Hubert: entre a arte e o silêncio + entrevista com o autor Ben Gijsemans

Hubert: entre a arte e o silêncio + entrevista com o autor Ben Gijsemans

Hubert passa o seu tempo livre visitando museus - mas quando eu digo visitando, eu quero dizer visitar várias e várias vezes. A calma com a qual admira as telas é transportada para o quadrinho com a sutileza dos movimentos dos quadros. As passagens de quadros de maneira lenta, que lembra o rolo de um filme, também fica presente em outras cenas quando ele tem que interagir com alguém ou com o que tem em sua volta. Essa, talvez, seja a parte mais marcante da HQ de Ben Gijseman: o movimento lento e artístico em que ele apresenta a obra ou o cotidiano admirado por Hubert.

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Um encontro com Silêncio

por Márcio Jr.

Silêncio me agarrou pela alma. Garimpava patologicamente um desses sebos da vida quando me deparei com aquela capa maravilhosamente simples, o personagem com seus olhos de serpente a fitar longe o horizonte, ignorando completamente minha presença.

Passei a mão no livro – uma edição portuguesa da Livraria Bertrand, 1983, 164 páginas – e me surpreendi com a uso das massas de preto, a fluidez do traço, a composição das páginas. O preço convidativo selou a sina do meu primeiro contato com a obra de Didier Comès.

A ignorância é mesmo uma benção. A esta altura do campeonato, me surpreender com um autor desconhecido é um prazer cada vez mais raro. Quanto mais um colosso das dimensões do belga Dieter Hermann Comès, nascido em 1942 em Sourbrodt, aldeia cindida em uma parte francófona e outra alemã. Tal e qual seus pais.

A mãe falava francês, o pai, alemão. No colégio, tendo em vista uma maior “integração” com os colegas, os irmãos maristas afrancesaram-lhe o próprio nome – à sua revelia, claro. Dieter vira Didier. “Um bastardo de duas culturas”, Comès se autoproclamaria anos mais tarde.

Não param por aí. Ao se revelar canhoto, obrigam-no a escrever com a mão direita. E assim segue a vida: destro na escrita e criador de infinitas constelações imagéticas por intermédio de sua mão esquerda. Tais opressões, assim como a infância rural e supersticiosa, serão a matéria-prima de seus quadrinhos – que têm em Silêncio o mais reconhecido e festejado exemplo.

Comès

Publicado em capítulos em 1979 na prestigiosa revista (À Suivre), e compilada em álbum no ano seguinte, Silêncio é a história de Silêncio, jovem mudo e com deficiência intelectual, morador de Belossonho, um vilarejo das Ardenas. A página de abertura, sem diálogos, é precisa na apresentação do personagem: a caminho de casa, Silêncio se depara com uma serpente. Incapaz de compreender o perigo representado pelo animal peçonhento, logo o toma nos braços, sem sofrer dano algum.

Alheio às ameaças da natureza, Silêncio é ainda mais alheio às ameaças dos homens. Em Belossonho, é vergonhosamente explorado por Abel Mauvy, poderoso fazendeiro da região. Longe de entender as relações de poder e ódio existentes no vilarejo, Silêncio percorre seu caminho, leve como uma pluma. Seu sonho? Conhecer o mar. Silêncio é puro em sua simplicidade, e é dessa pureza que trata a HQ de Comès. Ou melhor: Pode a pureza resistir à violência e corrupção do mundo?

Belossonho é um lugar de segredos guardados a sete chaves. Um microcosmo onde os aspectos mais vis do ser humano estão presentes, arraigados. Aos poucos, os mistérios vão se desvelando e a triste e violenta origem cigana de Silêncio vêm à tona – um passado do qual ele só tomará conhecimento após o contato com a Feiticeira, outra pária do vilarejo, cujos olhos foram carbonizados a ferro quente.

Anões de circo, bruxos, sortilégios e mediunidade tomam a narrativa, dando-lhe ares de realismo mágico. Didier Comès afirma que são rescaldos das superstições da infância. Difícil não pensar em Palomar. Tampouco me surpreenderia ver Silêncio na biblioteca de um jovem Gilbert Hernandez.

É no movimento pendular entre o fantástico e os marginalizados que se erige a obra de Comès – a feitiçaria como defesa última (e única) dos pobres e oprimidos. Em um dado momento, Silêncio é incriminado e preso, sem sequer saber os motivos. Nas paredes da cadeia, a inscrição “É preciso saber ouvir e compreender para ser polícia”.  Com cólera e cinismo, o autor esfrega em nossas caras o desvario do mundo.

A evolução estilística de Didier Comès ao longo do álbum é inconteste e saborosíssima de se acompanhar. Seu desenho está em algum lugar entre Hugo Pratt – de quem foi considerado “herdeiro espiritual” por L’Ombre du Curbeau – e José Muñoz. Mas estas são apenas referências para aqueles que não conhecem o traço do artista. A sinuosidade da linha contínua, a representação da figura humana e o modo como aplica sombras nos painéis são únicos e inconfundíveis. Quando a neve cai, Comès desenha cada floco, num resultado gráfico belíssimo. E a página final de Silêncio, muda como a inicial, é pura poesia.

Em 1980, Silêncio conquistou o prêmio Yellow Kid, em Lucca, Itália. No ano seguinte, foi a vez do Alfred de melhor álbum no Festival de Angoulême. Além dos prêmios, a obra consagrou definitivamente o talento de Didier Comès e permanece seu trabalho mais popular, mesmo após sua morte em 07 de março de 2013, vítima de pneumonia.

Como diria o escritor, cantor e compositor francês Henri Gougaud no tocante prefácio ao livro: “Silêncio não precisa de ter fé, nem de aprofundar questões metafísicas. Ele sabe. Não é ele que é ignorante e louco, é o mundo que não se rende à evidência do seu saber, da sua luz.”A mim, resta prosseguir na busca de outros silêncios. Que sejam tão eloquentes quanto o de Didier Comès.

HQ em um quadro: sudeste da Ásia na BD clássica, por Peyo e Delporte

Benoît Brisefer chega em Khben-Nogbang (Peyo, Yvan Delporte, 1968): bem na época em que houve a polêmica a respeito do brasileiro executado na Indonésia, eu estava lendo esta história do personagem Benoît Brisefer, clássico belga criado por Peyo (de "Schtroumps" e "Johann e Pirluit"). Aqui, o simpático mini-herói (edição: "Os doze trabalhos de Benoît Brisefer") precisa recuperar nove pedaços de papel dos títulos de um terreno com petróleo que estão espalhados pelo mundo. Isso o leva até um "certo país no sudeste asiático", descrito no letreiro do quadro aqui destacado desta maneira: "Khben Nogbang, cidadezinha do Sudeste da Ásia, mistura o charme pitoresco do extremo oriente aos benefícios da civilização ocidental...". Ao olharmos para o quadro, vemos não apenas a cidade viva, magnificamente representada no traço gros nez de Peyo, como também as propagandas de Coca-Cola ironicamente emplacadas acima das lojinhas orientais. Ora, longe de querer fazer qualquer análise pseudossociológica que compare a situação sociocultural do sudeste da Ásia com a história da BD francobelga, eu gostaria apenas de apontar algumas curiosidades ao redor deste requadro.

Fuzilamento no sudeste da Ásia... Peyo já foi chamado de racista e comunista, e creio que neste caso sua intenção era fazer uma discreta denúncia dos "males do capitalismo" chegando de maneira ambígua a "tão bárbaro país". O imaginário sobre a Ásia, e especialmente do sudeste asiático (guerra do Vietnã pegando fogo) no meio dos anos 60 dificilmente seria outro: não apenas Peyo e Delporte não nomeiam o país, tratando-o como alguma substância genérica, como logo à frente o pequeno herói se envolve rapidamente em uma trama militar, mostrando os soldados (amarelos) do sudeste da Ásia prestes a fuzilar (por engano, lógico) um "honesto" arqueólogo europeu. Logo emerge, obviamente, o imaginário do colonialismo "cientificista" belga (e francês), e em plena era das descolonizações. Logicamente, os militares de tal país são mostrados como vilões atrapalhados, que caem na astúcia de Benoìt, mas ao mesmo tempo choca a imposição de suas leis brutais, de suas sanções severas, ditatoriais. Se pensarmos hoje na Coreia do Norte, ou neste caso de execução na Indonésia, etc, de que lado estariam efetivamente Peyo e Delporte? Na denúncia da "praga capitalista" ou no estereótipo racista que constroem a respeito das culturas que eles, de maneira tão colonialmente paternal, querem "proteger"?

A China de Hergé

A resposta reside, obviamente, na ambiguidade. Se hoje estas questões são plurais e apontam para vários lados, imagine nos anos 60, quando um imaginário de identidades sólidas e iluministas ainda vigorava com força em países como a França e a Bélgica. Isso tudo poderia levar a mais um debate inútil sobre Charlie Hedbo, mas eu prefiro olhar ainda mais para o passado e pensar a HQ de Tintim O lótus azul, de Hergé (1936). Muito criticado pelo viés racista e canhestro de seu Tintim no Congo, Hergé, afetado por uma crise identitária, resolve, na época, fazer da investida do personagem na China uma verdadeira experiência etnográfica e transcultural, consultado um amigo chinês a respeito dos costumes e de maneira de ser dos chineses, à época em um impasse político graças ao imperialismo japonês, retratado na história. O detalhismo cultural perseguido por Hergé aqui é fotográfico: das casas de ópio às cidades, à natureza e aos veículos, a China era processada e representada com respeito, numa trama também militar, mas menos esquemática do que na HQ de Peyo. Há inclusive uma página inteira de desambiguação dos estereótipos chineses, e Tintim e o chinês Tchang desenvolvem terna amizade.

O que quero chamar a atenção é que esta esquizofrenia representacional e de posicionamento político que apontamos em Peyo e Delporte (é sempre um "alvo fácil" mirar uma obra de outro contexto histórico e cultural) também existe no mestre "intocável" Hergé. Qual Hergé preferimos ler: o racista do Congo ou o humanista da China? Seria fácil defender um ou outro dependendo dos propósitos e intenções ideologizantes que construímos a priori. Não se enganem: Os doze trabalhos de Benoît Brisefer é uma ótima história em quadrinhos: é dinâmica, ilustrada e narrada com a excelência da BD clássica, e um lindo inventário sobre o envelhecimento e a maturidade. O personagem é até mais cativante do que a contrapartida mais famosa das criações de Peyo (Schtroumps), além de dar um tabefe irônico na cultura de super-heróis. Até ganhou um filme recentemente. Talvez bons produtos culturais possam (e até devam) ser ambíguos, facilitando o destrinchar da complexidade que envolve nosso posicionamento ético e político nos dias de hoje.

Por fim, escrevi tudo isso para me ajudar a pensar também a capa da última revista Fluide Glacial, que, num movimento (talvez honesto) anti-Tintim (reparem que o desenho faz referência ao quadro de O lótus azul), retrata um "francês típico" carregando um chinês rico (com um loira) em uma Paris completamente dominada pela cultura chinesa, com a seguinte chamada: "Perigo amarelo! E se já for tarde demais?" A capa da tradicionalíssima revista de humor francesa (ops...) já provocou stress diplomático com a China. Enfim, novos tempos, mas a polêmica histórica continua... (CIM)  

Chninkel: o grande poder da obra-prima

por Ciro I. Marcondes

Um Chninkel

Às vezes no deparamos com uma obra-prima assim de supetão, sem qualquer previsão, buscando apenas uma leitura descompromissada. Não que eu não esperasse nada ao abrir O grande poder de Chninkel (Le grand pouvoir de Chninkel), obra em quadrinhos que impressiona já numa breve folheada, graças ao vigor e à robustez dos desenhos barbáricos do grande ilustrador polonês Grzegorz Rosinski. Conhecendo também o trabalho do clássico roteirista belga Jean Van Hamme – que, entre outras coisas, trouxe ao mundo a série de fantasia Thorgal, a detetivesca XIII e as aventuras do bilhardário Largo Winch –, era de se esperar algo refinado, num primeiro escalão de BDs estilo Métal Hurlant, cheio de aventuras prodigiosas e cenários hiperimaginativos. Porém, vale frisar, eu não esperava uma obra-prima.

Mas o que qualifica esta BD como obra-prima? Chninkel foi publicado em 1986 na revista belga (A Suivre), editorada pela Casterman, e, em alguns aspectos, é a típica HQ francobelga dos anos 1980: passa-se em um mundo de fantasia cheio de raças exóticas, guerras intermináveis e déspotas execráveis; além disso, é imersa em um quase interminável ciclo de aventuras e peripécias, num modelo epopeico, que carregam o leitor rumo a uma clássica jornada heroica; por fim, doses generosas de violência e erotismo confirmam a tendência desta HQ em capturar os aspectos mais gerais que definiram esta época como uma das mais vertiginosas da BD.

A exuberante arte de Rosinski

Para além dos clichês já representados no próprio background da história, Chninkel se destaca por ser um tipo de parábola religiosa que é, ao mesmo tempo, uma paródia e uma crítica ao universo do evangelismo. Sua história é a de Daar, um mundo em constante guerra, dominado por três imortais e seus povos, que subjugam e escravizam tantos outros: Zembria, a ciclope, que rege um grupo de ferozes amazonas; Barr-Find, o mão-negra, líder de um grupo barbárico de humanos; e Jargoth, o perfumado, que lidera uma raça de elfos que voam em orquídeas carnívoras. No meio de eterna guerra entre os três imortais, uma raça de escravos chamada Chninkel (uma espécie de ratinho antropomorfo) luta por sua própria sobrevivência. As sete páginas iniciais, que mostram o contexto e os atos sanguinolentos de batalha, são particularmente primorosas – apocalípticas, exuberantes, desoladoras.

Um dos chninkels, J’On, sobrevive a uma batalha avassaladora, e, ao ver-se só em meio a uma multidão de cadáveres, presencia a aparição de um monólito negro (tal qual em 2001) que se apresenta como o Grande U’N, mestre criador de mundos. A figura divinal explica-lhe então a sua insatisfação com o mundo em guerra e confere uma missão ao pobre Chninkel: no curso de cinco cruzamentos de sóis (o “ano” no mundo de Daar) ele deve conseguir acabar com todas as guerras em seu mundo. J’On, percebendo sua pequenez diante de tamanha responsabilidade, questiona o criador de mundos sobre porquê ele ser o escolhido, no que a figura divinal responde: “Eu sou encarregado por uma infinidade de outros mundos e de milhares de milhares de seres que criei. Você pensa que eu tenho tempo de procurar qualquer outro neste mundo aqui? Será, portanto, você, J’On, o escolhido”.

Enquanto U’N parece uma figura divinal tirânica, amarga e opressora tal qual Jeová no Velho Testamento, J’On vai se transformando, pouco a pouco, de uma figura à Moisés (afinal, ele tem de livrar seu povo da escravidão e ouve diretamente um chamado de seu Deus) em uma à Jesus Cristo. Logo percebemos que O grande poder de Chninkel tem uma clara intenção de produzir uma reflexão sobre a ética da Bíblia como um todo. Se, em algum momento, pensamos que há nesta HQ certo proselitismo cristão, percebemos, ao final da leitura, que seu verdadeiro sentido reside em ironizar o monoteísmo como um todo, colocando todas as complexas linhas narrativas e desdobramentos da trama à mercê de um ato egoico, paranoico e vingativo concentrado nas mãos de uma imagem onipotente.

"Doses generosas de violência... e erotismo"

Excelente design de criaturas

J’On, assim, vai viver uma série de peripécias que deflagram sentido claramente mitológico, concentradas em cenas e atos que se configuram como parábolas, e onde rapidamente percebemos figuras e atos presentes nas próprias fileiras dos evangelhos, como Maria Madalena, Judas, os evangelistas, a travessia do deserto, etc. Estas peripécias são narradas com tal desenvoltura, envolvendo-nos em meio a raças particulares, cenários exóticos e coadjuvantes carismáticos, que a linhagem bíblica que parece a todo tempo nortear a história não impede que nos surpreendamos a cada instante. Cada solução pensada por Van Hamme para as armadilhas que a jornada reserva são carregadas de soluções criativas, saídas inesperadas, pequenos milagres que, no contexto da história, não parecem forçados. Cada sincronismo presente na narrativa lembra mais, efetivamente, um evento mitológico do que um deux ex machina, ainda que este recurso seja utilizado no final, mas mergulhado em franca ironia.

Excelente design de máquinas

A arte de Rosinski ajuda tudo a se tornar mais épico, com o amplo uso de splash-pages, megarrequadros e lettering expressivo. Além disso há um aproveitamento do preto-e-branco robusto e sensual, com detalhamento minucioso nas expressões dos personagens e excelente design de criaturas, máquinas e cenários. Seus quadros contêm intensa movimentação, praticamente sem linhas de ação, fazendo-nos supor este movimento, tal qual um Delacroix, a partir de uma cinética inerente à expressão do desenho. Em cada mínimo detalhe, um primor.

Chninkel por vezes é tão intenso em seus movimentos que parece que estamos vendo uma animação, ao invés de lendo uma HQ.

Parábola sobre o poder

Por fim, como se tudo isso não fosse suficiente para caracterizar

O grande poder de Chninkel como uma obra-prima dos quadrinhos, falta falar sobre o próprio poder em si, o que talvez seja a elaboração mais sutil, e ao mesmo tempo a mais importante da HQ. Vamos lembrar, em primeiro lugar, que J’On não sabe exatamente qual a natureza de seu poder “milagroso”, e a todo instante ele questiona se sua “visão” do U’N não foi um sonho ou uma alucinação. Sem qualquer poder que lhe esteja disponível, cabe a ele o tempo inteiro exercer seu poder de dúvida, um pouco como Jesus em A última tentação de Cristo, e se deixar levar pela missão como que por intuição. Assim, o pobre Chninkel é também uma espécie de Forrest Gump, e as coisas vão se sucedendo como que se fossem ao mesmo tempo milagres e coincidências. Esta perspectiva abre um olhar muito interessante sobre a natureza, digamos, gnóstica do mundo, onde existe uma dupla face de acontecimentos, uma na esfera do divino e do sobrenatural, e outra nas leis da física e da materialidade. Os acontecimentos, de qualquer forma, são os mesmos, e o leitor deve escolher qual a percepção que melhor lhe sensibiliza, duvidando junto com o Chninkel e tendo de oscilar entre interpretar a história como uma fábula paródica (no caso do poder ser falso) ou como uma fábula holística (no caso dele ser real). Vivenciar estes acontecimentos, no fim das contas, seja qual fora a sua natureza, é o que parece contar.

A própria natureza do poder em si, bastante tolkeniana (que, por sua vez, é também cristã), é problematizada a partir do momento em que percebemos que J’On não ostenta um poder bélico, ou mesmo sobrenatural, mas sim demarca sua posição política com ideias e uma intervenção não-violenta, tal qual Ghandi, através do diálogo e do poder de arrebanhar seguidores. O poder de O grande poder de Chninkel é, portanto, um poder moral, um poder invisível, presente em qualquer um, e não apenas em um escolhido por Deus. Esta mensagem, a de que as forças motivadoras que transformam a humanidade estão nos indivíduos, ecoa mais em um existencialismo sartreano do que propriamente na doutrina Cristã. A ironia é que, para ser impulsionado a, sozinho, libertar seu povo, J’On precisa ter uma alucinação religiosa. A religião é colocada como uma falsa força-motriz, um poder motivador capaz de mover montanhas não por sua natureza sobrenatural, mas sim por sua força de congregação social, tal qual pensava, por exemplo, Durkheim. Fica a impressão de que J’On poderia realizar toda a sua façanha sem qualquer visão ou “missão” divina, apenas acreditando em sua força individual. Porém, resta também a questão dialética que diz que ele também não poderia fazê-lo, afinal, a religião seria a única motivação capaz de movimentar esforço tão descomunal. Impasses de um texto ambíguo.

A despeito do final sinistro e assombroso, mais afeito a um niilismo hipercínico, parodiando o apocalipse bíblico, todo o caráter épico de O grande poder de Chninkel, associado às suas várias matrizes de interpretação e à sua arte de primeira grandeza, nos levam a pensá-lo como uma das obras definitivas da BD. Obviamente é difícil pensar em uma obra de ficção nas histórias em quadrinhos atuais que levante tantas questões, e ao mesmo tempo com tanta estranheza e tanto impacto estético. Certamente traduzi-lo para o português deveria ser uma prioridade e uma urgência.

Cosmosmurf e o inconsciente coletivo

por Ciro I. Marcondes

Uma coisa que diferencia essencialmente uma HQ como Schtroumpfs (Smurfs) de outra como Tintim é aquela velha oposição mythos x logos, que já vemos nos filósofos pré-socráticos, e que, em meio a um embate dentre duas das mais celebradas obras de nossa cultura pop, se torna um alegre festejar de dois olhares distintos que a humanidade pode lançar sobre seus próprios desígnios.

Explico-me: se a característica principal, fundadora, de Tintim é a sua racionalidade e sua argúcia, tornando-a uma HQ cerebral (conforme traduzimos do poder dedutivo e da verossimilhança das histórias de seu protagonista), em Schtroumpfs temos de tudo o contrário: conforme sempre nos lembramos nas piadinhas sobre estes personagens (“duendes azuis que vivem dentro de cogumelos. O que o autor disso anda fumando?”), os Schtroumpfs são basicamente calcados no poder imaginativo. Suas narrativas não possuem argúcia, dedutibilidade ou lógica. Temos de acreditar naquele universo inverossímil, mergulhar nele, confiar em sua capacidade de traduzir, alegoricamente, algo sobre nosso mundo.

O foguete de Tintim: racional projeto de propulsão

A síntese máxima desta oposição está na história do Cosmoschtroumpf em relação aos dois álbuns de Tintim em que ele prepara uma viagem, e depois viaja, à Lua. Se, no caso de Tintim, temos um roteiro cheio de conspirações, com detalhado e racional projeto de propulsão à Lua (sendo o primeiro álbum inteiro apenas um preâmbulo que prepara a organização científica da viagem), numa história cheia de jogos de interesses e planos complexos de sabotagem (foi escrita nos anos 50), no caso do Schtroumpfs, a aventura escrita e desenhada por Peyo possui tom completamente diferente. Em primeiro lugar, a temática do sonho já chama a atenção: Cosmoschtroumpf (seria como um Cosmosmurf) passa dias e noites pensando em como ver as estrelas, viajar pelo cosmos, conhecer outros mundos. Sua ambição (e obsessão) é tamanha que ele constrói um simpaticíssimo módulo lunar que funciona com propulsão à base de pedaladas, e reúne toda a vila dos Schtroumpfs para testemunhar seu feito. O problema é que, com alguma lógica, as pedaladas do Cosmoschtroumpf não são suficientes para fazer a genringonça levitar, deixando o pequeno astronauta (ou cosmonauta, conforme Peyo, que me parece que fosse comuna, preferiu chamar sua criação – à maneira russa) desolado.

A história, que já parecia mirabolante o suficiente, ganha um inacreditável plot twist quando o Grande Schtroumpf (“Papai Smurf”) resolve armar um plano – em tudo fantasioso – para agradar o pobre Cosmoschtroumpf. Dopado (como não deveria deixar de ser em uma aventura dos Schtroumpfs), ele é carregado, assim como todo o seu módulo lunar (desmontado), junto com toda a vila dos Schtroumpfs, para a superfície de um longínquo vulcão inativo. Lá, o módulo é reconstruído pelos outros (reclamões) Schtroumpfs, que, ao mesmo tempo, tomam uma poção (talvez um psilocybe cubensis), feita pelo Grande Schtroumpf, que os faz parecer alienígenas. Por alienígenas, é claro, entendam: eles ficam cabeludos, com uma cor caramelada, uma tanguinha de feno, e mullets! Em meio a uma paisagem exótica e “lunar”, o Cosmoschtroumpf acorda achando que atravessou o cosmos, travando contato com seus mesmos amigos, porém disfarçados como seres lunares.

Os Schlips: selvagens! E de mullets!

Não é preciso evidenciar muito o culto à farsa (ou seria melhor dizer: ficção) que esta história carrega. Já dentro de um universo completamente alucinado (a vila dos Schtroumpfs) temos a invenção de um outro mundo alucinado: o “planeta” dos Schlips, que é como os Schtroumpfs transformados se autodenominam. Os Schlips acabam se mostrando uma cultura um tanto tribal, um tanto primitiva, dando vazão à ideia fantasiosa de que, de alguma forma, se encontrássemos uma sociedade na Lua, ela seria semelhante aos nossos povos selvagens. Esta ideia, Peyo certamente a retirou do filme Viagem à Lua, do mago pioneiro do cinema Géorges Méliès, um dos filmes mais famosos de todos os tempos. Rodado em 1902 e inspirado em Júlio Verne e H.G. Wells, este brilhante filme de ficção científica (especialmente no que tange à comercialização do cinema, e ao mesmo tempo à evolução de sua narrativa) coloca o colonialismo do séc. 19 em pauta ao tratar os astronautas como uma mistura de astrólogos, astrônomos e exploradores britânicos, e os selenitas como mimetizações de tribos africanas.

Ao associar a ideia de progresso científico (viajar à Lua!) ao pensamento mágico (tipo de cultura mitológica), Méliès acaba completando um círculo incomum, desenvolvendo subliminarmente a noção de que, no fundo de qualquer progresso científico há a fantasia. No fundo de qualquer pensamento racional, de alguma forma, resta ainda o pensamento mítico. (veja o filme com trilha sonora do Air).

De alguma forma, portanto, o pensamento mágico de Peyo desconfia da nossa aterrisagem na Lua (realizada um ano antes da publicação da HQ), já que, da mesma maneira que o Cosmoschtroumpf é ludibriado pelos seus conterrâneos, nós poderíamos ter sido ludibriados pelo mesmo processo, só que com uma diferença: assistimos à aterrisagem na Lua pela televisão, que é o grande meio de comunicação do séc. 20. No mundo real, a fantasia proposta por Peyo (usando não apenas a imaginação, mas também sedativos e drogas) é substituída pela mídia, o conversor universal da fantasia por excelência. Que o homem tenha aterrisado na Lua ou não, isso não vem ao caso (apesar de evidentemente tê-lo feito). O que importa é lermos em Peyo a conversão de um pensamento mágico num pensamento midiático, relacionando inteligentemente as diferenças entre os mundos mitológicos dos povos antigos e os mundos “mitológicos” criados por um mundo midiático e atual, do qual as histórias em quadrinhos fazem parte.

Assim, sobra desta reflexão a noção de como Peyo representa um contingente dos quadrinhos franco-belgas (BD), chamado gros nez (nariz gordo), alinhado ao mundo da deformação, do grotesco e da alucinação (Schtroumpfs que o digam), enquanto Hergé e seu Tintim, fundador da chamada linha clara, se desloca para o universo do logos, das aventuras bem-engendradas e racionais, fincadas no chão, servas da verossimilhança. De um jeito ou de outro, seja na antiguidade ou seja no mundo pós-midiático de hoje, esta dupla de HQs se revelam arquétipos fortes, condensados, importantes para percebermos o local das histórias em quadrinhos no nosso inconsciente coletivo. 

O obscuro, sempre

 


por Ciro I. Marcondes

I just don’t see why I should even care
It’s not dark yet, but it’s getting there

            - Bob Dylan, “Not dark yet”.

É muito comum que grandes artistas ou pensadores, no final de suas vidas e carreiras, venham a olhar para um certo lado obscuro da existência. Atenhamo-nos ao básico: a faceta niilista e caótica das últimas tragédias de Shakespeare; a abissal missa de Réquiem de Mozart, composto para seu próprio enterro; o pessimismo derrotista nos últimos quatro álbuns de Bob Dylan; e até mesmo Freud demonstrou-se profundamente desiludido com a humanidade em seus últimos textos. Se conseguirmos aceitar isso como algum tipo de padrão – há que se considerar sempre as exceções. A nona de Beethoven, por exemplo, é um canto de cisne carregado de paixão e alegria – acho que ele se conforma com a resposta aparentemente mais óbvia, mas que só acreditamos quando acontece conosco: o envelhecimento é um processo muito difícil, de flagrante padecimento do corpo (e, portanto, de proximidade com a morte), e com ele confluem o acúmulo de frustrações e fracassos, de questões não-resolvidas, de inscrições cicatrizantes que vamos carregando na alma. Além disso, é evidente que o mundo não está ficando muito melhor, e daí é possível que estes artistas busquem uma última lufada de ar, carregada de pestilência fúnebre, que finalize com maturidade e severidade o próprio processo vital e artístico de cada um.

No caso que eu quero analisar aqui, é muito curioso o fato de se tratar de André Franquin, não apenas um mestre dos quadrinhos, mas também um mestre do humor nos quadrinhos. E o humor ganha particularidades insubstituíveis quando embebido de um tanto de... obscuridade. E Franquin acabou revelando-se um mestre também naquilo a que chamamos “humor negro”. Porém, antes de passar de vez a esta análise de seu humor, eu gostaria de pedir licença e analisar seu terror, a partir do mesmo sentido com que Francisco de Goya, o grande pintor do romantismo, instilou terror em sua fase terminal, já doente (circa 1820), surdo e quase cego, pintando as paredes de sua casa com cenas sombrias de rituais macabros, deuses pagãos e pessoas desfiguradas.

Esta brilhante fase de Goya, não planejada para ser exposta publicamente, acabou se tornando referência imediata aos movimentos modernos na pintura, como o expressionismo e o surrealismo, buscando revelar estados da alma a partir da figuração do monstro. Tornou-se famosa uma frase do pintor: “o sono da razão produz monstros”. É curioso pensar que Franquin, já nos anos 1970 e contando 47 anos (chegando ao auge da maturidade, portanto), dedicou boa parte de suas Ideias obscuras (Idées noires, publicadas ao longo de um par de anos na revista Fluide Glacial) a um imaginário surrealista, quase, quase sempre vinculado a ideias políticas ou éticas. Mas não há como negar que às vezes eram imagens puramente... monstruosas. Neste caso, basta citar uma história de uma página das Idées noires: dois homens passeiam por um trecho da cidade que mais se assemelha a um parque industrial, com viadutos, prédios em construção, gruas, plataformas. Um deles se queixa de que ali, antigamente, havia um bonito mercado, e que esse novo cenário destruiu o que havia de interessante na cidade. O outro, mais cético, fiz que ele está apenas cheio de nostalgias, e que o progresso é interessante, etc. A conversa avança até que o cético diz que ele está precisando mesmo é de um copo de vinho e uma boa noite de sonhos. Sem qualquer artifício para se fazer a passagem (letreiros, diálogos, mudança na moldura do quadro, etc.), Franquin então abre um gigantesco quadro panorâmico, fascinante, em que aquelas gruas, viadutos e plataformas erguem-se do chão, na forma de monstros, e começam a caminhar sobre a terra, povoando o sonho do coitado com um recalque indesejável.


Este imaginário onírico e certamente perturbado, que se assemelha ao de Goya justamente por não apenas dar vida, mas também por cultivar a vida dos monstros internos, é o que faz de Idées noires a obra-prima de Franquin. Uma obra-prima marcada por um tom macabro, impiedoso, quase irrefutável. E não estamos falando de qualquer autor, e sim daquele que escreveu a fase mais famosa de Spirou e criou Gaston Lagaffe (estátua dele aqui), símbolo dos quadrinhos na Bélgica.
Goya

Franquin
O pessimismo é um humanismo

Lagaffe
Se Spirou e Fantasio de Franquin é uma HQ mais infanto-juvenil mesmo, cheia de aventuras loucas e diálogos espertos, em Gaston Lagaffe já podemos reconhecer um pouco das ideias de Idées noires, porque já trazem um pouco do sabor do humor negro. Nas histórias do picareta Lagaffe, a estrutura mesma das páginas já se assemelha à das ideias obscuras: meia, uma ou no máximo duas páginas resumem tudo que precisa ser expressado, terminando geralmente numa explosão, em algum ato cômico de violência ou humilhação, e quase sempre num grande e expressivo quadro panorâmico. Da mesma forma, é em Gaston Lagaffe que Franquin vai criar a fórmula de inventar um ditado antecedendo cada história, geralmente no padrão “não se deve confundir essa coisa com essa outra coisa”, muitas vezes num trocadilho intraduzível do francês para o português (falando nisso: alô editoras – publiquem Idées noires no Brasil urgentemente!). Exemplo: “Il ne faut pas confondre pâle capitaine et peine capitale” (“Não se deve confundir ‘pálido capitão’ com ‘pena capital’”).

Mas o que é realmente fascinante em Idées noires é sua mistura curiosa de pessimismo e humanismo, numa concentração que nunca vi em nenhuma outra obra artística, o que (minha opinião) torna essa HQs quase crepuscular de Franquin tão interessante e ousada quanto as obras-primas citadas no primeiro parágrafo. Franquin era famoso por seu ativismo green e por sua defesa às causas dos direitos humanos, mas em Idées noires estes temas se tornam vinganças perversas. Vendedores acabam esquartejados por suas máquinas, militares passam a bombardear merda pelo mundo, imoladores de sangue humano em sacrifício à Terra passam a ver o planeta vomitar suas oferendas.

Franquin é particularmente virulento com a imagem da guilhotina, um tema delicado na França, que reverbera o da pena de morte. Numa das histórias, a lei é proclamada: “toda pessoa que matar uma outra voluntariamente terá sua cabeça decapitada”. Franquin vai fazer desta uma hilária imagem do infinito: burocratas passam a executar os assassinos “voluntários” na guilhotina. Então, depois disso, outro burocrata vem e decapita o burocrata (“assassino voluntário”) precedente, e assim por diante. Noutra, em três quadros (francamente inspirados em Rodolphe Töpffer) um velho reacionário olha uma passeata por direitos humanos pela janela e começa a praguejar, dizendo que sente saudades de quando ainda havia pena de morte e que, por ele, as execuções voltariam a ser públicas. No que, após ele dizer isso, no último quadro, a janela se rompe, se fecha e decapita o velhote.


                                                                         
O que mais me encanta em Idées noires, ainda assim, não são nem estas às vezes rasteiras, às vezes muito espertas, reflexões éticas, e sim o momento em que Franquin se transfigura nesse Goya doente, moribundo, pintando Cronos grotescamente devorando os próprios filhos assim que nascem. A “paleta de cores” usada pelo belga evidencia isso: preto e branco chapados, “só que ao contrário”. Assim, na maioria das ideias obscuras, o fundo é todo branco, e os desenhos todos pretos, sem muito delineamento de rostos ou detalhamentos, a não ser nas expressões, nos olhos, naquilo que basta. Quem conhece o traço de Franquin sabe que ele é mestre no estilo cômico gros nez, com fisionomias típicas da BD belga. Seus personagens são exagerados, com movimentos espalhafatosos, e geralmente descabelados, meio hippies, meio punks. Em Idées noires, isso também assume um aspecto sombrio, com um twist meio sádico, que de certa forma nos incomoda como aqueles super-heróis malvados em Crise nas infinitas terras.

 Creio que três exemplos resumem, por fim, a gratuidade genial do sadismo de Franquin nestas histórias: a de um sujeito caminhando só, na neve, morrendo de fome e desesperado, que avista as “luzes da civilização” e dá graças a deus. Porém, quando ele se aproxima mais, as “luzes da cidade” eram na verdade os olhos de mil lobos, que se revelam no último e grande quadro. Outra: a absurda história de um garotinho na praia que assusta as pessoas com uma barbatana falsa de turbarão. Ele é surpreendido no quadro final quando se atrai por uma outra garotinha que era na verdade... um boneco falso de ser humano usado por um tubarão (!!!) para atrair garotinhos... Por fim, uma das mais interessantes, e mais abstratas: um sujeito está correndo no espaço vazio quando uma grande pedra passa a descer em direção à cabeça dele, para esmagá-lo. Ele vai chegando, com pensamentos positivos, com máximas da força de vontade, quase chega, quase chega e, no último quadro, a pedra esmaga sua cabeça.

É este, portanto, o tom do humanismo de Franquin. Não diferente do de Mário de Andrade em Macunaíma: “cada um por si e deus contra todos”! Não é à toa que, ao nos despedirmos desta HQ, no deparamos com um carinha sorridente que diz: “quem me ame, que me siga!”. E ele vai em frente, seguido apenas por um urubu com más intenções. Se nem a degenerescência e nem a idade de Franquin eram físicas e avançadas como as de Goya, vale salientar que o velho pintor tinha seus motivos também políticos para se isolar numa velha casa e pintar monstruosidades mitológicas, já que estava realmente de saco cheio de fazer pinturas oficiais para a corte espanhola. No caso de Franquin, sua revolta contra o status quo (basicamente todo e qualquer discurso edificante de “progresso”) o fizeram voltar seu humanismo para algo próximo a um niilismo, fazendo da sua arte o único espaço em que ele podia soltar os cachorros e se vingar, com lindos requintes de crueldade, de todos aqueles “masters of war”. Viva o “lado negro da força”.


Sigam-me os bons!!

VIAGEM AO PAÍS DOS QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes
fotos por Gustavo Marcondes e Marcos Inácio Marcondes

Uma coisa que poucos sabem sobre a Bélgica (um país do tamanho do Estado de Alagoas) é que, além de ser uma terra famosa pelos chocolates, cervejas, diamantes e quadrinhos, ela é também o país com as garotas mais lindas do mundo. Sim, pode parecer surpreendente, afinal, ninguém nunca mencionou isso, mas isso é, aparentemente, o maior segredo dos belgas, guardado ao ar livre. Afinal, é difícil não se sentir encantado ao ser servido, com extrema cordialidade e simpatia, em qualquer lugar (no museu, nos cafés, no McDonald´s, ou simplesmente ao perguntar alguma informação a uma ruivinha andando de bicicleta), por uma criatura doce e feérica, de olhos verdes e cabelo naturalmente alaranjado. Você começa a sentir que entrou em um país de contos de fadas.

É por isso que não me surpreende que o belga Pierre Culliford (aka Peyo) tenha começado seu império nos quadrinhos, na animação e na cultura pop com um gibi sobre uma terra medieval encantada (Johann e Pirluit) que progressivamente se transformou num gibi sobre duendes azuis, os Schtroumpfs (aka Smurfs, dã). Estas informações também me lembram do quanto os belgas, apesar de serem uma cultura desconhecida e considerada derivativa, situada na Europa central, diferem dos europeus “canônicos” num aspecto essencial pra um turista: são simpáticos, poliglotas, gentis, parecem adorar sua presença, demonstram interesse em te conhecer.

Este pequeno panorama, que inclui charme, simpatia, credulidade e modéstia serve para entendermos o porquê de a Bélgica possuir uma cultura tão diversa e internalizada em seu diminuto território, e o porquê de eles serem tão aficcionados por uma cultura sólida e tradicional de quadrinhos, com várias obras-primas não traduzidas sequer para o inglês, sendo sua gigante influência sobre a HQ europeia referenciada sempre de forma tão tímida.

Um pouco de arquitetura dos Flandres

Tive a sorte de passar uma pequena temporada na Bélgica e tentar equacionar esses fatores todos que a tornam um destino tão peculiar às pessoas pacatas, ao devoto incontéstil de uma vida introspectiva, e a quem verdadeiramente ama as histórias em quadrinhos, claro. A Bélgica fica na região dos flandres, que se estende até a Holanda e que se distingue por uma arquitetura de cores quentes e rurais, de tijolinhos vermelhos, e que se moderniza numa art nouveau envidraçada e rococó, com florais de bronze, coisa fina e leve, irretocável. Apesar de a parte mais internacional e vigorosa da cultura de quadrinhos belga pertencer à influência francesa, parece mais enraizada essa secular ascendência flamenga. A Bélgica é um país bilíngue, mas é somente na capital, Bruxelas, que isso é realmente praticado na região dos flandres. Em todo o resto dos flandres, fala-se holandês (ou a língua flamenga, uma variação muito próxima do holandês) e eles preferem que você se comunique com eles em inglês, porque há o cultivo de uma certa rivalidade (voltarei a isso adiante) com a região de matriz francesa.

É por isso, por exemplo, que os belgas fazem a melhor cerveja do mundo (é verdade mesmo. Experimentei umas 30 marcas diferentes, de dupla ou tripla fermentação, ou estilo abadia, ou cervejas trapistas, ou cervejas de 12% de concentração alcoólica; enfim, uma visão do paraíso cervejeiro), uma coisa tão associada à Europa central, quando os franceses gostam mesmo é de beber vinho. E é essa proximidade tão grande com a cultura holandesa (eles têm até um próprio bairro da luz vermelha), com quem compartilham esse passado comum, que os faz serem também tão maconheiros! Em Bruxelas, eles meio que apertam seus baseados dentro dos cafés (vale até um Giraffas local qualquer), fumam na rua, na porta de entrada dos shows, e realmente não pareciam nem ligeiramente preocupados com qualquer intervenção policial.

Pintura flamenga e quadrinhos

Brueghel, o Velho: A queda dos anjos rebeldes, no Museu de Belas Artes de Bruxelas

Uma das possíveis origens para o entusiasmo dos belgas com os quadrinhos é a forte tradição flamenga (não, nada a ver com o time vagabundo regido a mão de ferro pela popularidade carnavalesca do Ronaldinho Gaúcho) nas artes visuais, e isso é certamente algo que belgas e holandeses têm muito que se orgulhar. Afinal, essa arte historicamente ocupa um epicentro de transformação entre a pintura gótico-medieval e o Renascimento italiano. Figuras como Brueghel, o velho, Jan Van Eyck, Rogier Van Der Weyden e, é claro, o estupor horrorizante de Bosch (quem não ficou pasmo ao observar os detalhes do Jardim das delícias?) foram responsáveis não apenas por desenvolver a tinta a óleo com que os italianos (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, enfim, todos que você ficou sabendo através das Tartarugas Ninja) revolucionaram a cultura ocidental, mas também por abordar pioneiramente a pintura da paisagem, os hábitos da vida do campesinato, e por introduzir, de maneira bem consciente, a ideia de que o feio e o grotesco poderiam ser um forte tipo de expressão com que a as artes poderiam se identificar. Escrevi, entre outras coisas, uma análise do quadro O triunfo da morte, de Brueghel, neste livro aqui, na página 294, caso haja interesse.

Guadglíneos?

Pra quem não sabe, a cultura de quadrinhos belga é tão antiga quanto os quadrinhos modernos em si, e as escolas desenvolvidas entre os anos 20-50 pelas revistas mix Tintim e Spirou não só geraram a influente escola francesa, como praticamente toda a cultura europeia de quadrinhos. Influência pouca não é bobagem, e não é à toa que uma cidade como Bruxelas tem estátuas de seus personagens espalhados pelas ruas, assim como paredes inteiras dos prédios pintadas com cenas de seus gibis. Além disso, os cafés das cidades belgas possuem pilhas de gibis para você pegar e ler distraidamente enquanto toma um chocolate quente ou uma cerveja.

Na época dos pintores flamengos, era comum que a cultura gótico-medieval já abordasse a narrativa visual seriada, e um pintor como Van Der Weyden é reconhecidamente um dos mestres da pintura em retábulos, em que cenas diferentes da paixão de Cristo ou outros motivos bíblicos eram pintados em diferentes quadros, alguns que se abriam como um livro, e que podiam ser entendidos como uma sequência interligada. Assim como os quadrinhos, os belgas amam sua tradição em pintura medieval, e em cada cidadezinha de 10 mil habitantes podem-se encontrar museus e obras destes mestres pioneiros. Isso sem falar na continuidade barroca e pós-renascentista trazida pelo antuérpio Peter Paul Rubens, um dos pintores mais influentes de todos os tempos.

Centre Belge da la Bande Dessinée

Art Nouveau

É por isso que, além de museus de arte flamenga e de instrumentos musicais (muito maneiros), há também um Centre Belge de la Bande Dessinée, ou o Museu Belga das Histórias em Quadrinhos, em Bruxelas. Logo na entrada do museu – um prédio envidraçado projetado pelo mestre da art nouveau Victor Horta – uma estátua de Gaston Lagaffe, o pai de todos os picaretas belgas, criado pelo genial André Franquin, nos lembra que aquele é um lugar amigável para o fã de quadrinhos. Já no hall de entrada, antes mesmo de pagar, nos deparamos com uma série de estátuas legais de personagens tradicionais da BD francobelga: os Schtroumpfs, várias coisas de Tintim (o foguete lunar, os personagens vestidos de astronautas, um busto em bronze), Lucky Luke, etc, além do carro vermelho vintage de Spirou todo pichado e desenhado pela nata histórica destes quadrinhos: Morris, Goscinny, Uderzo, Peyo, etc. Depois disso, o museu se divide em uma didática sessão sobre como as BDs são confeccionadas tradicionalmente, com rico material original, desde a concepção, os roteiros, o letreiramento, a coloração, a impressão, o marketing, enfim, todas as etapas da industrialização dos quadrinhos. Há dois salões de exposições temporárias (em um dos quais estava instalado um interessante panorama das HQs romenas) e, é claro, o andar principal, onde, entre escadarias e vãos de leveza art nouveau, podemos acompanhar, cronologicamente, entre estátuas, réplicas, brinquedos e instalações muito divertidas, toda a trajetória da BD belga (somente belga; nenhum artista francês é relacionado ali).

Neste andar principal, três tipos de subdivisão interessam. Em primeiro lugar, uma vasta e interativa sala toda dedicada ao personagem Tintim e ao seu criador, Hergé, com, além de ilustrações originais e modelos em escala humana, instrumentos de trabalho e painéis informativos ilustrados sobre o refinamento artístico, narrativo e humanístico do personagem, deslindando sua grande importância para a cultura das BDs. Com o lançamento do filme de Spielberg, os belgas, é claro, estavam em alvoroço, e o Tintim estava em toda parte.

Passando por esta sala de abertura, começamos a entender a concepção de curadoria do museu. A divisão das salas é mais ou menos cronológica e separada por autores (o primeiro deles é o pioneiro Jijé, criador do Spirou nos anos 30, tão importante, digamos, que também tinha um museu só pra ele em Bruxelas), mas estas salas (na verdade, elas funcionam como grandes divisórias de um labirinto de quadrinhos) são divididas em duas grandes estruturas pelo andar, separada por uma charmosa banca de jornal no modelo dos anos 40: de um lado, toda a história do semanário Spirou, com centenas de capas clássicas, e a trajetória ano a ano de seus editores. Do outro, a trajetória do jornal ou revista Tintim (ambas são revistas de variedades em quadrinhos e publicavam dezenas de personagens e autores diferentes), com as capas dispostas da mesma maneira.

Saindo, então, das salas que contam as histórias das revistas que, cultivando saudável rivalidade, permitiram o desenvolvimento da HQ belga, fica mais fácil e claro entender as salas dos próprios autores, dezenas deles, com várias páginas originais de cada, rascunhos, objetos pessoais, além de textos bastante ricos informando-nos a trajetória editorial do autor, suas influências, o método de criação, a concepção de seus personagens, sua popularidade, etc. Vale mencionar que as salas dos autores são personalizadas de acordo com suas criações. A sala de Franquin, por exemplo, é disposta como se fosse o escritório zoneado de Gaston Lagaffe, além de um corredor escuro que homenageia sua obra-prima tardia, as Idées noires. A de Morris se parece com um saloon que homenageia Lucky Luke, e assim por diante.

Acabei demorando-me um bocado de tempo nestas salas, procurando conhecer os muitos autores ali dos quais eu nunca ouvira falar, e foi uma pesquisa muito fértil. Foi possível entrar em contato, por exemplo, com Raymond Macherot e seu Sibylline, uma popular HQ de animais falantes, na melhor tradição Disney ou Pogo, que constrói inteligente comentário social a respeito da Europa nos anos 50-70. A sala de Macherot era decorada com modelos das árvores onde seus personagens vivem, com diminutas famílias arranjadas dentro dos troncos. Pude também dar uma olhada melhor no autor Maurice Tillieux e sua BD detetivesca Gil Jourdan. Por sorte, pude comprar versões compiladas, extremamente bem editadas, de todas as BDs que me interessaram. Coisas dos anos 40, 50 e 60, reeditadas em obras completas, mostrando o profundo respeito que os belgas devotam à sua tradição quadrinística.

Vale também mencionar a sala de Peyo. Além de originais e coisas de praxe, encontramos um mini-museu só dos Schtroumpfs, com modelos dos “edifícios” e construções dos Schtroumpfs.... em escala Schtroumpf. Há também uma grande tela de tinta a óleo com toda a vila dos Schtroumpfs pintada pelo próprio Peyo. Outras coisas de interesse estão na grande sala dedicada à BD Boule e Bill, de Jean Roba, uma história infantil muito simpática e popular, calvinesca, sobre um garotinho e seu cachorro, além de muitos outros personagens que já foram publicados até em português, como Alix (Jacques Martin), ou Le chat (Phillipe Gerluck).

Módulo Lunar (modelo) do Smurf Astronauta

Módulo Lunar de Tintim

Por fim, uma curiosidade substancial é a maneira como os autores que se originam da cultura dos flandres (e, portanto, são publicados em holandês) possuem um tratamento diferenciado no museu. Segundo o que o curador de um pequeno museu de música informou ao meu irmão na cidade da Antuérpia, basicamente a maioria dos belgas nos flandres se identifica com essa cultura, e a capital só fala francês graças a uma imposição de Napoleão após ter conquistado o país. A cultura francesa (obviamente também orgulhosa) na Bélgica, situada na região da Valônia, é bem mais pobre a marginalizada do que os ricos belgas de origem flamenga. Talvez isso explique por quê, no museu, os influentes autores flamengos ostentem os textos de curadoria em holandês acima dos textos em francês, ao contrário de todo o resto. Os principais nomes desses quadrinhos – Willy Vandersteen, chamado “verdadeiro criador da linha clara” e sua imensamente popular BD familiar Bob e Bobette; e Marc Sleen, criador de As aventuras de Nero – ocupavam espaço de grande destaque no salão central do museu. Depois, ao tentar comprar a HQ Nero e não encontrar nenhuma edição em francês (e carregando somente uma tradução em inglês nas mãos), perguntei pra velhinha que atendia na loja: “Nero em francês está em falta”? No que ela respondeu: “Não, isso nunca foi publicado em francês”. Oh, I guess I struck a nerve.

BD World

Acho que tudo que me esforcei para escrever com clareza acima dá uma ideia da complexidade cultural de um país com 30 mil km² e apenas 10 milhões de habitantes. Especialmente para os fãs de quadrinhos, é um tour que vale a pena. Tanto quanto chocolaterias (esqueci de dar algum destaque a isso, porque, ao contrário de 99% da população mundial, não gosto muito de chocolate), há um universo de lojas de quadrinhos na Bélgica, especialmente em Bruxelas. Cheguei a visitar umas 4 ou 5, afinal, o tempo era curto e tinha muita cerveja pra beber. Faço questão de destacar a BD World, uma loja labiríntica, com milhares de quadrinhos, atendida por duas preciosidades a quem eu não recusaria um pedido instantâneo de casamento; a Multi-BD, cujos atendentes são tão atenciosos que escrevem suas próprias mini-resenhas e colam junto às capas dos quadrinhos, classificando-as como “premiadas”, “favoritas da casa”, etc; e a própria loja instalada no museu, a Slumberland, franquia de uma megastore de quadrinhos que tem outras 5 ou 6 lojas espalhadas por Bélgica e França. A Slumberland é quase como uma Fnac só de quadrinhos, e praticamente somente quadrinhos francobelgas. Os comics americanos, aliás, parecem bastante desprezados pelo país. Pouco se vê deles pela Bélgica. Vou me abster apenas de falar no bizarro hábito de comer batatas fritas com maionese como se fosse cachorro-quente, e de dar mais detalhamento sobre a qualidade da mulher belga, primeiro para não entediar nossas leitoras, e segundo porque esta é uma qualidade que deixo à imaginação, e àqueles que se aventurarem para uma visita in loco.

Bruges, na Bélgica: você senta-se no café, pede um chocolate quente e pega um gibi pra ler.

Agradecimentos ao meu irmão Guga (verdadeira fanático por pintura flamenga, prestou ótima assessoria), meu irmão Quilk (que tirou a maioria das fotos) e ao colega Pedro Brandt (que morou na Bélgica e me informou alguns detalhes essenciais sobre o país).