Lasercast #44 - Os Gibis da Guerra: Manifestações da Guerra em Quadrinhos

Lasercast #44 - Os Gibis da Guerra: Manifestações da Guerra em Quadrinhos

A guerra é um fenômeno que envolve arte e mídia. Partindo destas premissas, a equipe raiúka elabora longamente sobre suas leituras em quadrinhos de guerra, das origens à atualidade, em recorte específico mas não aleatório, que passeia por obras americanas, argentinas, italianas, francesas, japonesas, etc. Kurtzman, Tardi, Joe Kubert, Zerocalcare, Altarriba, Oesterheld, Gipi e muitos outros são abordados. Daqueles episódios densos típicos do melhor produzido no Lasercast.

Participam do debate: Márcio Júnior, Marcos Maciel de Almeida, Ciro Inácio Marcondes, e Pedro Brandt.

Edição: Eder Freire.

Disponível em: SPOTIFY, APPLE PODCASTS, GOOGLE PODCASTS, CASTBOX, ANCHOR, BREAKER, RADIOPUBLIC, POCKET CASTS, OVERCAST, DEEZER

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A importância histórica e estética dos quadrinhos de guerra: Harvey Kurtzman e Héctor Oesterheld



por Ciro I. Marcondes

Este artigo foi produzido para dois congressos pioneiros na tentativa de amadurecer os estudos universitários sobre histórias em quadrinhos no Brasil. O primeiro deles foi a II Jornada de Romances Gráficos, organizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, que rendeu debates amplos sobre a necessidade de se pensar os quadrinhos no Brasil, participações memoráveis de quadrinistas como Laerte e pesquisadores como Benjamin Picado e Elvira Vigna, além de um texto afetivo da Raio Laser. Os textos do congresso podem ser lidos aqui.

O segundo foram as 1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, realizadas, em agosto na ECA-USP. De maior porte e maior diversidade temática (foram abordados aspectos múltiplos da história, da indústria, da tecnologia e da estética dos quadrinhos), este encontro foi fundamental para legitimar ainda mais esta opção de pesquisa, fazendo uma varredura espessa na maneira com que a pesquisa científica pode olhar para o fenômeno que são os quadrinhos.

Segue, então, meu artigo completo, publicado nos anais dos dois congressos, expandindo o que eu já havia anunciado em Raio Laser. Boa leitura e comentários são sempre bem-vindos.


1 – Introdução:

O estudo das histórias em quadrinhos (HQ), mesmo dentro de um mais aberto ambiente cultural contemporâneo, ainda precisa enfrentar, em sua revisão histórica, o problema de o meio ter sido abertamente manipulado, através de décadas, para que seu conteúdo se mantivesse sob rigoroso controle de suas potencialidades expressivas. Mais do que isso, outro problema é procurar vasculhar o valor cultural da trajetória das HQs quando é sabido (cf. HADJU, 2009) que elas foram também controladas mercadologicamente e ideologicamente em função de diversos interesses políticos e econômicos, sempre relativizados porque eram “produto para crianças”, álibi perfeito para transformá-las em espécie de subproduto cultural aparentemente sem importância.

Este artigo procura demonstrar que um estudo retrospectivo a respeito da inserção das histórias em quadrinhos na vida cultural do século XX não apenas tem valor para o estudo da produção cultural e social, mas também valor legítimo histórico, sendo influente sobre os eventos que narra, com alguns exemplos de decisiva capacidade crítica, e por fim de influente problematização estética. O universo das guerras modernas tem sido amplamente debatido tanto no âmbito da filosofia quanto da história, da literatura e da sociologia, assim como, obviamente, no cinema e no jornalismo, praticamente desde antes de as grandes guerras terem propriamente eclodido, e uma simultaneidade de questões são levantadas sempre em confluência com o surgimento de mais e mais campos e ambientes de conflito através dos séculos XX e XXI. A inserção da cultura de HQs neste debate, entretanto, é nova por parte tanto de uma revisão histórica, quanto sociocultural, quanto estética.

Cabe, portanto, lembrar um pouco da apropriação que as editoras americanas, nos anos 30 e 40, fizeram da imensa popularidade dos quadrinhos na época, para instilar, mesmo nas mentes infantis, uma noção de total união em torno dos ideais americanos, que transformavam todo tipo de participação civil em um ato em colaboração com a guerra, mesmo em terra natal. Em 1943, após a declaração de guerra americana, mais de 30 milhões de HQs eram vendidas mensalmente nos EUA,  e uma em cada 4 revistas enviadas às tropas americanas eram revistas em quadrinhos (cf. WRIGHT, 2003, p.31). O assédio aos meios de comunicação no final dos anos 30 e começo dos anos 40 coincidiu com a popularização do formato dos quadrinhos em revista, a criação dos super-heróis e de um aumento de camadas sociais, de gênero e de gerações que consumiam as HQs. Super-heróis hoje dominantes na cultura pop, como o Super-Homem, Batman ou Capitão América (criado especialmente com este fim, seguido de vários outros) rapidamente se tornaram emblemas de militarização e conscientização sobre a necessidade de apoiar incondicionalmente a participação americana na guerra. As crianças, inescapavelmente, eram convocados pelos super-heróis a contribuir com a cultura beligerante, mas defensora da democracia:

As editoras também viram que podiam melhorar sua imagem associando os produtos ao patriotismo e ao esforço de guerra. Superman salientou, aos leitores, a importância de doar para Cruz Vermelha Americana. Batman e Robin pediram às crianças para “manter a águia americana voando” através da compra de seguros de guerra e selos. Capitão América e seu ajudante Bucky mostravam aos leitores como coletar papel e metal para reciclagem. Editoras de todo o filão imprimiram um carta aberta do Secretário do Tesouro Henry Morgenthau Jr. pedindo a meninos e meninas que comprassem selos de guerra (Idem, p.34, tradução nossa).


O pesquisador Bradford Wright nos expõe, em Comic book nation, um detalhado histórico sobre como, desde antes do início da guerra e também antes do início dos ataques a Pearl Harbor, a indústria de quadrinhos americana (até hoje as vendas desta época se mostram dentre as mais rentáveis de todos os tempos) estava alinhada em esforços de patriotização, que envolvia grosseira demonização e estereotipagem xenófóbica, claramente conscientes de que uma entrada no conflito era iminente. Numa época em que a TV era ainda muito pouco influente, os esforços nacionais e praticamente unânimes das editoras ajudaram enormemente na tarefa difícil de manter o foco sobre a união nacional e impedir qualquer tipo de relativização pacifista.

O esforço de guerra dos quadrinhos, muito como o esforço político real, não deixou espaço para ambiguidade ou debates na maioria dos assuntos. Diretos, emocionais e ingênuos, os quadrinhos contribuíram para a largamente difundida impressão popular, que ainda persiste, de que a Segunda Guerra foi verdadeiramente uma “guerra boa” (Idem, p.44, tradução nossa).

Nosso estudo se concentrará em dois casos contraculturais e altamente influentes de histórias em quadrinhos de guerra que ajudaram a problematizar a indústria dos quadrinhos nos anos 50. Fundada nos anos 40, a Educational Comics (posteriormente “Entertainment Comics”, ou EC) deu radical guinada na visão americana sobre as HQs, trazendo conteúdo de muito mais verossimilhança, pessimismo e maturidade ao leitor (que já não era tão jovem), provocando a revolta de associações de pais e mestres e das igrejas. Seu reformulador, William M. Gaines, teve de depor à Suprema Corte Americana durante a Guerra Fria, e o legado da EC só pôde ser reconhecido décadas depois. Além de padrões grotescos de terror e ficção-científica, bastante chocantes, a EC ofereceu, através de uma visão arrojada e pós-moderna avant-la-lettre de seu editor, roteirista e desenhista Harvey Kurtzman, alguns dos melhores quadrinhos de guerra de todos os tempos, trazendo uma leitura sombria e niilista da Guerra de Coréia, que ainda estava em curso. Perceptivelmente influenciado por estes quadrinhos, o clássico roteirista argentino Héctor Oesterheld lançou, no final dos anos 50, a série Ernie Pike, de incrível visão humanística afiliada a seu peronismo radical, revisando a segunda guerra mundial como um constante ato fúnebre, de luto eterno, a partir do lápis do desenhista italiano Hugo Pratt.


Corto Maltese, amigo dos cangaceiros






















por Ciro I. Marcondes

Nosso país tem a capacidade peculiar de impressionar os estrangeiros, e algumas visões muito famosas foram descritas e registradas por autoridades intelectuais históricas, e outras nem tanto. Basta lembrar que Charles Darwin passou mais de um mês viajando pela costa do Brasil no Beagle, a partir de fevereiro de 1831, e isso foi declaradamente importante para que ele tivesse aquele estalo para pensar a teoria da evolução. Darwin também ficou positivamente chocado com a cultura do escravismo e a relação de passividade que ambos os lados nutriam com este sistema econômico, e ele não seria o último a pensar o Brasil como algo exótico não apenas no que diz respeito à nossa diversidade natural.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss (lembrado por ter sido meio que sacaneado por Caetano Veloso), esteve no Brasil quase um século depois (1935-39 - vale ler o romance Nove noites, de Bernardo Carvalho, que menciona o caso), no alto Xingu, e enfatizou que tornou-se cientista de verdade no Brasil. Seu trabalho sobre estudos de parentesco e mitologia a partir de povos indígenas brasileiros ainda é referência mundial em antropologia. De alguma forma ainda meio miraculosa e errática para nós, algumas peculiaridades de nossa cultura continuam fazendo parte do “incognoscível” para os gringos. Lembro do show do REM em 2001 no Rock in Rio, quando o vocalista Michael Stipe disse, com provável sinceridade, que o Rio de Janeiro era a cidade “mais sexy” em que ele já havia estado. Os casos, independente da relevância, são numerosos.

Mas o que me deixa realmente feliz nesse panorama é o fato de um sujeito não-científico, verdadeiramente errante e multicultural – o gênio solto e plural dos quadrinhos Hugo Pratt, precursor de Clint Eastwood e o escambau – tenha não apenas dedicado parte de sua arte para debulhar as particularidades do Brasil, como também tenha efetivamente morado por aqui no início dos anos 60 e – dizem (e porque não alimentar lendas legais?) – teve uma filha índia por aqui. Pratt, bem diferente dos estereótipos de tipos inadequados e esquisitos de quadrinistas, era viajante indevassável, tendo morado em mais de 10 países diferentes, em todos os continentes.


Exemplo da espetacular habilidade de Pratt em narrativa
gráfica. Clique para ampliar
É por isso me cabe uma análise do volume com as histórias de seu alterego Corto Maltese no Brasil, republicadas pela Pixel em 2006 na edição “Sob o signo de Capricórnio”. Pratt não apenas reverte o andamento das publicações anteriores do famoso pirata italiano - trazendo a logística do prequel (estas histórias se passam antes da clássica “Balada do mar salgado”) à HQ moderna – como procura fazer um investimento sincero e dedicado à cultura brasileira (além de outras culturas do “trópico de capricórnio”, como a antilhana e das guianas). Ele não apenas realiza pesquisa acurada sobre a fisionomia e hábitos culturais de nossos povos, como procura fazer um tipo especial de desvelamento artístico dos segredos dos nossos signos, buscando com obsessão a condição de insider. Pratt não procura o olhar naturalista e socialmente horrorizado de Darwin, e nem o objetivo da produção de uma etnologia, caso de Lévi-Strauss. Por mais confusa e culturalmente inexata que seja, a visão do quadrinista veneziano sobre o Brasil é uma das mais apaixonadas e apaixonantes com as quais já tive contato, sendo capaz de entusiasmar mesmo o leitor brasileiro.

"O mundo em que vivemos, felizmente, é limitado"



Para o leitor neófito, vale contextualizar Corto Maltese. Nos anos 50, Pratt passou longo tempo publicando na Argentina, em séries memoráveis (conforme já mencionado em RL) que foram fundamentais para elaborar sua visão humanista, e o personagem Corto surgiu já no fim deste período. Pode-se dizer que, como o célebre Guido de Mastroianni no 8 ½ de Fellini, ou Sal Paradise para Jack Kerouac, Corto representa um autêntico alterego para Hugo Pratt. Filho de uma cigana pintada por Ingres e um marinheiro escuso, o abastardado Corto é uma figura sóbria e evanescente, viajando por américas, antilhas, áfricas e pacíficos ainda capazes de iluminar nosso faro para o lendário e o fascinante, em consonância com a chegada da modernidade e as guerras. São aventuras no último período romântico deste planeta, antes que o essa febre global de consumo e conectividade matasse nossa matriz mítica.   
    
Publicadas entre 1970 e 1973, estas histórias curtas de Corto no Brasil recuam no tempo em relação à Balada do mar salgado, e colocam o marinheiro soturno e mercenário ao lado do jovem herdeiro britânico Tristan Bantam e do intelectual alcoólatra Steiner, em princípio na Guiana Holandesa (hoje Suriname), partindo depois para aventuras que desembocam em Salvador, depois na praia de Itapoã e finalmente no sertão da Bahia, próximo de onde haviam ocorrido as antigas revoltas de Canudos. Vale pensar que Corto Maltese é uma HQ de força gráfica e narrativa, legítima arte de movimento e ação, mas não se esquiva de compor tudo isso com textos numerosos e por vezes prolixos, com rico detalhismo geográfico, cultural e histórico. Pratt era mestre tanto no preto-e-branco (nanquim) quanto com as cores (guache) e seu traço esteve sempre a serviço das expressões profundas ou impactadas de suas enormes e variadas galerias de personagens.

Em Sob o signo de Capricórnio, Tristan Bantam é levado à Bahia já por meio de um encantamento sobrenatural: ninguém menos que o orixá Ogum Ferreiro o convoca  até sua meia-irmã (negra e brasileira) Morgana, iniciada nas práticas do oculto junto a figuras igualmente sedutoras do ponto de vista do misticismo, como a legítima “preta velha” Baianinha e a líder espiritual Boca Dourada. Pratt se atropela um pouco ao fazer de seu Brasil mítico um pardieiro de crenças exóticas, mas que no fundo manifestam charme e até integridade. Sua aproximação do candomblé brasileiro com o vodu antilhano acontece com um recurso da própria narrativa: o povo ancestral e desaparecido de Mû, que une não apenas todos estes traços da colonização americana como inclui todo um contexto da cultura Asteca, jogando também a América do Norte no balaio. No fim das contas, jogos de Tarot, caveiras mexicanas e até “sabedorias” do jogo de pôquer são alinhados para tentar fazer deste conjunto de personagens um vulto respeitoso, sábio, dominador da “magia negra” (quando o termo ainda não era politicamente incorreto e nem denotava conluio com o capeta).

Uma das cenas mais interessantes deste arco de histórias é justamente aquela que enquadra o leitor à visão cética dos personagens – Corto, bem cínico, incluso –, quando Tristan Bantam, hospedado na grande casa de sua irmã Morgana e examinando as anotações de seu pai (pesquisador de Mû) é transportado, tal qual numa viagem de psicotrópicos fortes, a um ambiente metafísico rodeado de totens parecidos com aqueles próximos à cidade Cuzco, no Peru. Lá, ele trava encontros profanos a partir de desdobramentos no espaço-tempo, consigo mesmo e com entidades antigas, de culturas milenares, que unem Mû à Atlântida, ao imaginário Asteca e a outros motivos do incognoscível. A partir do ceticismo pragmático de Corto, Pratt não revela a natureza exata deste conhecimento místico, e as lacunas que são deixadas aos personagens são as mesmas que são deixadas ao leitor, o que, ao menos me parece, é a melhor maneira de explorar essa estranha fronteira no mundo da arte. Vale citar as palavras do Professor Steiner, verdadeiro produto de literatura: “Tristan, o mundo em que vivemos, felizmente, é limitado. Bastam poucos passos para sair do quarto, poucos anos para sair da vida, mas suponhamos que nesse pequeno espaço, de repente obscuro, nós tenhamos nos perdido, ficado cegos... Então, tudo parecerá enorme e nosso quarto, grande, incrivelmente grande, a ponto de parecer impossível...”.


Por fim os aventureiros são levados ao sertão da Bahia, a mando de Boca Dourada - que reune as funções de feiticeira-mor, possível imortal, líder espiritual e política de várias comunidades destes “tristes trópicos” – para encontrar o bando cangaceiro de Tiro Certeiro, herdeiro do líder revolucionário Sebastião, O Redentor, assassinado pelos soldados do Coronel Gonçalves. Este script, tão reconhecidamente brasileiro, surpreende não só pela elegância da apresentação dos fatos, mas também pela caracterização precisa, física e psicológica, do tipo brasileiro e nordestino do início do século XX. Pratt não perde a chance de demonstrar erudição ao fazer citações a Glauber Rocha, à revolta de Canudos e ao bando de Lampião. Mais do que simples menções generalizantes sobre culturas “exóticas”, o que o quadrinista veneziano faz é pensar esses sincretismos todos em prol daquilo que move Corto Maltese em sua característica primordial: a liberdade de ir e vir, a liberdade de se manifestar.

Pratt não faz julgamentos sobre o conteudo original do conhecimento místico dos baianos, e tampouco faz sua leitura do cangaço como um movimento de banditismo. Em sua concepção, estas histórias locais são desdobramentos da liberdade de se pensar e agir humanos, e por isso ele provoca o leitor ao suceder, à morte de Sebastião e depois à de Tiro Certeiro, a nomeação do um menino chamado Corisco como futuro líder da revolta. Tudo isso garante ao galante pirata o epíteto de “amigo dos cangaceiros” nas palavras do pequeno líder. No final da história, ao ser questionado se achava que o menino chegaria a lutar contra os governadores do sul, Corto Maltese responde: “Pode ter certeza. E depois dele haverá outro, e outro ainda, até que eles se libertem e alcancem a justiça... não podem mais voltar atrás!” Como se pode ver, Hugo Pratt parecia saber mais sobre o Brasil do que a maioria dos brasileiros.


Publicado pela primeira vez em EmQuadrinho

A guerra em quadrinhos - três tempos, três autores, três visões: preview


Por Ciro Inácio Marcondes

Este é o resumo expandido do meu trabalho aprovado para as primeiras Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, que ocorre na USP em agosto. Compartilho-o com vocês. O artigo fica pronto até o fim do mês, mas só poderei mostrá-lo depois das jornadas. (CIM).

A guerra em quadrinhos: três tempos, três autores, três visões (resumo expandido)

Nascidos, em seu formato de massas, junto com o próprio século XX, os quadrinhos estiveram no centro de importantes debates sobre as guerras, e esta é uma história desconhecida. Este estudo procura demonstrar que, mesmo durante a era clássica das HQs, existia uma preocupação reflexiva e humana, associada a projetos estéticos e linguagens personalizadas, sobre os efeitos socioculturais das guerras. Três diferentes guerras, autores e momentos históricos compõem este painel, relacionando-os intrinsecamente. Além da própria leitura analítica dos quadrinhos mencionados, será necessário nos apoiarmos na trajetória histórica do quadrinho americano clássico e da EC Comics (HADJU; WRIGHT); em uma fundamentação da estética narrativa dos quadrinhos (GROENSTEEN); e em uma historiografia dos quadrinhos argentinos (RAMOS) para, por fim, nos aprofundarmos em Joe Sacco com o estudo Alternative comics, an emerging literature (HATFIELD). 

A segunda guerra foi palco para a série argentina Ernie Pike, escrita pelo célebre Héctor Oesterheld e desenhada por um jovem Hugo Pratt. Publicada entre 1957 e 58, ela utilizava como personagem o histórico jornalista de guerra americano para transmitir um humanismo declarado e trágico sobre pequenas histórias individuais escondidas nos números da grande guerra. Ernie Pike é aventuresco, idealista e consideravelmente literário, revelando amarga e tradicional visão sobre a guerra.

O segundo modelo é um pouco anterior à publicação argentina, mas esteticamente mais arrojado, cru e niilista. O quadrinista Harvey Kurtzman foi um dos responsáveis pelo sucesso e teor adulto da EC Comics nos Estados Unidos nos anos 40 e 50. Kurtzman situava suas histórias em uma guerra contemporânea à época, a da Coréia. Seu traço vigoroso e narrativas fluidas, que invertiam relações morais na guerra, são ambíguas e céticas, com visão madura e anti-romântica, sendo comum serem contadas do ponto de vista do inimigo.  

Depois do clássico e do moderno, chegamos à configuração contemporânea do quadrinista Joe Sacco a partir da análise dos dois volumes de Palestina, publicados originalmente em nos anos 90. Distante do idealismo ou do ceticismo dos outros, Sacco desenvolveu, numa graphic novel composta de dezenas de relatos que coletou em sua visita à faixa de Gaza, uma forma autobiográfica, epistolar e documental de vislumbrar a violência da guerra em quadrinhos. São patentes as influências do cinéma verité e do new journalism para compor esta visão pós-moderna e ativista dos quadrinhos, altamente consciente do potencial do meio enquanto instrumento político.

Bibliografia:

GROENSTEEN, Thierry. The system of comics. University press of Mississipi, 2009.


HATFIELD, Charles. Alternative comics: an emerging literature. University Press of Mississipi, 2005.

KURTZMAN, Harvey. Clásicos bélicos, two-fisted tales. Barcelona: Planeta DeAgostini, 2006.

OESTERHELD, Héctor; PRATT, Hugo. Sargento Kirk/Ernie Pike. Buenos Aires: Arte Gráfico Editorial, 2006.

RAMOS, Paulo. Bienvenido. Um passeio pelos quadrinhos argentinos. Campinas: Zarabatana, 2010.

SACCO, Joe. Palestina, uma nação ocupada. São Paulo: Conrad, 2000.

WRIGHT, Bradford W. Comic book nation. The transformation of youth culture in America. John Hopkin University Press, 2003.

HQ em um quadro: exército japonês por Hugo Pratt


Exército japonês na segunda guerra mundial (Hugo Pratt/Héctor Oesterheld, 1959): Mais de 10 anos antes de se celebrizar pela genial série Corto Maltese, o grande ilustrador e roteirista italiano Hugo Pratt esteve na Argentina e trabalhou anos com Oesterheld, o maior roteirista platino. Esta imagem é da série Earnie Pike, que está dentre os mais qualificados quadrinhos de guerra do mundo. Oesterheld tinha a fina qualidade de situar a segunda guerra em localidades tão díspares quanto o norte da África, o sul da Itália ou ilhas no Japão, elaborando a diversidade do conflito. Pratt, como se vê, em 1959 já desenvolvera seu traço angulado de belo riscado em preto-e-branco, num requadro panorâmico que deixa, sem que apareçam ideologismos, os japoneses tão assustadores quanto o papel que desempenham na história.