A Entrevista, de Manuele Fior: o fim da vida moderna

A Entrevista, de Manuele Fior: o fim da vida moderna

Dora não é apenas uma bela jovem por quem Raniero sente desejo sexual, ela é uma ligação com um mundo novo, em que os prazeres são livres e as vontades não são castradas. Em certo momento, quando os dois já estão íntimos, a moça comenta com Raniero como ele tem nojo do mundo e das suas vontades e de como isso é estranho aos olhos dela. Quando o terapeuta comenta sobre os hábitos da jovem, ela responde: “o mundo que é velho”. Já foi dito aqui que A Entrevista se passa em um futuro próximo, mas esse futuro não revela uma mudança real, tudo continua de forma parecida e o peso de uma vida melancólica transparece nos personagens, especialmente os que já estão na faixa de cinquenta anos, como Raniero.

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Novíssimo quadrinho italiano: breve panorama

Novíssimo quadrinho italiano: breve panorama

A editora italiana Canicola resolveu dar uma chance para novos talentos dos fumetti na simpática coleção Henry Darger, que teve duas edições lançadas em 2016 e quatro em 2019. Vendida a preços módicos no stand da empresa no último Lucca Comics & Games, resolvi comprá-la para conhecer um pouco da recente produção local. Esse contato serviu para me apresentar um pouco do que existe no inconsciente coletivo dos jovens do país. É praxe dizer que não se deve impor barreiras ao espírito criativo. E os novatos seguiram religiosamente esta máxima. No terreno livre e desimpedido das HQs, escreveram, pintaram e bordaram sem recalques. Por isso, senti-me particularmente satisfeito com a possibilidade de assistir, de camarote, às taras, medos e inseguranças da Geração Y italiana, nascida entre 1980 e 2000.

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DRUUNA: PRAZERES ROUBADOS

DRUUNA: PRAZERES ROUBADOS

Cada quadro de Drunna explode em imagens de realismo exuberante. Seu domínio do claro-escuro por meio de inconfundíveis tramas de hachuras é algo único – como evidencia o rico e indispensável caderno de extras. E a destreza no uso da aquarela, bem como a primorosa escolha da paleta de cores – sempre em função da atmosfera narrativa – deveriam ser suficientes para proibir o vulgar uso de Photoshop na colorização de quadrinhos. As páginas de Serpieri são puro deleite visual – que finalmente ganham edição à altura no Brasil.

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HQ em um quadro: Milazzo, em negativo. Por Berardi e Milazzo.

O grupo de Ken Parker parte, em vão, para evitar estupro, morte e rebelião (Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, 2002): que no gibi Ken Parker destila-se um adensado painel sociológico dos nossos dias atuais, sempre veiculado pelo gênero mítico que é o western, associado a um painel multicultural (vejam: histórias no velho oeste americano, feita por italianos, com fôlego universalizante), o bom leitor de HQs de qualidade (ou seja: o leitor de Raio Laser) já deve saber. Não surpreende, portanto, que na história em dois arcos "Um sopro de liberdade", publicada pela Mythos no Brasil em 2002, encontremos um debate ético capcioso, envolvendo sistemas prisionais, racismo, sociabilidade, estupro, jornalismo marrom e toda uma miríade de enlaçamentos contemporâneos que não nos surpreenderia se se passasse num presídio na São Paulo dos dias atuais. 

Aqui, Ken Parker está simplesmente... preso. O olhar humanitário do herói permite que se deflagre, deste ambiente, uma fauna rica de pessoas que estão encarceradas por motivos diversos: do cara que está ali vítima de puro racismo, ao mafioso veterano, ao psicopata. Fora isso, um coronel procurando fazer a coisa certa, mas levado a executar a coisa errada, um prefeito com o cuidado de não manchar sua imagem, um jornalista inescrupuloso, mas tentando fazer seu trabalho, e duas damas da sociedade feitas reféns dão o tom para que esse barril de pólvora inevitavelmente exploda.

Sobre o brilhantismo do texto de Berardi, não há mais muito o que comentar. Dentro deste painel delicado, ele demonstra que, se se consegue erigir um equilíbrio frágil na rebelião que se instaura na prisão a partir de extensa negociação política (os presos, afinal, queriam melhores condições em relação aos sádicos carcereiros), basta uma maçã podre (e não é muito difícil achar algumas delas neste ambiente) para desencadear o velho processo de tudo se esvair por água abaixo. Neste caso, basta a fome sexual animalesca de um dos presos para que uma chocante cena de estupro ocorra pouquíssimo antes do quadro destacado aqui. O que parecia uma produtiva negociação em favor dos presos se torna o álibi perfeito para a entrada do exército no presídio, e um massacre ocorra. Uma história baixa, como tantas outras. 

No quadro destacado, o genial desenhista Ivo Milazzo consegue captar a intensidade do momento com um recurso simples. Cabe aos gênios exaurir as potências dos recursos simples, sempre. Milazzo, um mestre estilístico da luz e da sombra, dono de um grafismo radical que deslacra as possibilidades expressivas dos quadrinhos, abre a página 71 com um quadro de cores invertidas. No opaco fundo branco, vemos as sombras do grupo de Ken Parker correrem num plano de conjunto absolutamente frontal, como se se dirigisse ao próprio leitor. Qual a mensagem de quadro tão simples, mas tão magistralmente arrojado? A resposta é menos simples: invertendo as cores, Milazzo primeiro subverte o equilíbrio e a ordem até então instauradas na negociação. Como se dissesse, cromaticamente: algo deu errado! Em segundo lugar, o enquadramento frontal nos coloca na linha de fogo do conflito. O embate ético, que antes se vinculava aos personagens e suas contingências, agora é também um desafio ao leitor, que precisa ficar acuado, como se convidado a entrar no conflito. Desta maneira, Milazzo quebra a difícil quarta parede dos quadrinhos, transportando-nos para um inferno social que passa a ser também um inferno íntimo. (CIM)

Obituário: Sergio Bonelli (1932-2011)






















Nesta segunda-feira, Tex trocou a camisa amarela por uma preta. Zagor deixou a machadinha em casa. Dylan Dog, Martin Mystère e Julia Kendall tiveram que postergar suas investigações. Quando ficaram sabendo da notícia, Mister No e Nathan Never cancelaram as aventuras do dia. Em sinal de respeito, esses e tantos outros personagens pararam o que estavam fazendo para lamentar a morte do amigo Sergio Bonelli. O escritor e editor italiano morreu na manhã de hoje, em Monza, de razões ainda não divulgadas. Tinha 78 anos.

Estou longe de ser o maior conhecedor de Tex (criado pelo desenhista Aurelio Gallepini em parecia com Gian Luigi Bonelli, pai de Sergio) ou mesmo dos heróis citados no parágrafo anterior. Mas se me deparo com um gibi da Bonelli tenho certeza de que será uma leitura satisfatória. E isso só seria possível graças ao trabalho desenvolvido ao longo de décadas por Sergio na editora que leva seu sobrenome.

Em tempos em que o marketing ditas as regras do jogo e um personagem é morto em um dia para ser ressuscitado no outro, o respeito que Sergio Bonelli tinha por suas criações e seus leitores se torna ainda mais louvável. Em sinal de respeito, a Raio Laser tira o seu chapéu. (PB)

Corto Maltese, amigo dos cangaceiros






















por Ciro I. Marcondes

Nosso país tem a capacidade peculiar de impressionar os estrangeiros, e algumas visões muito famosas foram descritas e registradas por autoridades intelectuais históricas, e outras nem tanto. Basta lembrar que Charles Darwin passou mais de um mês viajando pela costa do Brasil no Beagle, a partir de fevereiro de 1831, e isso foi declaradamente importante para que ele tivesse aquele estalo para pensar a teoria da evolução. Darwin também ficou positivamente chocado com a cultura do escravismo e a relação de passividade que ambos os lados nutriam com este sistema econômico, e ele não seria o último a pensar o Brasil como algo exótico não apenas no que diz respeito à nossa diversidade natural.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss (lembrado por ter sido meio que sacaneado por Caetano Veloso), esteve no Brasil quase um século depois (1935-39 - vale ler o romance Nove noites, de Bernardo Carvalho, que menciona o caso), no alto Xingu, e enfatizou que tornou-se cientista de verdade no Brasil. Seu trabalho sobre estudos de parentesco e mitologia a partir de povos indígenas brasileiros ainda é referência mundial em antropologia. De alguma forma ainda meio miraculosa e errática para nós, algumas peculiaridades de nossa cultura continuam fazendo parte do “incognoscível” para os gringos. Lembro do show do REM em 2001 no Rock in Rio, quando o vocalista Michael Stipe disse, com provável sinceridade, que o Rio de Janeiro era a cidade “mais sexy” em que ele já havia estado. Os casos, independente da relevância, são numerosos.

Mas o que me deixa realmente feliz nesse panorama é o fato de um sujeito não-científico, verdadeiramente errante e multicultural – o gênio solto e plural dos quadrinhos Hugo Pratt, precursor de Clint Eastwood e o escambau – tenha não apenas dedicado parte de sua arte para debulhar as particularidades do Brasil, como também tenha efetivamente morado por aqui no início dos anos 60 e – dizem (e porque não alimentar lendas legais?) – teve uma filha índia por aqui. Pratt, bem diferente dos estereótipos de tipos inadequados e esquisitos de quadrinistas, era viajante indevassável, tendo morado em mais de 10 países diferentes, em todos os continentes.


Exemplo da espetacular habilidade de Pratt em narrativa
gráfica. Clique para ampliar
É por isso me cabe uma análise do volume com as histórias de seu alterego Corto Maltese no Brasil, republicadas pela Pixel em 2006 na edição “Sob o signo de Capricórnio”. Pratt não apenas reverte o andamento das publicações anteriores do famoso pirata italiano - trazendo a logística do prequel (estas histórias se passam antes da clássica “Balada do mar salgado”) à HQ moderna – como procura fazer um investimento sincero e dedicado à cultura brasileira (além de outras culturas do “trópico de capricórnio”, como a antilhana e das guianas). Ele não apenas realiza pesquisa acurada sobre a fisionomia e hábitos culturais de nossos povos, como procura fazer um tipo especial de desvelamento artístico dos segredos dos nossos signos, buscando com obsessão a condição de insider. Pratt não procura o olhar naturalista e socialmente horrorizado de Darwin, e nem o objetivo da produção de uma etnologia, caso de Lévi-Strauss. Por mais confusa e culturalmente inexata que seja, a visão do quadrinista veneziano sobre o Brasil é uma das mais apaixonadas e apaixonantes com as quais já tive contato, sendo capaz de entusiasmar mesmo o leitor brasileiro.

"O mundo em que vivemos, felizmente, é limitado"



Para o leitor neófito, vale contextualizar Corto Maltese. Nos anos 50, Pratt passou longo tempo publicando na Argentina, em séries memoráveis (conforme já mencionado em RL) que foram fundamentais para elaborar sua visão humanista, e o personagem Corto surgiu já no fim deste período. Pode-se dizer que, como o célebre Guido de Mastroianni no 8 ½ de Fellini, ou Sal Paradise para Jack Kerouac, Corto representa um autêntico alterego para Hugo Pratt. Filho de uma cigana pintada por Ingres e um marinheiro escuso, o abastardado Corto é uma figura sóbria e evanescente, viajando por américas, antilhas, áfricas e pacíficos ainda capazes de iluminar nosso faro para o lendário e o fascinante, em consonância com a chegada da modernidade e as guerras. São aventuras no último período romântico deste planeta, antes que o essa febre global de consumo e conectividade matasse nossa matriz mítica.   
    
Publicadas entre 1970 e 1973, estas histórias curtas de Corto no Brasil recuam no tempo em relação à Balada do mar salgado, e colocam o marinheiro soturno e mercenário ao lado do jovem herdeiro britânico Tristan Bantam e do intelectual alcoólatra Steiner, em princípio na Guiana Holandesa (hoje Suriname), partindo depois para aventuras que desembocam em Salvador, depois na praia de Itapoã e finalmente no sertão da Bahia, próximo de onde haviam ocorrido as antigas revoltas de Canudos. Vale pensar que Corto Maltese é uma HQ de força gráfica e narrativa, legítima arte de movimento e ação, mas não se esquiva de compor tudo isso com textos numerosos e por vezes prolixos, com rico detalhismo geográfico, cultural e histórico. Pratt era mestre tanto no preto-e-branco (nanquim) quanto com as cores (guache) e seu traço esteve sempre a serviço das expressões profundas ou impactadas de suas enormes e variadas galerias de personagens.

Em Sob o signo de Capricórnio, Tristan Bantam é levado à Bahia já por meio de um encantamento sobrenatural: ninguém menos que o orixá Ogum Ferreiro o convoca  até sua meia-irmã (negra e brasileira) Morgana, iniciada nas práticas do oculto junto a figuras igualmente sedutoras do ponto de vista do misticismo, como a legítima “preta velha” Baianinha e a líder espiritual Boca Dourada. Pratt se atropela um pouco ao fazer de seu Brasil mítico um pardieiro de crenças exóticas, mas que no fundo manifestam charme e até integridade. Sua aproximação do candomblé brasileiro com o vodu antilhano acontece com um recurso da própria narrativa: o povo ancestral e desaparecido de Mû, que une não apenas todos estes traços da colonização americana como inclui todo um contexto da cultura Asteca, jogando também a América do Norte no balaio. No fim das contas, jogos de Tarot, caveiras mexicanas e até “sabedorias” do jogo de pôquer são alinhados para tentar fazer deste conjunto de personagens um vulto respeitoso, sábio, dominador da “magia negra” (quando o termo ainda não era politicamente incorreto e nem denotava conluio com o capeta).

Uma das cenas mais interessantes deste arco de histórias é justamente aquela que enquadra o leitor à visão cética dos personagens – Corto, bem cínico, incluso –, quando Tristan Bantam, hospedado na grande casa de sua irmã Morgana e examinando as anotações de seu pai (pesquisador de Mû) é transportado, tal qual numa viagem de psicotrópicos fortes, a um ambiente metafísico rodeado de totens parecidos com aqueles próximos à cidade Cuzco, no Peru. Lá, ele trava encontros profanos a partir de desdobramentos no espaço-tempo, consigo mesmo e com entidades antigas, de culturas milenares, que unem Mû à Atlântida, ao imaginário Asteca e a outros motivos do incognoscível. A partir do ceticismo pragmático de Corto, Pratt não revela a natureza exata deste conhecimento místico, e as lacunas que são deixadas aos personagens são as mesmas que são deixadas ao leitor, o que, ao menos me parece, é a melhor maneira de explorar essa estranha fronteira no mundo da arte. Vale citar as palavras do Professor Steiner, verdadeiro produto de literatura: “Tristan, o mundo em que vivemos, felizmente, é limitado. Bastam poucos passos para sair do quarto, poucos anos para sair da vida, mas suponhamos que nesse pequeno espaço, de repente obscuro, nós tenhamos nos perdido, ficado cegos... Então, tudo parecerá enorme e nosso quarto, grande, incrivelmente grande, a ponto de parecer impossível...”.


Por fim os aventureiros são levados ao sertão da Bahia, a mando de Boca Dourada - que reune as funções de feiticeira-mor, possível imortal, líder espiritual e política de várias comunidades destes “tristes trópicos” – para encontrar o bando cangaceiro de Tiro Certeiro, herdeiro do líder revolucionário Sebastião, O Redentor, assassinado pelos soldados do Coronel Gonçalves. Este script, tão reconhecidamente brasileiro, surpreende não só pela elegância da apresentação dos fatos, mas também pela caracterização precisa, física e psicológica, do tipo brasileiro e nordestino do início do século XX. Pratt não perde a chance de demonstrar erudição ao fazer citações a Glauber Rocha, à revolta de Canudos e ao bando de Lampião. Mais do que simples menções generalizantes sobre culturas “exóticas”, o que o quadrinista veneziano faz é pensar esses sincretismos todos em prol daquilo que move Corto Maltese em sua característica primordial: a liberdade de ir e vir, a liberdade de se manifestar.

Pratt não faz julgamentos sobre o conteudo original do conhecimento místico dos baianos, e tampouco faz sua leitura do cangaço como um movimento de banditismo. Em sua concepção, estas histórias locais são desdobramentos da liberdade de se pensar e agir humanos, e por isso ele provoca o leitor ao suceder, à morte de Sebastião e depois à de Tiro Certeiro, a nomeação do um menino chamado Corisco como futuro líder da revolta. Tudo isso garante ao galante pirata o epíteto de “amigo dos cangaceiros” nas palavras do pequeno líder. No final da história, ao ser questionado se achava que o menino chegaria a lutar contra os governadores do sul, Corto Maltese responde: “Pode ter certeza. E depois dele haverá outro, e outro ainda, até que eles se libertem e alcancem a justiça... não podem mais voltar atrás!” Como se pode ver, Hugo Pratt parecia saber mais sobre o Brasil do que a maioria dos brasileiros.


Publicado pela primeira vez em EmQuadrinho

HQ em um quadro: exército japonês por Hugo Pratt


Exército japonês na segunda guerra mundial (Hugo Pratt/Héctor Oesterheld, 1959): Mais de 10 anos antes de se celebrizar pela genial série Corto Maltese, o grande ilustrador e roteirista italiano Hugo Pratt esteve na Argentina e trabalhou anos com Oesterheld, o maior roteirista platino. Esta imagem é da série Earnie Pike, que está dentre os mais qualificados quadrinhos de guerra do mundo. Oesterheld tinha a fina qualidade de situar a segunda guerra em localidades tão díspares quanto o norte da África, o sul da Itália ou ilhas no Japão, elaborando a diversidade do conflito. Pratt, como se vê, em 1959 já desenvolvera seu traço angulado de belo riscado em preto-e-branco, num requadro panorâmico que deixa, sem que apareçam ideologismos, os japoneses tão assustadores quanto o papel que desempenham na história.