HQ em um quadro: o monstro de Frank N. Stein tem o cérebro de Hitler?, por Bill Gaines e Bill Elder



Saído de uma edição maltrapilha de MAD (William M. Gaines e Bill Elder, 1953): esta imagem apareceu no meio de uma leitura entusiasmada de uma coletânea de bolso da revista MAD publicada pela novaiorquina Ballatine em 1956 a partir dos originais da EC de 52, 53 e 54. Este poeirento, mofado e fedorento livrinho reúne algumas das melhores histórias da MAD clássica escritas por Bill Gaines, como "Melvin of the apes",  "G.I. Shmoe" e "Little Orphan Melvin", com desenhos de caras legais como John Severin, Wally Wood e o próprio Bill Elder. Me custou a bagatela de 4 reais esse gibi puído e esquecido na prateleira de um sebo. Muito possivelmente, fui a última pessoa que vai lê-lo desde sua longa trajetória quando pertencia à biblioteca da Sociedade Americana dos Amigos dos Marinheiros (como diz um carimbo na folha de rosto), ou quando passou às mãos de um certo ˜Eduardo˜, que não deixou qualquer outro registro. Digo isso porque, na medida em que fui lendo o gibi, ele foi literalmente se despedaçando, por mais que eu tenha costume de ler livros com cuidado para preservá-los. Primeiro, ele se dividiu ao meio. Depois, uma de suas partes segmentou-se em outras duas (estilo Gremlins), até que as páginas começaram a cair uma a uma, algumas realmente se esfarelando. Death comes to us all, even little books

O humor da MAD original, como se sabe, era paródico e pentelho, e foi uma das primeiras publicações a sacanear pesado com a cultura pop de sua própria época, coisa hoje quase irritantemente lugar-comum (de coisas boas, como South Park, a ruins, como CQC). Incrível que uma concepção completa de humor contemporâneo tenha saído da cabeça de uns 4 ou 5 caras no meio do macartismo americano. Esta história Frank N. Stein é uma das mais divertidas, justamente porque Gaines cria a paródia perfeita do cientista europeu genial, sádico e obcecado. Tudo bem que o Dr. Frankenstein original fosse um personagem suíço. Aqui ele vira um alemão aloprado, de sotaque carregado (chega a ser difícil de entender coisas como "Ja boss! Ja boss! All der time you iss saying, 'Ja boss'! Rause mitt der 'Ja boss', hey vill you?"). Era o início dos anos 50, bem fácil de sacanear alemães.

O quadro em questão é o primeiro em que o monstro de Frank N. Stein, já no final da história, aparece. Ele é diferente porque, no resto todo dela, Gaines coloca uma enormidade de falas malucas e histéricas nas desventuras do Dr. Stein e seu mongol ajudante Bumble em busca do monstro fugitivo. Aqui, o quadro é sem falas e o desenho diz tudo, sem mencionar a palavra "Hitler" uma vez sequer. O mistério todo se dava porque Bumble havia acidentalmente roubado um cérebro "horripilante, que deveria ser destruído imediatamente" e colocado no monstro. Elder vai desenhando o jeito histriônico desses personagens sempre com o detalhismo cômico dos college comics e cheio de easter eggs de cultura pop, paródias estilísticas, movimentos legais de aproximação, enfim, uma beleza. Quando eles finalmente acham o monstro, este quadro da criatura com bigodinho nos surpreende tanto quanto aos soldados americanos que o caçam. Porém, a coisa fica ainda mais aloprada quando o monstro simplesmente bate os braços e levanta voo, piando sem parar. O dono original do cérebro então chega e diz que aquilo pertencia a um passarinho. Como se vê, Gaines já tinha a sacação de parodiar o nazismo e ao mesmo tempo o estereótipo da crítica ao nazismo numa mesma história.  Pena que um humor tão fino e burlesco como esse esteja mais em quadrinhos esfarelados e que deram perda total como esse meu gibi do que nesses webcomics cínicos e sem qualquer sutileza de hoje em dia. (CIM)

As sombras, sempre





















por Ciro I. Marcondes

O expressionismo é um padrão visual e conceitual que, com o passar do tempo e diluição bem rala de suas origens, acabou deixando de ser uma estética completa para se tornar uma espécie de estilema. Digo isso porque, na maioria das coisas que vejo com influência expressionista, parece existir uma intenção bem explícita de parecer expressionista, como se identificar essa predileção fizesse parte do processo de entender estas obras. Isso faz com que sempre esses efeitos pareçam somente lisonjeiros ou até paródicos. Daí coisas como o cinema de Tim Burton ou boa parte desses filmes de terror asiáticos. Nos quadrinhos acho que o fenômeno se repete, sendo o estilema um conjunto de dados visuais bem fechado. A gente pode achar isso desde na clássica história de Spiegelman “Prisioneiro do planeta inferno”, que aparece também em Maus, até nas adaptações de Kafka feitas por Peter Kuper, legais, mas bem óbvias, apesar de um quadrinista como Mutarelli flutuar na direção de uma composição bem mais orgânica com o tema.

É aí que vejo o maior mérito (não pequeno, e não único) da graphic novel Três sombras, do francês Cyril Pedrosa, premiada em Angoulême e publicada aqui pela Cia. das Letras. Curiosamente famoso por animar Hércules e Corcunda de Notre Dame para a Disney (guardadas as proporções, a base do traço é a mesma de Três sombras), Pedrosa acabou escrevendo um conto de fadas não apenas com franca inspiração expressionista, mas que também traz o conteúdo essencialista de seu arcabouço estético e filosófico sem parecer estar fazendo um monte de citações inócuas. Três sombras tem muita força estilística e conceitual, e a beleza de sua história aproveita, de maneira muito pessoal, o fundamento expressionista sem recorrer a um estilema visual.


Vejamos: supostamente direcionado às crianças (talvez para causar-lhes pesadelos), Três sombras é uma HQ muito adulta, em que um pequeno núcleo familiar e rural, situado num tempo imemorial (mas que se assemelha à idade mercantil), que convive harmoniosamente em laços legítimos e comoventes, precisa lidar com a chegada de três viajantes (“sombras”), que nunca se aproximam, nunca se revelam, mas das quais sabe-se bem o propósito: vão levar o filho Joachim, para nunca mais trazê-lo de volta. A harmonia então transmuta-se num conto de angústia até que o pai, Louis, decide forçar a barra e carregar o filho para longe das sombras, saindo do pequeno geno da fazenda e abrindo os horizontes do filho e de si mesmo para “mares nunca d’antes navegados”, numa jornada sinistra com tipos cada mais estranhos e perversos entrecruzando-se no caminho dos dois. A jornada em busca da vida é também, portanto, uma jornada de descoberta, amadurecimento e enfrentamento.

A qualidade gráfica do trabalho de Pedrosa é exasperante e exultante. Logicamente está presente um alfabeto expressionista básico, com contrastes de luz e sombra, mas o autor sabe bem subvertê-lo e deixar sua influência mais transparente. Ao contrário da angulação excessiva, tradicional nos decalques do estilo (imagino que a origem de tudo ainda seja a tosqueira que é O gabinete do Dr. Caligari), Três sombras é uma obra de fluxo livre, bem mais simbolista, alternando figura e fundo, eliminando as fronteiras entre os requadros, com linda modulação de movimentos e matizes de giz e grafite que se adaptam às tensões emocionais das cenas. Este era um dos princípios tanto das encenações teatrais expressionistas (basta pensar nas obras de Wedekind ou Strindberg) quanto na pintura expressionista do fim do século 19, que deu origem a tudo: o expressionismo não é uma deformação óptica (como o impressionismo ou esses decalques), mas sim uma visão produzida a partir das ambiguidades internas do indivíduo, uma expressão do “eu”. Em uma Europa perturbada por longa sequência de guerras e com a arte entrando em crise profunda, a busca por uma essência gutural, longe da técnica, que retomasse nossa animalidade intrínseca, acabou sendo fundamental para abalar a noção iluminista de indivíduo que até então vigorava.  É por isso que, mais do que uma estética manjada de embelezamento gótico, o expressionismo é também uma filosofia em si, e suas obras narrativas são sempre alegóricas. De Da aurora à meia-noite a um filme como Nosferatu (Murnau), a histórias projetadas são transvisualizações (o que nos leva a pensar em como este conteúdo ajudou a fomentar a psicanálise ou o surrealismo) de nossas próprias funções mentais, e assim acontece em Três sombras.

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O que temos nesta HQ seria uma redução bem primal de certas angústias básicas e inevitáveis, num conto de fadas que ao mesmo tempo não deixa de ser uma aventura encantadora. O medo da morte, medo do crescimento, do envelhecimento, da fragmentação familiar, de perdermos nosso Éden originário (a infância, a família), de encararmos o lado torpe do mundo, etc., são temas que vão tomando estas formas oníricas, e a de se estar sonhando também é uma sensação que Três sombras nos transmite. A saída deste Éden (útero) primaveril e telúrico de pai e filho leva a um mundo de extorsão, repleto de canalhas, dissimulados, cretinos e psicopatas. Louis acredita que a força inesgotável de seu amor paternal é suficiente para vendar os olhos de seu filho para esta realidade inevitável, mas o roteiro de Pedrosa nos mostra que a persistência é também um ato dilacerado e inútil. O luto pesado, portanto, diante da morte ou do crescimento (growing pains), é algo graficamente e simbolicamente traduzido nas páginas de Três sombras. Este luto, natural a cada um de nós, é a metáfora que reside na sombra expressionista, para a qual sempre olhamos de um jeito torpe, difuso, à meia-luz.

Esta redução a arquétipos, tão mitologicamente proposta pelos pintores e dramaturgos alemães que previam uma grande transformação da psiquê humana com a virada daquele século, tem sempre na figura sinistra da morte uma concentração simbólica maior. Em Três sombras, quando a morte aparece, é para, como sempre, reafirmar seu caráter de inexorabilidade, sua emulsão sem fim de angústia, ainda que de forma plácida. Ela surge apenas para afirmar que “não pode revelar” o que há do outro lado da travessia, da mesma maneira que faz no clássico filme O sétimo selo, de Bergman, quando afirma ao cavaleiro Antonius Block “não saber” o que acontece com as almas depois que elas partem. Este filme, não por coincidência, parte do mesmo princípio de originalidade de Três sombras: investe num profundo mergulho do inconsciente expressionista sem citá-lo, sendo-o sem procurar sê-lo. É o grande mérito de artistas cada vez mais raros que, de fora do ambiente histórico e cultural que gerou esta forma de expressão, conseguem pensar, naturalmente, de forma expressionista. Três sombras, uma grande HQ, acaba de entrar para um clube seleto.              

As sombras, sempre

Essencialmente brasileiros






















por Pedro Brandt

No ano em que Zé Carioca, o mais verde e amarelo dos personagens de histórias em quadrinhos, completou 70 anos (ou seriam 69? Há divergências), cabe uma pergunta: a cultura, as temáticas, as histórias, enfim, o Brasil pode servir como inspiração para HQs? Muitos responderiam que sim. No entanto, não é preciso ir muito longe para  perceber que a maioria dos quadrinhos brasileiros têm, no fundo, histórias de teor universal nas quais a brasilidade aparece de maneira mais implícita. Essa constatação de forma alguma tira os méritos desses quadrinhos. Mas é interessante notar que alguns autores têm conseguido imprimir em suas obras uma inegável cara brasileira — sem apelar para ufanismo. Marcello Quintanilha e André Toral são dois deles.

Coincidentemente, Quintanilha e Toral estão com novos trabalhos na praça, Almas públicas, do primeiro, e Curtas e escabrosas, do segundo. Mais coincidências: ambos têm 72 páginas e um preço muito parecido. Além disso, os dois álbuns apresentam tanto histórias recentes quanto trabalhos antigos dos desenhistas/ roteiristas. Outra semelhança entre eles são os desenhos com personalidade, imediatamente reconhecíveis. Mas enquanto André Toral é mais direto e simples, Marcello Quintanilha é rebuscadíssimo, próximo da fotografia.



Toral, paulistano de 53 anos, tem um currículo acadêmico que ajuda a entender os temas de suas HQs. Ele é graduado em ciências sociais pela USP, mestre em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ e doutor em história pelo Departamento de História da USP. Sua dissertação de mestrado é sobre religião e organização social dos povos de língua Karajá, e sua tese de doutorado sobre a iconografia da guerra do Paraguai.

Mas o universo de índios, escravos e Brasil antigo inspirou apenas algumas das histórias de Curtas e escabrosas. Outras tantas vêm de observações do cotidiano urbano, de personagens como garotas de programa, leões de chácara, motoboys e funcionários do baixo escalão do tráfico de drogas. Nem todas as HQs são escabrosas (tem muito humor nelas), mas todas são curtas. “Duas páginas é o mínimo, pelo menos pra mim, para se poder contar um história. Como quadrinhos no Brasil pagam mal, era a forma mais barata de contar uma história decentemente e, ao mesmo tempo, não gastar muito tempo, nem do autor e nem do leitor. Terminei me acostumando a essas limitações e o que era uma contingência virou opção”, explica Toral no posfácio da edição. Acaba que suas HQs ganham cara de crônicas ligeiras, que falam o que precisam falar em pouco espaço/tempo.

Nascido em Niterói (atualmente vivendo em Barcelona), Marcello Quintanilha, 40 anos, é outro apaixonado pelo Brasil de ontem, mais especificamente as décadas de 1950 e 1960. Mas Almas públicas também reúne histórias que se passam hoje em dia, a exemplo de "De pinho", que narra o encontro casual de um grupo de jornalistas com um jogador de futebol tímido que é ídolo na comunidade onde mora. Aliás, a vida nos subúrbios, seus causos e personagens pitorescos são recorrentes na obra de Quintanilha.

O que se sobressai na produção desses dois autores é a capacidade de, em poucas ou muitas páginas, apresentar personagens incrivelmente humanos — e essencialmente brasileiros. A coloquialidade dos diálogos e a simplicidade das situações aproximam o leitor e o levam para ser testemunha dos pequenos dramas narrados. Prova não só de suas capacidades como contadores de história, mas de como a inspiração para uma boa HQ pode estar em qualquer coisa, em qualquer lugar.

Almas públicas
De Marcello Quintanilha. 72 páginas. Conrad Editora. R$ 39,90.


Curtas e escabrosas
De André Toral. 72 páginas. Devir Livraria. R$ 39,50.





Publicado originalmente no Correio Braziliense

Medo de um planeta negro!



Temos recebido colaborações de gente legal e preocupada em pensar o mundo dos quadrinhos. Ficamos extremamente felizes com o entusiasmo das pessoas em torno do conceito do site. Esta última é muito especial, porque vem de um cara que tanto eu quanto o Pedro admiramos enormemente. Lima Neto é artista plástico, quadrinista e empresário, e é responsável por uma parada obrigatória da cultura pop em Brasília: a gibiteria Kingdom Comics, no Conic. Esta loja é, desde os anos 90, ponto nevrálgico do debate quadrinístico na cidade, onde passam grandes figuras, são trocadas grandes ideias e construídas grandes amizades. Lima não apenas mencionou a RL no (ótimo) blog da loja, como nos ofereceu a republicação de um texto lúcido e necessário. Só temos a agradecer. (CIM).

por Lima Neto

Se você leu qualquer site ou blog de quadrinhos nesses últimos dois dias, já deve estar por dentro de duas novidades que veem tendo uma grande repercursão no mundo dos gibis.

Como essas notícias jã não são mais novidades e foram amplamente divulgadas até pela imprensa leiga, não vou temer spoilers…

A primeira notícia se refere ao Homem-Aranha do universo Ultimate. Como já noticiamos em nosso site, a Marvel deu carta branca para a equipe criativa do universo de Marvel Millenium para ousarem e escreverem o tipo de estória que nunca seria visto no universo convencional da editora. Esse com certeza é o maior presente que um escritor poderia receber e é uma ótima notícia também para os leitores ávidos por novidade. Sendo assim, munido de uma liberdade editorial inédita em um título do Aracnídeo, o escritor Brian Michael-Bendis botou as mangas pra fora e revirou o mundo do Ultimate Spider-man de cabeça para baixo. Peter Parker encontrou seu fim em um dos momentos mais tocantes da série e foi substituído por um novo personagem: Miles Morales. Jovem e negro de decendência latina.


Outra novidade que vem causando arrepios na espinha da juventude W.A.S.P (Branco, Anglo-saxões e Protestantes) norte-americana é a escalação do ator Laurence Fishburne como o novo Perry White, o editor irrascivo do Planeta Diario,  na nova superprodução de Zack Snyder.

Ambas as notícias foram recebidas com milhões de e-mails espumantes que podem ser classificados em uma enorme pasta com o nome de “Não sou racista, mas…”

A indústria de quadrinhos mainstream nos estados unidos, ou seja Marvel e DC, vem se debatendo como peixes fora d’água para se adaptarem às mudanças extremas que o mercado está sofrendo. A editora pertecente o grupo Warner e casa do Super-homem e Mulher-Maravilha já vem passando por mudanças polêmicas que, além de professarem o fim do quadrinho impresso mensal, com a publicação simultânea online e nas bancas, ainda acena com uma preocupação formal de promover uma inclusão de minorias sociais dentro de seus títulos. Mesmo que algumas afirmações truculentas do editor chefe da casa, Dan Didio, quase tenham levado esses planos por água abaixo (Didio respondeu agressivamente a uma leitora que o questionou sobre o por quê da editora ter reduzido o número de mulheres trabalhando na casa de 12% para 1%), a editora aumentou sensivelmente a variedade racial/social/sexual em seu relançamento, optando por manter alteregos diversos no lugar dos originais anglo-saxãos como o Elektro. Enquanto isso, a Marvel aproveita seu universo alternativo, o universo Ultimate, para explorar os benefícios que a diversidade cultural pode trazer ao mercado. A equação é óbvia, se estamos perdendo leitores a solução é trazer novos leitores que não se sentiam representados em nossos títulos.

Fanboy argumentando: "Heimdall é um deus nórdico! É incoerente!"
Essa equação não foi o resultado de um raciocínio comunitário em direção à sobrevivência, mas uma lição ensinada pelas suas companhias irmãs de Hollywood, que reconhecem já a muito tempo o quanto pode ser lucrativa a diversidade. O que não quer dizer que estejam livres de polêmica. O recente filme do Thor deixou eriçado até leitores brasileiros com a escolha de Idris Elba como Heimdall, fato que se repete agora com o novo Perry White e antes ainda com a escolha de Michael Clarke Duncan como Rei do Crime (que causou bem menos rebuliço do que o fator Heimdall, por que será?…).

Porque sou o rei... do crime?
A principal reclamação dos fãs é que tudo isso modifica a mitologia de seus personagens. Que altera cânones sagrados das comic books. Eu chamo isso de posição reacionária.

Peter Parker, Perry White, Clark Kent e Miles Morales tem uma coisa em comum. São todos personagens fictícios, criados por seres humanos que são um reflexo da época em que vivem e naquilo que acreditam. São ideias. O problema é que estas mesmas ideias são cultuadas com um fervor quase religioso pelos fãs, o que acaba por engessá-las e anulam a habilidade das boas ideias de serem abrangentes. Muito provavelmente nos guetos do bairro judeu de uma Nova York atolada na depressão do final dos anos 30, a diversidade de culturas fosse algo bem difícil de experimentar, mas isso não é motivo para se levar essa experiência limitada para frente só por que foi assim que ela foi “criada”. Concordo que certas modificações burocráticas a título de preenchimento de cotas em detrimento do roteiro são questionáveis. Mas ter a oportunidade de ver um ator do calibre de Laurence Fishburne encarnando um personagem querido como o Perry White é um prazer pra qualquer apreciador de cinema. E a gama de possibilidades que se abre com um novo Homem-Aranha, e o aroma fresco da ousadia e da criatividade põem por terra qualquer argumento reacionário onanista que apareça.

“Inteligência. Essa é a única arma capaz de deter a decadência” como diz a banda Cidadão Instigado. Os quadrinhos estão passando por uma de suas piores crises desde sua criação como mídia de massa. E ele só vai poder sobreviver se se transformar e se adaptar. E somos nós, leitores, que temos a responsabilidade de guiar esta transformação para algo que valha a pena ser lido. Queremos representatividade social e cultural, queremos estórias dinâmicas e relevantes e, acima de tudo, queremos criatividade e inovação!

O título desse artigo é o título de uma música do grupo norte-americando Public Enemy chamada Fear of a Black Planet.

Eu diria: Não temam um planeta diverso!

Supernirvana: All-star Superman no Iphone






















por Ciro I. Marcondes

Nos últimos tempos, vem me ocorrendo essa necessidade inexplicável de retratações ambíguas, e é um tipo de processo um pouco angustiante, mas satisfatório. Justiça seja feita. Se em primeiro lugar veio um texto baita elogioso sobre Thor, chegou a vez de pensar novamente em Superman. Este texto já estava planejado, mas vem a calhar, já que não vale a pena ficar pensando no Super apenas como um fetiche cultural do bully ou do escoteiro. Partindo do mesmo Grant Morrison de quem parti em “Superbully Americano”, a ideia é trazer uma visão espelhada, em tudo um negativo da outra, da primeira apresentada.

Eu já vinha lendo a HQ All-star Superman antes mesmo de começar a ler o Superman crônicas, que inspirou o texto “Superbully americano”. Escrever sobre Superman já era um interesse de longa data. Acho que, nessa altura de vida e dos nossos tempos, cabe pensar um pouco num dilema difícil, que acompanha as pessoas no presente. Que tipo de homem deve-se querer ser? Deve-se avançar até o limite de sua própria potencialidade e produtividade, buscando superar sempre as próprias condições de atuação no mundo? Ou deve-se conformar com nossa condição limitada, mortal e modesta, tornando-se o homem comum uma carapuça confiável e justa, dentro da condição de cada um em alcançar a própria felicidade?

Acredito que o mito de Superman tem a ver com isso. Usei, portanto, a minissérie All-star Superman (publicada em 2007 pela Panini sob título Grandes astros Superman), cultuada parceria do escocês Grant Morrison com o célebre ilustrador Frank Quitely (publicada originalmente entre 2005 e 2008), para ao mesmo tempo instigar este tipo de questão mais filosófica sobre Superman e testar a leitura de uma HQ mais longa no Iphone, procurando pensar também na mudança de input na recepção da leitura dos quadrinhos que este tipo de gadget proporciona.

Uma tarefa, portanto, que resume certo grau de imaterialidade e eternidade (“buscar os aspectos quintessenciais da mitologia do Superman”, parafraseando Morrison) com a fortuita mudança de suporte para os quadrinhos, que pode ser bem passageira e sugere volatilidade (ler pelo Icomics no Ipad ou pelo CDisplay já é diferente, e não sabemos qual(is) modelo(s) de leitura digital pode permanecer). Vou dividir este texto, então, em pequenos blocos alternando comentários pontuais sobre All-star Superman em si e outros processando as sacadas que a dinâmica para quadrinhos que o app da DC para Iphone (que é idêntico ao da Marvel) me proporcionou. Espero que gostem da leitura.

"Não tem jeito fácil de dizer isso, então vou dizer logo!"
1 – Supercâncer: Para os que não conhecem, All-star Superman foi um segundo lançamento desta série All-star, que buscava resgatar, fora da cronologia “oficial” da DC (e pensar que agora tudo já se esculhambou mais ainda), aspectos interessantes dos heróis clássicos, revalorizando determinado conceitos. Esta história é geralmente pensada como uma espécie de criação do livro de mitologia definitivo para o Superman, trazendo de volta a beleza arquetípica de cada personagem importante envolvido em seu universo. O plot básico é muito simples, mas se complexifica: Luthor consegue fazer com que Superman entre dentro do sol para realizar um perigoso resgate. O contato tão violento com a colossal virulência energética do sol produz uma absurda sobrecarga nas células do próprio Superman (lembremos que é justamente a influência do nosso sol amarelo que dá os poderes ao herói). Ele desenvolve novos poderes, sente-se ainda mais invulnerável (e eu que já pensara que ele próprio era o limite disso tudo), mas logo descobre que esta sobrecarga fará com que, logo, suas células se convertam em energia pura. Ou seja, Superman está condenado à morte, através de uma espécie de supercâncer. Este conhecimento revoluteia em nosso herói, que, impassível e com clareza de raciocínio também amplificada, reconhece o próprio papel que exerce no planeta Terra e decide realizar doze tarefas profeticamente atribuídas e ele, afim de, determinadamente, deixar tudo organizado para que o mundo possa sobreviver “bem” sem a presença de um Superman. Cada edição da série é, ao mesmo tempo, voltada nostalgicamente a um personagem ou ambiente do universo de Superman. Assim, vamos nos deparando com enfoques distintos em Lois Lane, Jimmy Olsen, o Planeta Diário, Lex Luthor, a dinastia futura dos Supermen, os Kents, Lana Lang, Smallville, o Planeta Bizarro, Kandor, a Zona Fantasma, etc. Analisar em detalhe isso tudo seria perda de tempo e redundância. Vou me ater ao conteúdo mais reflexivo que vi na série.

2 – Um Apolo, um Buda, um Cristo: Acho um engano pensar que All-star Superman seja algum tipo de concentração mítica das características quintessenciais associadas ao Superman. Vamos pensar que, coletivamente, a figura do Superman em muito se distanciou de sua representatividade para os quadrinhos. Para quase todo cidadão comum, Superman é uma figura prototipal e genérica do super-herói em si, traduzida na fórmula “valores morais padrão (estilo “direito humanos”) + poder para resolver isso na base da porrada, ultrapassando legislações e fronteiras nacionais". Superman, na coletividade, acaba sendo mesmo um supersoldado ocidental guiado pelo senso comum, mas ao mesmo tempo incapaz de um traquejo mais malicioso com as condições mais banais da vida humana. Pensemos que ele é eternamente incapaz de resolver sua situação com Lois Lane, sendo nesse sentido bem humano, bem impotente (sabe-se lá em que graus de impotência. Vamos reconhecer que ele deve ser, quase com certeza absoluta, virgem!).

Virgem?

Frank Quitely
Não é este o Superman que Morrison inscreve em All-star Superman (ainda bem). O elegante herói que vemos aqui, de profunda (e quase religiosa) nobreza de caráter, de estoica consciência sobre sua própria condição, e possuindo enorme sagacidade e límpida inteligência, é um desdobramento da cultura quadrinística a respeito do herói, e são seus leitores fiéis é que transpiram esta nostalgia e são consumidos pelo caráter zen e holístico da história. Neste sentido, esta série atravessa o mundo científico louco e surreal de Superman, com suas cidades encolhidas e universos ao contrário, com seus viajantes no tempo e criaturas que devoram sóis. O grande magnetismo, com desdobramentos probabilísticos e quânticos que Morrison (um notório interessado em psicotrópicos fortes e contracultura transcendental) provoca com esta história não parece ser exatamente o lado humano de Superman, mas o reconhecimento de sua condição divina, num entrecruzamento de fábulas, levando tudo isso a um patamar de maturidade e fazendo do personagem uma serena e empolgante mistura de Apolo, com Cristo, com Buda.

A arte de Quitely com certeza ajuda a reforçar estas ideias. Dono de um traço leve e humanístico sem deixar de ser escultural, ele ilustra estas disposições embelezando componentes de mitologia com fascinante detalhismo, mas mantendo os personagens com expressões bem puras. Este apelo meio renascentista (a leveza dos seus gigantes sempre me pareceu um pouco botticelliana), meio barroco (neste caso, a multitude de objetos e cenários) parece mesmo transmitir esta tensão, tão secular, entre razão e espiritualidade que a série deixa transparecer.
3 – Quadrões? Adquiri as 12 edições de All-star Superman pela próprio reader da DC no Iphone, e o ato de comprá-las é simples, rápido e eficaz. Cada uma delas custou $ 1,99 e, na conversão atual do dólar, a série completa saiu por cerca de R$ 18. Achei honesto. Em princípio, a leitura de uma HQ mais densa no Iphone pode chamar atenção pelo desconforto (o aparelho, ao contrário do Ipad, é muito menor que uma revista), e muitas vezes mesmo os quadros individualizados na interface dele são menores do que os publicados em papel originalmente. Porém, o dispositivo que o aplicativo oferece pra resolver esse problema é não só interessante para travarmos um contato mais minucioso com a arte da HQ, como provoca esta sensação curiosa de aproximar as HQs do cinema. São 3 fatores que me fazem arriscar a dizer isso, e este é o primeiro deles. Explico: no Iphone, temos a opção de ver, antes ou depois de ela ocorrer, a página inteira miniaturizada, mas uns 90% da leitura se dá quadro-a-quadro, cada um deles projetados integralmente na telinha. Cada “quadrinho”, portanto, se torna um “quadrão” individualizado.

A vantagem que temos, nesse caso, é a de passear livremente pela superfície desse “quadrão”, aplicando todo tipo de zoom, ao nosso bel-prazer. Nosso olho se torna mais móvel, e nosso dedinho, correndo pela imagem, uma extensão daquele. Isso tudo me lembra a pioneira teoria cinematográfica de Hugo Munsterberg, quando ele dizia que o cinema era um dispositivo que replica nosso próprio processar mental: se o “quadrão” do cinema nos joga diante de um close-up ou um zoom, ele estaria replicando nosso ato físico de aproximar o olho de um cenário ou objeto, com a diferença de que, neste caso, estamos paradinhos na poltrona e o “mundo” se movimenta em direção a nós. No caso da HQ pelo Iphone, um fenômeno misto ocorre: nosso “olho”, mediado pelos dedos, se aproxima do “mundo” desenhado pelos quadrinhos mas, nesse caso, ele não é “dirigido” pela temporalidade cinematográfica, mas sim pela nossa velocidade própria de leitura, conforme fazemos sempre nos quadrinhos de papel.

aqui tem uma resenha em vídeo do app da Marvel:



4 – O gênio de Superman: Para mim, o melhor par de nêmesis do mundo dos super-heróis continua sendo (e creio que sempre será) a querela Superman x Lex Luthor, por suas condições que evidenciam uma proporção inversa: nosso herói é invulnerável, e poucas coisas podem realmente lhe ameaçar. Sua condição de defensor é quase um truísmo: ele deve proteger, supostamente porque não há nenhum outro capaz de fazer isso. Morrison evidencia isso no final da história, quando enquadra Superman como um tipo de consciência cósmica, enxergando os fios transcendentais que unem os aspectos da realidade e tornando sua função de defensor e unificador uma inevitabilidade.

Clark...

Porém, nosso senso comum coloca sempre Superman como condicionado por uma moralidade autoevidente, do tipo “tem um prédio em chamas? Vou lá salvar todo mundo e apagar o fogo”. Mas as nuances da moral com certeza não são autoevidentes como a cultura do bom-mocismo quer passar, e é nesse ponto que Luthor – uma figura fascista, 100% compenetrada na certeza de que sua própria inteligência e genialidade são também truísmos e de que é uma conclusão lógica que ele deva ser o governante mundial – estabelece o contraponto básico desta relação: pode um homem normal, munido apenas de arrogância, autoconfiança ensandecida e genialidade, derrotar algo fisicamente indestrutível e guiado por um senso moral comum, mas sólido e legitimado?

Aqui, Morrison dá uma resposta que subverte os clichês de ambos os personagens, sem sacrificar a tal “quintessência” deles. O “câncer” de Superman e todo o plano de matá-lo é previsivelmente uma grande arquitetação de Luthor, e até aqui nada parece estar fora do lugar. Porém, a grande sacada do escocês é a ideia de que Superman simplesmente não é quem ele parece ser. Filho de uma linhagem avançadíssima de seres alienígenas, Kal-El não herda simplesmente a sobrenaturalidade física de seus ancestrais, mas também uma inteligência sobrenatural. Lembremos que Kal-El/Superman/Clark Kent é filho de Jor-El, o mais brilhante cientista de Kripton, e Morrison o transforma também em um tipo específico de cientista. Em All-star, Superman sabe muito bem o jogo de disfarces que precisa operar em suas várias identidades na Terra, mas é a consciência sobre-humana de kriptoniano que parece ser seu local de maior conforto. Como parte de seu testamento, Superman lega à humanidade a fórmula para que, após seu fim, um novo Superman (“Superman 2”) possa ser criado. Enquanto isso, desenvolve em laboratório uma “mini-Terra” em que tudo no nosso mundo é igual, mas sem a existência do Superman. Morrison faz sua homenagem ao universo do leitor fazendo-nos perceber que esta Terra experimental é o nosso próprio mundo “real”, e Superman aparece como personagem de quadrinhos, criado por Siegel e Shuster.

Enquanto isso, Luthor é condenado à cadeira elétrica por crimes contra a humanidade, e a edição em que Clark vai entrevistá-lo para registrar suas últimas palavras é uma das melhores da série. Arrogante, Luthor não admite temores (muito menos da morte), e sua visão e simpatia pelo abobalhado Clark como o absoluto oposto de Superman é a grande aporia que faz seu plano naufragar: gênio como poucos, Luthor (como todos) não enxerga o óbvio. Na última edição, a relação finalmente se inverte e coloca os personagens em suas reais limitações. Superman já está no fim de sua vida, muito enfraquecido pela “doença”, e Luthor (por meio de algum technobubble que não me lembro direito) adquire os poderes divinais do herói por 24 horas. Tudo parece perfeito para a conquista global, se Luthor simplesmente não ficasse paralisado em meio uma epifania causada pelo estado de ser Superman, em sua consciência superior, por algumas horas. O contato não com os superpoderes, mas sim com a ontologia divinal, deixa Luthor confuso a respeito de seus propósitos, e ele reconhece uma verdade ao mesmo tempo mística e científica nas ações altruístas e na compaixão de Superman. A ironia de tudo é que este estado é provocado após Luthor ser atingido por um raio gravitacional (?) por um frágil Clark Kent, acelerando a superconsciência do vilão. No final das contas, a inteligência se prova um estado mais refinado que o de elaborar grandes planos.


5 – Fim da página: Ler quadrinhos no Iphone logicamente nos distancia do conforto físico que é o ato de virar páginas e dobrar uma revista. Esta imaterialidade não é o único problema, já que o próprio formato do Iphone é um pouco inadequado para este ato. Ler na cama, por exemplo, requer uso constante das duas mãos, e isso se torna cansativo. Essa projeção do mundo de quadrinhos para uma completa imaterialidade tem também um desdobramento na própria percepção do conteúdo, e mais dois aspectos fazem isso se aproximar de percepção imaterial que é o cinema (ninguém “toca” o filme, certo?).

Em primeiro lugar, a abstração da noção de página. Por mais que a gente vá acompanhando mais ou menos a disposição dos quadros num vislumbre rápido da página, a sensação geral é de um emaranhado impreciso de “quadrões” em sequência. Para alguns, aqui a arte dos quadrinhos perde algo essencial. Como diz o pesquisador David Carrier: “A página não é um elemento neutro, meramente passivo, e sim constitui um aspecto visual distinto e ativo”. As incríveis páginas de temporalidade simultânea, específicas das HQs, na edição da fuga de Luthor, por exemplo, passam batidas, no Iphone, a um leitor incauto. O efeito disso, portanto, é de pura virtualidade: tudo aquilo que se transmite como uma simultaneidade expressiva (a página, a ordem e a disposição dos quadros dentro da composição da página) se converte em uma simultaneidade em sucessão, quando, sintaticamente, temos que absorver a história numa linha bem mais direcional, imagem por imagem, exatamente como é a (imensa) sucessão de “quadrões” do cinema.


Este efeito se confirma com mais um recurso do reader da DC para Iphone: os movimentos de “correção” que adicionam um grau de temporalidade e duração aos quadrinhos. Ora, a gente sabe que os quadrinhos possuem uma temporalidade complexa a intricada, basta ler o velho McLoud, mas a noção de “duração” era bastante ausente, justamente porque os quadrinhos são mesmo... parados. No Iphone, cada quadrinho acaba sendo dividido em sub-partes que vão sendo mostradas, num interessante movimento automático feito pelo aplicativo, uma a uma, em detalhes, para o leitor. Assim, certo suspense pode ser acrescentado a um mesmo quadro quando, por exemplo, ao lermos o detalhes da fala de um personagem, não sabemos a forma e o teor da resposta do interlocutor no mesmo quadro (o que seria visível numa leitura de HQ física). O corretor “oculta”, então, os detalhes adicionais, não só enrijecendo a ordem com que lemos as HQs como mostrando os detalhes na medida em que vamos pressionando a tela, criando movimentos e dinâmicas específicas dentro do quadro. Esse proto-movimento nos aproxima, é claro, de imagens animadas, e muitos querem sugerir que, no futuro dos quadrinhos, está o desenvolvimento deste potencial.

(fiz um videozinho pra demonstrar esses efeitos todos. Perdoem os aspecto... hmmm... rudimentar da minha câmera)




6 – Super-nirvana: Por fim, e como conclusão, vale mais uma observação a respeito de um ato de All-star Superman. Duas edições dela são dedicadas ao aparecimento do planeta Bizarro (“Htrae”), dos confins de uma dimensão inferior, na órbita da Terra, que é invadida por genéricos “bizarros” que passam a assumir formas “bizarras” da população. Esta ideia, do Bizarro (bem popular no desenho “Superamigos”), pode parecer invenção maluca e ingênua, mas às vezes as ideias simplesmente se complementam sem a gente perceber. Se a mitologia de Superman é em tudo um conto sobre a perfeição, no planeta Bizarro tudo é tão absurdamente imperfeito que nem mesmo Superman pode fazer qualquer coisa por ele (neste caso, em sua infalibilidade, Superman é o mais inútil dos seres). Já fraco e próximo do fim, Superman é tragado para a superfície do planeta, e todo seu esforço pode ir por água abaixo porque ele já não pode voar e perde a superforça. Sua única salvação se encontra em construir um foguete e voltar para a Terra. Este plot, porém, não é mais interessante do que a aparição de Zibarro, um tipo de desdobramento do Superman de tal maneira raro em Htrae, com uma genética tão única e acidental, que possui... inteligência, consciência, talento e sentimentos. Zibarro é ridicularizado pelos outros “bizarros” por ser considerado uma aberração, e se queixa de sentir colossal solidão. Este episódio em Htrae é um dos mais poéticos da série não apenas porque, a partir de uma relação negativa, conhecemos a solidão divina do próprio Superman, mas também porque é um dos momentos em que a arte de Quitely se supera, criando uma paisagem vermelha, apocalíptica e desoladora, inundando a HQ com comovente tristeza gráfica.

Bizarro

O contraste trazido à tona por Zibarro, o poeta solitário de Htrae cujo único sonho é se sentir normal, num mundo de normais, nos traz de volta àquele primeiro questionamento, entre a ambição do “super” e o conforto estoico do “comum”. Morrison evidencia, com Luthor e com Zibarro, que “caminhar sobre ombros de gigantes” nem sempre é uma experiência de magnitude, a não ser a magnitude sublime do abismo, a terrível solidão dos deuses e gênios. Estas passagens nos transmitem as nuances da visão de mundo atribuída a Superman, e a maneira com que ele sublima todos estes paradoxos curiosamente remete a uma ideia clássica do imaginário do super-herói: a persistência. A despeito destas trevas trazidas à tona pelos outros personagens, em nenhum momento Superman, Kal-El, Clark ou todos juntos parecem hesitar. A atribuição de Superman é da autoconsciência de um destino cósmico, de uma razão já calculada sobre suas ações no mundo, de uma investigação já encerrada sobre as fronteiras da moralidade. Este Superman de Morrison é um ser olímpico, apolíneo, e a dúvida é um benefício (?) dos mortais. Diante de sua própria morte, Superman não hesita e insiste em cumprir, irrevogavelmente, todas as suas doze tarefas com perfeição, deixando a humanidade preparada para sua ausência.

Zibarro

No final da história, num ato de metempsicose que remete às experiências com o oculto de Grant Morrison, Kal-El já está numa dimensão de certo além-vida, em transfiguração da matéria que torna oblíquos o tempo e o espaço. Ele vive numa vida em que Krypton nunca foi destruída, e, conversando com seu pai Jor-El, percebe que não cumpriu todas as suas tarefas em sua materialização imediatamente anterior, na Terra. Jor-El explica que voltar no tempo, reconfigurar a realidade e mesmo transmutar-se novamente para uma vida anterior são escolhas nossas. Sem hesitar, Kal-El realiza (como um deus, vejam bem, não como humano) a escolha de retornar, tendo já, há sabe-se lá há quanto tempo, percebido o fundamento de sua persistência implacável. Superman retorna e, como tantos deuses, adquire o dom de subverter a morte. Seu retorno acontece para que ele possa salvar a Terra da destruição do nosso sol, enfermo graças à ação de Solaris, um sol maligno e artificial. Sabendo, numa consciência claramente transcendental, que suas próprias células se tornaram baterias solares e que ele mesmo se tornará umas espécie de sol, Superman sublima sua própria existência e voa para o centro da estrela que ilumina nosso planeta, não apenas recompondo-a, mas tornando-se parte dela. Isso parece ou não, afinal de contas, uma espécie de nirvana?

SUPERNIRVANA!

All-star Superman também virou, em 2011, animação pela Warner. Veja a primeira parte:








Valsa com Bashir: experiência, memória e guerra





















Maus
Dando continuidade à nossa série de gentis colaborações, RAIO LASER apresenta um texto muito especial. "Valsa com Bashir: experiência, memória e guerra" é um artigo do professor e pesquisador Pablo Gonçalo, publicado originalmente na revista portuguesa Doc Online, especializada em visões sobre o gênero do documentário. Pablo atualmente desenvolve tese de doutorado pela UFRJ e é um dos mais promissores pesquisadores brasileiros no campo do documentário cinematográfico. Ele produziu este texto pensando nas relações ambíguas entre uma certa invenção da memória e a constituição deste mesmo processo na elaboração dos fatos pelo evidenciamento da narrativa. Para isso, ele costurou uma relação necessária e midiática com extensa análise sobre não apenas o filme de animação Valsa com Bashir, o genial quase-doc israelense de Ari Folman, como também sua adaptação em quadrinhos (pelo mesmo Folman, com o ilustrador David Polonsky) e uma necessária ponte com o aspecto pós-memorialístico do clássico Maus, de Art Spiegelman. Boa leitura! (CIM)

Valsa com Bashir: experiência, memória e guerra

por Pablo Gonçalo

1.

Um documentário. Uma animação. Uma história em quadrinho. Uma narrativa autobiográfica. A história contada em Valsa com Bashir utiliza-se de diversos instrumentos e recursos para reconstruir e recuperar a memória do massacre de Sabra e Chatila durante a invasão do Líbano por Israel, em 1982. Mais do que um retrato de um importante acontecimento histórico, uma investigação ou uma narrativa expositiva, o autor Ariel Folman optou por expressar seu ponto de vista e sua própria experiência nesse acontecimento.

Ao apostar numa linguagem que mescla gêneros e cruza fronteiras, Valsa com Bashir oferece ao espectador uma imersão sui generis na experiência de uma guerra. Seja pelo filme, seja pela história em quadrinho, que acompanhou o lançamento do filme, a relação entre imagem e memória obtém uma força peculiar nessa história. Como se fossem indissociáveis, ambas brotam e ressurgem simultaneamente por meio da teia narrativa. Este artigo possui o objetivo de investigar como se alinham tais combinações entre experiência, narrativa autobiográfica, imagem e memória nos diversos suportes de expressão de Valsa com Bashir.


Na época da invasão do Líbano Ari Folman tinha dezenove anos e era um simples soldado lutando pelo lado de Israel. Não por acaso, Valsa com Bashir narra a guerra a partir da perspectiva desse soldado e de seus colegas de batalhão que, de certa forma, compartilharam da mesma experiência. Narra, todavia, com um detalhe: o ponto de partida da história é justamente um bloqueio de memória. Ariel Folman não se lembra da existência do massacre e tampouco possui reminiscências de certos episódios da guerra. Sob tal ótica, o autor estaria impossibilitado de narrar, já que toda narrativa pressupõe a reconstituição de fatos e sensações a partir da memória, da seleção e da expressão detalhada de certos acontecimentos. Numa boa solução narrativa, Folman considera seu lapso de memória como um ponto de partida para transforma-lo no mote, no tema da história e no objetivo de superação do autor-personagem. Dessa forma, Valsa com Bashir não é estritamente um relato autobiográfico, mas também uma investigação, uma procura pela tessitura de um fato histórico, uma experiência individual que evidencia a invenção da memória como uma construção psicológica e social.

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Assim como Marcel Proust faz no seu Em busca do tempo perdido, há uma estratégia que torna a narrativa um instrumento quase imprescindível para rememorar o que foi vivido. Mais do que lembrar, Proust almeja adentrar na esfera cosmológica, expressiva e simbólica da lembrança. Como se fosse um detetive dos acontecimentos e fatos vividos por ele mesmo. Dessa forma, com tal estratégia, ele embaralha acontecimentos vividos com acontecimentos lembrados e acaba por elevar ambos a uma nova potência expressiva: "Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois" (Walter Benjamin).
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Tal estratégia também encontra-se como um elemento estruturante da narrativa de Valsa com Bashir. Ao apostar numa estética da imersão, Ariel Folman compartilha sua memória, sua experiência e sua investigação narrativa. Dessa forma, ele induz o leitor-espectador a perceber aquelas memórias como se também fossem suas. Ao final do filme, ao terminarmos de ler o quadrinho, temos a sensação de encontrarmos uma memória involuntária (e uma imagem poética). Sensações similares às procuradas por Ari Folman.

Por outro lado, as escolhas pela animação e pela história em quadrinho não parecem casuais. Ambas propiciam, latentemente, uma reflexão sobre o papel da imagem de guerra num contexto hipermidiático e contemporâneo. Talvez por isso esse filme não teria o mesmo vigor imagético, estético e simbólico se utilizasse uma imagem tradicional de representação da "verdade". Primeiramente, o autor busca enaltecer nosso olhar para, ao final da sua narrativa, nos devolver a força dramática da imagem fotográfica. 

Para ler o resto do artigo, clique aqui

Um trecho do filme Valsa com Bashir:

Nas franjas do inconsciente


por Pedro Brandt

Um dos maiores nomes das histórias em quadrinhos, o francês Jean Giraud, pseudônimo Moebius, andava sumido das livrarias brasileiras. Aliás, a publicação de seus trabalhos em versão nacional sempre foi espaçada. Depois de histórias esporádicas em revistas e alguns poucos álbuns lançados na virada dos anos 1980 para os 1990, HQs de sua autoria só voltaram a ser publicadas no Brasil em 2006 — três volumes de Incal, parceria com Alejandro Jodorowsky, e três de Blueberry, o caubói criado por Giraud e o roteirista Jean-Michel Charlier.

A recente publicação no Brasil de Coleção Moebius: Arzach serve tanto para apresentar o trabalho do autor para novos leitores, como para proporcionar aos antigos fãs, finalmente, uma edição nacional da obra, uma das mais conhecidas e representativas de Moebius. O álbum funciona também como carta de intenções de uma nova editora brasileira de quadrinhos, a Nemo (integrante do Grupo Editorial Autêntica). Leia entrevista com o editor Wellington Srbek abaixo.

O personagem Arzach surgiu um 1975 e causou muito barulho à época, como lembra Moebius no texto de apresentação: “O fato de não haver texto em suas páginas de início surpreendeu muito. Além disso, a história não correspondia a nenhum dos esquemas narrativos clássicos, ao menos no âmbito dos quadrinhos, já que na literatura contemporânea esse tipo de caminho não tem nada de excepcional. Enfim, graficamente eu não medi esforços e dediquei a cada imagem um volume de trabalho e uma energia comparáveis àquelas que, geralmente, são reservados a uma pintura ou uma ilustração”.

Sonhos e sensações


Mais do que belíssimas páginas, Arzach é peça fundamental para compreender os rumos criativos de Moebius. “Para mim, Arzach foi um tipo de surto, um mergulho em mundos estranhos, além do visível. Entretanto, não se tratava de produzir mais uma história bizarra, mas de revelar alguma coisa de muito pessoal, da ordem da sensação. Eu tinha como projeto expressar o nível mais profundo de consciência, nas franjas do inconsciente. Esta história pulula, então, de elementos oníricos. Quando se engaja nesse tipo de trabalho, as portas do espírito se abrem repentinamente, deixando aparecer as formas, as imagens, os arquétipos que trazemos conosco”, comenta o francês.

E para melhor apreciar Arzach é preciso ter em mente os critérios que influenciaram a criação das HQs. Como o sonho é uma inspiração, nem todas as histórias tem fim esclarecedor ou um sentido claro. Em todos os casos, a viagem é recompensada pelo inconfundível traço de Moebius, autor de cenários, figurinos e personagens de um mundo todo próprio.

Arzach é um misterioso guerreiro que vive num mundo alienígena. Em suas aventuras, ele é acompanhado por um animal alado de pele espessa, meio pássaro, meio pterodáctilo, parte mecânico, parte orgânico. Mas quem é Arzach? Qual sua missão? Apenas na última história, a única do personagem com texto, os leitores terão algumas pistas.




Além das oito histórias com o personagem (todas elas curtas, de rápida leitura), o álbum apresenta a HQ Desvios, na qual o próprio Jean Giraud e sua família são os personagens. Exercício de metalinguagem em quadrinhos, o trabalho é apresentado por Moebius como uma parábola límpida: “Se você segue os caminhos balizados da sociedade, tudo vai bem. Mas, se você se afasta para pegar um caminho diferente, aí, estranhas aventuras te esperam e ninguém sabe onde elas poderão te levar”. Em resumo, o quadrinhista está falando da grande aventura criativa que começava a nortear sua produção — e, partindo dessa premissa, sobre os caminhos para os quais podemos ir quando soltamos as amarras para a imaginação correr livre.

Coleção Moebius: ArzachDe Moebius. 56 páginas. Editora Nemo. R$ 42.


DUAS PERGUNTAS // WELLINGTON SRBEK


Quais os próximos lançamentos da Nemo?

Além de Arzach, de Moebius, já tivemos os dois primeiros volumes da série Mitos recriados em quadrinhos: Ciranda Coraci e O senhor das histórias, produzidos por mim e por Will. Para este ano, ainda teremos o segundo volume da Coleção Moebius, Corto Maltese: A juventude, de Hugo Pratt, Era a guerra de trincheiras, de Jacques Tardi, e A trilogia Nikopol, de Enki Bilal. Nacionais, temos programado as adaptações de Dom Casmurro, Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão e Otelo

Você também é roteirista de quadrinhos. Como avalia o espaço e o valor dado à “categoria” no Brasil? 
O espaço para os roteiristas é ainda restrito. Muitas vezes, não há o reconhecimento das competências específicas exigidas para a criação de um roteiro e qualquer um se acha capaz de roteirizar uma HQ. O resultado disso é que muitas HQs têm um visual interessante, mas são mal escritas ou mal narradas. Felizmente, temos hoje no Brasil autores competentes que se dedicam exclusivamente ao roteiro e têm mostrado que essa “categoria” tem seu próprio valor.

Texto publicado originalmente no Correio Braziliense


Aqui, Moebius e Jodorowsky falam sobre o lendário projeto abortado de adaptação para o cinema do clássico Duna, de Frank Herbert: