A importância histórica e estética dos quadrinhos de guerra: Harvey Kurtzman e Héctor Oesterheld



por Ciro I. Marcondes

Este artigo foi produzido para dois congressos pioneiros na tentativa de amadurecer os estudos universitários sobre histórias em quadrinhos no Brasil. O primeiro deles foi a II Jornada de Romances Gráficos, organizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, que rendeu debates amplos sobre a necessidade de se pensar os quadrinhos no Brasil, participações memoráveis de quadrinistas como Laerte e pesquisadores como Benjamin Picado e Elvira Vigna, além de um texto afetivo da Raio Laser. Os textos do congresso podem ser lidos aqui.

O segundo foram as 1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, realizadas, em agosto na ECA-USP. De maior porte e maior diversidade temática (foram abordados aspectos múltiplos da história, da indústria, da tecnologia e da estética dos quadrinhos), este encontro foi fundamental para legitimar ainda mais esta opção de pesquisa, fazendo uma varredura espessa na maneira com que a pesquisa científica pode olhar para o fenômeno que são os quadrinhos.

Segue, então, meu artigo completo, publicado nos anais dos dois congressos, expandindo o que eu já havia anunciado em Raio Laser. Boa leitura e comentários são sempre bem-vindos.


1 – Introdução:

O estudo das histórias em quadrinhos (HQ), mesmo dentro de um mais aberto ambiente cultural contemporâneo, ainda precisa enfrentar, em sua revisão histórica, o problema de o meio ter sido abertamente manipulado, através de décadas, para que seu conteúdo se mantivesse sob rigoroso controle de suas potencialidades expressivas. Mais do que isso, outro problema é procurar vasculhar o valor cultural da trajetória das HQs quando é sabido (cf. HADJU, 2009) que elas foram também controladas mercadologicamente e ideologicamente em função de diversos interesses políticos e econômicos, sempre relativizados porque eram “produto para crianças”, álibi perfeito para transformá-las em espécie de subproduto cultural aparentemente sem importância.

Este artigo procura demonstrar que um estudo retrospectivo a respeito da inserção das histórias em quadrinhos na vida cultural do século XX não apenas tem valor para o estudo da produção cultural e social, mas também valor legítimo histórico, sendo influente sobre os eventos que narra, com alguns exemplos de decisiva capacidade crítica, e por fim de influente problematização estética. O universo das guerras modernas tem sido amplamente debatido tanto no âmbito da filosofia quanto da história, da literatura e da sociologia, assim como, obviamente, no cinema e no jornalismo, praticamente desde antes de as grandes guerras terem propriamente eclodido, e uma simultaneidade de questões são levantadas sempre em confluência com o surgimento de mais e mais campos e ambientes de conflito através dos séculos XX e XXI. A inserção da cultura de HQs neste debate, entretanto, é nova por parte tanto de uma revisão histórica, quanto sociocultural, quanto estética.

Cabe, portanto, lembrar um pouco da apropriação que as editoras americanas, nos anos 30 e 40, fizeram da imensa popularidade dos quadrinhos na época, para instilar, mesmo nas mentes infantis, uma noção de total união em torno dos ideais americanos, que transformavam todo tipo de participação civil em um ato em colaboração com a guerra, mesmo em terra natal. Em 1943, após a declaração de guerra americana, mais de 30 milhões de HQs eram vendidas mensalmente nos EUA,  e uma em cada 4 revistas enviadas às tropas americanas eram revistas em quadrinhos (cf. WRIGHT, 2003, p.31). O assédio aos meios de comunicação no final dos anos 30 e começo dos anos 40 coincidiu com a popularização do formato dos quadrinhos em revista, a criação dos super-heróis e de um aumento de camadas sociais, de gênero e de gerações que consumiam as HQs. Super-heróis hoje dominantes na cultura pop, como o Super-Homem, Batman ou Capitão América (criado especialmente com este fim, seguido de vários outros) rapidamente se tornaram emblemas de militarização e conscientização sobre a necessidade de apoiar incondicionalmente a participação americana na guerra. As crianças, inescapavelmente, eram convocados pelos super-heróis a contribuir com a cultura beligerante, mas defensora da democracia:

As editoras também viram que podiam melhorar sua imagem associando os produtos ao patriotismo e ao esforço de guerra. Superman salientou, aos leitores, a importância de doar para Cruz Vermelha Americana. Batman e Robin pediram às crianças para “manter a águia americana voando” através da compra de seguros de guerra e selos. Capitão América e seu ajudante Bucky mostravam aos leitores como coletar papel e metal para reciclagem. Editoras de todo o filão imprimiram um carta aberta do Secretário do Tesouro Henry Morgenthau Jr. pedindo a meninos e meninas que comprassem selos de guerra (Idem, p.34, tradução nossa).


O pesquisador Bradford Wright nos expõe, em Comic book nation, um detalhado histórico sobre como, desde antes do início da guerra e também antes do início dos ataques a Pearl Harbor, a indústria de quadrinhos americana (até hoje as vendas desta época se mostram dentre as mais rentáveis de todos os tempos) estava alinhada em esforços de patriotização, que envolvia grosseira demonização e estereotipagem xenófóbica, claramente conscientes de que uma entrada no conflito era iminente. Numa época em que a TV era ainda muito pouco influente, os esforços nacionais e praticamente unânimes das editoras ajudaram enormemente na tarefa difícil de manter o foco sobre a união nacional e impedir qualquer tipo de relativização pacifista.

O esforço de guerra dos quadrinhos, muito como o esforço político real, não deixou espaço para ambiguidade ou debates na maioria dos assuntos. Diretos, emocionais e ingênuos, os quadrinhos contribuíram para a largamente difundida impressão popular, que ainda persiste, de que a Segunda Guerra foi verdadeiramente uma “guerra boa” (Idem, p.44, tradução nossa).

Nosso estudo se concentrará em dois casos contraculturais e altamente influentes de histórias em quadrinhos de guerra que ajudaram a problematizar a indústria dos quadrinhos nos anos 50. Fundada nos anos 40, a Educational Comics (posteriormente “Entertainment Comics”, ou EC) deu radical guinada na visão americana sobre as HQs, trazendo conteúdo de muito mais verossimilhança, pessimismo e maturidade ao leitor (que já não era tão jovem), provocando a revolta de associações de pais e mestres e das igrejas. Seu reformulador, William M. Gaines, teve de depor à Suprema Corte Americana durante a Guerra Fria, e o legado da EC só pôde ser reconhecido décadas depois. Além de padrões grotescos de terror e ficção-científica, bastante chocantes, a EC ofereceu, através de uma visão arrojada e pós-moderna avant-la-lettre de seu editor, roteirista e desenhista Harvey Kurtzman, alguns dos melhores quadrinhos de guerra de todos os tempos, trazendo uma leitura sombria e niilista da Guerra de Coréia, que ainda estava em curso. Perceptivelmente influenciado por estes quadrinhos, o clássico roteirista argentino Héctor Oesterheld lançou, no final dos anos 50, a série Ernie Pike, de incrível visão humanística afiliada a seu peronismo radical, revisando a segunda guerra mundial como um constante ato fúnebre, de luto eterno, a partir do lápis do desenhista italiano Hugo Pratt.


Os adoráveis Gogo’s da Turma da Mônica




por Pedro Brandt

A colaboração de Mauricio de Sousa para os quadrinhos no Brasil tem vários méritos, mesmo que eu encontre muito mais motivos para criticar do que para elogiar sua atuação na área (escrevo sobre isso futuramente). Independente disso, Maurição sempre foi um grande homem de negócios. Ainda assim, acho que ele explorou muito pouco o potencial de seus personagens em outros produtos. Um exemplo: alguns aeroportos brasileiros têm lojas da Turma da Mônica, com roupas, cadernos, canecas, chaveiros, pôsteres, brinquedos e tantos outros itens com a estampa da turminha. Mas tente entrar nessas lojas e encontrar algo realmente interessante para comprar! A não ser que você busque um presente para uma criança pequena, sairá de lá com as mãos abanando. Para não ser injusto, lembro de algumas coisas (não verdade, não lembro exatamente o que) com desenhos dos personagens feitos pelo Nicolosi (o melhor desenhista que já passou pelos Estúdios Mauricio de Sousa). Isso eu achei até legal! Mas é pouco se você parar por cinco minutos e pensar no tanto de coisas legais que poderiam – e não são – feitas com todos esses personagens que o Brasil conhece e ama.

E se formos parar para pensar, os gibis da Mônica não são lidos apenas por crianças. Quantos adultos você já não viu lendo uma revistinha dessas no ônibus, na fila do banco, no consultório do dentista, no banheiro? Quantas e quantas vezes já não ouvi alguém dizendo, “não gosto de quadrinhos, mas leio Turma da Mônica até hoje”?


Acho necessário esse blá-blá-blá todo para introduzir o assunto desse post. De uns tempos pra cá, os produtos com a marca Mauricio vêm chamando a minha atenção de maneira muito mais positiva (conceitualmente) e atraente (me disponho a comprá-las).

Primeiramente, tenho percebido isso nas bancas. Qual não foi a minha surpresa ao ver Cascão Porker, uma paródia a Harry Potter! E com desenhos do Nicolosi! Por uma edição que fosse, pude ver uma revista da turma da Mônica como eu queria: com desenhos vivos, uma narrativa fluente, um colorido que sai do chapado convencional e um humor menos óbvio e primário.

Em segundo lugar, a série MSP 50 é um dos grandes acontecimentos recentes dos quadrinhos no Brasil. A terceira edição da série foi lançada recentemente na Bienal do Rio. Nos três números, temos um retrato amplo, eclético e abrangente de diferentes gerações de ilustradores e quadrinistas brasileiros. Álbuns com acabamento cuidadoso, tiragem grande e distribuição nacional. Uma autêntica coletânea da produção de quadrinhos no Brasil – e se nem tudo ali tem qualidade para fazer valer a vaga em um dos três volumes, a série tem valor histórico pelo apanhado que faz. Méritos de lado, o salgado preço da capa poderia ser mais convidativo.

Mas se tem uma coisa que Mauricio fez e conquistou o meu coração de imediato foi a versão da Turma no estilo da série Gogo’s. Os Gogo’s Crazy Bones são uma coleção de toy art para as massas, por preços super acessíveis – o público alvo são as crianças, não teria como ser diferente. Esses brinquedinhos são como as figurinhas do século 21.

A parceria com a empresa dos Gogo’s rendeu belos designs para os bonecos. Eles são modernos, mas reverentes aos originais, ainda que não se pareçam com nenhum traço já usado para alguma coisa da Turma da Mônica. Têm algo de mangá nas linhas, algo de desenho animado. Como as peças são muito pequenas, o desenho dos personagens tem que ser minimalista, sintético. E se alguns personagens não ficaram tão imediatamente reconhecíveis (caso do Xaveco), outros são uma mini-versão muito da bonitinha das criações de Maurício.

Aliás, o próprio pai da Mônica virou boneco. E um dos mais legais da coleção. O design ficou tão bom, que eu acho uma pena as figurinhas que acompanham os bonecos apresentarem apenas fotos dos bonecos ao invés dos desenhos que servem de base para os toys (estes estão no próprio álbum e na bela contracapa).

Cada envelope traz dois bonequinhos e quatro cromos e custa menos de R$ 3. A minha coleção cresce dia a dia. Quem quiser trocar uns repetidos, se manifeste aí na caixa de comentários.


A Meca dos gibis virtuais: entrevista com PC Castilho























por Pedro Brandt

Quem lê a Raio Laser, sabe que o nosso negócio são os “quadrinhos além”, em resumo, não queremos nos limitar ao esquemão dos quadrinhos mainstream. Para isso, é necessária toda uma dedicação, toda uma pesquisa para encontrar esses títulos que mais chamam a nossa atenção, que abastecem a fogueira da nossa paixão pelas HQs. Além de visitas a sebos, troca de ideias com amigos etc. e tal, tem um blog em especial que virou a minha Meca dos gibis, um espaço virtual que preciso visitar religiosamente todos os dias. Ali, achei quadrinhos que sempre quis ler, mas nunca tinha encontrado (em edição física ou virtual), outros que já li, mas são muito bem vindos em minha “coleção de scans” e, principalmente, quadrinhos que eu jamais saberia da existência não fosse pelo HQ Point.

Com um visual simples (quase um fanzine virtual), mas de fácil navegação e, o principal, democrático (todos os downloads são gratuitos), o blog é onde me abasteço. Confesso: às vezes a gula é maior do que a vontade de comer, e muitos arquivos esperam meses até serem conferidos. Coisas do nosso tempo – como essa nova possibilidade de poder ler, de graça, quadrinhos que, de outra forma, eu continuaria desconhecendo.

Se o HQ Point está certo em distribuir todo esse material gratuitamente, é motivo de um longo debate (e um muito pertinente nos dias de hoje). Acredito que o PC Castilho, editor do blog, tem uma postura muito correta com relação a isso, como ele mesmo comenta em uma das perguntas da entrevista a seguir. Acima de tudo, acho que o HQ Point presta um grande serviço aos leitores brasileiros de quadrinhos – e não deixa de ser curioso saber que os títulos mais baixados no blog não são quadrinhos, mas livros sobre ilustração.

Se tem um blog que complementa o que é a proposta da Raio, esse é o HQ Point. Se você não o conhece, recomendo uma visita longa e demorada. Boa leitura!


Como e quando começou o HQ Point? Já era a sua ambição que o blog tomasse essa proporção, essa quantidade de títulos disponíveis para download?

Até pouco tempo atrás, eu não sabia o que era um blog e muito menos conhecia scans. Foi quando chegou do Japão o amigo Takao, trazendo vários arquivos, que me deixaram impressionado. Em pouco tempo, eu estava visitando vários blogs e baixando tudo que via. Com o tempo, percebi que todo mundo postava praticamente as mesmas coisas. Senti que faltava algo diferente no mercado e resolvi criar meu próprio blog.

O HQ Point começou como um blog para venda de revistas. Faltava divulgação e o número de visitas era desanimador. Resolvi então disponibilizar scans, os títulos que não eram encontrados nos blogs que eu visitava. Sempre curti o quadrinho europeu. Na verdade, comecei lendo super-heróis, como a maioria dos leitores, mas depois que conheci o quadrinho europeu meu gosto foi se sofisticando.

Meu objetivo era atingir 100 mil visitas. Ultrapassamos fácil a meta e meu objetivo agora é 1 milhão de visitas! E olha que a nossa página é bem grande, com um número variado de edições. Alguns blogs apresentam quatro ou cinco edições e já mudam a página, o que faz o contador de visitas pular a todo instante.

Possuir o número de títulos disponíveis no blog seria impossível para qualquer colecionador se ele tivesse que adquiri-los em papel. Acho que está aí uma das vantagens do scan. Quem se nega a ler scans vai ficar sem conhecer uma grande quantidade de títulos. Se bem que eu não acredito que o cara que diz ser contra scans, de vez em quando, não baixe alguma coisa.

QG da HQ Point
O site tem muitas postagens quase diariamente. Hoje em dia, o HQ Point ainda é um hobby ou virou uma obrigação?

Virou vício. Não consigo passar um dia sem fazer uma tradução, diagramação, digitalização, tratamento de imagem ou postagem. Olhar a caixa de mensagens também é outro vício. Consegui fazer grandes amizades através do blog. Sou autodidata no espanhol. Sei que ainda não estou 100% nas traduções, mas tento fazer um trabalho aceitável.

Você mora em Goiânia, certo? Como é a cidade para os quadrinhos (para comprar coisa antigas e tal)?

Sim, moro em Goiânia. O mercado de quadrinhos por aqui já foi bem melhor. Hoje, como em todo o resto, anda meio escasso. É difícil encontrar um leitor e mais difícil ainda é encontrar revistas usadas para comprar. Antigamente, qualquer banca as tinha e os sebos estavam abarrotados. Hoje tá todo mundo vendendo pela internet, com valores lá em cima. A sorte é que tenho um grande número de amigos colecionadores e estão sempre nos ajudando, emprestando suas revistas. Meu “point” hoje em Goiânia para comprar revistas é no sebo de um amigo, Hocus Pocus, onde consigo a maioria das revistas que disponibilizo.

Imagino que a sua coleção de quadrinhos deve ser bem extensa. Fale um pouquinho sobre a sua história como colecionador: quando começou a paixão pelos quadrinhos? Quantos títulos você tem em casa?

Já fui daqueles caras que compravam de tudo. Cheguei a ter tanta revista que me faltava espaço para guardá-las. Nos anos 1980, eu e o Marcio Jr. (O Ogro) fizemos em Goiânia a Primeira Exposição de Quadrinhos, que aconteceu na Livraria Flicts e teve a participação do Ziraldo, que estava presente para lançar o seu livro com o mesmo nome da livraria.

No começo dos anos 1970, meu irmão pediu pelo reembolso postal algumas edições da Outubro e Taíka. Me lembro perfeitamente de folhear as revistas e ver trabalhos do Rodolfo Zalla e Colonnese. Essa foi a primeira luz.

No final dos anos 1970, nos mudamos para uma pequena cidade do interior aqui de Goiás. Lá não tinha televisão. Meu irmão trabalhava na capital e nos finais de semana ia pra lá de ônibus. Um dos amigos dele trabalhava em uma distribuidora de revistas aqui da cidade e levava inúmeras revistas sem capas pra mim (era a “devolução” das bancas). Através dessas revistas, eu passei a fazer pedidos pelo reembolso postal. Comprei praticamente tudo que a EBAL disponibilizava. Minha mãe fazia pequenas viagens nas cidades vizinhas, e como na minha não existia bancas de revistas, ela sempre trazia algum exemplar de Tex (Vecchi) ou Homem-Aranha (Bloch).

Nos anos 1980 eu editei o fanzine Imaginação 1985. Gastei uma grana preta para lançar a primeira edição em off-set, que teve a participação de Julio Emilio Braz, Rodval Matias, Mozart Couto, Geraldo Cavalcanti e outros. Existe uma versão digital em nosso blog.

Nos anos 1990, passei a comandar um fã-clube de Elvis Presley, o TCB Elvis Fã Clube, que passou a me exigir muito tempo e acabei deixando os quadrinhos de lado. Só voltei aos quadrinhos em 2004, com a chegada do Takao. Comecei a comprar revistas novamente, só que de maneira bem mais seletiva.

Hoje tenho uma imensa quantidade de revistas, mas a maioria são de minha loja virtual. Minha coleção mesmo é de mais ou menos umas 500 revistas, a maioria álbuns importados no estilo “The art of...” ou edições com capa dura de seleções especiais (com desenhistas ou personagens preferidos). Os únicos títulos que compro mensalmente nas bancas são Tex e Mágico Vento.


Quais são os seus títulos, autores, escolas e personagens favoritos?

Desenhista preferido: Al Williamson (da velha guarda). Dos desenhistas atuais eu gosto muito do italiano Mastantuono e do brasileiro Mozart Couto.

Não dá pra abrir mãos dos álbuns europeus. São deles os melhores desenhistas, os melhores roteiristas, eu poderia citar uma grande quantidade deles, mas é melhor não ser tão detalhista.

Vai ser difícil surgir um personagem com a qualidade de Ken Parker, que é o melhor pra mim.

É claro que existem os grandes mestres, que estão entre os meus prediletos: Red Crandall, Angelo Torres, Eisner, Raymond, Milton Cannif, Alex Toth, Flavio Colin, Shimamoto, Rodval Matias, Carlos Chagas, Benicio...

Como o HQ Point tem funcionado hoje em dia? Você recebe muitas colaborações ou faz tudo sozinho? O que é mais difícil nesse processo?

Antigamente eu fazia praticamente tudo sozinho. No final do ano passado, passando por algumas dificuldades, pedi ajuda aos nossos usuários. Tive que praticamente “trancar” o blog, repassando os links somente àqueles que estavam ajudando. A resposta foi rápida. Recebemos ajuda até mesmo financeira e surgiram vários colaboradores.

Fui muito criticado pela atitude de “trancar” o blog e por estar recebendo dinheiro. Mas é importante ressaltar que só assim foi possível continuar com o blog, que melhorou muito depois desse episódio. A ajuda financeira possibilitou a aquisição de um novo scanner, pude melhorar a velocidade de nossa internet e adquiri muito material interessante. Depois de dois meses, o blog voltou a ficar “liberado” a todos. Quem não ajudou está desfrutando o material e trabalho de quem ajudou... e olha que poucos foram contra a minha atitude. A maioria entendeu numa boa.

Os maiores colaboradores do HQ Point são os amigos João de Deus (Brasilia-DF), Paulo Henrique (aqui de Goiânia) e J. Valverde (Portugal), sem querer desmerecer os outros amigos/ colaboradores, é claro.

Atualmente estou na batalha de traduzir e diagramar toda a série de Blueberry. Estou em busca de amigos que possam ajudar na tradução e diagramação dos álbuns, mas é difícil encontrar pessoas que queiram dedicar tanto tempo a um trabalho que não vai gerar lucro algum. Faço isso por puro amor e vício aos quadrinhos.

O mais difícil em tudo isso é ainda ter que ouvir críticas negativas em relação ao nosso trabalho. Tem uns cretinos que têm a coragem de dizer que estou “ganhando dinheiro” com o blog, que estou “explorando as pessoas”. Outros ficam procurando erros nas traduções... poderiam estar colaborando como colaboradores. Mas eu não ligo pra isso... Polêmicas sempre geram uma boa divulgação e eles acabam me fazendo um grande favor.


Qual o quadrinho mais baixado da história do site? E qual aquele que você achou que seria um sucesso, mas acabou não sendo? E você tem feedback dos leitores? Como tem sido essa interação?

Os arquivos mais baixados são os de arte (revistas que ensinam a desenhar, livros com a arte de determinados desenhistas). As que têm liderado em downloads são Illustration Magazine. Não houve nenhum título que tenha me decepcionado, todos os arquivos recebem mais de 200 downloads. Poucos leitores dão retorno com comentários, mas os poucos que chegam são tão “ricos” que valem por todos. Por incrível que pareça tenho recebido retorno da França, Estados Unidos, Argentina, Chile, Espanha, Itália e até do próprio Arcângelo Stigliani, autor de Cargo Team (desenhada por Mastantuono) e disponibilizada em nosso blog, escreveu nos elogiando pelo nosso trabalho.

É claro que a interação tem aumentado. Hoje eu poderia “trancar”, ficar apenas com os amigos que realmente estão interessados em ajudar. Mas minha intenção é formar a cabeça de novos leitores, mostrar pra eles que existem muitos quadrinhos de qualidade e que dificilmente serão publicados por aqui.

Com a ajuda do Takao, que tem postado muita coisa, o trabalho ficou mais tranquilo. O legal de tudo isso é que o gosto dele é completamente diferente do meu, o que tem dado uma certa diversificada ao blog. É aquilo que eu falo, quem mais lucra nessa história são os nossos usuários.

Você já foi contactado por alguma editora por causa dos downloads? Qual a sua posição quanto à distribuição gratuita de conteúdo na internet?

Já fui procurado por três editores, não para reclamar dos scans, mas sim para pedir divulgação dos trabalhos deles. Acho que a coisa funciona por aí. Eu sempre defendi que os editores precisam se unir aos blogs de scans, usá-los como fonte de pesquisa e divulgação. Através dos blogs, dá pra se ter uma idéia de que tipo de material os leitores estão lendo. Por mais que o camarada baixe arquivos, ele sempre compra uma ou outra edição no papel. A internet veio para democratizar a coisa. Antigamente, éramos obrigados a comprar uma revista com cinco histórias ruins e uma boa... comprávamos por causa de um desenhista ou roteirista de nossa preferência. Hoje isso já não é mais preciso, podemos adquirir aquela história na versão digital. Mas se sai um álbum no estilo da Cripta (Mythos), não tem como resistir sem comprar o álbum.

O que eu não concordo é disponibilizar edições de revistas que estão sendo publicadas no mercado nacional. O digital está sempre na frente e acaba prejudicando o mercado. Tem tanta coisa boa pra se disponibilizar, material que não foi publicado e nunca será. Posto muita coisa que está saindo na Europa, mas que por enquanto não tem nenhum editor brasileiro publicando.

Penso que quando algum editor se sentir prejudicado com algumas postagens, ele deveria entrar em contato com os blogs e solicitar a retirada dos arquivos. Reclamar com os provedores e fechar o blog não resolve o problema, pelo contrário, só causa revolta nos blogueiros, que irão encontrar outras formas de distribuir os arquivos digitais.

Outro pensamento meu é que devemos assumir o que fazemos. Eu uso meu nome verdadeiro. A partir do momento que usamos apelidos e não nos identificamos, estamos agindo na marginalidade.

Acredita que os tablets ou outros aparelhos de leitura digital vão, com o passar dos anos, substituir o quadrinho em papel? E o que você acha dessa mudança?

Falaram que a televisão iria acabar com o rádio... isso não aconteceu. Os tablets apenas vão facilitar as coisas, mas as edições de papel vão continuar por muito tempo. A tendência é parar com as revistas ruins e ficar só os álbuns de luxo (no papel). Eu mesmo não abro mão de uma boa edição com capa dura e papel couché. A mudança vai atrair novos leitores, essa gurizada que gosta de informática. Também irá facilitar as coisas para quem estiver viajando... poderão carregar livros, revistas, vídeos e músicas em um pequeno equipamento que cabe fácil na mala.

Tá na hora dos artistas começarem a pensar em maneiras diferentes de vender seus trabalhos. Por exemplo, ao invés de vender seus trabalhos para as editoras, por que não disponibilizar histórias em um site pessoal e vender espaço publicitário para empresas? Já que o scan tem uma boa audiência, nada melhor para as empresas que querem ver seu produto circular entre os consumidores.

Se você fosse indicar 10 títulos para quem nunca visitou o HQ Point, quais seriam e por que?

1) Blueberry: por ser uma série que nunca foi publicada na íntegra no Brasil

2) Bouncer: por ser um ótimo western, escrito pelo chileno Jodorowsky e traduzido por nós

3) Long John Silver: uma série que mais parece um filme.

4) Mestres do Terror: que resgata as obras-primas publicadas por Zalla

5) As edições da Marvel sem balões: nas quais poderão apreciar a arte dos desenhistas

6) Tarzan – Lança de ouro: praticamente completa, pela arte de Joe Kubert

7) As revistas e livros da Dolmen (em espanhol): nas quais os leitores poderão ficar sabendo de muita coisa que ainda não se publicou por aqui.

8) Belém: outra série, na qual estou trabalhando na segunda edição. Outro “filme” em quadrinhos.

9) The Jack Kirby Collection: que está temporariamente “fora do ar”... links quebrados.

10) Kripta, da RGE, que foi retirada em respeito ao editor da Mythos, que está publicando os álbuns especiais.

As histórias incompletas de Barry Windsor-Smith




Seguindo com nosso ótimo fluxo de colaborações, recebemos um texto do Professor e Mestre em Literatura pela UnB Eiliko Flores. Tendo se voltado, num doutorado, a um intenso estudo sobre diálogos entre gerações em nossa literatura, Eiliko foi convencido a reler uma antiga paixão, a incompleta e ambiciosa série Storyteller, do ilustrador Barry Windor-Smith, e a escrever sobre ela. Ei-lo:

por Eiliko Flores

Barry Windsor-Smith (1949- ) é conhecido pelo seu trabalho em Conan, o bárbaro, mas principalmente por Arma X, a brilhante graphic novel sobre a origem de Wolverine. Em 1997, artista já consagrado nos quadrinhos, com um estilo único que rendia o privilégio de fazer apenas as capas de muitas revistas, Windsor-Smith decidiu lançar um projeto autoral, criado em seu próprio estúdio. A revista se chamaria Barry Windsor-Smith´s Storyteller, e seria lançada em um formato ainda maior do que aquele usado nas graphic novels usuais. Storyteller era a autêntica criação livre e apaixonada de um artista completo, que escrevia, desenhava e coloria suas histórias.  

 
Storyteller traria três universos de personagens: Freebooters, Paradoxman e Young Gods. Freebooters apresenta a história de “Axus, the great”, um guerreiro e herói cuja fama o transformara em uma lenda. Velho, barrigudo e distante de seus dias de glória, Axus funciona como uma espécie de paródia cômica das histórias de Conan, o Bárbaro.

Paradoxman gira em torno de elementos de ficção científica: a princípio, é a história de Tristan, um homem que viaja pelo tempo em uma moto. O protagonista será abduzido por alienígenas, que criam para ele um mundo imaginário. Talvez o personagem mais carregado e complexo daqueles que habitam Storyteller, boa parte das histórias de Tristan são contadas em um consultório psiquiátrico, que também é parte das ilusões forjadas pelos alienígenas. Paradoxman é uma trama que tentou ganhar profundidade em um questionamento mais amplo do que costumamos reconhecer como realidade. O jargão “this is not reality”, com o qual o protagonista tenta se livrar de suas alucinações, é parte desse desdobramento, bem como a aparição do próprio autor dentro da história, para um bate-papo com seu personagem.


Young Gods,  o terceiro e último universo de Storyteller, é dedicada a Jack Kirby (1917-1994), um dos grandes pioneiros nos quadrinhos americanos, artista que colaborou na criação de quase todos os principais personagens da Marvel. Young Gods, onde Windsor-Smith cita em suas linhas o estilo inconfundível de Jack Kirby, trata de um universo de deuses e semi-deuses metidos em questões triviais, como casamento, discussões em meio a bebedeiras, etc. Assim como em Freebooters, há um clima humorístico presente em quase todos os episódios.

Kirbyesco
Infelizmente, Storyteller se tornaria um projeto inacabado. Após nove edições, a revista foi cancelada, devido ao pouco sucesso comercial. Não podemos culpar apenas os leitores por essa derrota, neste caso: embora exuberante e com um premiado trabalho de coloração, as tramas, enredos e diálogos de Storyteller talvez não estivessem à altura da parte gráfica e, principalmente, não estivessem em harmonia com a pretensão que o formato gigante da revista, a qualidade luxuosa do papel e da impressão inspiravam nos leitores; além dos preços de cada exemplar – altos, embora justos. A primazia visual de Storyteller demandava enredos com mais peso, diálogos melhores e uma concisão que ficou latente.

Quase quinze anos se passaram desde a publicação de Storyteller, projeto ambicioso de um artista experiente e cheio de talento. Entretanto, embora o projeto de Windsor-Smith seja hoje uma ruína, uma construção inacabada, a experiência de ter um dos nove exemplares de Storyteller nas mãos é inigualável para todos aqueles que admiram o inconfundível traço de Barry Windsor-Smith.  

HQ em um quadro: o monstro de Frank N. Stein tem o cérebro de Hitler?, por Bill Gaines e Bill Elder



Saído de uma edição maltrapilha de MAD (William M. Gaines e Bill Elder, 1953): esta imagem apareceu no meio de uma leitura entusiasmada de uma coletânea de bolso da revista MAD publicada pela novaiorquina Ballatine em 1956 a partir dos originais da EC de 52, 53 e 54. Este poeirento, mofado e fedorento livrinho reúne algumas das melhores histórias da MAD clássica escritas por Bill Gaines, como "Melvin of the apes",  "G.I. Shmoe" e "Little Orphan Melvin", com desenhos de caras legais como John Severin, Wally Wood e o próprio Bill Elder. Me custou a bagatela de 4 reais esse gibi puído e esquecido na prateleira de um sebo. Muito possivelmente, fui a última pessoa que vai lê-lo desde sua longa trajetória quando pertencia à biblioteca da Sociedade Americana dos Amigos dos Marinheiros (como diz um carimbo na folha de rosto), ou quando passou às mãos de um certo ˜Eduardo˜, que não deixou qualquer outro registro. Digo isso porque, na medida em que fui lendo o gibi, ele foi literalmente se despedaçando, por mais que eu tenha costume de ler livros com cuidado para preservá-los. Primeiro, ele se dividiu ao meio. Depois, uma de suas partes segmentou-se em outras duas (estilo Gremlins), até que as páginas começaram a cair uma a uma, algumas realmente se esfarelando. Death comes to us all, even little books

O humor da MAD original, como se sabe, era paródico e pentelho, e foi uma das primeiras publicações a sacanear pesado com a cultura pop de sua própria época, coisa hoje quase irritantemente lugar-comum (de coisas boas, como South Park, a ruins, como CQC). Incrível que uma concepção completa de humor contemporâneo tenha saído da cabeça de uns 4 ou 5 caras no meio do macartismo americano. Esta história Frank N. Stein é uma das mais divertidas, justamente porque Gaines cria a paródia perfeita do cientista europeu genial, sádico e obcecado. Tudo bem que o Dr. Frankenstein original fosse um personagem suíço. Aqui ele vira um alemão aloprado, de sotaque carregado (chega a ser difícil de entender coisas como "Ja boss! Ja boss! All der time you iss saying, 'Ja boss'! Rause mitt der 'Ja boss', hey vill you?"). Era o início dos anos 50, bem fácil de sacanear alemães.

O quadro em questão é o primeiro em que o monstro de Frank N. Stein, já no final da história, aparece. Ele é diferente porque, no resto todo dela, Gaines coloca uma enormidade de falas malucas e histéricas nas desventuras do Dr. Stein e seu mongol ajudante Bumble em busca do monstro fugitivo. Aqui, o quadro é sem falas e o desenho diz tudo, sem mencionar a palavra "Hitler" uma vez sequer. O mistério todo se dava porque Bumble havia acidentalmente roubado um cérebro "horripilante, que deveria ser destruído imediatamente" e colocado no monstro. Elder vai desenhando o jeito histriônico desses personagens sempre com o detalhismo cômico dos college comics e cheio de easter eggs de cultura pop, paródias estilísticas, movimentos legais de aproximação, enfim, uma beleza. Quando eles finalmente acham o monstro, este quadro da criatura com bigodinho nos surpreende tanto quanto aos soldados americanos que o caçam. Porém, a coisa fica ainda mais aloprada quando o monstro simplesmente bate os braços e levanta voo, piando sem parar. O dono original do cérebro então chega e diz que aquilo pertencia a um passarinho. Como se vê, Gaines já tinha a sacação de parodiar o nazismo e ao mesmo tempo o estereótipo da crítica ao nazismo numa mesma história.  Pena que um humor tão fino e burlesco como esse esteja mais em quadrinhos esfarelados e que deram perda total como esse meu gibi do que nesses webcomics cínicos e sem qualquer sutileza de hoje em dia. (CIM)

As sombras, sempre





















por Ciro I. Marcondes

O expressionismo é um padrão visual e conceitual que, com o passar do tempo e diluição bem rala de suas origens, acabou deixando de ser uma estética completa para se tornar uma espécie de estilema. Digo isso porque, na maioria das coisas que vejo com influência expressionista, parece existir uma intenção bem explícita de parecer expressionista, como se identificar essa predileção fizesse parte do processo de entender estas obras. Isso faz com que sempre esses efeitos pareçam somente lisonjeiros ou até paródicos. Daí coisas como o cinema de Tim Burton ou boa parte desses filmes de terror asiáticos. Nos quadrinhos acho que o fenômeno se repete, sendo o estilema um conjunto de dados visuais bem fechado. A gente pode achar isso desde na clássica história de Spiegelman “Prisioneiro do planeta inferno”, que aparece também em Maus, até nas adaptações de Kafka feitas por Peter Kuper, legais, mas bem óbvias, apesar de um quadrinista como Mutarelli flutuar na direção de uma composição bem mais orgânica com o tema.

É aí que vejo o maior mérito (não pequeno, e não único) da graphic novel Três sombras, do francês Cyril Pedrosa, premiada em Angoulême e publicada aqui pela Cia. das Letras. Curiosamente famoso por animar Hércules e Corcunda de Notre Dame para a Disney (guardadas as proporções, a base do traço é a mesma de Três sombras), Pedrosa acabou escrevendo um conto de fadas não apenas com franca inspiração expressionista, mas que também traz o conteúdo essencialista de seu arcabouço estético e filosófico sem parecer estar fazendo um monte de citações inócuas. Três sombras tem muita força estilística e conceitual, e a beleza de sua história aproveita, de maneira muito pessoal, o fundamento expressionista sem recorrer a um estilema visual.


Vejamos: supostamente direcionado às crianças (talvez para causar-lhes pesadelos), Três sombras é uma HQ muito adulta, em que um pequeno núcleo familiar e rural, situado num tempo imemorial (mas que se assemelha à idade mercantil), que convive harmoniosamente em laços legítimos e comoventes, precisa lidar com a chegada de três viajantes (“sombras”), que nunca se aproximam, nunca se revelam, mas das quais sabe-se bem o propósito: vão levar o filho Joachim, para nunca mais trazê-lo de volta. A harmonia então transmuta-se num conto de angústia até que o pai, Louis, decide forçar a barra e carregar o filho para longe das sombras, saindo do pequeno geno da fazenda e abrindo os horizontes do filho e de si mesmo para “mares nunca d’antes navegados”, numa jornada sinistra com tipos cada mais estranhos e perversos entrecruzando-se no caminho dos dois. A jornada em busca da vida é também, portanto, uma jornada de descoberta, amadurecimento e enfrentamento.

A qualidade gráfica do trabalho de Pedrosa é exasperante e exultante. Logicamente está presente um alfabeto expressionista básico, com contrastes de luz e sombra, mas o autor sabe bem subvertê-lo e deixar sua influência mais transparente. Ao contrário da angulação excessiva, tradicional nos decalques do estilo (imagino que a origem de tudo ainda seja a tosqueira que é O gabinete do Dr. Caligari), Três sombras é uma obra de fluxo livre, bem mais simbolista, alternando figura e fundo, eliminando as fronteiras entre os requadros, com linda modulação de movimentos e matizes de giz e grafite que se adaptam às tensões emocionais das cenas. Este era um dos princípios tanto das encenações teatrais expressionistas (basta pensar nas obras de Wedekind ou Strindberg) quanto na pintura expressionista do fim do século 19, que deu origem a tudo: o expressionismo não é uma deformação óptica (como o impressionismo ou esses decalques), mas sim uma visão produzida a partir das ambiguidades internas do indivíduo, uma expressão do “eu”. Em uma Europa perturbada por longa sequência de guerras e com a arte entrando em crise profunda, a busca por uma essência gutural, longe da técnica, que retomasse nossa animalidade intrínseca, acabou sendo fundamental para abalar a noção iluminista de indivíduo que até então vigorava.  É por isso que, mais do que uma estética manjada de embelezamento gótico, o expressionismo é também uma filosofia em si, e suas obras narrativas são sempre alegóricas. De Da aurora à meia-noite a um filme como Nosferatu (Murnau), a histórias projetadas são transvisualizações (o que nos leva a pensar em como este conteúdo ajudou a fomentar a psicanálise ou o surrealismo) de nossas próprias funções mentais, e assim acontece em Três sombras.

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O que temos nesta HQ seria uma redução bem primal de certas angústias básicas e inevitáveis, num conto de fadas que ao mesmo tempo não deixa de ser uma aventura encantadora. O medo da morte, medo do crescimento, do envelhecimento, da fragmentação familiar, de perdermos nosso Éden originário (a infância, a família), de encararmos o lado torpe do mundo, etc., são temas que vão tomando estas formas oníricas, e a de se estar sonhando também é uma sensação que Três sombras nos transmite. A saída deste Éden (útero) primaveril e telúrico de pai e filho leva a um mundo de extorsão, repleto de canalhas, dissimulados, cretinos e psicopatas. Louis acredita que a força inesgotável de seu amor paternal é suficiente para vendar os olhos de seu filho para esta realidade inevitável, mas o roteiro de Pedrosa nos mostra que a persistência é também um ato dilacerado e inútil. O luto pesado, portanto, diante da morte ou do crescimento (growing pains), é algo graficamente e simbolicamente traduzido nas páginas de Três sombras. Este luto, natural a cada um de nós, é a metáfora que reside na sombra expressionista, para a qual sempre olhamos de um jeito torpe, difuso, à meia-luz.

Esta redução a arquétipos, tão mitologicamente proposta pelos pintores e dramaturgos alemães que previam uma grande transformação da psiquê humana com a virada daquele século, tem sempre na figura sinistra da morte uma concentração simbólica maior. Em Três sombras, quando a morte aparece, é para, como sempre, reafirmar seu caráter de inexorabilidade, sua emulsão sem fim de angústia, ainda que de forma plácida. Ela surge apenas para afirmar que “não pode revelar” o que há do outro lado da travessia, da mesma maneira que faz no clássico filme O sétimo selo, de Bergman, quando afirma ao cavaleiro Antonius Block “não saber” o que acontece com as almas depois que elas partem. Este filme, não por coincidência, parte do mesmo princípio de originalidade de Três sombras: investe num profundo mergulho do inconsciente expressionista sem citá-lo, sendo-o sem procurar sê-lo. É o grande mérito de artistas cada vez mais raros que, de fora do ambiente histórico e cultural que gerou esta forma de expressão, conseguem pensar, naturalmente, de forma expressionista. Três sombras, uma grande HQ, acaba de entrar para um clube seleto.              

As sombras, sempre

Essencialmente brasileiros






















por Pedro Brandt

No ano em que Zé Carioca, o mais verde e amarelo dos personagens de histórias em quadrinhos, completou 70 anos (ou seriam 69? Há divergências), cabe uma pergunta: a cultura, as temáticas, as histórias, enfim, o Brasil pode servir como inspiração para HQs? Muitos responderiam que sim. No entanto, não é preciso ir muito longe para  perceber que a maioria dos quadrinhos brasileiros têm, no fundo, histórias de teor universal nas quais a brasilidade aparece de maneira mais implícita. Essa constatação de forma alguma tira os méritos desses quadrinhos. Mas é interessante notar que alguns autores têm conseguido imprimir em suas obras uma inegável cara brasileira — sem apelar para ufanismo. Marcello Quintanilha e André Toral são dois deles.

Coincidentemente, Quintanilha e Toral estão com novos trabalhos na praça, Almas públicas, do primeiro, e Curtas e escabrosas, do segundo. Mais coincidências: ambos têm 72 páginas e um preço muito parecido. Além disso, os dois álbuns apresentam tanto histórias recentes quanto trabalhos antigos dos desenhistas/ roteiristas. Outra semelhança entre eles são os desenhos com personalidade, imediatamente reconhecíveis. Mas enquanto André Toral é mais direto e simples, Marcello Quintanilha é rebuscadíssimo, próximo da fotografia.



Toral, paulistano de 53 anos, tem um currículo acadêmico que ajuda a entender os temas de suas HQs. Ele é graduado em ciências sociais pela USP, mestre em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ e doutor em história pelo Departamento de História da USP. Sua dissertação de mestrado é sobre religião e organização social dos povos de língua Karajá, e sua tese de doutorado sobre a iconografia da guerra do Paraguai.

Mas o universo de índios, escravos e Brasil antigo inspirou apenas algumas das histórias de Curtas e escabrosas. Outras tantas vêm de observações do cotidiano urbano, de personagens como garotas de programa, leões de chácara, motoboys e funcionários do baixo escalão do tráfico de drogas. Nem todas as HQs são escabrosas (tem muito humor nelas), mas todas são curtas. “Duas páginas é o mínimo, pelo menos pra mim, para se poder contar um história. Como quadrinhos no Brasil pagam mal, era a forma mais barata de contar uma história decentemente e, ao mesmo tempo, não gastar muito tempo, nem do autor e nem do leitor. Terminei me acostumando a essas limitações e o que era uma contingência virou opção”, explica Toral no posfácio da edição. Acaba que suas HQs ganham cara de crônicas ligeiras, que falam o que precisam falar em pouco espaço/tempo.

Nascido em Niterói (atualmente vivendo em Barcelona), Marcello Quintanilha, 40 anos, é outro apaixonado pelo Brasil de ontem, mais especificamente as décadas de 1950 e 1960. Mas Almas públicas também reúne histórias que se passam hoje em dia, a exemplo de "De pinho", que narra o encontro casual de um grupo de jornalistas com um jogador de futebol tímido que é ídolo na comunidade onde mora. Aliás, a vida nos subúrbios, seus causos e personagens pitorescos são recorrentes na obra de Quintanilha.

O que se sobressai na produção desses dois autores é a capacidade de, em poucas ou muitas páginas, apresentar personagens incrivelmente humanos — e essencialmente brasileiros. A coloquialidade dos diálogos e a simplicidade das situações aproximam o leitor e o levam para ser testemunha dos pequenos dramas narrados. Prova não só de suas capacidades como contadores de história, mas de como a inspiração para uma boa HQ pode estar em qualquer coisa, em qualquer lugar.

Almas públicas
De Marcello Quintanilha. 72 páginas. Conrad Editora. R$ 39,90.


Curtas e escabrosas
De André Toral. 72 páginas. Devir Livraria. R$ 39,50.





Publicado originalmente no Correio Braziliense