Lixo extraordinário: sobre as HQs de Zé Carioca


por Ciro I. Marcondes

No ano passado, numa frutífera excursão aos sebos, encontrei uma pequena coleção do Zé Carioca – edição quinzenal – entre 1971 e 1979 (pegando os – ainda modestos – 25 anos da Editora Abril), que consegui pechinchar pela quantia de R$ 1,00 cada, levando, ao todo, no final, umas 40 edições bem conservadas, sem grampo, bem amareladas (como não poderia deixar de ser), mas dignas. A coleção está toda furada, mas isso pouco me importava (não sou muito afeito aos esquisitismos do colecionismo). Após uma amiga me declarar que eu havia gasto 40 reais em uma bela pilha de lixo, resolvi ensacar aquilo e guardar para quando uma oportunidade interessante de aproveitá-la na Raio Laser aparecesse.

Sempre fui leitor Disney (é verdade que é difícil indicar algum tipo de HQ que eu não leia) desde a infância, e, por mais que estivesse distante desse universo há alguns bons anos (ou décadas), sentia falta dessa parcela tão importante da cultura de HQs aqui no blog. Disney acabou sendo bastante defenestrado por suas associações com o macartismo, além da presença daquele livro eficiente, mas academicamente chucro e datado (“Para ler o Pato Donald”), que cuidou de limar lentamente outros tipos de leitura inteligente de seus quadrinhos. Minha lembrança dos quadrinhos Disney sempre foi de narrativas versáteis, atuais, cheias de ricos universos de personagens, com arquétipos fortes (carregando, lá, seus preconceitos, mas, felizmente, naquela época ninguém se importava), variabilidade temática, instigações cientificas, sociológicas, uma fartura de benesses.

Minha pequena “pilha de lixo” vai do número 1031 até o número 1445, lembrando que, em primeiro lugar, esta série começa no número 449 (primeira estranheza) e que, em segundo, ela consta apenas de números ímpares, já que os números pares eram dedicados ao Pato Donald na Abril dos anos 60-70 (estranheza editorial número 2). É claro que, como estamos falando de Zé Carioca, estamos falando de um tipo especial de cultura Disney, ou seja, uma desenvolvida no Brasil e para o Brasil, e vou privilegiar aqui a análise deste aspecto das histórias. A imensa maioria delas é já da fase de editoração 100% nacional, provavelmente desenhadas pelo lendário Renato Canini, responsável pelo abrasileiramento absoluto do Zé nos anos 70, mas não há créditos.

As histórias do Zé nesta época são intensamente vivazes, muito coloridas, com familiar cenário brasileiro, e geralmente lidando com problemas mais afeitos ao leitor brasileiro: um tipo especial de assaltos e violência, por exemplo, ou a cultura do samba e outros tipos de cultura de matriz negra, geralmente excluídas do compêndio cultural da Disney, ou um certo temperamento mais despojado, elétrico e malandro de todos os personagens, contaminados por um senso de ética carioca que, sejamos francos, ainda faz bastante sentido. Portanto, selecionei quatro histórias que funcionam como um anedotário daquilo que encontrei em Zé Carioca ao chafurdar neste “lixo extraordinário”.

1: A cultura do western e a cultura da violência

Em “O mais procurado da cidade”, presente em Zé Carioca Nº 1037, de 71, acompanhamos a história se abrir com um belo requadro panorâmico desenhado de forma realista (grande sacada), em que uma grande tela de cinema mostra um cowboy atirando (Bam! Bam!), ao mesmo tempo em que silhuetas de personagens Disney observam atônitos. Logo depois, após mais um requadro anunciar o fim da história, vemos as silhuetas (dentre as quais podemos identificar a de Zé Carioca) conversarem empolgadamente sobre o filme. Saindo do cinema, diante do cartaz, Zé (ainda vestido de terninho, chapéu panamá e guarda-chuva, conforme seu visual clássico) empunha o guarda-chuva empolgado, entusiasmadamente falando em voz alta: “Menino! O Texas Bill é o máximo! É o quente!”

Esta pequena história, cuja moral se centrará num engano (Zé será confundido com um bandido e verá que vida “cheia de perigos” do faroeste não é tão legal quando vivenciada no “mundo real”), me faz pensar em dois aspectos dignos de nota: em primeiro lugar, a solidez da cultura do western no Brasil já nos anos 70, quando o gênero, em sua matriz americana, resfolegava. Filmes extremamente críticos à cultura do faroeste, como Os profissionais (66), Meu ódio será sua herança (69) e Pequeno grande homem (70), já delineavam o declínio do gênero, que nas décadas seguintes apenas perderia cada vez mais sua espantosa popularidade adquirida nos anos 30, 40 e 50. 

Como o entusiasmo do Zé com o filme de “Texas Bill” parece fresco como o de um menino vendo hoje “Os vingadores”, isso é amostra o suficiente da perenidade da cultura dos westerns no Brasil, com vários cinemas especializados, durante os anos 70, além da popularidade dos chamados “Western Spaghetti” (feitos por italianos), que vão se disseminar a partir especialmente desta década. O nome do filme de “Texas Bill”, “O Cruzeiro furado”, de fato parece parodiar os títulos dos filmes de Sérgio Leone. A história, simpática, ainda flerta com o gangsterismo e o noir, fazendo singela homenagem ao cinema, alinhavando a relação que o cinema de violência no Brasil tem com estas culturas estrangeiras. Se alguém se lembrou, na outra ponta da corda, um filme como Cidade de Deus, eu não acho que seja por acaso.

2: O Rio continua lindo

Em “Um guia em apuros” (Zé Carioca Nº 1207), o quadro panorâmico que geralmente abre toda história Disney mostra Zé Carioca em um modesto stand (o “Zé-Tur”) tentando dar viabilidade à sua agência de turismo. No fundo, nada menos que os morros da Urca e do Pão de Açúcar. “Conheçam o Rio! Férias! Sol! Verão!”. No quadro seguinte, após vermos as ofertas dos concorrentes, Zé olha, num plano frontal, para o próprio leitor e comenta, desanimado: “Ufa! E me disseram que o turismo é um bom negócio... mas por mais que eu grite... a turma vai toda pra agência concorrente!”

Tentando trabalhar (mas não conseguindo – como é a tônica da maioria das histórias do Zé Carioca) honestamente, Zé, aturdido com os baixos preços dos concorrentes (uns gatunos malhados), resolve implementar todo tipo de reforma no negócio para conseguir tirar um trocado: muda o stand de localidade (juntamente com seu amigo urubu, Nestor), abaixa os preços, mas nada muda. Resolvendo então pagar para ver qual o segredo dos gatos, eles descobrem que os concorrentes executavam um crime consideravelmente hediondo: levavam os turistas para cima de um morro e os assaltavam. Me pergunto se colocavam eles dentro de pneus enfileirados e tacavam fogo também, para depois jogar as carcaças na floresta da Tijuca.

Dadinho é o caralho!

Esta história me trouxe à tona dois imaginários sobre o Rio: primeiro, o turismo, que agora bomba tanto com as Olimpíadas, sempre primitivo, batendo na mesma tecla tropical, mostrando que, num estereótipo grosseiro em um gibi para as massas, ou numa campanha governamental “séria”, o Rio de Janeiro continua sob o signo de umas duas ou três características supostamente imutáveis. Em segundo lugar, o aparecimento, bastante agressivo, de uma terceira característica implicada no mundo caótico dos cariocas: a violência associada a uma inteligência intrusa e perversa, ou a selvageria do gangsterismo à brasileira. De alguma forma enraizado num paradoxo de eterno paraíso perdido, o Rio só tem salvação mesmo, nas páginas do gibi, na figura do malandro romântico que é Zé Carioca, trazendo sempre algo de “bom selvagem”, procurando sempre mostrar ao leitor cínico que naquele algures caótico que se valoriza o descaso e a trapaça, convive também a cultura do “viva e deixe viver” tropical, deitada na rede, jogando futebol.

Malandraij

3: Tô me guardando pra quando...

A edição número 1.111 de Zé Carioca, datada (precisamente) de 23/02/73, é uma edição de carnaval. Logo na capa, uma bela ilustração sobre fundo rosa-bebê, vemos um verdadeiro fuzuê com Zé, Donald, Pateta e toda turma batucando no tamborim, soprando corneta, soltando serpentina, cheirando lança-perfume (sic!). Quando abrimos o gibi, nos deparamos com a encantadora história “Um paulista na corte do rei momo”, um tema dificilmente batível em termos de brasilidade. Cheia de vitalidade carnavalesca, esta história vai contar o deslumbramento do desajeitado primo Zé Paulista quando é convidado por Zé Carioca para desfilar no carnaval mais famoso do mundo. Vale recontar a primeira página: Zé Paulista, de cabelinho penteado, terninho empoleirado e uma puída gravata, chega na rodoviária carioca cheio de dúvida e anseios, enquanto lê-se numa placa na própria rodoviária: “o serviço público rodoviário informa: faltam 3 dias para o carnaval”.

Zé Paulista, pontual e ansioso, pergunta-se onde estará Zé Carioca, que prometera buscá-lo na rodoviária. Ao mesmo tempo, num suspeito estereótipo de erudição paulista, pergunta-se como comprará ingressos para o Teatro Municipal. A verdade é que Zé Carioca estava na praia e vai buscar o primo apressado e “culto” com duas horas de atraso. O grande charme desta história é exatamente a caricatura um tanto ridícula, mas ao mesmo tempo insistentemente pregnante, que se pode observar da cultura de São Paulo a partir do primo de Zé. Este enfoque na dedicação, mas ao mesmo tempo na ingenuidade, acabam por definir o destino do personagem na história. Se o trabalho sem malandragem (exatamente o oposto do Zé Carioca) aparece como fator definidor do paulista na história, é justamente o apego ingênuo ao trabalho que o transforma no melhor tocador de tamborim de Vila Xurupita. Como bom paulista obcecado e dedicado, ele recebe a missão de tocar o instrumento, no bloco de rua da moçada, das mãos do próprio Zé. Levando a experiência como uma missão de vida ou morte e treinando dia e noite, ele acaba surpreendendo os jurados e vencendo o carnaval de Vila Xurupita. Diante deste panorama paradoxal, qual é exatamente, portanto, a visão construída sobre os paulistas nesta história? A do “mané” que não sabe tocar e perde o tempo treinando pateticamente, ou a do bastião da força de trabalho, eficiente até mesmo na cultura alheia? Esta singela historinha tem o poder de invocar as duas perspectivas.

Locomotiva do Brazeel

4:  Brasil grande

Por fim, uma das histórias que melhor atestam o carimbo de “brasilidade” atribuído às HQs do Zé Carioca está na edição número 1209, e tem por título “O sumiço dos herdeiros”. Aqui, novamente o primeiro requadro panorâmico, padronizadamente responsável por nos introduzir os conteúdos essenciais da história, é o guia que nos denuncia os signos para uma análise cultural. Num casarão iluminado a velas e com a presença elementos aristocráticos (uma armadura medieval, uma grande poltrona central), o velho coronel (sim, um coronel brasileiro à moda antiga) conversa com quatro de seus herdeiros, humildemente espremidos em um pequeno sofá. São eles: Zé Paulista, Zé dos Pampas, Zé Queijinho e Zé Jandaia, cada um representando o estereótipo cultural de uma região brasileira, fator bem marcado pelo chapéu que cada indivíduo veste. Este coronel, pintado como uma figura severa, mas de bom coração, explica que há um mistério: tentam matá-lo, e cabe aos herdeiros resolver esse problema.

Esta história vale-se de um sincretismo bastante bizarro, que associa o coronelismo arcaico brasileiro a uma certa aristocracia europeia, fazendo a casa do coronel parecer um castelo, e fazendo seus herdeiros parecerem, de algum jeito estranho, vassalos de uma casta nobre e digna. A história, portanto, desenvolve-se em exótica mistura do clima de uma fazenda no interior do Brasil, com direito a sotaque característico e comidas típicas, com romance de fantasmas europeu à Horace Walpole. No final das contas, Zé Carioca, que não participara da reunião por esperteza, salva a família do golpe planejado pelos primos tortos que não estavam sendo contemplados pela herança do coronel. 


Este coronel, que usa chapéu, bengala, monóculo e bigodinho, propõe-se na história a ser um signo exótico, de um antigo conformismo paternalista com culturas brasileiras arcaicas, ainda num manso traquejo de favores entre uma cultura herdeira do escravismo (ou de um militarismo torpe e corrupto) e uma certa dignidade empostada perdida na contemporaneidade. Que as regiões mais famosas do Brasil estejam presentes para abaixarem a cabeça diante de tal autoridade não surpreende e, mesmo sendo tiro pela culatra, a história do Zé Carioca acaba desvelando um sentido meio macabro da própria subserviência brasileira. Uma história de terror e fantasmas, sem dúvida.

Essencialmente brasileiros






















por Pedro Brandt

No ano em que Zé Carioca, o mais verde e amarelo dos personagens de histórias em quadrinhos, completou 70 anos (ou seriam 69? Há divergências), cabe uma pergunta: a cultura, as temáticas, as histórias, enfim, o Brasil pode servir como inspiração para HQs? Muitos responderiam que sim. No entanto, não é preciso ir muito longe para  perceber que a maioria dos quadrinhos brasileiros têm, no fundo, histórias de teor universal nas quais a brasilidade aparece de maneira mais implícita. Essa constatação de forma alguma tira os méritos desses quadrinhos. Mas é interessante notar que alguns autores têm conseguido imprimir em suas obras uma inegável cara brasileira — sem apelar para ufanismo. Marcello Quintanilha e André Toral são dois deles.

Coincidentemente, Quintanilha e Toral estão com novos trabalhos na praça, Almas públicas, do primeiro, e Curtas e escabrosas, do segundo. Mais coincidências: ambos têm 72 páginas e um preço muito parecido. Além disso, os dois álbuns apresentam tanto histórias recentes quanto trabalhos antigos dos desenhistas/ roteiristas. Outra semelhança entre eles são os desenhos com personalidade, imediatamente reconhecíveis. Mas enquanto André Toral é mais direto e simples, Marcello Quintanilha é rebuscadíssimo, próximo da fotografia.



Toral, paulistano de 53 anos, tem um currículo acadêmico que ajuda a entender os temas de suas HQs. Ele é graduado em ciências sociais pela USP, mestre em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ e doutor em história pelo Departamento de História da USP. Sua dissertação de mestrado é sobre religião e organização social dos povos de língua Karajá, e sua tese de doutorado sobre a iconografia da guerra do Paraguai.

Mas o universo de índios, escravos e Brasil antigo inspirou apenas algumas das histórias de Curtas e escabrosas. Outras tantas vêm de observações do cotidiano urbano, de personagens como garotas de programa, leões de chácara, motoboys e funcionários do baixo escalão do tráfico de drogas. Nem todas as HQs são escabrosas (tem muito humor nelas), mas todas são curtas. “Duas páginas é o mínimo, pelo menos pra mim, para se poder contar um história. Como quadrinhos no Brasil pagam mal, era a forma mais barata de contar uma história decentemente e, ao mesmo tempo, não gastar muito tempo, nem do autor e nem do leitor. Terminei me acostumando a essas limitações e o que era uma contingência virou opção”, explica Toral no posfácio da edição. Acaba que suas HQs ganham cara de crônicas ligeiras, que falam o que precisam falar em pouco espaço/tempo.

Nascido em Niterói (atualmente vivendo em Barcelona), Marcello Quintanilha, 40 anos, é outro apaixonado pelo Brasil de ontem, mais especificamente as décadas de 1950 e 1960. Mas Almas públicas também reúne histórias que se passam hoje em dia, a exemplo de "De pinho", que narra o encontro casual de um grupo de jornalistas com um jogador de futebol tímido que é ídolo na comunidade onde mora. Aliás, a vida nos subúrbios, seus causos e personagens pitorescos são recorrentes na obra de Quintanilha.

O que se sobressai na produção desses dois autores é a capacidade de, em poucas ou muitas páginas, apresentar personagens incrivelmente humanos — e essencialmente brasileiros. A coloquialidade dos diálogos e a simplicidade das situações aproximam o leitor e o levam para ser testemunha dos pequenos dramas narrados. Prova não só de suas capacidades como contadores de história, mas de como a inspiração para uma boa HQ pode estar em qualquer coisa, em qualquer lugar.

Almas públicas
De Marcello Quintanilha. 72 páginas. Conrad Editora. R$ 39,90.


Curtas e escabrosas
De André Toral. 72 páginas. Devir Livraria. R$ 39,50.





Publicado originalmente no Correio Braziliense