Novíssimo quadrinho italiano: breve panorama

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por Marcos Maciel de Almeida

A editora italiana Canicola resolveu dar uma chance para novos talentos dos fumetti na simpática coleção Henry Darger, que teve duas edições lançadas em 2016 e quatro em 2019. Vendida a preços módicos no stand da empresa no último Lucca Comics & Games, resolvi comprá-la para conhecer um pouco da recente produção local. Esse contato serviu para me apresentar um pouco do que existe no inconsciente coletivo dos jovens do país. É praxe dizer que não se deve impor barreiras ao espírito criativo. E os novatos seguiram religiosamente esta máxima. No terreno livre e desimpedido das HQs, escreveram, pintaram e bordaram sem recalques. Por isso, senti-me particularmente satisfeito com a possibilidade de assistir, de camarote, às taras, medos e inseguranças da Geração Y italiana, nascida entre 1980 e 2000.

Mas como foi feita a escolha dos artistas? Segundo o curador da Canicola, Edo Chieregato, a decisão teve a ver com o período de gênese da editora, ligado ao lançamento de revistas no formato de antologia, num momento (2004) em que o formato de histórias longas tipo graphic novel explodia comercialmente.  A coleção Henry Darger nascia do desejo de voltar a publicar histórias curtas, desta vez em edições únicas. Outro objetivo era o de desafiar autores estreantes a criar num espaço de tempo limitado, em contraste ao longo tempo de gestação de um título mais volumoso. Foram chamados, então, quatro alunos da Academia de Belas Artes de Bolonha que já despontavam em razão de seu estilo artístico. Fechando o grupo foram convidados dois “irmãos mais velhos”: Paolo Cattaneo e Alice Socal. Ambos também com a tarefa de produzir uma história centrada no poder de fogo do conto breve.

“Medusa”, de Roberta Scomparsa, fala dos desejos e fetiches de uma jovem prestes a iniciar sua vida sexual. Embora os desenhos sejam apenas regulares, chama a atenção a paleta de cores escolhida, que confere ao gibi um caráter de realismo quase sufocante. Em “Daniele entre as árvores”, Francesco Saresin conta a agonia de um adolescente louco para transar, no meio de uma tediosa viagem de fim de semana com os pais. Estiloso, o traço do jovem fumettista revela enorme potencial. “Sempre juntos”, de Dario Sostegni, narra as chegadas e partidas de um fugaz romance adolescente. O desenho sujo e pastoso é charmoso, especialmente pelas hachuras, que parecem feitas com giz de cera. Em “O Grifo de Ouro”, de Gianluca Ascione, conhecemos a vida dupla de um estudante que faz bico de garçom. Foram os desenhos que mais chamaram minha atenção, ao misturar o cotidiano, retratado sempre em preto e branco, com o onírico, colorido com uma pegada lisérgica.

Os quadrinistas veteranos também não fizeram feio. Em “O irmão de Jurgen”, Alice Socal e o argumentista Alessandro Romeo revelam a obsessão sexual de um rapaz por sua cunhada, que não se reduz nem mesmo nos momentos imediatamente posteriores à morte do irmão. A arte possui caráter bastante experimental e recebeu coloração em tons pastéis que conferem sensação de claustrofóbica melancolia, sem dúvida para refletir o difícil dilema moral que aflige o rapaz. Finalmente, em “Manuelone”, Paolo Cattaneo mostra que já é gente grande e entrega um trabalho artístico altamente intricado e maduro. Por isso não me surpreendi ao descobrir que ele já tem dois álbuns de fôlego (L’estate scorsa (2015) e Non mi posso lamentare (2019)), ambos com mais de duzentas páginas, já publicados. Se a intenção era testar como Cattaneo se sairia ao contar uma história em formato curto, pode-se dizer que ele passou com folgas no vestibular. Manuelone narra um dia bizarro na vida de um estudante à procura de cópias piratas de games. Por meio de um traço rebuscado e detalhista o quadrinista genovês ressalta de forma irônica o contraste entre preocupações banais relacionadas a videogames e outras bem mais sérias, como a chegada de uma gravidez não planejada.

Nesse efêmero mergulho nos corações e mentes do pessoal da terra da pizza pude perceber a prevalência de temas como despertar sexual e desejo não saciado. E isso não é nenhuma surpresa, afinal de contas sexo é uma necessidade individual quase unânime que, quando não saciada, desencadeia sentimentos diversos como stress e baixa autoestima. No imaginário dos fumettistas identifica-se também o alerta de que mesmo sua realização não livra os jovens da frustração, que pode vir na forma efeitos indesejados (gravidez) ou no autoisolamento ocasionado por sensação de culpa, especialmente no caso de desejo não heteronormativo. Outro símbolo recorrente nas páginas é o onipresente celular. Transcrições de conversas de whatsapp abundam, mostrando a disseminação desse meio de comunicação e sua presença quase inescapável no dia-a-dia de pessoas de qualquer idade. Finalmente, é ressaltada a fase de transições que os adolescentes de qualquer parte do mundo serão obrigados a enfrentar. E sentimentos de inadequação, medo e tensão são – felizmente ou não – inescapáveis. Fica no ar então a sugestão de que a adolescência funcionaria como uma espécie de Placa de Petri para as vindouras experiências da vida adulta.

Louvável a iniciativa da editora Canicola de abrir espaços para novas vozes. A coleção Henry Darger tratou os autores com muito carinho. É um belo projeto gráfico: capas duplas, capas internas com motivos específicos, papel de alta gramatura e por aí vai. Acredito que todos os recrutas cumpriram com – maior ou menor – êxito a missão nem sempre fácil de contar uma boa história em poucas páginas. Os seis gibis mostraram um belo panorama de um micro-cosmo que permite rápido vislumbre dos anseios e desejos da juventude italiana. Algumas páginas das HQs podem ser acessadas em www.canicola.net .