, um passado com características das civilizações que viriam a se organizar posteriormente e que, para nós, contemporâneos do século XXI, estão inseridas na chamada História Antiga e Medieval, segundo os matizes convencionais da disciplina da história.

O próprio Howard, em meados da década de 1930, escreveu que seu objetivo de montar e explicar os povos dessa era criada por ele seria o de conceber uma conotação mais realista para as aventuras de Conan, como que um pano de fundo ficcional para uma série de narrativas que teriam uma base realista em termos culturais, comportamentais, sociais e até políticos. Assim, a Era Hiboriana seria como que um parâmetro para as narrativas ficcionais de Conan, sendo que Howard se comprometia a seguir fielmente esse parâmetro previamente concebido por ele, tal como o faria qualquer escritor de um romance histórico em relação à "história convencional" das civilizações históricas. Reinos, civilizações, impérios e nações ficcionais surgiram então nas linhas de Conan, bem como um mapa histórico-geográfico dos continentes da África, Ásia e Europa, unidos em uma espécie de Pangeia, onde estariam inseridos todos esses reinos, nações e civilizações baseadas em elementos mesclados de sociedades da antiguidade e do medievo.

A famosa Aquilônia, onde Conan se tornaria rei ao final de sua trajetória, seria culturalmente e politicamente uma mescla entre o Império Carolíngio com o Império Romano Germanizado dos séculos IV e V D.C. A Ciméria, terra natal do bárbaro, equivaleria a uma Inglaterra Celta com suas tribos bretãs ainda não "civilizadas", ou seja, pré-romanas, enquanto que a Coríntia seria o amálgama ficcional da civilização grega clássica do século V A.C. A Nemédia, por sua vez, apareceria como que uma versão suis generis do Sacro Império Romano Germânico do medievo. A Stygia seria quase que o espelho distorcido do Egito Antigo faraônico, misturado ao período pré-dinástico, ficando a Hiperbórea como o reflexo ainda mais bizarro da Rússia czarista misturada a um totalitarismo soviético anacrônico (ainda que não anacrônico em relação aos anos de consecução da narrativa de Howard), enquanto Khitai apareceria como a China de Marco Polo e Shem como uma nação a integrar os povos semitas que um dia ocuparam a Mesopotâmia, a Síria, a Palestina e a Arábia de nosso mundo histórico convencional.

Howard efetuou todo esse movimento como que em auxílio para suas tramas, de modo a torná-las mais verossímeis aos leitores, o que sugere um alto grau de imaginação histórica da parte dele. Não é descabido explicar aqui que um filósofo da história chamado R.G. Collingwood afirmara, em uma famosa obra teórica, que ao longo do processo linear histórico ocorrera um desenvolvimento gradual do que chamou de imaginação histórica por parte dos homens, principalmente aqueles do Ocidente. Essa apurada imaginação histórica, entendida por ele como o conjunto de ideias gerais que temos acerca dos fatos e eventos do passado das sociedades humanas, teria tornado a dita civilização ocidental cada vez mais consciente de seu papel e de sua identidade no mundo contemporâneo. Para deixar claro, seria como se cada homem e mulher hoje em dia tivessem mais capacidade de compreender o passado com o passar do tempo e isso teria concebido em nós uma identidade histórica mais cristalizada, responsável por definir nosso papel no mundo.

Bem, o fato é que, concordando nós ou não com as premissas da imaginação histórica enquanto imperativo de uma civilização ocidental, uma coisa é certa: enredos narrativos ficcionais que se baseiam na história acontecida costumam gerar identidades nos receptores dessas respectivas narrativas, visto que o passado é um dos elementos mais bem sucedidos para tais fins, sendo coerente e crível uma construção histórica complexa e não totalmente arbitrária para o sucesso dessas narrativas ficcionais. Isso pode ser facilmente comprovado pelo sucesso de romances históricos que, apesar de ficcionais, tomam personagens reais em suas tramas (os sucessos do escritor britânico Bernard Cornwell são prova desse fato).

É nesse ponto que gostaria de tratar o termo "Nações" na Era Hiboriana de Conan e no fato de Howard, conscientemente ou não, se valer de seu próprio contexto histórico, aquele contexto da primeira metade do século XX e especificamente o da Grande Depressão dos anos 1930, para construir seu mundo ficcional. Isso porque o mapa da Era Hiboriana e as narrativas sobre os próprios Reinos e Impérios desse mundo ficcional, possuem características históricas não somente do mundo antigo e medieval, mas igualmente dos Estados-Nações Modernos, principalmente aqueles definidos como Nações Civilizadas por Howard.

Seguindo os princípios tradicionais de que uma nação se constitui pela história em comum, língua, instituições e pela etnicidade dos povos que integram seu território e são assim governados por um Estado enquanto aparelho ou entidade política, Howard deu um caráter moderno para essas nações na obra, visto que, como bem explicado pelo historiador Eric Hobsbawm, todos esses elementos poderiam até pré-existir em quaisquer coletividades do passado, mas a homogeneização de todos eles possuía uma artificialidade inexistente em períodos anteriores ao século XIX. Em outras palavras, Howard executou a constituição de um mundo integrado por fronteiras nacionais ao estilo contemporâneo, um mapa recortado por nações herméticas e de fronteiras definidas, não somente espaciais, como também culturais, linguísticas, políticas e étnicas, o que inexistia no Mundo Antigo e muito menos no Mundo Medieval.

Um dos maiores especialistas brasileiros no que tange às narrativas de Howard e seu mundo ficcional, Renato Amado Peixoto, reitera em dois textos acadêmicos que o autoquestionamento ante a identidade sulista e texana do autor auxiliou em muito na consecução de sua narrativa permeada de verossimilhança, bem como uma identidade familiar que ele se atribuía e reforçava constantemente. Isso porque Howard seria um questionador niilista da moral sulista dos EUA, dando vazão ao mundo selvagem colonizado pela expansão do oeste americano do século XIX, aquele mundo dos índios cheroquis e das demais nações indígenas que foram exterminadas pelos homens brancos.

Por tal motivo observamos a exaltação em sua obra do tipo selvagem e do bárbaro em contraposição ao homem civilizado. Isso também teria sido efetuado com base em sua identidade familiar, visto que ele descendia de ancestrais irlandeses por parte de mãe, levando-o a idealização dos povos celtas que lutaram e enfrentaram os ditos povos civilizadores, tais como os romanos da antiguidade (aliás, seu personagem Bran Mak Morn elucida essa constatação).

Mas existe outro ponto na narrativa de Howard, especificamente aquela em torno da Era Hiboriana, que vai muito além de identidades pessoais, regionais ou familiares, uma identidade vinculada ao seu macrocontexto. O fato é que Howard, tal como a maior parte dos homens da primeira metade do século XX, guardada as proporções, não conseguia conceber o Mundo Antigo e Medieval (ainda que inseridos em seu mundo ficcional) fora dos marcos nacionais usuais do século XIX em diante, dos binômios Nação-Estado, Povo-Território, Entidade Política- Coletividade Social.

Assim sendo, os estígios teriam uma mesma língua, formariam uma mesma nação étnica, seriam governados por um Estado centralizado e eles formariam uma entidade política bastante estável (ainda que houvesse disputas políticas e de poder, claro), o mesmo valendo para quase toda a Aquilônia (com exceção de Pontain e da Gunderlândia, representadas como em feudos semi-independentes), para a Nemédia e tantos outros reinos ou civilizações do mundo ficcional de Conan.

O recorte espacial de sua Era Hiboriana não seria nem aquele do medievo e suas identidades fluídas e feudais e nem aquele do Mundo Antigo, com seus contrastes regionais e seus conflitos endêmicos entre centro e periferias conquistadas, mas sim o espaço delimitado do mundo contemporâneo, ainda que os povos representados nesse espaço se parecessem culturalmente com aqueles da antiguidade e do medievo.

Os estudos em torno dos "usos do passado" demonstram, portanto, o quanto um tempo pregresso, ainda que pretensamente histórico em algumas de suas bases e premissas, acaba tendo ainda mais traços contemporâneos do que aparenta a primeira vista. O lado positivo, em se tratando de uma obra ficcional com traços históricos, é que tal construto, ainda que um tanto arbitrário em relação ao passado histórico da humanidade (pelo menos o passado convencional dos livros de história), mas sincronizado com relação ao presente, gera identidades nos chamados receptores de bens culturais (leitores, telespectadores, etc.). Esses receptores se vinculam ao referido mundo apresentado na narrativa e se deliciam com as tramas, por exemplo, de um bárbaro errante entre fronteiras da civilização e barbárie, tramas essas tão distantes e ao mesmo tempo tão próximas ao nosso mundo contemporâneo.