Mensur: longa jornada Brasil adentro

por Ciro I. Marcondes

Todo tipo de sociedade secreta – uma maçonaria, um clube da luta, um círculo de junkies – está ligada à partilha prazerosa do poder. Isso se dá não apenas pelo poder da exclusividade, do rito de pertencer a algo secreto, mas também pelo poder da entrega a uma obsessão. Assim, a obsessão compartilhada se torna uma justificativa plausível para o arrastar-se de uma vida miserável, vaga e sem propósito. O poder que envolve o segredo de uma obsessão é o de transformar a vida em sua antítese (não a morte; e sim espécie de anti-vida) e tudo continuar bem.  

Basta lembrar a letra de “Junkhead”, do Alice in Chains: “Seems so sick to the hypocrite norm. Running their boring drills. But we are an elite race of our own. The stoners, junkies, and freaks. Are you happy? I am, man. Content and fully aware. Money, status, nothing to me. Because your life's empty and bare”.

Há aqui uma contemplação justificada pela recusa da vida, via o prazer secreto da obsessão.

Toda grande obra gira em torno de um tema infalível, e este prazer secreto e autoaniquilador da obsessão, ao menos em minha leitura, é a premissa central de Mensur, o megalítico novo romance gráfico de Rafael Coutinho, que será lançado no próximo dia 16 de Março.

Mensur levou, de maneira analogamente obsessiva, 7 anos em sua preparação. Muitas destas marcas (“cicatrizes”) de um parto laborioso e traumático se instilaram nas páginas da HQ, revelando uma obra de puro assombro destilado na cachaça diabólica da vida.

Trata-se, assim como grandes obras como Maus e Fun Home, de uma escrita traumática, mas inteiramente inventariada na ficção. Coutinho expia suas observações sobre o mundo (a obsessão, o mundo “mate” masculino, a cidade de São Paulo) na carne e coração de um personagem que, massacrado pela impossibilidade de mudar o relógio do seu funcionamento, vai tacando fogo no passado na medida em que procura retomá-lo. É uma história que, de certa forma, versa sobre como o envelhecimento pode transformar seus amigos em filhos da puta.

E isso é um ponto importante. Uma leitura apressada de Mensur pode fazer parecer que o seu tema é a honra e a redenção. O caráter maltrapilho da existência dos personagens (humanos, humanizados, mas ainda assim de uma existência maltrapilha) não permite que este ciclo redentor se concretize. O Gringo, protagonista que vaga (vagabundo), mal chegamos a conhecê-lo. Sua identidade vai assumindo formas e performances (diferentes empregos, diferentes visuais) variadas durante a história, mas, se o esprememos, temos apenas uma alma seca e danificada pelo poder secreto da obsessão.

Vale explicar: em Mensur, o Gringo é uma criatura de meia idade cujo passado como estudante de medicina em Ouro Preto revela também a origem de sua obsessão: a tradição alemã de uma violenta luta de espadas conhecida justamente como Mensur, que se enquadra como luva no sistema de estranho nepotismo que perpassa o grande conjunto de repúblicas universitárias da nossa mais famosa cidade colonial (quem já passou um tempo lá sabe como é). A sacada de Coutinho (Mensur + Ouro Preto) é uma fantasia, mas é também um muito feliz encontro ficcional. O Mensur é sombrio, violento (os golpes só podem ser dados na cara!), mas excitante. Neste sentido, lembra filmes como Crash, Shame, O império dos sentidos e outros que processam o prazer por meio de algum tipo de violência. Seria fácil procurar aplicar um tipo barato de psicanálise aqui, mas vamos guardar apenas a ideia de que o sadomasoquismo, digamos, fundacional do Mensur é uma chave para a “elaboração” que o Gringo faz de sua própria vida.

Se, do ponto de vista formal, Mensur lembra muito o cinema (chegaremos lá), na temática fica difícil, ao meu ver, fugir da semente dostoievskiana. O aspecto febril da trama, somado à tradição arcaica das espadas (vem do século XV) e ao debate moral esvaziado por pulsões animalescas não apenas faz encarnar o personagem do submundo do grande autor russo como o atualiza para uma realidade tipicamente brasileira.

Mensur é grande também porque revela um Brasil embrutecido e vicioso, mas sem exageros, sem afetação. Aos poucos, em falas, vestuários, cenários, objetos, etc., vamos reconhecendo a nossa encardida hipocrisia nacional nessa “fenomenologia do brasileiro”. O futebol, o trabalho pesado, a cultura urbana, a homofobia, todos estes temas aparecem entrelaçados como se para desatar estes nós que são os contratos em que se baseia nossa sociedade. Longa jornada Brasil adentro.

No mais, Mensur lembra O Jogador, de Dostoievsky, não apenas pela semelhança que há na crítica à hipocrisia social (e às classes sociais, como a burguesia, a aristocracia, os militares – Mensur apenas transfere este elitismo da mesquinharia aos universitários, aos trabalhadores braçais, aos agiotas), mas pelo mergulho delirante na obsessão. Em O jogador, o personagem Alexis tem, assim como o Gringo, a sua chance decrépita de redenção. E, também assim como o Gringo, sua ação final resulta em algo patético, miserável: podendo escolher entre jogar ou salvar a mulher da sua vida, Alexis decide jogar e gastar seu último tostão. A tese do autor russo aqui, sempre fatalista, é a de que cada um de nós troca a chance de batalhar por estruturar uma vida por uma obsessão. A obsessão é um último alojamento para o que resta da própria vida.

Grande paisagem

Estilisticamente, Mensur é também um caso à parte. Cinematográfica, mas sem banalidades, esta HQ costura visualmente uma espécie de noir barroco que ainda se assemelha à estética agridoce de Cachalote (mostrando o quanto do conteúdo daquele romance gráfico vem também de Coutinho, e não apenas de Galera). Coutinho abusa de sombreados complexos, ângulos arrojados, longas passagens mudas e todo tipo de empaginação. Pode-se dizer que sentimos, com o passar da leitura, os pesados anos de constituição da obra. Para além de virtuosismo gráfico, porém, ele se atém a contar uma minuciosa história paralela à de Gringo, Gordo e Cia: é a história, primeiro, dos objetos, depois das ações triviais e por fim da paisagem sonora da HQ.

De fato, olhares, roupas e instrumentos aparecem com detalhado realismo, mas o local destas coisas não é o preciosismo fotográfico. Estes objetos e ações têm ontologia. Um cara mijando. Uma lagartixa que come uma mosca. Um jantar que termina em merda. Tudo isso está profundamente ligado ao panorama psicológico da HQ. O estilo de Coutinho é sim realista, mas não frio. Além disso, ele se mostra aqui, mais do que nunca, um mestre na arte de escrever diálogos.

Mensur possui uma soundscape, coisa rara em quadrinhos. Ouvimos o barulho das espadas, das ruas, diálogos atravessados, comentários do cotidiano carregados de inferências e problematizações, jargões e gírias cheias de potência, etc. Mensur é, de fato, uma grande paisagem, em vários níveis. É um estado de espírito, por assim dizer, como Taxi driver, como Cassavetes.

No final das contas, talvez por um desdobramento emocional da própria trama e personagens impossível de ser resolvida de outra forma, Mensur recai em soluções próximas, ao mesmo tempo, tanto do documentário quanto da abstração. Se, por um lado, lembra o final de Amarelo manga (de semelhante teor febril), de Cláudio Assis, por outro traz à tona também a câmera da cena final de O eclipse, de Antonioni, quando ela revisita todos os locais pelos quais os personagens passaram, mas já esvaziados das pessoas. A abstração, para o final de uma longa narrativa, é sempre uma solução do cansaço. Sabemos que isso pode residir no cansaço final da longa produção de 7 anos de Coutinho, mas também não deixa de ser o cansaço existencial do Gringo que, pareado, ao menos nesta instância, com seu demiurgo, resolve também desistir da história e deixar sua impressão psíquica tomar conta das páginas finais. Já o aspecto documental (retratos de pessoas comuns) puxa a coisa para outro lado, como se efetivamente zerasse a história para partir para mais e melhores figuras obcecadas. Aqui, Rafael estende o tapete para outro Coutinho: o cineasta Eduardo, morto também por uma violência de natureza obsessiva. A espiral retoma sua elipse.          

Muito além do jardim: as três grandes epopeias do Monstro do Pântano

por Marcos Maciel de Almeida

A primeira vez que tive conhecimento da existência do Monstro do Pântano foi quando vi uma propaganda de seu gibi mensal em alguma revista de super-heróis da Editora Abril. Era um anúncio simples, mas eficiente. Pegaram uma imagem do Monstro do Pântano e outra do (também desconhecido para mim) John Constantine e escreveram embaixo de cada um: O "Celestial" e o "Profano". Minha cabecinha adolescente acostumada a fazer associações baseadas mais na embalagem que no conteúdo começou a dar tilt tentando entender aquela mensagem: quer dizer então que o monstrengo verde era o mocinho e o outro era o malvado? Mas como assim? Desnecessário dizer que isso atiçou minha curiosidade e a vontade de colocar as minhas mãos no primeiro gibi do Monstro que minha magra mesada permitisse. O fato de as histórias também terem amealhado tudo quanto é prêmio na época de seu lançamento também contribuíram para aumentar o desejo de dar um confere no gibi quando fosse possível.

Quem não quereria conferir isso?

Embora só tenha passado envergar – nos EUA – a logotipo da Vertigo em 1993 (Moore havia começado a trabalhar no gibi em 1984), a verdade é que o gibi Swamp Thing era muito diferente do que vinha sendo publicado na DC da época. Não é à toa que, ao lado de Sandman, Hellblazer e Doom Patrol, títulos também exóticos dentro da seara do Universo DC, a revista do Monstro do Pantâno também tenha sido incluída no selo Vertigo, que se propunha a lançar histórias para o público que estivesse interessado em um material que fugisse do feijão com arroz superheroístico.

Capa de Swamp Thing #137. Primeiro gibi da série a usar a logo da Vertigo

Bem, é claro que todo o buchicho em cima do personagem – totalmente justificável – começou a partir do trabalho do autor de Watchmen. Ali foram estabelecidos padrões para as narrativas envolvendo o alter-ego do cientista Alec Holland que seriam, dali por diante, replicados pelos autores que tivessem a ingrata tarefa de substituir o inglês arretado de Northampton. Assim como qualquer autor que passasse a escrever os X-Men pós Claremont/Byrne teria que fazer uma passagem obrigatória pela Terra Selvagem, os sucessores de Moore também teriam que fazer o Monstro do Pântano passar por situações específicas. É sobre isso que eu gostaria de falar. Na metade final de sua passagem pelo gibi do Pantanoso, Moore decidiu isolá-lo de seus entes queridos e de sua terra natal, lançando-o numa memorável jornada pelo espaço. O formato dessa saga, com histórias independentes e autocontidas, foi replicado por autores como Rick Veitch e Mark Millar, que também criaram jornadas fantásticas para o Elemental do Verde, atirando-o de volta no tempo (Veitch) e fazendo-o prisioneiro dos contos de um livro (Millar).

Alan Moore: o céu não é o limite

Forçado a deixar a Terra em decorrência dos eventos de Swamp Thing #54, a consciência vegetal que imagina ser Alec Holland vaga pelo Cosmo em busca de uma maneira de voltar pra casa. E a star trek do Monstro do Pântano envolverá os personagens espaciais mais famosos do Universo DC, vistos, é claro, sob a lupa dissecadora de Moore. E os encontros com esses ícones não serão sempre marcados pela cordialidade para com o visitante terrestre, muito pelo contrário. O roteiro afiado do britânico mostra como é difícil a comunicação entre culturas alienígenas, especialmente quando nós é quem somos o estranho na terra estranha. E o autor não se serve apenas das criações já estabelecidas do Universo DC, ficando à vontade para fazer o protagonista descobrir planetas bizarros e envolver-se em situações impensáveis para um personagem principal (quem tiver lido a clássica Swamp Thing # 60 - "Loving the Alien" - saberá a que me refiro). Curiosamente, minha edição favorita deste arco não foi escrita por Alan Moore, mas pelo desenhista da revista, Rick Veitch. Imagino que estetest drive tenha sido muito bem apreciado pelos editores, visto que Veitch também seria catapultado à condição de responsável pelos argumentos após a partida do britânico.

Capa de Swamp Thing # 62.

Estreia de Rick Veitch como roteirista

A estreia do quadrinista norte-americano nos roteiros foi na edição # 62, de 1987. Ali o Monstro do 

Pântano encontraria Metron dos Novos Deuses, numa história que guarda segredos para os leitores atentos. Lembro que, quando li o gibi pela primeira vez, tinha achado muito bom, especialmente pela maneira pela qual o aleph tinha sido mostrado. Para quem não sabe, alephs são um conceito de Jorge Luís Borges – surgido em conto homônimo – que se referem a um ponto no espaço que contém todos os outros pontos. Todos que observarem um aleph verão tudo no universo por todos os pontos de vista possíveis, simultaneamente, sem distorção ou sobreposição de imagens.  O que mais gostei na história foi a proliferação de imagens nonsense, que me fizeram sentir como se estivesse tendo um sonho lisérgico, com Gita, de Raul Seixas, como trilha sonora. Quando o Monstro do Pântano e Metron estão dentro do aleph, as páginas possuem números idênticos de fileiras e colunas, segundo o modelo de matrizes quadradas. Página por página, entretanto, a ordem da matriz vai aumentando, de 3 x 3 para 4 x 4, e assim por diante. O efeito equivale a tentar transportar o leitor para o interior de um aleph, onde o número de páginas – e de quadros – tenderia ao infinito. Mas bem, na época eu não fazia ideia de que o aleph era um conceito importante na obra fantástica de Borges, tampouco tinha conhecimento de sua existência. Alguns anos mais tarde, quando finalmente conheci – e passei a admirar – os contos desse mestre da literatura mundial, lembrei-me do conto O Aleph e resolvi reler o gibi do Monstro do Pântano. Examinando cada quadrinho das cenas no aleph, adivinhem quem vi por lá, quase escondido em um deles? ALERTA DE SPOILER: Fuja deste parágrafo se não quiser saber. Ainda está aqui? Bem, digamos que o próprio escritor argentino dá as caras.

As matrizes infinitas do Aleph de Borges

Concluída esta longa digressão, retorno ao tema principal. A jornada espacial do Monstro do Pântano é uma viagem de autoconhecimento para o personagem. Diante de situações inusitadas e de seres alienígenas – aqui tomados no sentido mais literal possível – Alec Holland reflete sobre sua natureza híbrida e passa a entender mais claramente quem são os elementos e pessoas que o tornam mais próximo dos humanos que dos vegetais.  E, acima de tudo, percebe que a singularidade de sua existência empalidece diante da complexidade e da diversidade das formas de vida presentes no universo.

O coito interrompido de Rick Veitch

O substituto de Alan Moore no Monstro do Pântano não fez feio. Muito pelo contrário. A fase de Veitch manteve o interesse dos leitores e estabeleceu capítulos importantes na saga de Alec Holland. O crème de la crème ficou reservado para o final, quando o autor lançou o protagonista numa viagem ao passado, com direito a participações de personagens clássicos do Universo DC. A grande sacada de Veitch foi colocar o Monstro do Pântano correndo contra o fluxo temporal, enquanto o restante dos personagens seguia na direção normal. Isso deu origem a situações interessantes. Exemplo: na edição # 85 há uma aparição do feiticeiro indígena Wise Owl, que já sabia que iria encontrar o Elemental, porque isso tinha ocorrido com sua versão jovem em... Swamp Thing # 86! A grande diversão dessa minissérie é acompanhar o sentimento de desorientação de Alec Holland, potencializado pelo fato de seu futuro estar nas mãos de personagens que estão no passado. Os saltos no tempo de Alec Holland teriam como ápice a aparição de Jesus Cristo em Swamp Thing #88, mas o gibi foi vetado pelos editores, em razão de seu conteúdo potencialmente polêmico. Isso resultou na saída de Veitch, então substituído por Doug Wheeler, obrigado a encerrar, de modo abrupto, este arco. Segundo consta, a volta no tempo continuaria mesmo após a interação com Jesus, numa sequência que parecia impressionante

Entre mortos e feridos, a verdade é que Veitch montou uma história muito bem sacada, na qual a sensação de não pertencimento e de solidão é angustiante. Se o exílio espacial já havia sido particularmente doloroso, o banimento temporal não seria menos cruel com o Pantanoso. Na saga de Moore foi, ao menos, permitido ao personagem manter o pleno domínio das faculdades mentais e de seus poderes. Com Veitch, entretanto, o Monstro do Pântano – consciência vegetal que se deslocará em corpos recém falecidos – vai se tornar joguete de forças que possuem agenda própria. Suas reuniões com a versão jovem, mas nem por isso menos ensandecida, de seu arqui-inimigo Anton Arcane serão particularmente tortuosas.

A jornada temporal do Monstro do Pântano, além de muito bem amarrada, é pontuada pela aparição, nada gratuita, dos personagens clássicos da DC, desta feita homenageados por Veitch. A saga de Moore já havia confirmado a riqueza da Divina Concorrência da Marvel no que tange a temas espaciais e agora foi a vez de Veitch pagar seu tributo. Sargento Rock, Soldado Desconhecido, Ás Inimigo e Tomahawk são alguns dos coadjuvantes da viagem inglória de Alec Holland. Confesso que li muito pouco ou quase nada desses personagens, mas minha curiosidade foi bastante atiçada e passei a temer pela saúde financeira de minha conta corrente após descobrir que há várias republicações dos quadrinhos dessa rapaziada disponíveis por aí.

Este arco também foi agraciado capas belíssimas, que exibem o personagem interagindo, à sua maneira, com os nomes clássicos do Universo DC. Bem, melhor mostrar que falar:

Mark Millar: exílio na metalinguagem

Apadrinhado por ninguém menos que seu conterrâneo escocês Grant Morrison, o escritor Mark Millar debutou nos quadrinhos americanos no Monstro do Pântano, mais precisamente na edição # 140. Seus primeiros quatro números foram escritos em parceria com Morrison, que pareceu estar ali apenas para dar o kick-off na carreira do – hoje – bem sucedido amigo e colega de profissão. E, bem, a “pré-temporada” de Millar no gibi 2000 AD – verdadeiro celeiro de talentos quadrinísticos – foi bastante proveitosa, visto que o escritor começou na Vertigo já jogando como um profissional. Ainda que as histórias iniciais sob a batuta da dupla escocesa não sejam necessariamente uma maravilha, é difícil não perceber a evolução do texto de Millar – especialmente depois que ele passou a assinar os roteiros individualmente. E aqui cabe menção especial para o talento do argumentista em criar diálogos espirituosos e irônicos. Tudo isso sem deixar de dar espaço para ideias originais e insólitas. Por exemplo, as seis últimas edições de Millar na revista (#166-171), que por sinal fecham o caixão da série original, são simplesmente geniais e serão discutidas numa outra ocasião, já que merecem um post só para elas.

Bem, se você já foi atirado fora do espaço e do tempo, não há muito mais o que fazer, certo? Errado, já que, desta vez, Holland vai parar dentro de um livro. Neste arco, que ocorre nas edições Swamp Thing # 151-158, os homenageados não são os personagens da DC per se, mas sim o próprio gênero quadrinístico. Cada edição é um conto do livro fictício “River Run” – imaginado pela suicida Anna – e remete a um tipo de gibi específico: noir, terror, super-herói, etc. A edição # 153, por exemplo, vai agradar aos fãs de ficção científica, já que faz menção a uma realidade em que o Eixo venceu a II Guerra Mundial, num flerte com o livro Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick. No desfecho da minissérie – e não se preocupe que não há spoiler aqui – o Monstro do Pântano se deixa cair no oceano e chega à conclusão – numa referência direta ou indireta às suas jornadas anteriores – de que tempo e espaço já não possuem mais significado. E isso pode ser uma verdade para quem está preso dentro de um livro. Afinal, tempo e espaço podem ser consideradas constantesvariáveis dentro da cronologia do Monstro do Pântano e do Universo DC. Agora, quando o personagem é lançado em realidades alternativas – como os tais contos do livro –, o único limite para a sua jornada é a imaginação de Anna.

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A saga espacial do Monstro do Pântano foi publicada integralmente pela Editora Abril, na revista Monstro do Pântano, edições 11 a 19 (1990-1991). Esse material foi encadernado, pela Panini, em: Saga do Monstro do Pântano vols 5 e 6 (2015). A volta no tempo e a prisão no livro ainda permanecem inéditas no Brasil. Há boatos de que a fase de Millar sairá em breve no Brasil. Torçamos para que seja verdade. Já as perspectivas para a fase de Veitch são mais sombrias. Ela não chegou nem a ser encadernada nos EUA...

Um encontro com Silêncio

por Márcio Jr.

Silêncio me agarrou pela alma. Garimpava patologicamente um desses sebos da vida quando me deparei com aquela capa maravilhosamente simples, o personagem com seus olhos de serpente a fitar longe o horizonte, ignorando completamente minha presença.

Passei a mão no livro – uma edição portuguesa da Livraria Bertrand, 1983, 164 páginas – e me surpreendi com a uso das massas de preto, a fluidez do traço, a composição das páginas. O preço convidativo selou a sina do meu primeiro contato com a obra de Didier Comès.

A ignorância é mesmo uma benção. A esta altura do campeonato, me surpreender com um autor desconhecido é um prazer cada vez mais raro. Quanto mais um colosso das dimensões do belga Dieter Hermann Comès, nascido em 1942 em Sourbrodt, aldeia cindida em uma parte francófona e outra alemã. Tal e qual seus pais.

A mãe falava francês, o pai, alemão. No colégio, tendo em vista uma maior “integração” com os colegas, os irmãos maristas afrancesaram-lhe o próprio nome – à sua revelia, claro. Dieter vira Didier. “Um bastardo de duas culturas”, Comès se autoproclamaria anos mais tarde.

Não param por aí. Ao se revelar canhoto, obrigam-no a escrever com a mão direita. E assim segue a vida: destro na escrita e criador de infinitas constelações imagéticas por intermédio de sua mão esquerda. Tais opressões, assim como a infância rural e supersticiosa, serão a matéria-prima de seus quadrinhos – que têm em Silêncio o mais reconhecido e festejado exemplo.

Comès

Publicado em capítulos em 1979 na prestigiosa revista (À Suivre), e compilada em álbum no ano seguinte, Silêncio é a história de Silêncio, jovem mudo e com deficiência intelectual, morador de Belossonho, um vilarejo das Ardenas. A página de abertura, sem diálogos, é precisa na apresentação do personagem: a caminho de casa, Silêncio se depara com uma serpente. Incapaz de compreender o perigo representado pelo animal peçonhento, logo o toma nos braços, sem sofrer dano algum.

Alheio às ameaças da natureza, Silêncio é ainda mais alheio às ameaças dos homens. Em Belossonho, é vergonhosamente explorado por Abel Mauvy, poderoso fazendeiro da região. Longe de entender as relações de poder e ódio existentes no vilarejo, Silêncio percorre seu caminho, leve como uma pluma. Seu sonho? Conhecer o mar. Silêncio é puro em sua simplicidade, e é dessa pureza que trata a HQ de Comès. Ou melhor: Pode a pureza resistir à violência e corrupção do mundo?

Belossonho é um lugar de segredos guardados a sete chaves. Um microcosmo onde os aspectos mais vis do ser humano estão presentes, arraigados. Aos poucos, os mistérios vão se desvelando e a triste e violenta origem cigana de Silêncio vêm à tona – um passado do qual ele só tomará conhecimento após o contato com a Feiticeira, outra pária do vilarejo, cujos olhos foram carbonizados a ferro quente.

Anões de circo, bruxos, sortilégios e mediunidade tomam a narrativa, dando-lhe ares de realismo mágico. Didier Comès afirma que são rescaldos das superstições da infância. Difícil não pensar em Palomar. Tampouco me surpreenderia ver Silêncio na biblioteca de um jovem Gilbert Hernandez.

É no movimento pendular entre o fantástico e os marginalizados que se erige a obra de Comès – a feitiçaria como defesa última (e única) dos pobres e oprimidos. Em um dado momento, Silêncio é incriminado e preso, sem sequer saber os motivos. Nas paredes da cadeia, a inscrição “É preciso saber ouvir e compreender para ser polícia”.  Com cólera e cinismo, o autor esfrega em nossas caras o desvario do mundo.

A evolução estilística de Didier Comès ao longo do álbum é inconteste e saborosíssima de se acompanhar. Seu desenho está em algum lugar entre Hugo Pratt – de quem foi considerado “herdeiro espiritual” por L’Ombre du Curbeau – e José Muñoz. Mas estas são apenas referências para aqueles que não conhecem o traço do artista. A sinuosidade da linha contínua, a representação da figura humana e o modo como aplica sombras nos painéis são únicos e inconfundíveis. Quando a neve cai, Comès desenha cada floco, num resultado gráfico belíssimo. E a página final de Silêncio, muda como a inicial, é pura poesia.

Em 1980, Silêncio conquistou o prêmio Yellow Kid, em Lucca, Itália. No ano seguinte, foi a vez do Alfred de melhor álbum no Festival de Angoulême. Além dos prêmios, a obra consagrou definitivamente o talento de Didier Comès e permanece seu trabalho mais popular, mesmo após sua morte em 07 de março de 2013, vítima de pneumonia.

Como diria o escritor, cantor e compositor francês Henri Gougaud no tocante prefácio ao livro: “Silêncio não precisa de ter fé, nem de aprofundar questões metafísicas. Ele sabe. Não é ele que é ignorante e louco, é o mundo que não se rende à evidência do seu saber, da sua luz.”A mim, resta prosseguir na busca de outros silêncios. Que sejam tão eloquentes quanto o de Didier Comès.

No fio do Minotauro: o enigma de Laerte

No fio do Minotauro: o enigma de Laerte

Faça um teste. Se você tiver nascido próximo da minha geração (recém-chegado à casa dos quarenta), pode perguntar para qualquer contemporâneo que se interessa por HQs: “Qual o melhor desenhista de quadrinhos do Brasil?”, e, é certo que 90% das respostas que ouvirá será “Laerte!”.

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Tempo, mano velho: implicações loucas de MORT CINDER, obra genial de Oesterheld e Breccia

por Ciro Inácio Marcondes

Falar de Héctor Germán Oesterheld (HGO), o maior roteirista de quadrinhos argentino, é, de certa forma, falar também de Jorge Luís Borges, o maior escritor argentino (se há controvérsias, vamos deixá-las de lado no momento). Vejamos: Oesterheld é um narrador das aporias do tempo e do espaço. Basta lembrar dos diversos viajantes alienígenas d’O Eternauta, da revisitação do western em Sargento Kirk, da leitura da segunda guerra em Ernie Pike, das viagens no tempo em Sherlock Time, etc. Oesterheld, assim como Borges, se servia do fantástico (e da sci-fi, no caso de HGO) para fazer leituras de possibilidades históricas, dos limites do ser humano ao ser pressionado em estranhas condições, e em última instância das prisões e libertações que o tempo pode proporcionar.

Neste caso bastam dois exemplos de Borges: o de O Aleph, em que um único ponto no espaço-tempo permite que se viva tudo que já foi vivido por todos, em seus mais ínfimos detalhes, em um instante. E o de Funes, o memorioso, em que um personagem está preso em sua absurdamente fantástica memória fotográfica, podendo se lembrar minuciosamente de cada instante em que viveu, passando apenas a viver de lembranças, ao invés de construindo uma nova narrativa para a vida. As carreiras de Oesterheld e a de Borges não apenas coincidem em aspectos temáticos, mas também na periodicidade (ambos têm um auge de produção entre os anos 40 e 50). A faceta literária da produção em quadrinhos de HGO não esconde sua admiração por Borges. “Eu quase não leio histórias em quadrinhos. Eu leio literatura. Leio constantemente. E se Borges lança uma coisa eu vou e compro. Estas são minhas fontes. E eu o digo sem culpa. Leio bons autores: Stevenson desde criancinha, ou Salgari”.

Escrevo este preâmbulo comparando brevemente os dois grandes da Literatura e da HQ argentina para disparar primeiras ideias de minha leitura de Mort Cinder, aquela HQ que é considerada, frequentemente, como a última importante da fase clássica dos quadrinhos argentinos, e um dos momentos mais luminosos de HGO. Coloquemos assim: se O eternauta é o Grande sertão: veredas de HGO, Mort Cinder é seu Tutaméia, ou seja, a obra mais enxuta e moderna que atualiza o clássico absoluto. Se um é o Ulisses, o outro é o Finnegans Wake. Para arrematar: se O eternauta é o Pet sounds de HGO, Mort Cinder é o seu SMiLE. Entendeu? Não? Então vá googlear essas coisas.

Mort Cinder foi publicado na revista argentina Misterixentre 1962 e 1964, com desenhos do uruguaio Alberto Breccia (com quem trabalhara em Sherlock time), então o também maior ilustrador trabalhando na Argentina. Era um time, portanto, pensado e construído para a elaboração de uma obra-prima. Lembrando que a primeira Bienal Mundial de Histórias em Quadrinhos argentina ocorre em 1968, dando credibilidade a uma mídia que, em terras platinas, já havia passado do seu auge, e que Oesterheld seguirá escrevendo histórias em quadrinhos (cada vez mais engajadas) até sua desaparição pelas mãos da ditadura militar, em 1977.

Portanto, quando HGO se junta a Breccia para produzir Mort Cinder, já não havia qualquer pudor em seguir determinados padrões editoriais ou fórmulas de sucesso. Experiente também como editor, HGO quis fazer desta série um projeto pessoal, em que suas ideias borgeanas fossem colocadas à risca da maneira mais “autoral” possível. O resultado é uma obra visivelmente madura, publicada no formato de revista, mas planejada como uma série sem muitas interligações entre os episódios, que se complementam mais por conceito, pela afinidade intelectual da coisa toda, do que narrativamente. Pude adquirir um volume que contém todo o Mort Cinder por meio da linda coleção “Biblioteca Clarín de la Historieta” (Vol. 13), publicada pelo jornal Clarín na Argentina nos anos 00. Até então, afora as edições originais de “Misterix” (raras), havia apenas um edição espanhola (dos anos 80) e uma argentina (dos anos 90). Se você cruzar com isso por aí, agarre com todas as forças.

Força, por sinal, é o que transborda da arte de Breccia, um preto-e-branco com pouca sombra e muito contraste, criando uma arte sombria e gótica, influência confessada, por exemplo, para Frank Miller em Sin City. Esta arte acompanha premissa genial, francamente borgeana, mas com aquele toque “foda-se para a verossimilhança e explicações mais” típico de HGO: a história é contada da perspectiva de dois personagens bastante “sui generis”. O primeiro é o antiquário inglês Ezra Winston, que toca seu empoeirado negócio com o olhar precioso daqueles que enxergam cada objeto como se ele carregasse consigo emoções e afetos de donos antigos, de histórias de outrora. Como se cada objeto fosse efetivamente um Aleph, disparando percepções para todas as direções: máquinas do tempo.

Estas máquinas do tempo são o mote para o segundo protagonista, o próprio Mort Cinder, um imortal que retorna em sua forma adulta a cada vez que morre. HGO não inclui uma origem para a imortalidade de Mort. Sua trajetória só pode ser reconhecida nas marcas graves de seu rosto torturado (perturbador, no traço de Breccia) por milhares de mortes violentas, pelo testemunho das incontáveis brutalidades da História. Assim, Mort é menos um personagem imortal completo, com origem e mitologia próprias, que um instrumento para, por meio dos objetos de Ezra, HGO viajar no tempo e no espaço e escrever suas parábolas sociais.

Ezra Winston

O imortal como metáfora do esquecimento

A linha de desenvolvimento das histórias é bastante perceptível: nas primeiras, mais aventurescas e de sci-fi mais pulp, a dupla se envolve em tramas rocambolescas, que problematizam a viagem no tempo. Depois, porém, a estrutura que contém um objeto, uma memória de Mort e um longo flashback se torna a moeda comum para HGO ir até o Egito antigo, a Mesopotâmia ou o Peru colonial para resgatar a memória problemática de poderosos e desvalidos, projetos de poder, histórias não contadas. HGO e Breccia fazem de Mort Cinder espécie de “Dr. Who metafísico”, onde a sci-fi não precisa de dispositivos ou technobabbles para justificar suas reflexões sobre história, memória e cicatrizes do tempo. É como se dissesse: “vamos pular a parte nerd e ir direto ao que interessa: o imortal como metáfora do esquecimento”.  

Assim, se na primeira história, “Olhos de chumbo”, temos um enredo interessante, porém pulpesco, que narra o primeiro encontro entre os dois heróis e envolve cientistas malucos, planos de dominação global e escravos zumbizados tecnologicamente (neste sentido ainda lembrando O eternauta em sua versão original), logo vamos passando ao sentido metafórico (e metafísico) das outras histórias: em “A mãe de Charlie” voltamos à Segunda Guerra para descobrir o paradeiro do filho soldado de uma mãe que o espera há mais de 20 anos sentada no mesmo banco; em “A torre de Babel” voltamos ao conto bíblico para descobrir que a torre era na verdade um aparato de lançamento (desenvolvido por uma elite escravocrata) para um foguete com intenções de viajar até a Lua, plano interrompido por um alienígena que usa seus poderes para criar diferentes línguas e dissuadir a humanidade; nos dois contos da penitenciária, Mort está encarcerado e conhece diversa fauna de personagens estranhos, cada um com seus sonhos, perversidades, sede de vingança ou aspirações redentoras; em “O vitral”, Ezra é enfeitiçado por um vitral espanhol da época colonial construído (e amaldiçoado por) um índio do povo Inca que se infiltra na cultura do colonizador; em “O navio negreiro”, Mort se vê à deriva com um escravo africano e tem de tomar a decisão de salvar a si mesmo ou ao homem que o havia ajudado; em “A tumba de Lísis”, Mort e Ezra se veem envolvidos com um extraterrestre que procura sua noiva, enterrada em uma pirâmide há milhares de anos. Por fim, em “A batalha das Termópilas”, HGO retorna à clássica história relatada por Heródoto e coloca Mort como um espartano que, ao ouvir de um adivinho o futuro funesto dos soldados gregos, decide libertar um escravo antes de eles serem chacinados pelos persas.

Um passeio pelos temas e dilemas morais trabalhados por HGO e Breccia em Mort Cinder, portanto, nos colocam a par das ambições literárias do roteirista argentino. As histórias são narradas, nos recordatórios, em dura primeira pessoa literária (na voz de Ezra ou de Mort), deixando a leitura densa e carregada de insights mórbidos e impressões mais abstratas sobre os temas da ressurreição e perspectivas sobre a História e a morte. Da mesma forma, o uso instrumental da sci-fi ou da fantasia se tornam mais declarados: a viagem no tempo passa a ser tema metafísico, servindo o imortal para refletir sobre o esgotamento da memória, ou seu caráter cíclico, e ao mesmo tempo sua renovação através dos olhos cansados de Mort. A História é revista também pelos olhos dos desvalidos e esquecidos, ressaltando a perspectiva de esquerda engajada de Oesterheld (que lhe custou a vida): são histórias de escravos, prisioneiros, colonizados, soldados batidos. Neste sentido, HGO participa do amplo movimento de renovação da historiografia, procurando narrativas dos derrotados e da vida privada.

Estes temas todos são reunidos, por fim, na figura torturada de Mort, tão bem fixada no traço de Breccia, o que, num mundo justo, o tornariam um dos rostos mais icônicos dos quadrinhos. O olhar empedernido, as olheiras pesadas, o ar austero e misterioso do personagem parecem realmente carregar aquele chamado “peso” da História, protagonizado por um personagem imortal (Sísifo ou Prometeu?) que está cansado de sempre retornar para ver com seus próprios olhos o multiplicar de guerras, injustiças e carnificinas. De certa maneira, Mort Cinder é a própria História humana personificada na perspectiva de Oesterheld, duplo perfeito para os objetos silenciosos e antigos de Ezra, como o autor argentino tão bem pontua com suas próprias palavras: “As aventuras de Mort Cinder se iniciam sempre com um objeto que aparece na loja de Ezra, um antiquário. Sempre me fascinaram os objetos velhos, não por sua estética, mas sim pelas histórias que eles contêm. Todo objeto está impregnado de vida passada. Me atraem as recordações, mesmo que não sejam minhas nem de ninguém. Mort Cinder é a morte que não termina de ser. Um herói que morre e ressuscita. Em Mort Cinder há angústia, tortura.” Em Mort Cinder há, portanto, este caráter retroativo da morte, este tempo borgeano tão raro na HQ clássica, que a coloca em lugar único da trajetória da HQ mundial. Algo tão inevitável quanto essencial, perdido nos quebradas infelizmente ainda muito desconhecidas da HQ sulamericana. Há que se dar mais tempo ao tempo.            

Breccia: em seu esplendor

Rapidinhas Raio Laser #05

Machado escreveu, com aquela pomposidade tipicamente machadiana: "Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, — será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença, — essas três chagas da crítica de hoje, — ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça, — é só assim que teremos uma grande literatura."

Bem, pomposidade à parte (Machado pode), e sem essa de "grande" literatura, as palavras do nosso autor predileto ainda ressoam para a crítica de hoje. Condenar o ódio gratuito, a camaradagem estéril e a indiferença blasé - é o que tentamos fazer por aqui (vejam bem, Machado condenava esse vícios no século 19). Logicamente, nossa crítica é de Internet, e não pretendemos exaurir nada. O texto tem de ser enxuto, e algumas generalizações precisam ser feitas. Mesmo assim, vocês devem ter notado um certo aumento de tamanho (e de maturidade) em relação às primeiras "Rapidinhas". É que nós respeitamos o que lemos. Respeitamos o trabalho do autor de quadrinhos no Brasil.

Dito isso, aquela coisa: quase tudo é bem novo, mas tem coisa velha (tipo um quadrinho do Gerlach de 2012 - mas é Gerlach, p*rra! Esse é outro que pode), pois nosso encalhe aqui parece interminável. Além disso, estreiam nesta seção dois dos nossos colaboradores mais novos, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida (sumidades da cultura de quadrinhos de Brasília). Aguardem mais resenhas e não deixem de mandar coisas pra gente. Lenta como uma lesma presa numa labirinto, a Raio Laser procura cobrir tudo que recebe. Para aparecer aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

Peace! (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida

PIMBA Nº 3 – Vários (Independente, 2016, 28 p.): aqui na Raio Laser, o Jornal Pimba já dispensa qualquer apresentação. Depois de passarem 2015 em branco, a equipe radicada em Brasília (Gomez, Mello e Sobreiro, esses apocalípticos), do jeito que deu, chupando cana e trocando pneu de carro ao mesmo tempo, lançou uma nova e linda edição do jornal de quadrinhos mais carismático do País (há outros, como o mais avant-garde Suplemento, ou o ótimo jornal de tiras Graphic, do guerrilheiro das HQs Mário Latino, ou o novíssimo Altamira). Como sempre impresso em uma cor dominante (desta vez amarelo) e layout despojado e eficaz, o Pimba retorna repetindo algumas pratas da casa (Góes, San, Valente, Belga) e traz novos convidados do indie brazuca que dão certo peso e responsa à publicação: Chiquinha e Pablo Carranza, por exemplo, coisas de espectros meio opostos, entregam folhas de quadrinhos despretensiosos, diria até dispensáveis (dado o potencial); bobos, mas não sem graça. Já a dupla Bruno Maron e Ricardo Coimbra, de lente e lápis afiados para um cinismo bruto (que a nossa geração merece ouvir), não parecem ter reservado seus melhores trabalhos para o jornal. Soou como improviso. Mais interessante, em quadrinhos, é a metacrítica feita por André Valente “Fazer quadrinhos vai destruir você, vai partir seu coração”. De fato, ao que parece, vai. Valente pega esta citação de Schulz e, num sentido mesmo charliebrownesco, constrói uma visão na verdade desoladora, neurótica e categórica sobre o ofício de fazer quadrinhos no Brasil. Resta pouca esperança, realmente, se o melhor de uma produção reside na autoparódia. Tudo fica em tom de despedida.

Assim como na edição 2, os quadrinhos oscilam, mas há muitos bons momentos em texto (e ilustração) para deixar o Pimba 3 mais interessante. Com maior participação feminina, temos, por exemplo, um conto de memória rural (mas de mentalidade urbana) exíguo e melancólico de Marcella Moraes; e uma ótima, satírica e perversa leitura de certa tosca mentalidade masculina por Maíra Valério. Temos Arnaldo Branco, que cria uma pequena exegese para o vício (viva!); temos um conto bastante prosaico (em tom de crônica, mas sem perder e verve de Literatura sobre o interior do Brasil) de Milton Sobreiro (o que dá um ar menos hipster pra coisa toda); e temos uma fritadíssima autorreflexão de Hector Lima sobre a adesão descontrolada e antissocial a produtos culturais de consumo, misturado a ciência contemporânea e Literatura de Internet (o que traz um ar pós-moderno). Não falta ao Pimba, portanto, gente talentosa. A minha impressão, no entanto, é que a editoração dessa p*rra funciona como uma invasão dos Piratas do Tietê, espécie de onda caótica de mentes tresloucadas sedentas por expressão, mas ainda assim se atropelando de ansiedade. (CIM)

Topografias – Bárbara Malagoli, Julia Balthazar, Lovelove6, Mariana Paraizo, Puiupo, Taís Koshino (Piqui, 2016, 60 p.): se pensarmos a topografia como o mapeamento de um território, este quadrinho tem dupla função: em primeiro lugar, é um radar para o melhor da produção feminina no Brasil atualmente, especialmente no meio indie. A ideia é realmente construir uma cartografia, indicar o caminho, levar a produção masculina pelas mãos e dizer: “fazemos bem e fazemos diferente”. Neste sentido (e sem querer avançar mais no chauvinismo da guerra de sexos), Topografias é um material aberto à experimentação e à sensibilidade radical, um tipo de autoria em quadrinhos que possui outro DNA, outras preocupações e prioridades. Em segundo lugar, a topografia (escrita do espaço) também diz muito sobre a qualidade artística do trabalho em si destas minas. Pouco preocupadas em construir narrativas funcionais ou numa “antiquada” produção mais tradicional de sentido, estas quadrinistas deixam o espaço falar (e também o espaço da página) como se fosse uma expressão em si, deixando balões de fala, texto e mesmo questões políticas em segundo plano.

O resultado em geral é acima da média. Há uma forte pulsão expressiva na maneira como este coletivo representa suas ideias em quadrinhos. Em alguns momentos, porém, ainda resvalam em certos procedimentos naïve, e muitas vezes o texto mais atrapalha do que qualquer outra coisa. Vejamos o caso de Bárbara Malagoli: ela constrói um poderoso dispositivo visual inspirado em sci-fi, com trabalho de cores louquérrimo e embasbacante, mas há uma disjunção entre estas splash pages e os textos, que parecem excertos (pseudo) filosóficos (“É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo”) soltos, sem muita conexão com as imagens. Falta aquela “liga” que faria o quadrinho ressoar melhor na gente. Já Julia Balthazar se sai melhor ao apresentar uma simples tarde na piscina vivenciada por duas garotas apaixonadas, em sua exclusividade. Também há uma forte presença do espaço e das cores, como se a transmissão da impressão do sentimento se sobressaísse a quaisquer palavras (de fato os diálogos são vagos e não dizem muito).

A sci-fi também está presente nas contribuições sui generis de Taís Koshino e Puiupo. A primeira é a melhor participação da revista e talvez sua melhor história ever: numa turma de crianças telepatas praticantes de meditação, temos acesso a certo “museu do futuro”, que conta a história de nossa evolução (com bem-humoradas alterações). Koshino alterna bem a disposição entre um senso de humor muito próprio, questões sobre tecnologia, corpo humano e realidade virtual, além de um intrigante trabalho com cores e empaginação (e aqui o texto – paródia do cientificismo – funciona). Já Puiupo apresenta uma cena grotesca em sua visão freak, cronenberguiana, sexy de um jeito inimaginável. Não entendi muita coisa, mas há personalidade e imagens que não saem da cabeça. Por fim, Lovelove6 traz um trabalho bastante radical e pessoal, em tons (eroticamente bem pensados) de vermelho e roxo, também numa cena arquetípica de amor entre duas mulheres. A topografia em si da história é bastante marcante e virulenta, mas a mensagem do texto (“o ciúme é bastante antigo”) me pareceu meio moralista. Enfim, vale também destacar o belo trabalho de editoração de Lívia Viganó para este que é um dos mais bonitos e significativos lançamentos do ano passado. (CIM)

Cais – Janaína de Luna e Pedro Cobiaco (Mino, 2016): quando acordamos e relembramos acontecimentos ocorridos em nossos sonhos, nada parece fazer sentido. Ainda assim, quando estamos dentro da realidade onírica, tudo parece ter lógica, não é? Agora imagine poder ver um sonho estando acordado. Foi assim que me senti quando li Cais. Essencialmente intimista, a narrativa em primeira pessoa nos dá dicas preciosas sobre o inconsciente de Diana, a protagonista, mas deixa muita coisa em aberto. Confesso que tive de ler umas três vezes para sacar qual era a onda do gibi, mas isso não é um ponto negativo. Muito pelo contrário. Numa época em que a informação tem que ser cada vez mais objetiva e mastigada para agradar a leitores apressados, é saudável encontrar HQs que nadam contra essa corrente. 

A água, em suas diversas formas, é presença constante no gibi, assim como são as diversas metáforas que ajudam a entender (ou confundir) quem é Diana e qual a natureza de seu relacionamento com – eis um nome escolhido a dedo – Martin. As lentas idas e vindas do casal são a preguiçosa maré que vai embalar o ritmo desta HQ, que poderia se passar em qualquer vila litorânea do Brasil. A arte é um capítulo à parte. O belo contraponto em preto e branco deste Cais com o colorido esfuziante de Aventuras nailha do tesouro mostra que Pedro Cobiaco está à vontade em qualquer praia. Ouvi dizer por aí que pode ser que Diana volte num gibi de mais de cem páginas. Espero que o sonho se torne realidade. (MMA

Quadrinhos Insones – Diego Sanchez (Mino, 2016, 96 p.): não são poucos os motivos que nos fazem embarcar em vigílias involuntárias noite adentro. E embora tenha certeza de que o bem-estar social no mundo é um deles, a grande maioria das insônias são causadas por pequenos nós íntimos do dia a dia que nosso cérebro insiste em tentar desatar quando deitamos. E Quadrinhos insones, um apanhado da produção digital do quadrinista Diego Sanchez publicado pela Mino em 2016, é uma testemunha disso. O belo livrinho – que poderia ter uma produção mais modesta em consonância ao caráter despojado das narrativas – abre com uma pesada descrição da guerra civil no Camboja em 1975, mas rapidamente a narrativa histórica dá lugar a reflexões e micro-crônicas às vezes fantasiosas e muitas vezes íntimas e autobiográficas. A arte de Sanchez é uma delícia de se ver, algo como um Richard Sala hiper detalhado. E, no geral, o gibi proporciona alguns momentos de entretenimento belos e descompromissados. A bela “Escalas” e “O estranho caso da baía 4” são bons exemplos disso. Alguns continhos de uma página também seduzem pela capacidade de síntese. Quanto à linguagem, o grande destaque é o quadrinho sem título da página 50, uma perolazinha que traz ecos de Spiegelman e McCloud, que nos lembra novamente por que produzimos e lemos narrativas neste tipo de mídia.  O restante do quadrinho, entretanto, é prejudicado pela intimidade autobiográfica que esbarra em alguns lugares-comuns do modo de vida “indie”, tornando egocêntrico o que poderia ser distinto. Essa irregularidade do título, assim como seu caráter despojado, me fazem pensar em como ele seria melhor se lido com uma produção mais baixa – uma lombada canoa, papel jornal e algumas páginas a menos fariam deste Quadrinhos insones um sono mais agradável. (LN)

2015 – Antônio Silva, Augusto Botelho e Daniel Lopes (Org., MÊS, 2015, 152 p.): mais uma pira de Brasília, esta antologia é o resultado do trabalho de curadoria da galera da Mês, que em 2014 lançou religiosamente 12 zines (e repetem a fórmula em 2016). Em 2015 eles resolveram fazer diferente e financiaram no Catarse uma antologia a partir de uma convocatória. O resultado é um livro responsa com mais de 20 colaboradores e uma ampla diversidade de estilos. Alguns nomes (Diego Sanchez, Laura Athayde, Renata Rinaldi, Taís Koshino) são já conhecidos no meio indie, mas há muitos aventureiros também. Isto torna o conteúdo da revista irregular, como é de praxe neste tipo de publicação. Conhecendo o perfil editorial da galera, já se pode esperar da Mês um incentivo à experimentação, ao ato subversivo de romper certas barreiras que margeiam escapar dos quadrinhos. Artes visuais, colagem, fotomontagem, ilustração abstrata e rabiscos não são estranhos à mentalidade dos caras, assim como forte apelo ao nonsense  e quadrinhos que parecem pura zoação. Memes, enfim. Não sou contra essas coisas, mas é um terreno pantanoso. Dentro desta perspectiva, destaco a bela expressão de angústia juvenil de Gustavo Magalhães, em amplos quadros que dizem muito pouco, mas transmitem forte intensidade emocional: é uma equação precisa para se produzir bom quadrinho experimental.

Porém, mesmo com certa quantidade de coisas apressadas (e logo esquecíveis), 2015 tem quatro trunfos, que fazem a revista valer a pena. Em primeiro lugar, a história de abertura de Diego Sanchez: voo livre num surrealismo bem próximo dos sonhos (talvez tenha sido um), com sua arte em grande forma e sensibilidade na medida certa. É assim que se faz poesia em quadrinhos (e não recitando seu diário de adolescente junto a imagens expressionistas). É uma das melhores histórias que li dele. Em segundo lugar, a participação dos editores, bem mais calejados, com uma preocupação séria em se pensar a expressão em quadrinhos. Antônio Silva ainda vacila um pouco: sua história é tão doidona que parece ter sido desenhada em “escrita automática”. Mesmo assim, tem vigor nos movimentos, e intensidade. Lembra o estilo do querido Mateus Gandara. Já Augusto Botelho também oferece seu melhor trabalho até aqui. Ele conta a história (muda, profundamente inteligente e expressiva) de um menino (alter-ego?) numa praia que encontra um totem num barco e quer levá-lo para casa, mas a “entidade” não permite. Botelho trabalha bem o uso de luz, ângulos e expressões (seu traço está em consonância com sua geração, vide Pedro Cobiaco), e o sentido metafísico da história tem um quê de cabalístico, sem exageros. Por fim, temos a também muda história de Daniel Lopes, sobre o encontro entre um menino e um astronauta, também onírica (e esotérica), que remete ao ciclo infindável de nascimento e morte, com ótimas referências a 2001, Marco e até Incredible science fiction (da EC Comics – a famosa história do astronauta negro). O quadrinho de Daniel tem preciso timing, delicadezas e figuras de linguagem, revelando, assim como no caso de Botelho, exímio domínio da linguagem muda. Estes quadrinhos destoam muito do resto da edição, mostrando que estes caras estão prontos para saltos mais ambiciosos. (CIM)      

The Concept – Um quadrinho inspirado na canção da banda Teenage Fanclub

(Clube do Single Volume 1) – Fábio Lyra (Beléléu, 2014, 18 p.): eu havia criticado o estilo de Fábio Lyra em outra publicação, mas, como a vingança é um prato servido frio, preciso dar o braço a torcer aqui. Lyra bolou este projeto “Clube do Single”, que é o de escrever pequenas HQs inspiradas em canções, no formato físico de um single. A escolha para o primeiro projeto (lá de 2014) não poderia ter sido mais acertada: o Teenage Fanclub é das bandas que mais agregam loucos e apaixonados, desembocadouro para qualquer introvertido, indie ou ser antissocial dos anos 90. Há quem vire o nariz, mas o som deliciosamente melódico da banda, com as melhores influências (Beatles, Neil Young) e sem perder a personalidade discreta, tímida, mas generosa e cativante (capaz de transformar o rock numa crônica do cotidiano), este som é o de uma das minhas bandas favoritas. E The concept é, tipo, a melhor música do Teenage Fanclub. Pequeno épico do power pop, funciona como se o Big Star cruzasse com o Pink Floyd. E Lyra usa uma estratégia inteligente: ao invés de transcrever a letra da música para uma HQ, ele inventa uma história bastante diferente, sobre o encontro fortuito e fugaz entre dois jovens na madrugada (a garota como mote tanto na canção quanto na HQ), para procurar capturar o espírito (ou o mojo, ou sei lá o quê) da música na mídia quadrinhos. O traço de Lyra é bonito, e ele sabe tirar dos quadrinhos instantes que parecem paralisados na nossa percepção, memórias que ficarão para sempre. Assim, o Concept de Fábio Lyra é despojado e melancólico, mas que se vale de mini-emoções. Seria uma coisa assim, digamos, low-profile mas de bom coração. E não seria esta uma boa maneira de descrever o som dos escoceses? (CIM)    

Alvoroço – Diego Gerlach (Vibe Tronxa, 2012, 28 p.): pode ser dito com segurança que Diego Gerlach é um dos traços mais ativos do quadrinho nacional.  E em Alvoroço, gibi de seu personagem Boy Rochedo, se vê claramente também sua verve de artista gráfico. Do projeto da capa, de visível inspiração na produção gráfica de Emilio Damiani, até seu traço afiado que parece cortar a folha do papel, tudo expressa a psicodelia contundente como navalha que é marca do seu trabalho. Ao lado de uma produção gráfica mecânica e tradicional, Gerlach incorpora ainda uma tecnologia lo-fi nas suas retículas digitais e degradês deliciosamente piegas.

Alvoroço conta o retorno de Boy Rochedo, invocado de sabe Deus onde, renascido de uma fumegante vagina de beijú (tapioca para os ocidentais). Um nonsense transpirante que não vê incômodo em não ter início ou fim, e está mais interessado em expressar a amoralidade mambembe de seu personagem. Essa amoralidade acidental contrasta com o início da revista e seu ar de manifesto, mas, na soma de tudo, o que há é uma sensação e “com o passar do tempo a sensação passa a importar muito mais que a própria resposta”.

Alvoroço é um gibi curioso, bate aquela familiar vontade de acompanhar para ver o que acontece. Mas Gerlach tem uma intenção artística e anárquica que dispensa essas estratégias tradicionais de “storytelling”. É a “vibe” que importa. Pelo menos, no caso de Gerlach,  a vaibe é boa e autêntica. (LN)

Quadrinhos Perturbados – João Rabello (Avocado, 2015): eis um gibi contendo tiras com um tipo de humor bastante peculiar. Fazendo uso de tiradas e trocadilhos – escritos ou imagéticos – João Rabello dá protagonismo às suas manias e obsessões, como piratas, crânios e bigodes. Sim, bigodes. É um tipo de humor que poderá agradar a gregos, mas não a troianos, devido ao fato de representar a particular maneira através da qual o autor enxerga a vida e os fatos cotidianos. Por meio de várias referências à cultura pop – especialmente personagens de HQ – Rabello dá voz a um universo essencialmente pessoal. Confesso que me identifico com o tipo de piadas nonsense que estão espalhadas pelo gibi, cuja leitura me remeteu a James Kochalka em seu "The Horrible Truth about Comics". Neste último, o autor norte-americano destaca um dos recursos mais importantes dos quadrinhos: sua facilidade em favorecer a expressão individual. Em sua HQ, Kochalka ensina que talento ou dom são meros coadjuvantes diante de uma das grandes forças da nona arte, que é a capacidade de difundir visões e opiniões de forma visceral, autêntica e direta. Seguindo – consciente ou inconscientemente – esta ideia, Rabello acerta ao se permitir trazer para a superfície sua visão de mundo e de humor. (MMA)

O Diabo e Eu – Alcimar Frazão (Mino, 2016, 64 p.): Eu amo country blues. Nada como se render à simplicidade de três acordes e à emanação de toda uma época. Música pura, de inconfessáveis verdades. Simples, mas que nos atinge de primeira. Lonnie Johnson, Leroy Carr, Blind Willie McTell, Big Bill Broonzy, Memphis Minnie. E Robert Johnson, é claro. Esses cantores ainda emocionam porque estão atrelados a uma realidade onde música e vida não podem ser separados. É esta realidade que Alcimar Frazão traz aos quadrinhos ao elaborar, de maneira radicalmente pessoal, a história de Robert Johnson e o pacto com o Diabo. 

O Diabo e eu é uma história muda, cheia de signos sinistros, legítima gothic south, onde nos sentimos imersos no mundo apodrecido dos pântanos e deltas nos Estados Unidos do começo do século XX. Frazão legitima o terror ao fazer reverência à tradição brasileira do gênero: Shimamoto, Rodolfo Zalla e Mozart Couto parecem influências. Além de trabalhar grafismos cheios de psicologia (como uma menina com cabeça de cachorro), o quadrinista ainda discute a ideia do Diabo, que aqui aparece (quase) como metáfora da podridão da sociedade americana pós-escravocrata, e o mal absoluto brota na imagem do pai de Johnson, facínora violento que prostituía a própria esposa. Tudo isso sem perder o horror literal (o diabo está mesmo lá) e associando o silêncio do texto em quadrinhos à tristeza inerente ao blues rural, como se este silêncio e a música pudessem dizer a mesma coisa, mas em meios diferentes. (CIM)

Lavagem – Shiko (Mino, 2015, 72 p.): este talvez seja o melhor trabalho do paraibano Shiko (ainda que eu goste muito do experimentalismo poético de Blue Note).

Lavagem guarda muitas semelhanças com O Diabo e eu: é uma história de assassinato num lugar “abandonado por Deus” com a presença de um Diabo personificado. Fórmula de terror e símbolos ocultos. A arte de Shiko, porém, é mais dinâmica e cinematográfica, com ótimo domínio do timing narrativo.

Lavagem também retoma nossa tradição de quadrinhos de terror, mas acrescenta algo de cinema novo (eu ouvi Portodas caixas?) e Brasil contemporâneo à coisa. É um sincretismo eficiente e Shiko mira direto no oportunismo dos pastores evangélicos (“sometimes satan comes as a man of peace”) para fazer sua interpretação do mal. Mesmo não sendo brilhante (ainda acho que o movimento no quadrinho e as expressões dos personagens podem ganhar mais vida), o autor aproveita bem a sua chance de socializar o horror com questões sobre opressão feminina, desemprego e pobreza no Brasil.

Lavagem satisfaz, mas também produz aquela velha sensação: “agora que já fez esse, vai lá e faz um melhor”. Ou seja: mais e melhor Shiko, por favor. (CIM)

BEST OF DA RAIO LASER: melhores leituras de 2016

Assim como fizemos no ano passado, vamos recobrar 2016 a partir da radicalidade da memória, da aleatoriedade provocada pelo ritmo alucinante que foi esse ano louco. Os quadrinhos foram se acumulando, e coisas velhas, coisas novas, coisas longínquas, coisas nacionais, tudo isso foi sendo despejado como caos da informação, como um vendaval descontrolado de quadrinhos. Assim, é hora de organizar essa porra e praticar aquele velho exercício de produzir sentido através da experiência. Na Raio Laser é assim: escreve quem quer, quando quer, como quer. E assim são nossas listas. Eu e o Marcos no propusemos este exercício este ano. E aí estão nossas listas, sem ordem qualquer, radicalmente pessoais. É a nossa chance de arrumar a casinha, de processar a coisa toda, e de apresentar alguns truques, como sempre. Boa leitura! (CIM

por Ciro I. Marcondes e Marcos Maciel de Almeida

HELL BREAKS LOOSE: LISTA DO CIRO

1 – L’ÉGLISE ET L’ETAT, VOLUME 1: UNE HISTOIRE DE CEREBUS (A Igreja e o Estado, Volume 1 – Uma história de Cerebus) – Dave Sim (Vertige Graphic, 2012 [1987]): o canadense Dave Sim é um dos mais controversos enfants térribles dos quadrinhos. Guru da autopublicação nos anos 80, tretou com o Comics Journal e inúmeros leitores por conta de suas opiniões radicais. Foi internado após excessos com psicotrópicos. Chegou a desafiar (na vera) o quadrinista Jeff Smith para uma luta de boxe. O background, no entanto, não vem ao caso (ou talvez a ajude a explicar) quando vamos mergulhar em sua obra Cerebus, uma coleção megalítica de vários tomos publicada entre 1986 e 2004, totalizando nada menos que 6000 páginas de um mesmo quadrinho.

Cerebus, neste sentido, é o Em busca do tempo perdido desta forma de arte: alguns poucos ousarão tentar lê-lo. Menos ainda conseguirão terminá-lo.

Em outro sentido, porém, Cerebus em nada se assemelha à delicada obra de Proust. Certo, eu tive acesso apenas a uma versão (traduzida para o francês) do primeiro volume do arco A Igreja e o Estado (que é o terceiro longo arco da série), mas só isso já são 600 páginas de quadrinho. Cerebus é um orictéropo (aardvark, um mamífero africano) antropomorfo que, nas primeiras histórias, atuava como uma paródia de Conan. Dave Sim foi, porém, progressivamente, transformando um barbárico mundo medieval em uma sociedade incrivelmente complexa com incontáveis desdobramentos de poder, refletindo fortemente as esferas política e religiosa. Neste volume, o mal-humorado e beberrão personagem vai sendo manipulado por grupos políticos, aristocratas, amantes e religiosos para sair de um estado de total abandono (após antes ter sido monarca do reino de Iest) até chegar à posição de Papa.

O humor de Sim é ácido e selvagem, e sua ironia cheia de inferências eruditas. Os quadrinhos mainstream são frequentemente demolidos pela perspectiva fanática de autor e personagens (basta checar, neste volume, Artemis, uma paródia grotesca do Wolverine). A linguagem em quadrinhos é hermética e minuciosamente elaborada. Cada página individual tem um conceito e a preocupação com o equilíbrio entre a qualidade intelectual da obra e seu senso de humor blasfemo é quase obsessiva. Não é uma leitura fácil, eu vos advirto. Sim mistura inúmeros registros diferentes e o cenário político do universo de Cerebus é tão amplo que toma tempo até fazer sentido na cabeça do leitor. O orictéropo chega a escrever um tratado sobre como governar, que se apresenta integralmente entre as páginas dos quadrinhos.

Com algum esforço, a leitura progride e o todo conceitual, incluindo sua visão sobre um muito variado leque de assuntos, vai se abrindo. Quanto mais se lê Cerebus, mas se tem fome de lê-lo, e o que antes parecia uma peça de literatura se transforma num tratado social e político dos nossos tempos. Em Cerebus, nada é literal e todo tipo de quebra com a quarta parede é recurso para elaboração do discurso da HQ. O efeito “quadrinhos sem limites” dos comix underground (origem de Sim) transparece aqui, como se o autor fosse espécie de Gilbert Shelton (Wonder Wart-Hog) intelectualizado. Enfim, uma das mais agudas visões de política e religião dos quadrinhos, realizada por uma das masterminds do meio. (CIM)

2 – BULLDOGMA – Wagner William (Veneta, 2016): sabe aquelas obras que você ama e odeia ao mesmo tempo, com um sentimento concomitante que compartilhe inteiramente as duas apreciações (do mesmo jeito que Jesus meio que seria, ao mesmo tempo, todo Deus e todo humano), sem que uma coisa necessariamente interfira na outra (Dançando no escuro é um bom exemplo...)? Pois bem: não é que Bulldogma seja exatamente isso. Não há muito o que criticar sobre o exímio trabalho de quadrinização de Wagner William neste romance gráfico. Ele usa uma proposta hipermidiática (como se o livro fosse um repositório de hiperlinks) para costurar (quase digitalmente) a persona de sua protagonista pós-moderna, a demasiado humana Deisy, a Adèle Blanc Sec “jovem adulta” dos anos 10. Ela é solteira, designer, ilustradora, pichadora, bissexual, tem um bulldog, etc, etc. Poderia parecer um clichê, mas William usa e abusa de maneiras inventivas para sofisticar o universo desta personagem: interfaces de Internet, celulares, cartazes, pichações, toys. Além disso, como se fosse uma película que recobre o drama mundano contemporâneo da personagem, há um mistério sci-fi pulp com alienígenas que nunca efetivamente se revela ou resolve.

Bulldogma é contagiante e muito impactante em sua jornada pelas telas diferentes de representação em quadrinhos: telas de arquivos de computador, telas de chats no FB, telas dos requadros, telas de TV, de videogame, de visões subjetivas, outras delirantes, alucinatórias. Infelizmente, é também muito autoindulgente, e as grossas camadas de metalinguagem da HQ me parecem não apenas excessivas e desnecessárias, como também uma estratégia guarda-chuva para proteger o próprio autor de suas inseguranças. E isso é bastante incômodo. Daí a ambiguidade estranha no fruir das páginas. Não apenas a protagonista (sim, nada plana e enredada por um rico universo ficcional) ressoa certa antipatia, como parece também antipática a empáfia hipsterista da história. Francamente, Bulldogma deve ser a HQ com mais referências e citações por cm² da História. E a carga pesada de metalinguagem (Deisy está escrevendo uma graphic novel que de certa forma é o próprio Bulldogma, etc.), procurando prever e antecipar as críticas a estes excessos todos, tornam a coisa um pouco broxante e enfadonha.

Não que estas referências sejam palha ou obtusas. William sabe costurar muito bem um grande volume de erudição no texto em quadrinhos, como se isso tudo fizesse também parte desta estrutura de hiperlinks. Porém, isso soa como se ele precisasse esconder sua incapacidade de elaborar efetivamente uma história por trás de uma visão feminina que, mais atrás ainda, é a sua própria. Daí também a necessidade de se justificar esta posição com um monte de embromação retórica posicionada meio que ironicamente dentro da boca dos personagens. É por isso que, apesar da fantástica visão de quadrinhos que o autor apresenta na tessitura deste romance gráfico, seu final é frustrante porque este dispositivo de autoblindagem impede que a coisa chegue a qualquer lugar.

Enfim, a nuvem de formatos e referências, incluindo aí o esvaziado e supostamente metafórico plot alienígena, denuncia sim a desorientação do autor, mas, para o bem da HQ, reflete-se também fortemente em sua personagem. Mais do que uma história cult, Bulldogma é um tratado pós-moderno sobre infelicidade, solidão e vazios afetivos nos centros urbanos dos nossos dias. Sua aversão à interpretação (“Você está muito mais preocupado em chegar em algum lugar do que simplesmente estar lá”) é um sintoma que somatiza na própria Deisy. Quase por acidente, portanto, em sua densa fragmentação, Bulldogma alicerça coerência ao unir a própria falta de coerência comum a autor e personagem. Ambígua, sim, mas profundamente provocativa e inteligente, esta HQ merece certamente um lugar entre as melhores leituras do ano. (CIM)

3 – VALERIAN, AGENT SPATIO-TEMPORAL: LA CITÉ DES EAUX MOUVANTES (Valerian, agente espaçotemporal: a cidade das águas movediças) – Jean-Claude Mézières e Pierre Christin (Dargaud, 1977 [1969]): a chegada de um filme adaptado de Valerian dirigido por Luc Besson (a ser lançado em agosto de 2017) trouxe nova atenção a esta HQ clássica, forte precursora da sci-fi na cultura pop. Na verdade, Valerian foi um dos principais consolidadores da space-opera em mídias visuais, e sua influência sobre Star Wars não é lenda urbana. Além disso, é a série mais longeva da HQ franco-belga que continua sendo publicada por seus autores originais. Isso me motivou a ler mais um volume encadernado, que é a segunda aventura do herói e sua parceira Laureline. Publicado originalmente na Pilote em 1969, em A cidade das águas movediças podemos ver o esplendor da arte de Jean-Claude Mézières em seus dias de ouro: mais caricata do que se tornaria posteriormente, com enorme riqueza no detalhamento de personagens e cenários, além de intensa imaginação para figurinos de época e gadgets espaciais.

Christin (que escreveu nada menos que Partida de caça, com Bilal), mestre absoluto da sci-fi, faz Valerian viajar no tempo em busca do psicopático Xombul, que retornou a uma Nova York pós-apocalíptica do ano de 1986 (!). A cidade está toda inundada (os cenários são surpreendentes e espetaculares) e Valerian precisa atravessá-la de barco, enfrentando escroques neo-hippies e um certo líder do submundo (e bandleader ocasional) chamado Sun Rae – inspirado no jazzista de vanguarda e filósofo new age Sun Ra. Desventuras cada vez mais insanas (e visualmente deslumbrantes) vão se sucedendo, e até a então jovem cidade de Brasília aparece na bagaça (como centro utópico de reunião dos líderes mundiais no cenário pós-apocalíptico). Parece maneiro o suficiente? Valerian pode parecer datado e ingênuo hoje em dia, mas é o clássico exemplo do tipo de obra que leitores “modernos e descolados” desprezam, sem saber que estão ignorando um verdadeiro tesouro de possibilidades para um bom quadrinho de aventura. (CIM)

4 – MORT CINDER – Hector Germán Oesterheld e Alberto Breccia (Clarín, 2004 [1962-4]): Mort Cinder é um homem que, ao morrer, renasce em outra época, mantendo suas memórias, infinitamente. As impressionantes histórias das memórias deste homem são relatadas a um velho antiquário londrino (Ezra Winston), que as desperta no imortal com seus objetos antigos. Mort Cinder faz parte da fase mais madura de Oesterheld, o mais importante roteirista de quadrinhos argentino, e vê a arte do gigante Breccia no auge, uma profusão de rabiscos sombrios e expressões paralisantes. Publicada de maneira seriada em Misterix no início dos anos 60, Mort Cinder é um passo além em relação à obra mais famosa Oesterheld, O eternauta: aqui, já não cabem mensagens verossímeis ou tentativas de estruturar um universo muito coerente. O imortal e seu velho amigo antiquário são pura metáfora, puro subterfúgio para Oesterheld viajar no tempo e no espaço (o Egito antigo, a Babel bíblica, o período colonial, etc.) e produzir poderosos contos de perfil sociológico, filosófico, humanista. Uma obra inigualável. Em breve mais sobre Mort Cinder por aqui! (CIM)

5 - AVENTURAS NA ILHA DO TESOURO - Pedro Cobiaco (Mino, 2015): salto selvagem e incontrolável no imaginário lisérgico dos millenials. Leia a crítica completa aqui.

6 – CIDADE DE VIDRO DE PAUL AUSTER - David Mazzucchelli e Paul Karasik (Via Lettera, 1998 [1994]): Cidade de vidro, a novela que inaugura a famosa “trilogia de Nova York” do grande autor americano Paul Auster, é como um novelo interminável de inferências metalinguísticas sobre a origem da fala, das palavras e da linguagem encaixadas dentro de um romance noir de banca, folhetinesco. Mesmo como literatura (onde a capacidade de abstração intelectiva é muito grande), lança um desafio à compreensão. O que dizer então de uma adaptação em quadrinhos? Esta graphic dos anos 90 é um exemplo paradigmático a respeito de como fazer a literatura render em  quadrinhos. O personagem principal, Quinn, é um escritor de romances pulp de detetives que certo dia recebe uma ligação em que o confundem realmente com um detetive, chamado... Paul Auster. A partir daí vamos afundando num labirinto metafísico e metalinguístico em que se confundem elementos de cultura popular (pessoas que passam 20 anos em porões), bíblica (a Torre de Babel), literária, filosófica, etc. Mazzucchelli está em grande forma, e as soluções visuais para as charadas e enigmas abstratos propostos pelas mentes devaneantes da história são intensas, imersivas, de tirar o fôlego. Talvez seja o seu trabalho mais equilibrado, e sem dúvida um ponto de virada em sua carreira, hoje ainda mais prestigiada com o genial Asterios Polyp. Para os que pensam a adaptação em quadrinhos, é hora de reler esta pequena obra-prima, que anda um tanto esquecida. (CIM)

7 – PAU E PEDRA – Peter Kuper (Quadrinhos na Cia., 2016): Kuper é um mestre do silêncio e do surrealismo, professor de Harvard e um artista tão talhado que a notícia de um lançamento seu é garantia de coisas muito acima de média. Ainda que ele nunca repita a qualidade da análise social (por meio da metonímia em quadrinhos) que realizou no insuperável O sistema, sua inventividade para bolar novos formatos de quadrinhos mudos parece não ter fim. Neste Pau e pedra, ele deixa de lado o experimentalismo obsessivo para contar uma história mais direta. Ao invés de um silêncio por meio de símbolos, um silêncio pro meio de arquétipos. Assim, sem usar palavras, ele retorna a uma ancestralidade primordial, em que seres de pau e pedra parecem travar a primeira história de opressão, a primeira rebelião e a primeira guerra do mundo. O fato de os seres de Kuper serem feitos de materiais brutos torna este ambiente ainda mais longínquo e primitivo, eons geológicos de volta a um passado de realidade mágica. A arte é elegante e a alternância entre o P&B e as cores é habilmente disposta numa programação para nos maravilhar e surpreender. Mesmo sendo um trabalho menor de Kuper, Pau e pedra é uma de suas HQs mais versáteis. Ao mesmo tempo em que o mundo arquetípico dela pode servir para educar uma criança, realiza também uma reflexão sóbria e implacável sobre temas como a tirania, o extrativismo e a escravidão. Go silent! (CIM)

8 - THE COMPLETE ELF QUEST - VOLUME 1 - Wendy e Richard Pini (Dark Horse, 2014): a encantadora saga hippie dos elfos de Richard e Wendy Pini é a mais longa HQ indie da história. Mais sobre Elf Quest aqui.

9 – DUPIN – Leandro Melite (Zarabatana, 2015): imaginem Edgar Allan Poe adaptado para os quadrinhos com forte carga lovecraftiana, e protagonizado por duas crianças. Leandro Melite teve realmente as manhas de ir muito além da homenagem ou da adaptação (Os assassinatos da Rua Morgue) ao transformar a famosa história inaugural da ficção policial em espécie de conto de fadas obscuro e aterrador. Lindamente, digamos, incrustado na cidade de São Paulo, Dupin é um romance gráfico aberto ao oculto, guardando seus segredos em aspectos e momentos precisos. Sob forte sombra de Mutarelli, mas também perfeitamente autêntico, este quadrinho solidamente bem narrado se alterna entre as vicissitudes dos dois protagonistas. De um lado, temos a angústia esperada do tween Eduard, que, na ausência de uma figura paterna de referência, se interroga sobre o que é ser um homem. Do outro, temos seu primo Gustave, um menino português de compleição estranha e trejeitos literários, claramente uma figura superdotada que fala através de enigmas e esconde um passado de tragédia e forças estranhas. Por mais que Dupin seja sofisticado em termos de arte, timing, suspense e empaginação, é a química entre estes dois personagens que o conduz a ser algo de calibre maior na fartura dos quadrinhos brasileiros contemporâneos. Melite se preocupa com a qualidade artística e esconde alguns easter eggs em seu trabalho, mas é a força humana depositada nesta estranha relação que salta aos olhos, que legitimamente emociona. No final das contas, após um (um tanto demorado e chato) preâmbulo na experimentação (às vezes inócua), o quadrinho brasileiro encontra força novamente naquelas premissas básicas: personagem, trama, ambientação, etc.

Dupin até esbarra em alguns estereótipos um tanto quanto previsíveis (o policial grosseiro e idiota, a gangue de rua que pratica bullying), mas nada que prejudique o prazer de uma história elegantemente bem narrada, com implicações inteligentes de significado. E assustadora. Muito assustadora. (CIM)

10 - QUADRADINHAS – Lucas Gehre (LTG Press, 2016): entre 2010 e 2015 o quadrinista brasiliense Lucas Gehre produziu uma série de quadrinhos em formato específico (uma página quadrada geralmente contendo nove requadros do mesmo tamanho, mas com variações), populares na Internet. Em 2016, via Catarse, ele lançou esta coletânea em formato físico. Os quadrinhos brasileiros agradecem. Nenhum trabalho produzido no Brasil atualmente é como o de Lucas. As quadradinhas são um laboratório para o voo poético do autor em direção às suas aspirações mais íntimas. Os temas podem ser completamente divergentes entre si, assim como a abordagem sobre a linguagem dos quadrinhos. Porém, há em comum a necessidade de se expressar certo inefável da vida que só pode ser comunicado dentro de um espaço de poesia. E fazer isso em quadrinhos é muito admirável.

Gehre usa como base alguns tropos (o espaço sideral, o mundo microscópico, plantas, animais, jogos, objetos, relacionamentos) que são desenvolvidos, por exemplo, sob uma sensibilidade morfológica (em quê as coisas parecem umas com as outras?) ou temporal (não é incomum que a quadradinha capture movimentos extremamente sutis, ou variações quase imperceptíveis em gradações de cor). Algumas tangem a abstração (lembrando Rothko). Os objetos, numa vibe totalmente magritteana, são realojados de suas funções originais, sendo observados com uma lente profundamente curiosa e instigada. Gehre desvela um mundo oculto aos olhos ordinários, mas que está ao mesmo tempo aí, latente, a qualquer momento. É físico, biólogo, escritor romântico, esotérico, desenhista. Não à toa, uma de suas metáforas favoritas é a do avião partindo e voltando, quando paramos nossas atividades naquele ato existencial puro de observar uma coisa cruzando o céu. Uma quadradinha é um OVNI em quadrinhos cruzando nosso cotidiano. (CIM)

11 – GENTLEMAN JIM (Jim, o gentleman) – Richard Briggs (Hamish Hamilton, 1980): Ok, Raymond Briggs é um dos grandes da Literatura infantil inglesa, chegando a assumir o papel de uma espécie de Roald Dahl britânico. Porém, nem todos conhecem sua obra em quadrinhos, e a dobradinha Gentleman Jim e When the wind blows estão entre seu trabalho mais significativo. Briggs introjeta aqui uma mistura de ingenuidade do indivíduo e perversidade social que chega a ser ultrajante. Como pode um quadrinho ser uma inocente alegoria infantil e ao mesmo tempo uma audaz sátira social?

Gentleman Jim conta a história de Jim Bloggs e sua esposa Hilda, cidadãos mentecaptos da working class britânica, ingênuos como jarros de flores. Jim lava banheiros públicos. Esta é sua profissão. Certo dia, ele decide mudar de emprego. Cogita ser soldado, cowboy, pintor, executivo. Ele decide que, bruto e iletrado, não possui instrução para exercer tais funções. Decidindo, por fim, que poderia ser espécie de “cavaleiro noturno” (herói encapuzado estilo Robin Hood), Jim vê sua empreitada fracassar ao esbarrar, a cada passo, em um empecilho moral, institucional ou burocrático, terminando preso ao cometer (meio que no estilo “Forrest Gump”) 14 delitos e voltando a lavar latrinas na cadeia. As ilustrações de Briggs são ternas, coloridas por airados lápis de cores, evocando o universo das ilustrações para crianças, próximo à “linha clara” de tradição franco-belga. O conteúdo, porém, aparentemente amenizado pela doçura dos protagonistas, é cruel com a imobilidade da classe trabalhadora, tolhida por barreiras invisíveis construídas pelas instituições sociais. Neste sentido, Briggs é brilhante. When the wind blows, sua HQ seguinte, vai colocar o mesmo casal ignóbil diante de uma guerra nuclear. The plot thickens! (CIM)

HELL AIN'T A BAD PLACE TO BE: LISTA DO MARCOS

Listas de melhores do ano me deixam ansioso. Saber que tem algo aparentemente acima da média – e ainda desconhecido para mim – por aí faz com que eu crie expectativas e mexa mundos e fundos para ter acesso ao tal material que teima em permanecer distante do alcance das minhas mãos. É assim com livros, discos, filmes, mas especialmente com gibis. E o problema aqui é potencializado pelo fato de que as Histórias em Quadrinhos são uma mídia relativamente barata e de simples produção. Compare com o custo, tempo e mão de obra empregada para fazer um filme, por exemplo. A diferença é abissal. Os gibis permitem que um autor crie, sozinho se for essa a opção, uma nova obra prima, que poderá surgir em um estúdio de desenho profissional ou em qualquer quartinho dos fundos. A máxima do “do it yourself” – mais comumente utilizada no ramo da música – parece ter sido criada sob medida para os quadrinistas. Assim, considerando que boa parte das obras de quadrinhos têm por característica uma produção sobretudo pulverizada, realizada conforme o empenho do autor em lançar aquela determinada publicação, torna-se praticamente impossível acompanhar tudo que está saindo, dada a relativa facilidade de gestação de novos quadrinhos. Por isso, lamento informar que, por mais que tentemos, meus caros, jamais conseguiremos ter acesso a 100 % do biscoito fino do quadrinho mundial, porque, neste exato momento, tem um quadrinista terminando um novo gibi que poderá ser o novo clássico imperdível. Só resta, portanto, nos conformarmos com o fato de que essa sensação de incompletude permanecerá, apesar dos pesares. Ciente disso, peço licença para apresentar minha lista de melhores de 2016 para os internautas (ansiosos ou não) de plantão. Então, sofram, curtam ou permaneçam indiferentes com a lista de alguns gibis que vocês talvez ainda não tenham tido a oportunidade de ler. Importante frisar que a relação não possui uma ordem crescente ou decrescente de preferência e que contém gibis lidos – mas não necessariamente lançados – em 2016. (MMA)

1 -GUERRAS SECRETAS #1-9 – Jonathan Hickman e Esad Ribic (Marvel/Panini, 2016): Tomei conhecimento da terceira encarnação do crossover Guerras alguns anos atrás, quando me deparei com a edição número 1. O que me chamou a atenção foi a quantidade de personagens “B” na capa de um gibi usado como ponta de lança de uma maxissérie com forte apelo comercial. Outra coisa que me atraiu foi a presença de Alex Ross como capista. Salvo em raríssimas ocasiões, ele não é o tipo de cara que entra em barca furada. E essa certamente não foi uma delas. Mais que tudo, a intrincada saga de Jonathan Hickman é uma ode de amor ao Universo Marvel. Depois de uns bons três anos lançando as bases do crossover nas revistas mensais da editora norte-americana, o escritor pôde, finalmente, materializar sua criação mais ambiciosa. E a palavra aqui não pode ser outra a não ser desbunde. Tem de tudo um pouco. Destruição de universos, zumbis, pancadaria generalizada e principalmente: interações bem sacadas entre personagens que nunca pensávamos que veríamos juntos. Thanos, Capitão Bretanha e Maximus são alguns dos participantes de uma trama que nos lembra, a todo momento, que a base de sustentação da “Casa das Ideias” não reside apenas nos medalhões. É claro que se trata de uma história em que os heróis têm de salvar o mundo contando com chances mínimas de êxito. Mas tudo é contado de modo tão saboroso, com utilização de personagens em situações tão bizarras quanto inusitadas, que vale a pena. Sim, teremos a presença obrigatória da Santíssima Trindade das Guerras Secretas, Homem Molecular, Dr. Destino e Beyonder(s), mas não se preocupe com isso. Ele só estão ali para honrar tradição do nome do gibi. Quanto ao enredo em si, não esquente a cabeça com seu aparente hermetismo. Caia de boca, sem medo de indigestão, nesse banquete preparado por e para marvetes hardcore. (MMA)

2 -TALCO DE VIDRO – Marcelo Quintanilha (Veneta, 2015): O que mais dizer sobre o gibi que sacramentou a entrada do niteroiense Marcelo Quintanilha no panteão dos monstros sagrados do quadrinho nacional? Muito já foi falado, inclusive AQUI na Raio Laser. Bem, ao invés de enumerar novamente os méritos desta graphic novel de tirar o chapéu, talvez seja mais interessante tentar compreender o que o seu lançamento significou. Para mim, Talco de vidro é o sinal dos tempos de que o quadrinho brasileiro independente, embora ainda longe de ser um fenômeno de vendas, já conseguiu amealhar um público cativo e fiel. Acho bastante difícil que os autores nacionais já possam viver exclusivamente do trabalho com quadrinhos, mas já deve ser reconfortante saber que o fruto de seu trabalho não será destinado ao ostracismo imediato como ocorria em épocas passadas. Agora sobre a HQ em si, creio que a melhor definição para expressar o que senti após a leitura seja a sensação de ter levado um chute no estômago. Quintanilha conseguiu construir uma história envolvente e enigmática que nos faz duvidar, a cada momento, se estamos diante da trama principal ou de um pano de fundo que só derrubará, no desfecho, todas as convicções que tínhamos. A sensação principal durante a leitura é de incômodo, como se algo não se encaixasse, numa espécie de mensagem subliminar que, impiedosamente, martela nossa mente.

A única certeza, aqui, são as incertezas. (MMA)

3 -MÁGICO VENTO – Gianfranco Manfredi e vários (Sergio Bonelli/Mythos Editora, 2002): 2016 foi o ano em que passei a dar mais atenção ao quadrinho italiano. E calhou que decidi começar pelo já clássico Mágico Vento, criado e escrito por Gianfranco Manfredi. Foi amor à primeira leitura. Belamente ilustrado – em geral – por grandes artistas do porte de Ivo Milazzo, Goran Parlov e Pasquale Frisenda, o fumetti

durou 131 edições, integralmente publicadas no Brasil. Na série, salta aos olhos a profundidade da pesquisa histórica realizada durante a elaboração do roteiro. Cada edição conta com ao menos uma página de texto com detalhes sobre o contexto histórico, personagens, fatos e lugares presentes na narrativa.

Não é mistério para ninguém que os italianos são obcecados pelo faroeste estadunidense. Mas o autor demonstra ter levado essa paixão às últimas consequências. Manfredi não economiza esforços para entregar ao leitor um gibi com doses maciças de realismo factual, meticulosamente investigado. Isso não quer dizer que não haja espaço para a ficção, muito pelo contrário. Amparado em bases sólidas de pesquisa, o autor se permite viajar pelos mitos americanos, seja ao dar vida a terríveis lendas e monstros do imaginário indígena, seja ao recriar fatos envolvendo pessoas que realmente existiram na segunda metade do século XIX. Localizado historicamente no pós Guerra Civil norte-americano, Mágico vento

conta a saga de Ned Ellis, soldado que, após um acidente, vira a casaca e passa a apoiar a causa indígena. Mas aqui não se trata do velho maniqueísmo do índio bonzinho contra o homem branco malvado. A palheta de cores do autor vai muito além do preto e do branco e contém, certamente, muito mais que cinquenta tons de cinza. Intrincado, envolvente, violento. Sejam bem vindos ao mundo de Mágico vento. (MMA)

4 -HABIBI – Craig Thompson (Cia das Letras, 2012): Craig Thompson já nos havia deixado em frangalhos com o novelão Retalhos, lançado no Brasil em 2009, mas agora ele resolveu apelar. Usando como pano de fundo a relação entre uma cortesã e um garoto fugitivo em um país muçulmano fictício, porém muito real, o autor constrói, em tons grandiloquentes - mas nunca pretensiosos – uma epopeia que promete sensibilizar até os corações mais embrutecidos. Habibi é puro sentimento e poesia. Utilizando-se das peculiaridades do idioma árabe, dos versos do Corão e da estética muçulmana, Thompson conseguiu gestar um visual único para sua HQ. E o gibi também impressiona pelo ritmo e fluidez. Há momentos em que não sabemos se é o argumento que orienta os desenhos ou o contrário. Mas não há motivos para se pensar nisso.

Habibi é mais emoção que racionalização. Sem delírios messiânicos, o autor faz um verdadeiro sobrevoo pela história da humanidade, mostrando como a desesperança dos tempos antigos ainda continua, infelizmente, bastante atual. Como um timoneiro, Thompson nos guia pelo melhor e pelo pior da alma humana, sem deixar, entretanto, que abandonemos a embarcação.

Sem entrar em spoilers, não posso deixar de mencionar a maldade que o autor faz com um dos protagonistas. Eis uma cena que ficará para sempre gravada na minha memória. É como diria Januário de Oliveira, ex-narrador esportivo: Crueeel! Muito cruel esse Sr. Thompson... (MMA)

5 -CHARLES MILLER: LES MOUETTES MEURENT À L'AUBE (As gaivotas morrem no alvorecer) - Jan Bucquoy e Jean-Louis Le Hir (Ansaldi Éditions, 1986): Qualquer semelhança com o pioneiro do futebol brasileiro é mera coincidência. O Charles Miller deste gibi é não tem quaisquer habilidades com os pés, nem ganha a vida dentro das quatro linhas. Funcionário de uma empresa de investigação particular, Miller é a personificação do detetive noir: irônico, sedutor e boêmio. Todos os elementos esperados de uma história com um personagem do tipo estão aqui. A femme fatale, o crime misterioso, o assassinato brutal. Fazendo uma análise fria, esta HQ não tem nada de especial, e tampouco se revela um divisor de águas nos quadrinhos do tipo romance policial. Coloquei ela nos meus dez mais em razão da eficiência dos autores em contar um história envolvente, repleta de suspense, que deixa os leitores salivando pela próxima edição, que jamais virá. Sim, este quadrinho teve vida curta e é filho único, mas não se preocupe. Aqui temos começo, meio e fim, como de praxe no mercado europeu. Nesta edição, Jan Bucquoy e Jean-Louis Le Hir conseguiram mostrar que histórias do gênero detetivesco, embora bastante popularizadas (especialmente na literatura franco-belga), ainda têm muita lenha para queimar. (MMA)

6 -THE HERO. VOLUMES 1 e 2 – David Rubín (Dark Horse, 2015): Neste reboot do mito de Héracles (leia mais sobre isso AQUI), David Rubin disseca o personagem sem dó nem piedade, não se importando se o sangue vai respingar no rosto do leitor. E a autópsia – embora o semideus ainda esteja vivo em nosso imaginário – do mito é realizada com bastante êxito. Utilizando-se de uma técnica narrativa dinâmica, que mistura mangá com Jack Kirby, o criador/escritor/desenhista, deu à luz um gibi peculiar pela sua intensidade e crueza. Certamente, se continuar a receber releituras tão inspiradas quanto esta, a lenda de Hércules continuará atraindo o interesse de velhas e novas gerações pelos séculos que virão. (MMA)

7 -XIII- W. Vance e J. Van Hamme (Dargaud/Panini, 2006): Nada é o que parece ser no gibi de W. Vance e J. Van Hamme. A história do homem amnésico que desperta com o numeral XIII tatuado acima de sua clavícula agradará aos fãs de histórias de espionagem ao brindá-los com altas doses de intriga internacional e reviravoltas. Pode-se dizer, com certo tom de maldade, que XIII é uma espécie de James Bond feito do jeito certo. Habilmente, o escritor J. Van Hamme vai costurando a sua teia de acontecimentos, que lançam muitas dúvidas sobre a real identidade do protagonista. XIII se vê, então, no centro de um sem número de conspirações, muitas delas relacionadas ao assassinato do presidente Kennedy. Abandonado à própria sorte, passa a ter contato com uma série de pessoas – amigos ou inimigos, não se sabe – que lhe fornecem dicas sobre seu passado. O problema é que tais flashbacks mais confundem que explicam. Fica sempre no ar se seriam informações autênticas ou apenas pistas falsas para convencer XIII, que - é claro - é um agente secreto altamente fodástico, recurso humano indispensável para qualquer grupo de inteligência que se preze. Uma pena que, no Brasil, ainda não tenha sido publicado o desfecho da história, sendo que falta APENAS UMA edição para fechar o ciclo da série original. Alô Panini, tende piedade de nós! (MMA)

8 - SANDMAN OVERTURE HC – Neil Gaiman e J.H. Williams III (DC/Vertigo, 2015): Após um hiato de dezessete anos do término da série original, Neil Gaiman volta para o personagem que o consagrou, afinal todos temos que pagar as contas, certo? Posso estar sendo ingênuo, mas não acho que seja o caso desta minissérie em 6 partes, que conta uma história do Mestre dos Sonhos ocorrida antes dos eventos mostrados em Sandman # 1, de1989. Por que acho isso? Simples. Dinheiro não deve ser problema para o escritor britânico. Sucesso editorial, é como se quase tudo que ele escrevesse já estivesse destinado a se tornar um novo filme ou série de TV. Sem falar na bolada que ele deve ter recebido da Marvel com a venda da personagem Angela, que ele conseguiu recuperar das garras de Todd McFarlane, após uma batalha judicial que se arrastou por séculos. Além disso, a aventura narrada nesta prequel já era pedra cantada há muito tempo, desde o lançamento de Sandman #1, em que Morpheus havia sido capturado após uma longa e debilitante jornada, aventura finalmente contada neste Overture. Enfim, Gaiman não precisaria voltar para o personagem se não quisesse, já que largou o dito cujo nos píncaros da glória. Um retorno extemporâneo, portanto, poderia deixar uma marca indesejada na carreira do escritor, que não tinha razão para retornar, a não ser que tivesse algo a contar. Dito e feito. E Gaiman não voltou de qualquer jeito. Trouxe consigo um ilustrador de mão cheia, o venerado J.H. Williams III, que já tinha botado pra quebrar em séries como Promethea e Seven Soldiers of Victory. Bem, o que dizer do gibi em si? Magia, pura magia. Sabe aquela sensação de voltar aos momentos mais preciosos da infância? É mais ou menos por aí. Ler Sandman Overture é como se pudéssemos, com a cabeça de hoje, voltar pro segundo grau e rever velhos amigos e conhecidos. É como comer o manjar dos deuses e suspirar fundo por saber que, a cada colherada, estamos chegando mais próximos de seu final. 

Amarrando algumas pontas soltas da série original e fazendo revelações surpreendentes, Gaiman conseguiu manter o padrão esperado para um título de prestígio mundial. E J.H. Williams III, que não é bobo nem nada, aproveitou para caprichar ainda mais na arte. Afinal, ao ser escalado para participar de projeto de tal envergadura, não podia fazer diferente. Habilidoso e inventivo como poucos, Williams torna-se, definitivamente, uma lenda viva das HQs. E aqui fica a resposta para a pergunta de como teria sido a série original se tivéssemos tido maior regularidade na qualidade dos artistas. Ainda mais genial. (MMA)

9 - FACE OCULTA.  VOLUME 1 – Gianfranco Manfredi e vários (Sergio Bonelli/Panini, 2016): Mais um quadrinho italiano no meu Top Ten. Puts, tenho que conhecer mais títulos da Sergio Bonelli. Ainda falta descobrir muita coisa e fico só salivando em pensar quando poderei realmente entrar de cabeça na grande variedade de opções publicadas pela editora. Para facilitar minha vida, alguns dos gibis vêm sendo publicados no Brasil com certa regularidade pela Mythos Editora. E as opções não param de crescer com a decisão da Panini de também lançar material italiano no Brasil. E o escolhido desta vez foi Face Oculta, de Gianfranco Manfredi, argumentista de Mágico Vento. Na verdade, Face Oculta já havia tido 2 edições lançadas no Brasil no final de 2012, mas a minissérie, de 14 números, havia sido interrompida. Em 2016 foi publicado um volume de 380 páginas, contendo as quatro primeiras histórias. Oremos para que, desta vez, o gibi seja publicado na íntegra. Como de costume, os fumettis da Bonelli primam pela profundidade da pesquisa histórica e aqui não é diferente. O enredo tem como contexto a colonização italiana na Etiópia e mistura fatos reais e fictícios para narrar acontecimentos envolvendo Ugo Pastore, filho de um representante comercial com interesses no continente africano. Questionador e inconformista, o jovem acaba indo parar na parte mais barra pesada da capital etíope, ocasião em que esbarra com uma espécie de libertador/messias do povo etíope, o tal Face Oculta do título.

As reais motivações e identidade deste último, entretanto, permanecerão um mistério. As repercussões deste encontro farão com que Pastore busque respostas em diferentes partes da Etiópia e da Itália do século XIX. (MMA)

10 - DREADSTAR: ODISSEIA DA METAMORFOSE – Jim Starlin (Devir, 2016): Dreadstar sempre foi um de meus personagens favoritos. Fui fisgado já na época da finada Epic Marvel, lançada no Brasil em 1985. Já sabia que Jim Starlin era o pica das galáxias quando o assunto eram sagas cósmicas, como ficou claro durante sua passagem por títulos como Capitão Marvel e Warlock. A diferença em Dreadstar, entretanto, era que o universo em que se passavam as aventuras foi todo criado por Starlin. Assim, ele podia fazer o que quisesse com todos seus brinquedinhos. Podia pirar geral sem ter de se submeter aos ditames de editores malas e do famigerado Comics Code. Lembrando aqui que a linha Epic Comics da Marvel – selo do qual o gibi do Dreadstar fazia parte - estava fora do alcance dos censores. Além disso, os direitos do personagem lhe pertenciam e se ele quisesse levar tudo para outra editora, como fez alguns anos mais tarde, não teria que dar satisfações para ninguém. Por todas estas razões, talvez tenhamos encontrado Starlin em seu auge. Livre das limitações da maioria dos criadores da época e com bagagem suficiente para criar seu universo independente, ele se sentiu livre para botar pra quebrar. E foi o que ele fez. Ciente de sua habilidade para construir belas epopeias espaciais, ele parece ter reservado o filé para a saga de Vanth Dreadstar. Até encerrar sua participação no gibi, após 40 números da série mensal e de algumas edições especiais, Starlin deixou um rico legado para os fãs do gênero que, na minha modesta opinião, não foi superado por nenhum outro escritor de quadrinhos. Mas bem, toda saga tem um começo e a gênese de Dreadstar está aqui, neste maravilhoso Odisséia da Metamorfose, que coleciona as primeiras aventuras do guerreiro das estrelas, publicadas originalmente em Epic Illustrated, revista de antologias da Marvel. Ouso dizer que neste gibi a arte de Starlin atingiu seu zênite. Buscando ultrapassar seus limites como desenhista, ele passou a fazer trabalhos coloridos sobre a arte em traço. E o resultado ficou lindo de doer. Em Odisseia da Metamorfose, Dreadstar é recrutado para lutar em um conflito espacial diante do qual não é possível permanecer indiferente. Starlin, veterano da guerra do Vietnã, utilizou o gibi para exorcizar seus demônios pessoais e retratar os horrores com os quais se deparou, sem medo de criticar as táticas militares norte-americanas. Numa guerra em que foi comum destruir vilas inteiras – como ocorreu no país asiático – sob a justificativa de que era a melhor forma de protegê-las do inimigo, Starlin pergunta o que poderia acontecer se a vila em questão fosse a própria galáxia. (MMA)