LASERCAST #17 - Conan: quadrinhos bárbaros

LASERCAST #17 - Conan: quadrinhos bárbaros

A equipe Raio recebe Marco Antonio Collares, doutorando em Robert E. Howard pela UFRGS, para falar de CONAN, O BÁRBARO (CONÃ para os antigos), em várias de suas facetas: suas origens na literatura pulp, seu significado antropológico e sociológico, suas encarnações midiáticas, e principalmente as inúmeras versões em quadrinhos. Aqui são discutidas suas revistas, roteiristas, ilustradores e importância para a história das HQs.

Participam do debate: Ciro Inácio Marcondes, Márcio Jr. e o convidado Marco Antonio Collares (Fórum Conan, o Bárbaro).

Edição: Gustavo Trevisolli.

Disponível em: SPOTIFY, APPLE PODCASTS, GOOGLE PODCASTS, CASTBOX, ANCHOR, BREAKER, RADIOPUBLIC, POCKET CASTS, OVERCAST, DEEZER

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A trajetória da imagem de “Conan, o Bárbaro” em mídias diversas: da literatura pulp até os quadrinhos Marvel dos anos 70

por Marco Antonio Collares

A imagem de Conan na Weird Tales dos anos 1930

O personagem Conan foi publicado na revista pulpWeird Tales (Contos Estranhos) nos anos 1930. A revista normalmente publicava contos de detetives, de fantasia, terror, ocultismo, ficção científica, western e/ou suspense, possuindo um padrão de capa bastante característico se consideramos os tipos de narrativas em seu interior ou mesmo seu publico leitor, normalmente formado por homens jovens.

Narrativas com temas de ocultismo temperado com forte conteúdo sexual caracterizavam a maior parte dos contos da Weird Tales desde sua origem em março de 1923, possuindo escritores do porte de Robert E. Howard, famoso pelo subgênero literário conhecido como Sword and Sorcery, além de H.P Lovecraft, Robert Bloch e Clark Ashton Smith, todos eles com seus contos contra culturais sobre seitas arcanas secretas, mistérios míticos ou mesmo sobre criaturas demoníacas hibernando em lugares ermos da Terra, oriundas de mundos interiores ou extraterrestres.

A referida revista não era única no mercado estadunidense da época, concorrendo com diversas outras publicações pulps do porte de Amazing, Starling Stories, Thrilling Wonder Stories, Argosy, Battle Stories, Spicy Detetives Stories, Astouding Science Fiction, depois Ghost Stories, Tales of Magic and Mistery, Strange Tales of Mistery and Terror, entre outras, todas contendo contos enviados por autores freelancers ou mesmo fãs de narrativas regadas a um pseudo-realismo mesclado a temas de mistério, ocultismo, suspense, terror, ficção científica e fantasia.

Os contos pulps, ainda que considerados sinônimos de literatura de baixa qualidade entre os críticos literários da época, tiveram relativo sucesso no entre guerras e no pós Segunda Guerra Mundial, mais especificamente entre os anos de 1920-1950, principalmente diante de um público leitor masculino sedento por escapismo fantástico em meio à onda de violência urbana instigada pelo gangsterismo, pelo sentimento de crise da época da Grande Depressão, bem como pelos ultranacionalismos e totalitarismos de toda a espécie.

Esses contos ora concorreram com as primeiras tiras jornalísticas dos super-heróis, ora influenciaram as narrativas desses personagens fantásticos nas chamadas comic books, em seus momentos iniciais de veiculação e consolidação. Fora o peso que tiveram na carreira de nomes da literatura sci-fi do porte de Lester Dent, Isaac Asimov e Ray Bradbury.

As capas da Weird Tales, principalmente as com ilustrações de Margareth Brundage, chamavam a atenção dos leitores e críticos, sendo normalmente coloridas, padronizadas e com brochuras coladas de papelão, contendo temas apelativos de protagonistas masculinos ao lado de “mulheres sensuais”, normalmente em perigo frente a forças sobrenaturais, extraterrestres ou mesmo diante de monstros do imaginário mítico da literatura oitocentista.

Em primeiro plano normalmente era representado um herói masculino enfrentando alguma criatura do mundo sobrenatural para salvar alguma mulher em perigo. Isso quando a mulher não estava sozinha na capa, amarrada à espera de algum ritual arcano com traços de sadismo masculino. Se as publicações eram simples e de baixa qualidade gráfica, os editores esperavam cativar os leitores com capas impactantes e surreais, munidas de terror e suspense do oculto.

Destaque para dois fatos interessantes referentes às ilustrações de Brundage na Weird Tales. O primeiro vincula-se às críticas que seus desenhos sofreram de leitores ou mesmo de integrantes dos movimentos feministas da época, como se as imagens representassem as mulheres como meros objetos da degustação voyeur masculina. O segundo relaciona-se às ações do prefeito de New York da época, Fiorello La Guardia, na tentativa de impedir novas publicações das imagens da ilustradora por puro moralismo diletante, condicionando a um desfile de ilustrações posteriores de cunho ocultista ou mesmo de fantasia regada a violência extremada.

O primeiro conto literário do bárbaro cimério foi publicado em dezembro de 1932, denominando-se “The Phoenix on The Sword”, e foi apenas mais um dos contos daquela edição, não ganhando sequer uma ilustração de capa, visto que o editor da revista, Farnsworth Wright, apesar de ter visto “pontos de verdadeira excelência no conto”, não o considerava suficientemente bom para destacá-lo. A primeira ilustração de um conto de Conan data somente de junho de 1933, com o conto intitulado “Black Colossus”, sendo que Conan sequer é mostrado na capa.

Chama a atenção na imagem acima o tema tradicional das capas da Weird Tales e, especificamente, das ilustrações de Brundage. Trata-se da imagem de uma jovem nua aos pés da estátua de um homem barbado que não difere muito de qualquer estátua em estilo clássico de um deus pagão ou herói grego do Mundo Antigo. O mundo meta-histórico de fantasia criado por Howard chamava-se Era Hiboriana e mesclava aspectos culturais, políticos, mitológicos e sociais das civilizações e sociedades dos períodos históricos que convencionamos denominar de Antiguidade e Idade Média, ainda que a ilustração de capa em si não tivesse vinculação direta com o texto publicado no interior da revista.

A primeira vez que Conan foi retratado preponderantemente na capa da Weird Tales merece destaque, principalmente porque a ilustração muito difere da imagem que o público em geral, deveras influenciado pela produção cinematográfica de 1982, estrelada pelo fisiculturista Schwarzeeneger, possui do personagem. Trata-se do conto “Queen of the Black Coast”, publicado em agosto de 1934, sendo um dos contos literários howardianos mais cultuados e republicados de todos os tempos devido ao par romântico entre o bárbaro e a capitã pirata Bêlit, abraçada a Conan na ilustração de Brundage.

A narrativa no interior da revista trata inicialmente do encontro de Conan com Bêlit no litoral do reino fictício de Argos e de como o bárbaro passou a se aventurar em seu navio por quatro anos. Chama nossa atenção a imagem de Conan, representado como um homem mais velho, segurando nos braços uma indefesa Bêlit diante de uma criatura humanoide munida de garras e asas. Novamente o tema tradicional do protagonista protegendo uma linda mulher em perigo com vestes sensuais está presente e novamente a capa não se relaciona diretamente com a narrativa em questão. Isso se deve pelo fato desse tipo de capas serem tradicionais na literatura pulp, meio que um padrão artístico e estético, além de serem encomendadas sem que o ilustrador tivesse conhecimento do teor do conto em seus detalhes.

No supracitado conto, Conan é obrigado a fugir de autoridades argorianas, aportando em um navio ancorado de um comerciante qualquer, logo tomando parte entre seus tripulantes. Não muito tempo depois, o navio é atacado pelos piratas de Bêlit e Conan, após mostrar habilidades em espada e força quase sobrenatural no enfrentamento dos mesmos, torna-se mesmo um tripulante do navio comandado pela mulher, tema, aliás, bastante usual em narrativas posteriores do personagem em diversas mídias.

Apesar do relacionamento de Conan e Bêlit possuir uma natureza amorosa e afetuosa ao longo da maior parte do conto, existe certo teor de sadismo da parte dele em relação a ela, ainda que Bêlit seja tomada por Howard como uma mulher forte, selvagem, imponente e altiva. Podemos encontrar um exemplo de como Bêlit é descrita no conto através das palavras do timoneiro do navio mercante que Conan encontrou ao início da aventura. Vejamos: "A mulher (Bêlit) é a mais selvagem e demoníaca que já pisou nesse mundo. A menos que eu tenha lido errado os sinais, foram os carniceiros dela que destruíram aquela vila na baía. Espero vê-la um dia enforcada num mastro bem alto! Chamam-na de Rainha da Costa Negra. É uma mulher shemita que lidera bandoleiros negros. Eles atacam e saqueiam os barcos que navegam por aqui, e já mandaram muitos navegantes e comerciantes para o fundo do mar".

A descrição de Bêlit é, portanto, de uma mulher forte e selvagem, uma saqueadora que vivia pelas armas, tal como o próprio Conan. Chama nossa atenção, porém, o fato de a capa da edição da Weird Tales desvelar a imagem de uma mulher extremamente frágil nos braços do bárbaro, talvez devido à presença do sobrenatural frente aos dois personagens, igualmente tratado no conto, ou talvez, tal como mencionado mais acima, como uma mera ilustração usual e tradicional de Brundage e da Weird Tales.

Mesmo que as características das capas da revista ajudem a explicar a ilustração da frágil Bêlit nos braços de Conan, não é descabido pensar aqui nas considerações de Judith Butler e sua ênfase no discurso de construção de gênero ser concebido a partir de matizes sociais e culturais definidos por pares binários entre homem/forte/racional e mulher/frágil/sentimental. Em outras palavras, na caracterização do ser masculino, pensando-se exclusivamente na imagem, Conan está em posição de protetor da mulher, conferindo a ideia de que o ser feminino deve ser protegido, caracterizando aqui não somente um padrão visual de capa, mas igualmente um discurso cultural sobre gênero.

Uma imagem que, em nossa opinião, agencia tal discurso de gênero. Conan igualmente aparece na imagem em uma posição defensiva, com uma espécie de adaga na mão direita, colocado como protetor de Bêlit, ainda que sua imagem seja muito distante da imagem selvagem de belicosidade das representações posteriores, seja nos quadrinhos e no cinema.

No máximo, o estado de barbárie de Conan, tão exaltado nos contos literários howardianos, transpareça pelos trajes que ele se utiliza na imagem, um estereótipo clássico que aproxima o personagem de Tarzan, de Edgar Rice Borroughs, uma das muitas influências literárias do escritor texano. Na capa da Weird Tales, Conan parece ser mais a imagem do “bom selvagem” do iluminista Jean Jacques Rousseau do que do bárbaro musculoso e violento das ilustrações mais famosas dos quadrinhos ou de outras mídias visuais mais recentes.

Pela descrição do próprio criador, Conan muito difere do homem representado nesta capa da Weird Tales, sendo normalmente descrito como, “um bárbaro selvagem musculoso, com a pele bronzeada, os olhos azuis e todo o corpo e rosto marcado por cicatrizes”. Além disso, Howard fez questão de enfatizar que o estágio de barbárie em seus contos muito diferia do teor dado por Rousseau em sua concepção filosófica de “bom selvagem”, como pode ser expresso pela passagem de uma carta do autor texano logo abaixo:

"Não tenho a visão idílica do bárbaro – até onde pude aprender, trata-se de uma condição sombria, sangrenta, feroz e impiedosa. Não tenho paciência para a representação de um bárbaro de qualquer raça como uma criança cheia de dignidade, feita á imagem de Deus na natureza, dotada de uma estranha sabedoria e falando frases sonoras e bem enunciadas".

Não é descabido pensar na ideia tradicional de uma humanidade desvelada na imagem da Weird Tales, visto que em Conan transparece um ar de impotência e mortalidade ante uma força monstruosa do mundo sobrenatural. Existe na imagem um padrão de suspense que é típico das capas pulps, um padrão que coloca Conan e sua aparentemente frágil companheira como meras caças de alguma criatura dos reinos inferiores, impactando o leitor pela constante presença do tema de sobrenatural nestes tipos de contos.

Apesar da barbárie em Howard muito diferir da visão de Rousseau, Conan é tomado na imagem da revista como um “bom selvagem” masculino e protetor de uma inocente e até convencional e frágil mulher, Bêlit (enquanto um arquétipo do gênero feminino), sem o teor belicista que o caracteriza nas representações posteriores, evidenciando uma imagem bastante distinta da descrição de sua figura por Howard, porém não menos interessante dos pontos de vista histórico e cultural.

O Conan das capas dos anos 1940-1960, incluindo as ilustrações de Frank Frazetta

Entre as décadas de 1940/1960, três escritores, Lyon Sprague de Camp, Lin Carter e Bjorn Nyberg republicaram diversas vezes e em momentos diferentes, os contos originais de Conan, reeditando outros tantos contos inacabados e até substituindo as tramas originais por narrativas próprias, muitas vezes até se utilizando dos contos de Howard sobre outros personagens para uma adaptação das aventuras do bárbaro cimério.

Esse fato ocasionou dois movimentos distintos, porém, interligados: em primeiro lugar, uma primeira popularização de Conan. Em segundo, uma espécie de movimento “purista” dos fãs de Howard, que defendiam publicações dos contos tais como foram publicados originalmente, questionando assim os pastiches literários dos mencionados escritores.

Antes deles, outro fã de Howard chamado Glenn Lord havia conhecido os contos literários howardianos originais na publicação Skull-Face and Others, de 1946,comprando os direitos sobre diversos contos inacabados e mantendo o legado cultural do escritor texano. De certa forma, Glenn Lord é visto como um dos grandes expoentes a popularizar Conan após a morte de seu criador, sendo um dos primeiros a efetuar uma compilação de relatos e correspondências sobre o escritor.

Trata-se da bio-bibliografia intitulada The Last Celt: A Bio-Bibliography of Robert Ervin Howard, considerada uma das mais completas existentes, de 1976. O livro de Lord, publicado pela D.M. Grant contém diversos ensaios e entrevistas de pessoas que conheceram pessoalmente Howard, escritores conhecidos da época cujos trabalhos influenciaram o texano e outros diversos estudiosos de seu corpus narrativo, além de excertos do autor. A obra contém também cartas raras, sinopses, fragmentos de histórias e fotos relacionadas à vida do escritor. A segunda metade do livro é dedicada a uma bibliografia extremamente bem organizada e completa de grande parte da ficção pulp de Howard, suas poesias, ensaios e outros trabalhos catalogados sobre sua vida e obra até dezembro de 1973.

O fato é que todos esses autores mantiveram o personagem vinculado à literatura, convocando artistas

 para ilustrar as capas das revistas ou livros de contos do bárbaro, fossem tais contos republicações daqueles primeiros escritos de Howard (dezessete publicados em vida, mais quatro após sua morte), fossem sinopses e contos inacabados que posteriormente eram finalizados por outros escritores.

As capas elencadas chamam a atenção pelos mais variados motivos. Todas possuem o nome de Howard destacado, não somente em função dos direitos autorais a seus familiares, mas igualmente em função de seu nome possuir popularidade como um renomado escritor de fantasia. Podemos notar também que o nome de Sprague de Camp aparece na publicação intitulada Tales of Conan, de 1955, como se ele fosse uma espécie de segundo criador do bárbaro.

De fato a figura de Lyon Sprague de Camp é controversa entre especialistas e fãs do personagem Conan. Ele escreveu diversas narrativas e pastiches sobre Conan, criando novos personagens e até outras cidades, reinos, sociedades e civilizações da Era Hiboriana, utilizando-se das viagens que fazia ao Oriente Médio ou outros tantos lugares antigos e distantes para uma descrição mais pormenorizada de reinos e civilizações do mundo fictício howardiano.

Sprague de Camp é também o responsável pela biografia mais famosa e popular sobre o escritor texano, sendo, no entanto. a mais criticada pelos especialistas e fãs. Trata-se da obra Dark Valley Destiny: The Life of Robert E. Howard, escrita por ele e sua esposa, Catherine, e publicada em 1983. O autor deteve por muitos anos os direitos autorais sobre os contos literários originais de Conan, sendo um daqueles escritores que se tornaram uma das maiores referências sobre o personagem ou mesmo sobre o escritor, ao mesmo tempo em que passou a ser criticado e até odiado pelos chamados fãs puristas de Howard.

A biografia em questão possui sérios problemas de qualidade e de seriedade em razão dos diversos juízos de valor carregados sobre o caráter, a psiquê, a personalidade e a conduta do escritor texano, com muitas inferências completamente destituídas de quaisquer evidências ou qualquer apresentação de documentação histórica mais criteriosa. Além disso, deve-se destacar o teor acusativo das críticas de Sprague de Camp em torno dos diversos contos literários escritos por Howard, em uma espécie de autopromoção às custas da obra do escritor texano, como se Conan devesse mais a ele por ser um ícone da cultura popular do que a seu próprio criador.

As capas em questão são interessantes pela forma como Conan foi retratado, normalmente vergando trajes e armaduras que não diferem muito das placas dos centuriões romanos do mundo antigo ou dos peitorais, sandálias e elmos dos antigos soldados-cidadãos hoplitas da Grécia Clássica dos séculos V e IV A.C. Os cabelos do bárbaro são mantidos pelos ombros ou mesmo curtos, o que difere da descrição howardiana que traçava cabelos mais compridos. Da mesma forma, os semblantes carregam um ar sisudo ou um sorriso irônico e imponente, o que difere da forma como Conan aparece na Weird Tales, normalmente com um teor de melancolia ou até com a face carregada de temores instintivos diante da presença do sobrenatural.

Esse tema, aliás, não aparece nas capas elencadas logo acima, significando a saída de cena do gênero terror e ocultismo, típicos dos contos pulps. Com tais capas, temos a vinculação do bárbaro a temas vinculados ao cinema épico hollywoodiano da época, com filmes do porte de Ben-Hur, de 1959 ou Spartacus, de 1960. Conan é assim transfigurado de um quarentão rústico semelhante ao personagem Tarzan em um jovem imponente vergando armaduras tradicionais em estilo clássico e cinematográfico.

Spartacus com Kirk "100 anos" Douglas

Agora, sem sombra de dúvida foi a arte do ilustrador e quadrinista Frank Frazetta que primeiramente impulsionou a imagem que temos hoje em dia sobre Conan. Frazetta se tornou conhecido a partir dos anos 1960 como ilustrador de capas de livros, principalmente de reedições de contos ou novelas de Tarzan e mesmo de Conan. Antes disso, ele havia sido ilustrador anônimo de histórias em quadrinhos de renome, tais como Flash Gordon ou Ferdinando (Li'lAbner), famoso título criado nos anos 1930 pelo brilhante roteirista e argumentista estadunidense Al Capp, trabalhando nos desenhos da família de Brejo Seco por nove anos, entre 1953 e 1962.

O quadrinho Li'l Abner (Ferdinando) desenhado por Frank Frazetta

As ilustrações de Frazetta para as capas de livros de contos de Conan são as mais cultuadas entre os fãs do bárbaro, algumas delas sendo comumente vendidas por somas vultosas para colecionadores. Seu estilo possui uma tonalidade quase barroca, situando Conan como um bárbaro celta bretão, tal como descrito por Howard nos contos literários originais.

Não se pode esquecer que Howard descrevia os povos de sua Era Hiboriana a partir de modelos de povos, comunidades e civilizações existentes de nossa história, sendo os chamados cimérios, povo fictício do qual Conan fazia parte no corpus literário howardiano, equivalentes aos celtas bretões de uma Inglaterra pré-romana.

As capas de Frazetta foram a principal marca dos vários livros de contos publicados a partir do ano de 1966 pela editora Lancer Press, fossem tais contos republicações dos vinte e um contos originais finalizados por Howard, fossem os escritos por Sprague de Camp e Carter. Os livros normalmente continham introduções desses escritores sobre a Era Hiboriana, cartas de Howard dos anos 1930, novos mapas e cidades do mundo fictício do bárbaro, pastiches inacabados de Howard sobre Conan ou mesmo sobre algum outro personagem do texano, todos finalizados ou adaptados para que se tornassem novos contos de Conan.

O desenho de Frazetta coloca Conan como um bárbaro mais belicoso, altivo e ameaçador se comparado à figura das capas dos anos 1930 e mesmo a dos anos 1940/1950. Conan também deixa de ser o bárbaro com ar civilizado das capas anteriores da editora Gnome Press, para se tornar eminentemente fora dos padrões dos homens civilizados, normalmente vergando armas brancas respingando sangue e com o torço desnudo na maior parte do tempo.

Sua postura é comumente de ataque, mesmo cercado por inimigos em número maior ou mesmo por monstros saídos do mundo sobrenatural, o que difere das capas dos contos dos anos 1930, que o colocavam em uma posição defensiva. Também aqui se encontra o tema da guerra épica e brutal, de uma incansável vida de conflitos, como se a guerra fizesse parte de seu ser não-civilizado. A ideia de barbárie aqui é menos óbvia e menos idealizada, afastando Conan de qualquer imagem de “bom selvagem” de Rousseau.

Frazetta capturou muito do texto howardiano em suas pinturas e ilustrações de capa, utilizando-se de elementos fantásticos mesclados à aventura, ao realismo, à guerra épica e ao apelo sobrenatural. Este elemento sobrenatural não era somente algo a ser temido, mas combatido a ferro e fogo pelas mãos de um bárbaro quase bestial, ainda que nada sugira tratar-se de alguém destituído de inteligência ou de comedimento fora da ação e do combate.

Os temas de capa de Frazetta sugerem uma selvageria quase que necessária frente a ameaças impossíveis de serem ultrapassadas por homens civilizados (um tema fundamental nos contos originais). A passagem que se segue evidencia tal postura, sendo uma das mais célebres do corpus literário howardiano, uma fala proferida por Conan no conto "Queen of the black coast":

"Já conheci muitos deuses. Quem nega a sua existência é um cego, assim como aquele que confia demais neles. Não me importo com o que existe além da morte. Tanto pode ser a escuridão em que acreditam os céticos nemédios, o reino de gelo e nuvens onde vive Crom, as planícies geladas e os corredores fechados do Valhalla nos quais crê o povo de Nordheim. Eu não sei e não me importo. Preciso viver intensamente enquanto posso. Quero experimentar os ricos sucos da carne vermelha e o vinho picante, o aperto quente dos braços brancos como marfim, a loucura do triunfo da batalha, quando as lâminas azuladas queimam e se tingem de vermelho. Isso basta para me alegrar. Que os mestres, os sacerdotes e os filósofos meditem sobre as questões da realidade e da ilusão! De uma coisa eu sei. Se a vida é uma ilusão, também sou uma: a ilusão é real para mim. Eu vivo, estou cheio de vida, eu amo, eu mato, eu sou feliz assim".

O enunciado é esclarecedor sobre o personagem Conan na visão de Howard, demonstrando, em nossa opinião, o teor da leitura de Frazetta para esboçar suas ilustrações do bárbaro cimério, ainda que a belicosidade das imagens tenha condicionado a outras tantas interpretações posteriores. Conan vivia intensamente, matava intensamente, mas não deixava de se perguntar sobre as coisas do mundo, da realidade e do pós-morte. Conan aceitava viver plenamente no campo de batalha, em meio a perigos constantes, sendo feliz desta forma e aceitando tal plenitude intensamente, sem se culpar ou recuar diante das ameaças do mundo sobrenatural.

O clamor da batalha era algo esperado e até aclamado em seu ser e as capas de Frazetta captaram essa personalidade forte e selvagem, ainda que de uma sabedoria de vida peculiar. As imagens de capa de Frazetta beberam dessa rica fonte literária do gênero da fantasia, mas traduziram de forma suis generis

essa fonte de modo a tornar tal imagem um padrão, tanto nos quadrinhos como em outras mídias visuais. As imagens agenciaram toda uma gama de outras ilustrações que mais tarde seriam a tônica do personagem nas mídias como um todo.

Aliás, em um texto introdutório de uma narrativa de quadrinhos dos anos 1980, Glenn Lord reiterou que Frazetta teve um papel ainda mais ativo na construção da imagem de Conan perante a cultura midiática como um todo do que todos os escritores de contos dos anos posteriores à década de 1930.

Novamente, nosso enfoque precisa reiterar alguns pontos. A visão de barbárie nas ilustrações de capas de Frazetta sobre Conan, extraída de passagens da literatura howardiana, é bastante específica e não deve ser tomada como mera expressão genérica de visões de mundo sobre a barbárie como um todo, ainda que exista uma visão comum ou múltiplas visões que podem ser mensuradas em um estudo acadêmico. As palavras de Peter Burke sobre a “leitura de uma imagem enquanto um mero reflexo ou instantâneo fotográfico da realidade acabar conduzindo a uma interpretação errônea” são relevantes para compreendermos o papel do ilustrador na própria construção dessa imagem.

Muito mais do que expressar visões gerais da sociedade sobre a barbárie, as capas de Frazetta

 ajudaram a estabelecer e/ou mesmo a consolidar essa imagem específica, vinculando Conan ao bárbaro por excelência e a condutas tomadas como típicas de um bárbaro. Selvageria e sanguinolência se tornaram cada vez mais sinônimo de barbárie e nos parece que essas imagens contribuíram para isso, ainda que com certas doses de idealizações do ser bárbaro.

Se, nos anos 1930, a imagem de Conan o aproximava do “bom selvagem” protetor da pureza humana e de mulheres em perigo, pelo menos como imagem de capa da Weird Tales, nos anos 1960 essa imagem se transformou. O Conan de Frazetta se tornaria a base visual do Conan e da própria barbárie que seriam difundidas nas histórias em quadrinhos das décadas seguintes, responsáveis por iniciar a consolidar o personagem como um ícone da cultura popular do século XX.

O Conan da Marvel Comics dos anos 1970-1980: entre Windsor-Smith e John Buscema

Em 1970, a empresa Marvel Comics pagou uma licença de dois mil dólares por edição para publicar narrativas de Conan, dividindo suas tramas em dois tipos de formatos voltados para públicos diferentes. A publicação em estilo magazine intitulada, The savage sword of Conan, de 1974, era voltada para um público um pouco mais adulto, enquanto que o público infanto-juvenil tinha outra revista, anterior àquela e em estilo comics, publicada a partir de outubro de 1970, denominada simplesmente de Conan, the barbarian, com tramas mais simples e com menos teor de violência ou apelo sexual.

O responsável por trazer o bárbaro para a empresa do ramo de quadrinhos que mais crescia nos EUA foi o escritor/editor Roy Thomas, que se manteve à frente do personagem nas duas publicações por longos anos. As palavras de Thomas sobre o assunto demonstram que as capas de Frazetta dos contos republicados de Howard ou mesmo aqueles criados por Sprague de Camp e Lin Carter eram mais famosas do que os próprios contos literários originais howardianos, pelo menos entre aqueles do ramo de quadrinhos da época. Vejamos o excerto que se segue:

"Eu era editor associado na época, e as pessoas me enviavam todas essas cartas de leitores que diziam que nós deveríamos trazer personagens dos livros para os quadrinhos. Havia quatro coisas que continuavam chegando: uma era o Conan, de Robert Howard, ou algo do gênero – Howard era o autor mais mencionado. As outras três eram Tolkien (autor de o Senhor dos Anéis), Doc Savage (personagem da literatura pulp dos anos 1930) e Edgar Rice Burroughs, com coisas como Tarzan e John Carter of Mars. Nós tentamos todos eles e acabamos conseguindo todos, menos Tolkien. Eu preparei um memorando para o editor Martin Goodman dizendo por que deveríamos licenciar um personagem – não me lembro porque simplesmente não criamos um novo. Acho que Lee (Stan Lee, o criador da maior parte dos super heróis da empresa, tais como Homem-Aranha, Hulk e Quarteto Fantástico) não sabia ao certo o que era Espada e Feitiçaria e eu mesmo não havia lido o suficiente na época. Eu não tinha lido muito de Howard, havia apenas comprado alguns de seus livros por causa das capas de Frazetta, mas nunca os havia lido de fato."

Ao ser quadrinizado pela Marvel, Conan se popularizou, iniciando sua consolidação como um personagem icônico do século XX, ao mesmo tempo em que se tornou o modelo de todo um gênero de fantasia, influenciando outras tantas mídias, suportes e narrativas fantásticas semelhantes. Não devemos esquecer, aliás, que os estudos sobre cultura visual partem da premissa da necessidade de compreensão da produção, circulação e consumo de imagens, tal como estabelecido por Nicolas Mirzoeff com seu conceito de “mundo como imagem”. A esse propósito, o pesquisador Ulpiano Bezerra de Meneses reitera a necessidade em se “retraçar a biografia, a carreira e a trajetória das imagens”.

Saído da literatura pulp e difundido nos anos 1960 nas capas dos livros de contos com ilustrações de Frank Frazetta, Conan chegou pela primeira vez aos quadrinhos pelas mãos de um jovem desenhista, desconhecido na época, chamado Barry Windsor-Smith, que concebeu um Conan “muito ágil, esguio e com cabelos compridos à moda glam rock”. Vejamos a primeira capa de Conan, Tne Barbarian, com o traço do referido desenhista:

É difícil não perceber na capa o padrão tradicional das pulps, com um Conan em primeiro plano rodeado de inimigos, portando uma espada e tendo uma mulher em apuros a seus pés, uma marca presente nas capas do bárbaro desde os anos 1930. Aliás, os estudos em cultura visual igualmente reiteram a importância de captarmos reminiscências de média e longa duração histórica em imagens específicas, tal como elucidado por Ulpiano Meneses.

Além disso, é preciso não esquecer o importante conceito de “iconosfera”, tratado pelo mesmo estudioso, que pode ser traduzido como o conjunto de imagens socialmente veiculadas e disponíveis em dado contexto histórico. Observando a primeira capa de Conan sob o traço de Windsor-Smith, é possível observar o estilo dinâmico característico dos quadrinhos de super-heróis Marvel da época. No caso da capa acima, não muito diferente do estilo estético do inigualável Jack Kirby, considerado o maior ilustrador da Marvel de todos os tempos e que fez escola no mundo das comics.

A capa de Conan, The Barbarian nº 1 em muito se assemelha a outras capas de super-heróis Marvel dos anos 1970, especificamente aquelas que traziam personagens mitológicos e/ou de fantasia, reforçando a ideia de iconosfera, mencionada acima. Segue abaixo um exemplo do personagem mitológico, Thor, pelo estonteante “pincel” de Kirby:

O personagem aqui, tal como o Conan da capa anterior, evoca desespero e fúria ante uma horda que o cerca, com balões de chamada para os leitores não muito diferentes das chamadas em recordatórias da capa do bárbaro cimério. O estilo ação-para-ação, muito comum no traço de Kirby e outros artistas da Marvel, da maneira como é apontado por Scott McCloud, está presente na capa e na narrativa em arte sequencial do interior de ambas as revistas.

Estamos sugerindo com isso que da mesma forma que as capas pulps dos anos 1930 seguiam seu próprio modelo, ou seja, seus padrões estéticos e artísticos de acordo com imagens disponíveis de seu contexto ou mesmo de seu suporte midiático específico, as capas do cimério nos quadrinhos dos anos 1970 igualmente seguiram seus respectivos padrões estéticos, históricos e midiáticos.

O ar belicoso de Frazetta está igualmente acentuado na imagem de capa de Conan, com um bárbaro igualmente cercado por hordas inimigas, incluindo seres bestiais do mundo sobrenatural. O rosto estampado de fúria e terror também mimetiza em parte a arte de Kirby e mesmo de Frazetta, no último caso, adaptada para as narrativas dos quadrinhos. O tom épico belicista na capa de Conan é um tanto distinto das capas dos anos 1940/1950 e bastante aproximado ao das capas da Lancer Press dos anos 1960, só que agora com tons mais vivos, típicos das publicações de quadrinhos Marvel.

A quadrinização de Conan na editora estadunidense deve-se a diversos fatores, sendo alguns deles bastante pontuais. Um deles relaciona-se ao direcionamento corporativo da Marvel, que, no final da década de 1960 e início da década seguinte, estava ampliando seu público leitor e seus preços de capa, envolvendo leitores universitários que cresceram lendo quadrinhos de super-heróis e que agora possuíam condições financeiras de bancar coleções mensais mais sofisticadas.

Além disso, havia uma nova geração de profissionais tomando conta do mercado de quadrinhos da indústria cultural nos EUA, jovens talentosos intelectualizados que igualmente cresceram lendo quadrinhos e que agora queriam explorar o universo do realismo emocional através de dilemas sociais ou mesmo mediante o cotidiano das lutas das minorias pelos direitos civis, tudo isso mesclado ao escapismo lúdico idealizado dos quadrinhos Marvel.

Muitos desses jovens quadrinistas eram verdadeiros apologistas das grandes editoras e de seus icônicos personagens, levando a profissão quase que como um credo de fãs desses respectivos personagens. Talentosos artistas do porte do já mencionado Thomas, além de Dennis O’Neil, Chris Claremont, John Byrne, Frank Miller, Jim Starlin, dentre outros, ampliaram os limites dos quadrinhos da indústria cultural, em comunhão com a energia cultural dos anos 1970, embebida de autocrítica, eminentemente antiautoritária e que degustava filmes hollywoodianos anti-establishment do porte de O Poderoso Chefão, Perseguidor Implacável, Desejo de Matar, Taxi Driver e Perdidos na Noite.

Taxi Driver: Nova Hollywood

Tais autores e quadrinistas, além de elevar os questionamentos sociais dos quadrinhos da indústria cultural, buscando temas polêmicos como o uso e o tráfico de drogas, a violência urbana e doméstica, o racismo, a guerra do Vietnã, o alcoolismo, a metalinguagem e o sexismo, igualmente trouxeram aspectos e temas dos quadrinhos de terror, fantasia, ficção e de detetives dos anos 1930, muitos dos quais influenciados pela própria literatura pulp.

Conan foi quadrinizado ao lado de outros personagens pulps do porte de The Shadow, de Edgar Rice Borroughs, adaptado por Len Wein e Michael Kaluta; Doc Savage, de Lester Dent; e o próprio Tarzan, que na Marvel foi adaptado pelo mesmo Roy Thomas, ao mesmo tempo em que era criado um herói inspirado nele chamado Ka-Zar.

Os quadrinhos da indústria cultural viviam um momento de complexificação de seus temas e estilos diante das exigências de um público leitor mais sofisticado e com maior poder aquisitivo e as primeiras adaptações de Conan não podem ser desvinculadas de todos esses fatores. Ainda sim, a revista Conan, the barbarian era bastante leve e lúdica diante desse movimento com toques realistas regados a violência, suspense e terror, não dando conta das novas demandas dos leitores um pouco mais velhos.

As exigências desse público, os interesses corporativos da Marvel em ampliar as vendas e o próprio culto de Roy Thomas ao traço de Frazetta em Conan levaram-no a se unir ao talentoso ilustrador John Buscema em outra publicação sobre o bárbaro, dessa vez em preto e branco e com um tom mais pesado, muito próximo ao da literatura pulp howardiana.

Buscema

Tratava-se do já mencionado título Savage sword of Conan, publicado a partir de 1974, possuindo o traço mais marcante do bárbaro nas histórias em quadrinhos, aquele do inigualável ilustrador John Buscema, famoso quadrinista que até então era responsável pela arte de personagens icônicos da Marvel do porte de Thor, Vingadores e Surfista Prateado. Buscema tornou-se o ilustrador de Conan nos dois títulos mensais da editora, porém, na revista em preto e branco chegou ao auge criativo, aproveitando-se do jogo de luz e sombras para consolidar um Conan mais robusto e viril, quase que uma representação de um verdadeiro “titã de bronze”, como constantemente era descrito por Howard nos contos literários originais.

A Marvel já tentara adaptar o personagem em narrativas mais adultas e em formato magazine preto e branco, como o exemplo da publicação intitulada Savage tales, de 1971, mas foi na publicação de 1974 que Thomas e Buscema encontraram o tom ideal do personagem nos quadrinhos, começando por adaptar os contos originais de Howard, usando, inclusive enunciados inteiros extraídos desses respectivos contos. Mesmo quando as narrativas eram inovadoras, elas continham o tom howardiano, seja em razão da ausência de uma cronologia para as aventuras do cimério, seja pela presença do tema da oposição entre civilização e barbárie que caracterizavam as primeiras narrativas.

O diferencial das narrativas em quadrinhos de Thomas e Buscema vincula-se ao tom mais desafiador das tramas em termos de ação e emoção, narrativas mais aventureiras a explorar os limites físicos do personagem, muitas delas munidas de valores importantes para os jovens rebeldes da geração 1970. Podemos destacar aqui a defesa do indivíduo e das liberdades individuais contra autoridades instituídas por coletivos específicos (Exército, Igreja e Estado, por exemplo), quase que a epopeia de um espírito juvenil livre e eminentemente belicoso a se desvincular das amarras sociais existentes, o que, em nossa sociedade, seriam vistas como criações dos adultos e progenitores dos jovens leitores.

As imagens de Conan ilustradas por Buscema expressam o apelo da liberdade individual de um bárbaro em relação às normas sociais das civilizações de seu mundo ficcional. O personagem aparenta ser um bloco sólido de pura selvageria, liberdade, ar sisudo, força física e mental, uma resistência sem igual diante das agruras da vida e da luta pela sobrevivência nas fronteiras mais distantes da civilização, normalmente rodeado pelas mesmas mulheres que constantemente necessitavam de sua proteção nas capas pulps dos anos 1930.

Novamente a questão de gênero está presente, definindo-se as imagens por pares binários: o ser masculino protetor como a antítese do ser feminino a ser protegido, o ser bárbaro selvagem e instintivo como a antítese do ser civilizado, normalmente tomado nos contos e nas HQs como eminentemente ganancioso e decadente, tema usual nos contos literários, mas que nas imagens de Buscema ganham contornos extremos. O traço em preto e branco produz uma silhueta sombria que confere a Conan a melancolia e a selvageria dos contos literários originais howardianos sem, no entanto, transparecer que sua figura pereceria perante quaisquer obstáculos, incluindo aqueles advindos do mundo sobrenatural.

O traço de Buscema eleva Conan a um homem situado para além da fronteira das normas existentes, estando às margens da civilização. Trata-se da representação visual de um espírito livre que não se desdobra frente a quaisquer problemas a serem enfrentados. Além disso, seu porte físico se torna ainda mais avantajado do que o ágil e esguio Conan do traço de Barry Windsor-Smith, mais próximo aqui ao traço de Frank Frazetta.

A título de informação, podemos retraçar as características físicas dos super-heróis e as influências existentes no esboço dessas respectivas características.

Entre os anos 1930-1950, os super-heróis tiveram suas imagensassociadas aos homens fortes dos circos, com seus portes físicos em blocosólido e seus colants multicoloridos,o que influenciou a anatomia física e os uniformes dos personagens da chamada “Erade Ouro” dos quadrinhos

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Em meados da década de 1950 e, depois, ao longo da década de 1960, que compreende o início da chamada “Era de Prata” das comics, os super-heróis se tornaram fisicamente menos robustos, mais ágeis, esguios, com portes físicos mais definidos, muitas vezes mimetizando os atletas olímpicos de corrida de curta distância ou os astronautas da corrida espacial, quando não o homem comum, visto que aspectos de realismo começaram a fazer parte das narrativas em quadrinhos do gênero.

Os anos 1970-1980 trouxeram de volta as idealizações físicas dos personagens de quadrinhos de super-heróis, agora com a influência marcante dos fisiculturistas (pelos menos em relação aos homens, visto que as mulheres normalmente eram retratadas com portes físicos de modelos famosas ou mesmo de atrizes de Hollywood). Não se pode, portanto, deixar de associar a imagem de Conan de narrativas de quadrinhos pós anos 1970 dessa estética específica, visto que sua quadrinização ocorreu em uma empresa especializada em super-heróis, sendo efetuada por artistas que faziam parte desse gênero específico de quadrinhos e que eram influenciados pelas características artísticas, estéticas e históricas do referido gênero e do suporte midiático em questão.

Lou Ferrigno (dir.): nos 1970's

Lembremos também que o auge do fisiculturismo se deu no mesmo contexto de lançamento das primeiras revistas em quadrinhos de Conan, mais especificamente no final dos anos 1960 e durante a década de 1970 como um todo. Nesse momento, figuras como Arnold Schwarzenegger, Lou Ferrigno e Frank Columbus apareciam costumeiramente em capas de revistas especializadas sobre fisiculturismo, revistas essas situadas nas prateleiras das bancas de revistas não muito distantes das comics books.

O fisiculturismo começou a ser visto na televisão, em eventos beneficentes para estimular as atividades físicas ou até como recuperação de presidiários, aparecendo igualmente em filmes-documentários sobre o esporte, como é o caso do reconhecido filme-documentário Pumping iron, veiculado em 1975.

Para muitos estudiosos do assunto, esta foi a chamada “Época de Ouro” dos torneios de fisiculturismo, dentre os quais, o Mister Universo, torneio com atletas amadores e o Mister Olympia, eminentemente profissional e deveras conceituado entre os atletas mais renomados do esporte até os dias de hoje. Esses torneios tornaram o fisiculturismo quase que um padrão cultural corporal mercadológico ansiado por muitos jovens, principalmente no final dos anos 1970 e a partir da década de 1980 em diante.

Não é a toa que o primeiro filme de Conan foi estrelado pelo mais cultuado fisiculturista da época, e, segundo muitos especialistas, o maior nome do esporte da história, atleta esse que em termos de porte físico e definição corporal muito se parece com o bloco sólido de massa muscular desenhado por John Buscema nas revistas em estilo magazine, como The savage sword of Conan.

Não podemos deixar de comentar também que a magazine em preto e branco lançada em 1974 não precisou se adequar à autocensura do famigerado Código de Ética dos Quadrinhos (Comics Code Authority), criado pelas próprias editoras em 1954. A criação desse mecanismo de autocensura ocorreu devido a perseguições que as comic books sofreram nos EUA na década de 1950, seja em razão da paranoia anticomunista insuflada pelo macarthismo, seja em função da influência nefasta da obra The seduction of the innocent, do psiquiatra alemão Fredric Wertham, que relacionou de forma imprudente e carente de qualquer validação o problema da delinquência juvenil com a leitura de quadrinhos, principalmente aquelas narrativas de terror, super-heróis e fantasia.

As grandes editoras estadunidenses procuraram se colocar de fora dos “holofotes” do Estado e de sansões regulatórias que pudessem impedir ou limitar a distribuição e, consequentemente, as vendas de seus quadrinhos. Para tais motivos, as grandes editoras criaram um código de ética próprio que literalmente autocensurava diversos aspectos das publicações em estilo comics, proibindo temas diversos e coibindo a liberdade criativa dos argumentistas e ilustradores do respectivo suporte midiático.

Não fazendo parte desse esquema de autocensura, muito em função do tipo de publicação em estilo magazine em preto e branco, do direcionamento ao público leitor e também devido ao contexto dos anos 1970, no qual artistas e editores cada vez mais não aceitavam o enquadramento das normas limitantes do código, as narrativas de Conan em Savage sword of Conan veicularam diversas liberdades criativas e imagéticas, sem quaisquer “freios”. Com isso, a revista apresentou cenas de violência explícita e certo teor sexual, concedendo liberdade criativa que a publicação em estilo comics de Conan não possuía por estar subordinada ao supracitado código.

As capas da revista The savage sword of Conan seguiam em parte o padrão das pulps dos anos 1930 e igualmente das capas de livros de contos da Lancer Press dos anos 1960. Tratam-se de capas coloridas, desenhadas por diversos artistas convidados, que normalmente colocavam em cena um musculoso Conan em estilo John Buscema com alguma linda mulher seminua a seus pés. Artistas do porte de Boris Valejo, Earl Norem, Dan Adkins, dentre outros, captaram as ilustrações típicas das HQs de seu contexto e mesclaram-nas aos temas tradicionais das capas pulps dos anos 1930.

O musculoso Conan era cada vez mais o típico fisiculturista temerário com alguma arma branca em mãos vertendo sangue, sempre pronto para enfrentar algum monstro genérico saído do mundo sobrenatural. Normalmente ao seu lado há uma linda mulher em perigo, remetendo diretamente às capas pulps, mas com a arte adaptada ao estilo Marvel de uma publicação magazine sem as censuras.

Na maioria das vezes, as capas não tinham qualquer relação com a narrativa em arte sequencial do interior da revista, demonstrando o apelo da imagem para além da própria narrativa em termos de veiculação e vendagem. Além disso, cada um dos artistas convidados emprestava seu estilo a um padrão pré-estabelecido e deveras apelativo para o público jovem masculino, sedento por tramas com poucos freios em termos de violência, liberdade e sexualidade, o que propiciou sucesso imediato de vendas da referida publicação.

Nos quadrinhos não existia mais a imagem daquele Conan quarentão da Weird Tales dos anos 1930, o bárbaro mimetizado na figura de Tarzan com doses de “filosofia rousseauniana”, colocado usualmente em uma posição defensiva e até existencial diante de alguma criatura bestial ou mitológica.

Nos quadrinhos Marvel da revista Savage sword of Conan observa-se a imagem que se consolidou na cultura midiática industrial como um todo: a imagem de um homem violento, sanguinolento e temerário, munido de armas brancas vertendo sangue e que se colocava em posição de ataque frente a qualquer desafio, fosse um desafio humano ou sobre-humano. Faltava apenas o cinema para consolidar essa imagem do bárbaro cimério e da barbárie como um todo, o que ocorreu em 1982 com o primeiro filme de Conan.

Homem-Máquina e Barry Windsor-Smith: um oásis no deserto dos super-heróis

É com grande satisfação que anunciamos Márcio Júnior como colaborador de Raio Laser! Militante de longa data do rock e dos quadrinhos, o goiano Márcio Mário da Paixão Júnior (1972) é produtor cultural, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, sócio fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado, criador do Goiânia Noise Festival a da TRASH – Mostra Goiana de Filmes Independentes, além de vocalista da banda Mechanics. Dirigiu o curta O ogro e produziu Faroeste: um autêntico western – ambas animações premiadas. Em 2015, sua dissertação de mestrado foi lançada como livro: Comiczzt! – Rock e quadrinhos: possibilidades de interface. (PB)

por Márcio Jr.

Tédio. De um modo geral, este é o termo que define o atual panorama dos quadrinhos de super-herói que entopem as bancas de revista de norte a sul do Brasil. Golpes de marketing, megassagas que vão do nada ao lugar nenhum, personagens históricos completamente descaracterizados, desenhistas gerados em laboratórios de pasteurização, e malditas cores de photoshop que causam à nossa visão um efeito mais deletério do que aquele que o cigarro produz nos pulmões, são a tônica deste mercado - absolutamente servil ao primo rico chamado cinema. Na lógica verticalizada da indústria do entretenimento, os gibis de super-herói não têm mais fim em si mesmos. Sua função é ser o embrião de um blockbuster prenhe de licenciamentos. Ou seja, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que estão a anos-luz daquilo que chamamos de arte. Pior, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que sequer cumprem com decência sua função de divertir - esta, a verdadeira prerrogativa de um bom gibi de super-herói.

 No meio dessa pasmaceira nerd, o lançamento do encadernado Homem-Máquina (de Tom DeFalco, Herb Trimpe e Barry Windsor-Smith) pela Panini, reunindo a mini-série de 1984, é motivo de uma alegria inesperada, mas absolutamente bem-vinda.

Homem-Máquina, ainda na fase de Kirby

O tal Homem-Máquina é um herói de quinto escalão no cartel da Marvel Comics. Após uma temporada na rival DC (onde criou conceitos que ainda hoje estão entre os mais inventivos do mainstream norte-americano, tais como o Quarto Mundo, O.M.A.C. e Demon), o lendário Jack Kirby retorna ao time de Stan Lee, na segunda metade dos anos 70, com uma exigência irrevogável: escrever, desenhar e editar os próprios quadrinhos. Traduzindo em miúdos, o que Kirby queria era liberdade, autonomia e, por tabela, a possibilidade de provar de uma vez por todas que os méritos pelo sucesso da casa do Quarteto Fantástico eram seus e não do falastrão Lee. 

A coisa não transcorreu exatamente como o planejado, mas, como de praxe, Kirby inundou a Marvel com inúmeros projetos vindos de sua imaginação sem limites. Um dos mais excêntricos foi a espetacular adaptação em quadrinhos do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (o Kirby do cinema). Publicada originalmente em 1976 como uma treasury edition (edições especiais em formato gigante), 2001 logo ganhou título próprio, que não durou muito tempo. À medida em que desenvolvia conceitos sob sua ótica ímpar, os leitores foram raleando, o que fez com que Kirby desse um rumo mais convencional à série, focando-a em um super-herói, um androide cheio dos parangolés tecnológicos, mas recheado com sentimentos humanos: o Homem-Máquina. A estratégia proporcionou uma considerável sobrevida ao projeto, com o personagem pilotando agora um gibi solo. Após 19 edições (das quais Kirby foi responsável apenas pelas nove primeiras), o título foi cancelado e o herói relegado a coadjuvante eventual em gibis mais populares. Até ser resgatado, em outubro de 1984, na mini-série em 04 edições compilada agora pela Panini (e publicada em formatinho ainda nos anos 80, pela Abril).

O exuberante 2001 de Kirby

Conan do então "Barry Smith"

O que faz de Homem-Máquina uma pérola, não é apenas a retomada da cria de Kirby, mas o retorno de um gênio que por mais de uma década esteve afastado dos quadrinhos: o britânico Barry Windsor-Smith. Ao lado do roteirista Roy Thomas, Barry Smith havia causado frisson na primeira fase de Conan, o Bárbaro, no início dos anos 1970. O título destoava de tudo que era então publicado nos Estados Unidos, graças à forte pegada literária de Thomas e, principalmente, ao originalíssimo estilo do desenhista, calcado num repertório gráfico advindo da art noveau. A sofisticação do trabalho de Smith era tamanha que tornou-se impossível lidar com os prazos apertados dos gibis mensais. Conan foi então para as mãos do grande John Buscema, ao passo que Barry (agora Windsor-Smith) passou a dedicar-se a uma nova empreitada, a Gorblimey Press, especializada na publicação de portfólios e fine art. O período foi marcado por uma extraordinária pesquisa gráfica do artista rumo a um classicismo rafaelita, bem como pelo estúdio que dividiu com outros três gigantes das artes gráficas e dos quadrinhos: Jeffrey Jones, Mike W. Kaluta e Bernie Wrightson.

Ao tentar retornar aos quadrinhos, Barry Smith percebeu um terrível efeito colateral do período em que se dedicou exclusivamente ao aprimoramento de seu desenho: ele havia perdido o domínio da narrativa quadrinística. Eis então que o amigo (e veterano dos quadrinhos) Herb Trimpe lhe ofereceu os esboços feitos para a mini-série Homem-Máquina para que pudesse finalizar. Nascia então uma pequena obra-prima dos quadrinhos de super-herói dos anos 80.

No então distante ano de 2020, a robótica mundial é dominada pela Corporação Baintronics, a partir da tecnologia extraída do Homem-Máquina, desativado em 1985. Encontrado acidentalmente pelos Sucateiros da Madrugada - grupo rebelde que produz robôs e androides para o mercado negro a partir de sucata tecnológica -, o herói volta a ativa e inicia sua luta contra a megacorporação, enfrentando, entre outras coisas, uma versão recauchutada do Homem de Ferro. Tom DeFalco nunca foi um roteirista além de mediano, mas aqui ele entrega uma consistente trama de ficção científica - que obviamente fica melhor se comparada ao grosso da produção atual. Se não existem momentos de grande originalidade ou reviravoltas inesperadas, o ritmo preciso, a ação bem desenvolvida e a caracterização dos personagens garantem a leitura de cabo a rabo. Conceitos como os vid-salões (ambientes em que vídeo-viciados permanecem com seus cérebros conectados ao mundo virtual o tempo todo) e a cidadela rebelde flutuante Santuário, colocam a minissérie como uma possível influência não creditada à trilogia Matrix.

Herb Trimpe, falecido em 13 de abril último, foi um profícuo desenhista da segunda geração da Marvel, na virada dos anos 60 para os 70. Fortemente influenciado por Jack Kirby, fez história como um dos principais artistas do Incrível Hulk. É dele, inclusive, a capa da antológica edição da Rolling Stone Magazine que dissecava a editora e seu impacto na cultura jovem do período. Mais ainda, foi de seu lápis que surgiu a primeira aparição de Wolverine, a partir do design criado por John Romita. Se em meados da década de 1980 o próprio Kirby não estava entre os artistas mais populares (eram tempos de Frank Miller e John Byrne), o que dizer de Trimpe? De todo modo, foi a partir dos esboços do quadrinista que se deu o retorno de Barry Windsor-Smith aos quadrinhos. Em magnífica forma.

Trazendo na bagagem o inacreditável apuro técnico adquirido nos anos da Gorblimey Press, Barry Smith usou o storytelling de Herb Trimpe como a fundação sobre a qual edificaria a excelência visual presente em Homem-Máquina. Se na primeira edição ainda é possível reconhecer o design de Trimpe em personagens como o robô C-28 Morte Certa, já nos próximos números o artista iria progressivamente abandonar os esboços do colega - ao ponto de, no capítulo final da série, Trimpe sequer ser creditado. Em Homem-Máquina, o brilho de Barry Windsor-Smith ofusca tudo e todos.

A edição da Panini custa R$ 26,90. Vale cada centavo. A capa (dura e belíssima) é uma demonstração de como se utilizar impressão metalizada e aplicações em verniz a serviço do design da edição - e não como uma isca pega-nerd. Outro acerto digno de nota é a tradução de Érico Assis e Rodrigo Guerrino, onde fica evidente o esforço em preservar/traduzir a linguagem do futuro imaginada por DeFalco em 1984. No caso de uma série não tão popular quanto esta, a ausência de textos explicativos e extras se fez sentir. E definitivamente foi um pecado imperdoável reproduzirem as quatro capas originais (sensacional sequência em que uma parafernália tecnológica progressivamente constitui a cabeça do Homem-Máquina) em uma única página. Resta então a questão da cor...

A capa original da primeira edição

As cores sempre foram um ponto fundamental no trabalho de Windsor-Smith. O artista nunca se furtou a emitir as mais pesadas críticas ao péssimo uso de cores feito pela indústria dos quadrinhos e seu modelo de produção fordiano - que pode botar a perder todo o trabalho realizado nas etapas de desenho e tinta. A partir de seu retorno em Homem-Máquina, Barry Smith jamais deixou de ter controle sobre a arte-final e colorização de seu trabalho. Suas cores possuem função narrativa e são elaboradas levando-se em conta o tipo de impressão a ser utilizada.

Homem-Máquina é um gibi de uma época em que as edições especiais praticamente não existiam no mercado norte-americano. É anterior, por exemplo, ao Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Um gibi típico do período, impresso em papel jornal e com limitada paleta de cores. Foi dentro deste limites que Barry criou sua inovadora colorização. Uma vez que a edição da Panini utiliza papel couché brilhante, a proposta do artista não foi integralmente respeitada. Ainda assim é possível se deleitar com a abordagem cromática do inglês.

Ainda que não tenha status de clássico, Homem-Máquina é uma HQ que representa o potencial dos super-heróis enquanto gênero. No Brasil, ficou cerca de três décadas sem reencontrar leitores - o que, dada a quantidade de lixo nas bancas, é algo lamentável. Sua qualidade intrínseca vem aliada à sua importância histórica: o retorno de um mestre de primeira grandeza dos quadrinhos mundiais. Após Homem-Máquina, Barry Windsor-Smith seria responsável por algumas HQs antológicas da Marvel, como a canônica e definitiva Arma X, momento máximo do personagem Wolverine. Logo depois, seria peça fundamental na editora Valiant, publicaria livros pela Fantagraphics e ainda desenvolveria sue próprio título, o invocado BWS Storyteller, antes de sumir de novo. A esmagadora maioria deste material permanece inédita no Brasil - ou clamando por uma reedição decente. A surpresa de encontrar Homem-Máquina nas bancas acende uma pontinha de esperança em ver mais coisas dele por estas plagas. Barry Windsor-Smith tem feito uma falta dos diabos.

As histórias incompletas de Barry Windsor-Smith




Seguindo com nosso ótimo fluxo de colaborações, recebemos um texto do Professor e Mestre em Literatura pela UnB Eiliko Flores. Tendo se voltado, num doutorado, a um intenso estudo sobre diálogos entre gerações em nossa literatura, Eiliko foi convencido a reler uma antiga paixão, a incompleta e ambiciosa série Storyteller, do ilustrador Barry Windor-Smith, e a escrever sobre ela. Ei-lo:

por Eiliko Flores

Barry Windsor-Smith (1949- ) é conhecido pelo seu trabalho em Conan, o bárbaro, mas principalmente por Arma X, a brilhante graphic novel sobre a origem de Wolverine. Em 1997, artista já consagrado nos quadrinhos, com um estilo único que rendia o privilégio de fazer apenas as capas de muitas revistas, Windsor-Smith decidiu lançar um projeto autoral, criado em seu próprio estúdio. A revista se chamaria Barry Windsor-Smith´s Storyteller, e seria lançada em um formato ainda maior do que aquele usado nas graphic novels usuais. Storyteller era a autêntica criação livre e apaixonada de um artista completo, que escrevia, desenhava e coloria suas histórias.  

 
Storyteller traria três universos de personagens: Freebooters, Paradoxman e Young Gods. Freebooters apresenta a história de “Axus, the great”, um guerreiro e herói cuja fama o transformara em uma lenda. Velho, barrigudo e distante de seus dias de glória, Axus funciona como uma espécie de paródia cômica das histórias de Conan, o Bárbaro.

Paradoxman gira em torno de elementos de ficção científica: a princípio, é a história de Tristan, um homem que viaja pelo tempo em uma moto. O protagonista será abduzido por alienígenas, que criam para ele um mundo imaginário. Talvez o personagem mais carregado e complexo daqueles que habitam Storyteller, boa parte das histórias de Tristan são contadas em um consultório psiquiátrico, que também é parte das ilusões forjadas pelos alienígenas. Paradoxman é uma trama que tentou ganhar profundidade em um questionamento mais amplo do que costumamos reconhecer como realidade. O jargão “this is not reality”, com o qual o protagonista tenta se livrar de suas alucinações, é parte desse desdobramento, bem como a aparição do próprio autor dentro da história, para um bate-papo com seu personagem.


Young Gods,  o terceiro e último universo de Storyteller, é dedicada a Jack Kirby (1917-1994), um dos grandes pioneiros nos quadrinhos americanos, artista que colaborou na criação de quase todos os principais personagens da Marvel. Young Gods, onde Windsor-Smith cita em suas linhas o estilo inconfundível de Jack Kirby, trata de um universo de deuses e semi-deuses metidos em questões triviais, como casamento, discussões em meio a bebedeiras, etc. Assim como em Freebooters, há um clima humorístico presente em quase todos os episódios.

Kirbyesco
Infelizmente, Storyteller se tornaria um projeto inacabado. Após nove edições, a revista foi cancelada, devido ao pouco sucesso comercial. Não podemos culpar apenas os leitores por essa derrota, neste caso: embora exuberante e com um premiado trabalho de coloração, as tramas, enredos e diálogos de Storyteller talvez não estivessem à altura da parte gráfica e, principalmente, não estivessem em harmonia com a pretensão que o formato gigante da revista, a qualidade luxuosa do papel e da impressão inspiravam nos leitores; além dos preços de cada exemplar – altos, embora justos. A primazia visual de Storyteller demandava enredos com mais peso, diálogos melhores e uma concisão que ficou latente.

Quase quinze anos se passaram desde a publicação de Storyteller, projeto ambicioso de um artista experiente e cheio de talento. Entretanto, embora o projeto de Windsor-Smith seja hoje uma ruína, uma construção inacabada, a experiência de ter um dos nove exemplares de Storyteller nas mãos é inigualável para todos aqueles que admiram o inconfundível traço de Barry Windsor-Smith.