2º CURSO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL

Ministrado pelos criadores de RAIO LASER

PROGRAMA DO CURSO

EMENTA:

Quadrinhos! Hoje em dia eles estão por toda parte: multiplicados pela Internet, em edições luxuosas nas bancas e livrarias, em filmes blockbuster de Hollywood, na ponta do lápis do artista brasileiro. Este enorme fenômeno da chamada “cultura pop” ganha, a cada dia, cada vez mais adeptos de todos os tipos e idades. Porém, qual a história desta forma de arte e entretenimento? Quando ela surge, como se consolida? Como dialoga com outros meio de comunicação? Quais são seus marcos históricos, suas escolas famosas, e como cada uma delas se desenvolveu? Como foi se modificando a visão que a sociedade tem sobre eles? Qual a importância deles na cultura contemporânea? Estas e outras perguntas são importantes para estabelecer os parâmetros do 2º CURSO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL.

As histórias em quadrinhos modernas têm como marco inaugural uma publicação de 1895, mesmo ano da primeira exibição cinematográfica pública, realizada pelos irmãos Lumière. Elas se inserem na história e na cultura do século XX como um fenômeno de grande influência social e aceitação popular, lentamente requisitando seu lugar no universo das artes. Meio de alta maleabilidade e possibilidades expressivas, os quadrinhos se adaptam a todo gênero de modalidades narrativas: do horror à comédia. Da sátira social ao abstracionismo. Da contracultura à autobiografia. Da fantasia à política. O objetivo deste curso é percorrer um pouco da história desta mídia, em geografias distintas, abarcando também uma introdução à teoria dos quadrinhos.

PROFESSORES:

Ciro I. Marcondes é professor, crítico e pesquisador de Histórias em Quadrinhos e Cinema. Foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, do curso de Cinema do IESB e de Audiovisual no Unicesp. Atualmente cursa doutorado em Comunicação no PPG-FAC da UnB, na linha Imagem e Som. É mestre em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). É o editor do site www.raiolaser.net, especializado em crítica de Histórias em Quadrinhos. Já ministrou cursos como “História do Cinema”, “Crítica de cinema e análise fílmica”, “Hitchcock e a ilusão do cinema”, “Cinema e filosofia”, para o Espaço Cult, Centro Cultural Banco do Brasil e Espaço Varanda.

Pedro Brandt é jornalista formado pela Universidade Católica de Brasília (2006). Passou pelas editorias de cultura dos jornais Tribuna do Brasil (2005-2007), Jornal de Brasília (2007-2008) e Correio Braziliense (2008-2012), para as quais escreveu sobre diversos assuntos, com destaque para música e histórias em quadrinhos. Produziu e apresentou durante cinco anos (2006-2011), junto com Fernando Rosa, o programa Senhor F, na Rádio Cultura FM de Brasília, com enfoque diferenciado em clássicos, obscuridades e novidades do rock. Também trabalha como assessor de imprensa e coordenador de comunicação de projetos culturais, produtor de shows de rock e idealizador do selo Discos Além (lançamentos em vinil e CD). É articulista e editor do site especializado em quadrinhos Raio Laser (www.raiolaser.net).

CRONOGRAMA:

Aula 01

(22/02): O surgimento dos quadrinhos + primeiros quadrinhos: ainda no século XIX, os quadrinhos despontaram como mídia influente, industrializada, de conteúdo anárquico e politicamente incorreto. Krazy Kat; Little Nemo; Mutt and Jeff; O menino amarelo. Os funnies e a popularidade das family strips.

Aula 02

(23/02): Era de ouro americana + o quadrinho de horror (período clássico): a era clássica dos quadrinhos e a ascensão do heroísmo (Flash Gordon, Tarzan, Príncipe Valente, Dick Tracy). A criação do comic book e dos super-heróis (Superman; Batman). Will Eisner e Spirit. A popularidade da EC Comics e dos quadrinhos de horror, guerra e ficção científica. O código de censura e o fim da era de ouro.

Aula 03

(24/02): A cultura da BD e o quadrinho francobelga: os quadrinhos de tradição francófona em duas frentes. A rivalidade entre as revistas Spirou e Tintin e o quadrinho de humor (gros nez e linha clara). Jerry Spring, Lucky Luke, Spirou, Tintim, Asterix, Gaston Lagaffe. O quadrinho adulto francobelga a partir de revistas como Pilote e Métal Hurlant, entre outras. Autores: Dionet, Moebius, Druillet, Lob, Bilal, Jodorowsky, Tardi, Hermann, etc.

Aula 04

(25/02): O quadrinho italiano (fumetti) + o quadrinho japonês (mangá): introdução à cultura de HQ pulp das bancas italianas com faroeste (Tex, Ken Parker, Mágico Vento), aventura e horror (Martin Mystère, Dylan Dog, J. Kendall). O quadrinho autoral italiano: Hugo Pratt, Crepax, Manara, Serpieri, Liberatori. A cultura de quadrinhos japonesa em seus âmbitos histórico, social, industrial. Mangás e gekigás. Autores: Osamu Tezuka, Hayao Miiazaki, Katsuhiro Otomo, Suehiro Maruo, Yoshihiro Tatsumi, Jirô Taniguchi.

Aula 05

(26/02): O super-herói das eras de prata e bronze + O quadrinho nacional: o retorno à cultura de super-heróis a partir da ascensão da Marvel nos anos 1960. Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, John Buscema, etc. O dilema do herói na era do Vietnã e no flower power. O amadurecimento dos super-heróis no final dos anos 80 e o surgimento do anti-herói: John Byrne, Frank Miller, Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison. A trajetória do quadrinho brasileiro, desde os primórdios (Angelo Agostini a Tico-tico) até nomes históricos como Mauricio de Sousa, Ziraldo, Henfil, Angeli, Laerte, Glauco, Mozart Couto, Watson Portela, Shimamoto, Colin, Mutarelli, chegando à contemporaneidade.

Aula 06

(27/02): Os quadrinhos underground (comix) e o quadrinho autoral contemporâneo: a cultura de subversão do quadrinho independente americano dos anos 60.

De Zap Comix a American Splendor e Raw (Crumb, Shelton, Spain, Pekar, Spiegleman, etc).

O amadurecimento dos quadrinhos autorais a partir dos anos 80. Love and rockets, Maus e a revolução indie. Autores contemporâneos: Joe Sacco, Alison Bechdel, Daniel Clowes, Charles Burns, Marjane Satrapi, Chris Ware, etc.

Mais informações:www.cultvideo.com.br

Homem-Máquina e Barry Windsor-Smith: um oásis no deserto dos super-heróis

É com grande satisfação que anunciamos Márcio Júnior como colaborador de Raio Laser! Militante de longa data do rock e dos quadrinhos, o goiano Márcio Mário da Paixão Júnior (1972) é produtor cultural, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, sócio fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado, criador do Goiânia Noise Festival a da TRASH – Mostra Goiana de Filmes Independentes, além de vocalista da banda Mechanics. Dirigiu o curta O ogro e produziu Faroeste: um autêntico western – ambas animações premiadas. Em 2015, sua dissertação de mestrado foi lançada como livro: Comiczzt! – Rock e quadrinhos: possibilidades de interface. (PB)

por Márcio Jr.

Tédio. De um modo geral, este é o termo que define o atual panorama dos quadrinhos de super-herói que entopem as bancas de revista de norte a sul do Brasil. Golpes de marketing, megassagas que vão do nada ao lugar nenhum, personagens históricos completamente descaracterizados, desenhistas gerados em laboratórios de pasteurização, e malditas cores de photoshop que causam à nossa visão um efeito mais deletério do que aquele que o cigarro produz nos pulmões, são a tônica deste mercado - absolutamente servil ao primo rico chamado cinema. Na lógica verticalizada da indústria do entretenimento, os gibis de super-herói não têm mais fim em si mesmos. Sua função é ser o embrião de um blockbuster prenhe de licenciamentos. Ou seja, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que estão a anos-luz daquilo que chamamos de arte. Pior, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que sequer cumprem com decência sua função de divertir - esta, a verdadeira prerrogativa de um bom gibi de super-herói.

 No meio dessa pasmaceira nerd, o lançamento do encadernado Homem-Máquina (de Tom DeFalco, Herb Trimpe e Barry Windsor-Smith) pela Panini, reunindo a mini-série de 1984, é motivo de uma alegria inesperada, mas absolutamente bem-vinda.

Homem-Máquina, ainda na fase de Kirby

O tal Homem-Máquina é um herói de quinto escalão no cartel da Marvel Comics. Após uma temporada na rival DC (onde criou conceitos que ainda hoje estão entre os mais inventivos do mainstream norte-americano, tais como o Quarto Mundo, O.M.A.C. e Demon), o lendário Jack Kirby retorna ao time de Stan Lee, na segunda metade dos anos 70, com uma exigência irrevogável: escrever, desenhar e editar os próprios quadrinhos. Traduzindo em miúdos, o que Kirby queria era liberdade, autonomia e, por tabela, a possibilidade de provar de uma vez por todas que os méritos pelo sucesso da casa do Quarteto Fantástico eram seus e não do falastrão Lee. 

A coisa não transcorreu exatamente como o planejado, mas, como de praxe, Kirby inundou a Marvel com inúmeros projetos vindos de sua imaginação sem limites. Um dos mais excêntricos foi a espetacular adaptação em quadrinhos do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (o Kirby do cinema). Publicada originalmente em 1976 como uma treasury edition (edições especiais em formato gigante), 2001 logo ganhou título próprio, que não durou muito tempo. À medida em que desenvolvia conceitos sob sua ótica ímpar, os leitores foram raleando, o que fez com que Kirby desse um rumo mais convencional à série, focando-a em um super-herói, um androide cheio dos parangolés tecnológicos, mas recheado com sentimentos humanos: o Homem-Máquina. A estratégia proporcionou uma considerável sobrevida ao projeto, com o personagem pilotando agora um gibi solo. Após 19 edições (das quais Kirby foi responsável apenas pelas nove primeiras), o título foi cancelado e o herói relegado a coadjuvante eventual em gibis mais populares. Até ser resgatado, em outubro de 1984, na mini-série em 04 edições compilada agora pela Panini (e publicada em formatinho ainda nos anos 80, pela Abril).

O exuberante 2001 de Kirby

Conan do então "Barry Smith"

O que faz de Homem-Máquina uma pérola, não é apenas a retomada da cria de Kirby, mas o retorno de um gênio que por mais de uma década esteve afastado dos quadrinhos: o britânico Barry Windsor-Smith. Ao lado do roteirista Roy Thomas, Barry Smith havia causado frisson na primeira fase de Conan, o Bárbaro, no início dos anos 1970. O título destoava de tudo que era então publicado nos Estados Unidos, graças à forte pegada literária de Thomas e, principalmente, ao originalíssimo estilo do desenhista, calcado num repertório gráfico advindo da art noveau. A sofisticação do trabalho de Smith era tamanha que tornou-se impossível lidar com os prazos apertados dos gibis mensais. Conan foi então para as mãos do grande John Buscema, ao passo que Barry (agora Windsor-Smith) passou a dedicar-se a uma nova empreitada, a Gorblimey Press, especializada na publicação de portfólios e fine art. O período foi marcado por uma extraordinária pesquisa gráfica do artista rumo a um classicismo rafaelita, bem como pelo estúdio que dividiu com outros três gigantes das artes gráficas e dos quadrinhos: Jeffrey Jones, Mike W. Kaluta e Bernie Wrightson.

Ao tentar retornar aos quadrinhos, Barry Smith percebeu um terrível efeito colateral do período em que se dedicou exclusivamente ao aprimoramento de seu desenho: ele havia perdido o domínio da narrativa quadrinística. Eis então que o amigo (e veterano dos quadrinhos) Herb Trimpe lhe ofereceu os esboços feitos para a mini-série Homem-Máquina para que pudesse finalizar. Nascia então uma pequena obra-prima dos quadrinhos de super-herói dos anos 80.

No então distante ano de 2020, a robótica mundial é dominada pela Corporação Baintronics, a partir da tecnologia extraída do Homem-Máquina, desativado em 1985. Encontrado acidentalmente pelos Sucateiros da Madrugada - grupo rebelde que produz robôs e androides para o mercado negro a partir de sucata tecnológica -, o herói volta a ativa e inicia sua luta contra a megacorporação, enfrentando, entre outras coisas, uma versão recauchutada do Homem de Ferro. Tom DeFalco nunca foi um roteirista além de mediano, mas aqui ele entrega uma consistente trama de ficção científica - que obviamente fica melhor se comparada ao grosso da produção atual. Se não existem momentos de grande originalidade ou reviravoltas inesperadas, o ritmo preciso, a ação bem desenvolvida e a caracterização dos personagens garantem a leitura de cabo a rabo. Conceitos como os vid-salões (ambientes em que vídeo-viciados permanecem com seus cérebros conectados ao mundo virtual o tempo todo) e a cidadela rebelde flutuante Santuário, colocam a minissérie como uma possível influência não creditada à trilogia Matrix.

Herb Trimpe, falecido em 13 de abril último, foi um profícuo desenhista da segunda geração da Marvel, na virada dos anos 60 para os 70. Fortemente influenciado por Jack Kirby, fez história como um dos principais artistas do Incrível Hulk. É dele, inclusive, a capa da antológica edição da Rolling Stone Magazine que dissecava a editora e seu impacto na cultura jovem do período. Mais ainda, foi de seu lápis que surgiu a primeira aparição de Wolverine, a partir do design criado por John Romita. Se em meados da década de 1980 o próprio Kirby não estava entre os artistas mais populares (eram tempos de Frank Miller e John Byrne), o que dizer de Trimpe? De todo modo, foi a partir dos esboços do quadrinista que se deu o retorno de Barry Windsor-Smith aos quadrinhos. Em magnífica forma.

Trazendo na bagagem o inacreditável apuro técnico adquirido nos anos da Gorblimey Press, Barry Smith usou o storytelling de Herb Trimpe como a fundação sobre a qual edificaria a excelência visual presente em Homem-Máquina. Se na primeira edição ainda é possível reconhecer o design de Trimpe em personagens como o robô C-28 Morte Certa, já nos próximos números o artista iria progressivamente abandonar os esboços do colega - ao ponto de, no capítulo final da série, Trimpe sequer ser creditado. Em Homem-Máquina, o brilho de Barry Windsor-Smith ofusca tudo e todos.

A edição da Panini custa R$ 26,90. Vale cada centavo. A capa (dura e belíssima) é uma demonstração de como se utilizar impressão metalizada e aplicações em verniz a serviço do design da edição - e não como uma isca pega-nerd. Outro acerto digno de nota é a tradução de Érico Assis e Rodrigo Guerrino, onde fica evidente o esforço em preservar/traduzir a linguagem do futuro imaginada por DeFalco em 1984. No caso de uma série não tão popular quanto esta, a ausência de textos explicativos e extras se fez sentir. E definitivamente foi um pecado imperdoável reproduzirem as quatro capas originais (sensacional sequência em que uma parafernália tecnológica progressivamente constitui a cabeça do Homem-Máquina) em uma única página. Resta então a questão da cor...

A capa original da primeira edição

As cores sempre foram um ponto fundamental no trabalho de Windsor-Smith. O artista nunca se furtou a emitir as mais pesadas críticas ao péssimo uso de cores feito pela indústria dos quadrinhos e seu modelo de produção fordiano - que pode botar a perder todo o trabalho realizado nas etapas de desenho e tinta. A partir de seu retorno em Homem-Máquina, Barry Smith jamais deixou de ter controle sobre a arte-final e colorização de seu trabalho. Suas cores possuem função narrativa e são elaboradas levando-se em conta o tipo de impressão a ser utilizada.

Homem-Máquina é um gibi de uma época em que as edições especiais praticamente não existiam no mercado norte-americano. É anterior, por exemplo, ao Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Um gibi típico do período, impresso em papel jornal e com limitada paleta de cores. Foi dentro deste limites que Barry criou sua inovadora colorização. Uma vez que a edição da Panini utiliza papel couché brilhante, a proposta do artista não foi integralmente respeitada. Ainda assim é possível se deleitar com a abordagem cromática do inglês.

Ainda que não tenha status de clássico, Homem-Máquina é uma HQ que representa o potencial dos super-heróis enquanto gênero. No Brasil, ficou cerca de três décadas sem reencontrar leitores - o que, dada a quantidade de lixo nas bancas, é algo lamentável. Sua qualidade intrínseca vem aliada à sua importância histórica: o retorno de um mestre de primeira grandeza dos quadrinhos mundiais. Após Homem-Máquina, Barry Windsor-Smith seria responsável por algumas HQs antológicas da Marvel, como a canônica e definitiva Arma X, momento máximo do personagem Wolverine. Logo depois, seria peça fundamental na editora Valiant, publicaria livros pela Fantagraphics e ainda desenvolveria sue próprio título, o invocado BWS Storyteller, antes de sumir de novo. A esmagadora maioria deste material permanece inédita no Brasil - ou clamando por uma reedição decente. A surpresa de encontrar Homem-Máquina nas bancas acende uma pontinha de esperança em ver mais coisas dele por estas plagas. Barry Windsor-Smith tem feito uma falta dos diabos.

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 3

Acompanhei, à distância, boa parte dos quadrinhos – publicados por grandes editoras ou independentes – lançados no Brasil ao longo de 2015, mas li bem menos do que gostaria. Conferi muita coisa nas bancas e livrarias, mas poucas voltaram comigo ($) para casa. As melhores surpresas vieram dos sebos, onde costumo encontrar grandes achados, e em 2015 não foi diferente. Mas gostaria de ter bem lido mais. Lido outras coisas. Terei que correr atrás de muito quadrinho bom. Coincidência ou não, na hora de preparar esta lista, percebi que ela é composta basicamente de relançamentos ou material antigo (comics, mangá e BD). Teci breves comentários sobre 10 deles, elencados abaixo sem nenhuma ordem hierárquica, abordando roteiro, arte e também questões editoriais (como papel, impressão, etc). (PB)

Parte 1

Parte 2

por Pedro Brandt

1 - COMICS STAR WARS - CLÁSSICOS VOL. 4 E 5 - Archie Goodwin (roteiro) e vários (arte) (Planeta DeAgostini, 2015): O universo de Guerra nas Estrelas em quadrinhos é vastíssimo e a coleção Comics Star Wars - Clássicos, publicada desde setembro de 2014, é uma ótima oportunidade para o leitor brasileiro interessado em conhecer esse material, grande parte dele inédito por aqui. Serão ao todo 70 edições. Tem muita bobagem no meio (histórias insossas, desenhos canhestros), mas também algumas pérolas. As edições 4 e 5, por exemplo, guardam um tesouro especial: a adaptação ilustrada por Al Williamson de O Império contra-ataca. Renomado desenhista e arte-finalista, Williamson (1931-2010) recria o episódio V da saga cinematográfica com base em stills do longa-metragem de 1980. O ritmo da HQ é diferente do filme, bem mais lento e pouco dinâmico, ainda que, dado o número de páginas, a leitura seja rápida. Tudo isso poderia pesar contra a HQ, mas, pelo contrário, é o ideal para consumir a sensacional arte desse desenhista americano. A interpretação de Williamson para o filme dirigido por Irvin Kershner é bastante fotográfica, fiel às cenas que o inspiraram, mas é recriada pela ótica e estilo gráfico do ilustrador, à época, já um veterano de renome, mestre em cenários exóticos e ambientações fantásticas em quadrinhos de aventura, inspiração não apenas para George Lucas, mas para incontáveis outros criadores. Cada edição da coleção, publicada pela editora Planeta DeAgostini, é vendida lacrada em embalagem de plástico transparente, tem capa dura, papel couché, ótima impressão e recriação de cores (sem pesar a mão no digital). Mas tem um problema: não informa na contracapa detalhes do conteúdo de cada edição, quem são os autores, ano de publicação original, enfim, algo além de uma breve sinopse das tramas. Cabe ao leitor se informar sobre cada uma ou arriscar e comprar no escuro.

2 - COLEÇÃO HISTÓRICA MARVEL – O HOMEM-ARANHA #7 - Stan Lee, John Romita e Jim Mooney (Marvel / Panini, 1969-1970 [2014]): No final dos anos 1960, o roteirista Stan Lee, o desenhista John Romita e o arte-finalista Jim Mooney, então equipe de produção do Homem-Aranha, viviam um momento inspirado. As histórias presentes em Coleção Histórica Marvel – O Homem-Aranha # 7 (contemplando as edições # 68-75 de The Amazing Spider-Man, lançadas originalmente entre 1969 e 1970) apresentam um punhado de ótimas histórias, com ação e drama na mesma medida, mostrando o personagem em sua essência: a dualidade entre o universitário correto e desajeitado, sem grana ou tempo para família, amigos e namorada, fazendo jornada dupla (não remunerada!) como mascarado combatente do crime de grandes poderes e responsabilidades, além de desacreditado e à beira de desistir, contracenando com uma galeria de clássicos coadjuvantes (Rei do Crime, Lagarto, Shocker, Gwen Stacy, entre outros). Até aí, tudo dentro do esperado. É sabido que este é um dos melhores momentos da trajetória do personagem nas HQs. O que realmente chamou minha atenção nessa leitura foi perceber – desta vez, conscientemente – como o time por trás dessas histórias alcançou esses resultados. Esses quadrinhos, e tantos outros da mesma época, são exemplares da modernização pela qual a Marvel passava naquele período, com novas abordagens para personagens, atualizando pautas e trazendo um pouco de mundo real para as tramas, aproximando o leitor dos heróis; e, tão importante quanto, novas maneiras visuais de contar histórias de aventura. Em parceria com alguns talentosos desenhistas, Lee forjou um jeito Marvel de fazer histórias em quadrinhos (o livro How to do comics the Marvel way não tem esse nome à toa): ação quase ininterrupta, poucos quadros por página, narrativa econômica e eficiente (mostrando apenas o que é necessário e sempre trabalhando por uma continuidade clara da narrativa), influência de montagem cinematográfica, cenas dinâmicas de ação compostas por quadros com infinitas opções de angulação e uma série de recursos gráficos para retratar sentimentos e ações dos personagens. De um quadro para o outro, de uma página para a seguinte, de uma edição para a próxima, as conexões são ágeis, magnéticas, deixando o leitor sempre sem fôlego, curioso pelos próximos capítulos. Esse material é clássico e, dada a distância do tempo, mantém o frescor da novidade. Uma leitura divertida e, acima de tudo, instrutiva. Uma verdadeira aula de quadrinhos de super-herói. Pena que a impressão e a colorização – problema não apenas aqui, mas em outros títulos da coleção – ficaram tão lavadas, tanto nas cores como em várias áreas de preto.

3 - OS 80 ANOS DO PATO DONALD - POR SEUS PRINCIPAIS ARTISTAS

 - Vários autores (Disney / Abril, 1944-2014 [2014]): Os fãs de quadrinhos Disney não têm do que reclamar. Além dos títulos publicados mensalmente, as bancas estão sempre recebendo coletâneas especiais de seus principais personagens, como Donald, Mickey e Tio Patinhas. Mais do que as histórias propriamente ditas – algumas divertidíssimas, engraçadas, mas boa parte bastante infanto-juvenil, ingênuas e até mesmo bem bobinhas – foi o caráter histórico e panorâmico de Os 80 anos do Pato Donald– Por seus principais artistas que me atraiu para esta coletânea. É interessante notar como os desenhistas representados aqui (americanos, europeus e brasileiros. Nomes consagrados como Carl Barks, Don Rosa, Giovan Battista Carpi e Giorgio Cavazzano), cada um à sua maneira, consegue driblar as limitações do model sheet e imprimir sua marca distinta nas tramas e nos traços das histórias. Um índice detalha o país de produção, ano de cada HQ e se ela é inédita ou uma republicação no Brasil. Biografias apresentam os autores e suas principais contribuições para o universo de Donald nas histórias em quadrinhos. O acabamento da edição é impecável: capa dura, 480 páginas e papel couché (que é ótimo no geral, mas algo menos brilhoso valorizaria mais a arte). Infelizmente, as cores da maioria das histórias foram recriadas em computador, sem preocupação de quando elas foram publicadas originalmente. Fica feio, vulgar. Não faz nenhum sentido uma coloração assumidamente digital (que em nenhum momento tenta negar sua condição como tal) numa HQ da década de 1940!

4 - A DRIFTING LIFE – Yoshihiro Tatsumi (Drawn and Quarterly, 2009): Impossível assistir ao filme de animação Tatsumie não se interessar em conhecer os quadrinhos deste autor japonês. Diretor do longa-metragem, Eric Khoo apresenta adaptações de histórias curtas criadas por Yoshihiro Tatsumi (1935-2015) entremeados a várias passagens da vida do artista descritas na obra autobiográfica A drifting life. Apesar de seu tamanho monumental, com mais de 800 páginas, a leitura flui rapidamente e, em pouco tempo, o leitor pode ver-se engolido pela obra. Tatsumi nos fisga com relatos de drama e superação com uma narrativa detalhada (esbarrando por vezes na redundância) de sua trajetória pessoal (infância pobre, brigas familiares, relacionamentos) e profissional (os desafios para se manter como autor de mangás). Em paralelo, reconta a história das histórias em quadrinhos no Japão. Tudo com uma sensibilidade e leveza típicas dos autores japoneses (vêm à mente cineastas como Mikio Naruse e Yasujiro Ozu), apresentado com uma arte simples e eficiente em narrativa, construção de cenas e uso de recursos gráficos. A edição da editora Drawn & Quartely para a obra é simplesmente impecável (papel, impressão, acabamento, tudo)!

5 - THE ROMITA LEGACY - Tom Spurgeon (Dynamic Forces, 2010): Pai e filho, os desenhistas John Romita e John Romita Jr. fazem parte da história principal não apenas da Marvel Comics, mas da história das histórias em quadrinhos americanas. Tom Spurgeon apresenta longas entrevistas com ambos e reconta suas trajetórias, com enfoque na vida profissional. Pai e filho artistas comentam suas principais influências, o desenvolvimento de seus estilos de desenho, diversos bastidores da indústria dos quadrinhos, além, é claro, do relacionamento entre eles. Tudo acompanhado de dezenas de reproduções de páginas, capas, pinups e rascunhos. Um índice no fim do livro compila toda a produção quadrinistica de Romita Sr. e Jr. até 2010 (quando foi publicada a primeira edição). Como todo livro desse tipo, é recomendado especialmente para fãs.

6 - CREEPY – CONTOS CLÁSSICOS DE TERROR VOL. 2 – Vários autores (Dark Horse /  Devir, 1964-65 [2013]): Quando você pega uma coletânea da Creepy para ler está imediatamente fazendo um acordo entre as partes: a Creepy finge que te assusta e você finge que sente medo. Nada é minimamente assustador. As histórias são curtas demais e, geralmente, não conseguem alcançar um clima de suspense para então surpreender o leitor com uma reviravolta criativa ao final de cada trama. Tudo é muito ingênuo – bruxas, vampiros, múmias e mortos-vivos com uma abordagem datada. Quem não conta com o poder da nostalgia talvez se decepcione. Como leitura histórica e coletânea de grandes autores, aí é outro papo. O time da Creepy contava com os talentos de Frank Frazetta, Al Williamson, Alex Toth, Wallace Wood, entre outros grandes nomes, alguns veteranos e outros novatos à época (caso de Bernie Wrightson). Todos eles têm trabalhos melhores antes e depois de Creepy (aqui, parecem um tanto domesticados), mas não são chamados de mestre à toa. E é sempre bem-vinda uma publicação reunindo tanta gente boa. Destaque para as histórias com o personagem Adam Link, com desenhos de Joe Orlando e texto de Eando Pearson, protagonizadas por um robô com sentimentos humanos vivendo em uma sociedade hostil; e para o conto sobre a cobiça "Item de colecionador", de Archie Goodwin e Steve Ditko. A Devir está de parabéns com a edição, mas peca em um aspecto: por se tratar de quadrinhos tão fortemente associados a uma época, não dá para não se queixar das fontes de letras (computador, seu vilão!) utilizadas em algumas histórias, que tiram a cara vintage do material e soam como um corpo estranho ali.

7 - MIRACLEMAN – Alan Moore e vários (Marvel / Panini, 1982 [2014/15]): Muito já foi falado sobre Miracleman e sobre Alan Moore. Pulemos essa parte. Se você ainda tem dúvida sobre ler ou não Miracleman eu te digo: vá na fé, irmão. Mas eu entendo quem ainda não se deixou pegar pela série. Ao folheá-la, percebe-se que a arte não é o forte da HQ. Alan Davis, Gary Leach e os outros desenhistas que passaram pela série eram todos novatos na época, com estilo pouco definido e sem polimento. O que não empaca o ótimo roteiro de Moore, repleto de reviravoltas e surpresas, e a fluidez dos episódios, garantindo o bom entretenimento e a curiosidade para voltar à banca no mês seguinte. Os ingredientes viagens no tempo, conspirações governamentais, alienígenas e super-heróis (inseridos num contexto mais realista) são velhos conhecidos, mas Moore cozinha-os com seus temperos mágicos e leva-os para um nível superior. Logo na edição # 2 tem um acontecimento envolvendo Mike Moran (o Miracleman) e seu antigo pupilo Johnny (sem spolier) que me ganhou na hora. Mas (que chato, sempre tem um “mas”!), vendida por quase R$ 8, as edições deixam um tanto a desejar. Lá pela edição # 5 eu percebi estar sendo “meio” enganado. A impressão é que paga-se muito para ter apenas meia revista de Alan Moore (ou, o “roteirista original”, como ele está creditado) e o resto com histórias clássicas sem nenhum sabor, rascunhos (quem quer rascunho de desenhista meia boca?!) e pinups que nada acrescentam. Que venha logo um encadernado com apenas o filé!

8 - A SAGA DO MONSTRO DO PÂNTANO - LIVRO 4 - Alan Moore, Stephen Bissette, John Totleben, Stan Woch (DC Comics / Panini, 1985-6 [2015]): Tal qual em Spirit ou em Sandman, muitas das melhores histórias em O Monstro do Pântano têm o protagonista apenas como coadjuvante (ou nem isso), dando espaço para personagens secundários brilharem. O livro 4 de A saga do Monstro do Pântano, que engloba o ciclo Gótico americano, tem muito disso. Enquanto acompanhamos o protagonista em um percurso pelos Estados Unidos em busca de autoconhecimento, somos apresentados ao hippie Chester e suas experiências alucinógenas, ao grupo de jovens de Dança dos fantasmas e, principalmente, ao irritantemente carismático John Constantine. Ao contrário das tolas histórias de Creepy, aqui temos feitiços, casas mal-assombradas, manifestações sobrenaturais, psicopatia e demência usadas para máximo efeito. A arte de Stephen Bissette, John Totleben e Stan Woch são todas de uma personalidade visual esquisita, feia até. Mas essa feiura, esse exotismo gráfico, em determinado momento da leitura se tornam algo tão natural e próprio de cada história que funcionam como o complemento ideal para os roteiros de Alan Moore.

9 - SETON – UM NATURALISTA VIAJANTE – VOL. 1: LOBO, O REI DE CURRUMPAW – Jiro Tanigushi e Yoshiharu Imaizumi (Futabasha Publishers / Panini, 2004 [2008]): A simples menção de Jiro Tanigushi na capa de um quadrinho deveria ser o suficiente para atrair a atenção do leitor. Uma pena que pouquíssimo material do autor japonês tenha saído no Brasil.

Seton é um deles. Aqui, Tanigushi atua “apenas” como ilustrador e os roteiros são de autoria de Yoshiharu Imaizumi. Seton é inspirado na vida de Ernest Thompson Seton (1860-1946), pioneiro do escotismo e homem com forte admiração pela vida selvagem. Cabe a ele tentar capturar “O lobo”, líder da matilha que aterroriza os rebanhos da região de Currumpaw (EUA). Diferente da maioria dos quadrinhos de caubói, focados no embate de justiceiros e criminosos, Seton se foca na relação do homem com a natureza de maneira sensível e respeitosa. A narrativa tem fôlego tanto para as sequências de ação (que, pela dinâmica dos quadros, tem o pique dos animes), quanto para o drama. Fãs de Caninos Brancos(Jack London) e Princesa Mononoke (Hayao Miyazaki) têm de conhecer a obra. A despeito de suas qualidades, o mangá vendeu pouco e apenas o número 1 (de quatro) foi publicado pela Panini no Brasil.

10 - OS PASSAGEIROS DO VENTO #2 – O PONTÃO – François Bourgeon (Glénant / Meribérica / Liber, 1980): Pobres piratas! A pirataria, antes um gênero de aventura que rendeu incríveis livros, filmes e histórias em quadrinhos nos últimos tempos foi resumida a Jack Sparrow! Sendo assim, voltemos aos clássicos. Autor de Os passageiros do vento, o roteirista e desenhista francês François Bourgeon é do tipo que transporta o leitor para dentro de suas histórias. Faz isso com engenhosos roteiros, minuciosas pesquisas de época e dando a seus personagens uma vivacidade autêntica. Além disso, seu traço inconfundível (seus homens e mulheres têm feições bastante particulares) e a reconstrução fidedigna de barcos, armas, castelos, roupas e objetos de época acrescentam ainda mais à experiência intensa de leitura da obra. O mote de O pontão é o resgate engendrado por Isa e sua amiga Mary para resgatar Hoel de um navio (o tal “Pontão”) utilizado como prisão. Além da aventura, o relacionamento entre os personagens, todos donos de personalidades marcantes, dão bom ritmo à narrativa e impulsionam a história para o próximo episódio, de modo a deixar o leitor sedento por mais.

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 2

Olá pessoal da Raio!

Já estamos no ano de 2016 com a marcha engatada.

Mas isso não impede a Raio Laser de fazer uma lista de melhores do ano de 2015

! A minha lista também não pretende ser um levantamento do que foi lançado no ano que findou, mas é uma ajuntado do que eu li de particularmente inédito. Coisas velhas que nunca li, material de 2014 que só pude ler em 2015 e outras coisas que minha vida de trabalhador braçal não me permitiu ler quando lançou. Na minha lista entra um material bem variado, mas também acredito que muita coisa legal ficou de fora graças à minha memória avariada. Até a próxima! (LN)

Parte 1

Parte 3

por Lima Neto

1 - PÍLULAS AZUIS – Fredrik Peeters (Nemo,2015 [2001])

A autobiografia em quadrinhos, um filão lucrativo em produções de qualidade e muitas vezes criticado por seu óbvio ensimesmamento, tem parte de seu valor situado na área indistinta e amorfa em que se interseccionam a biografia do leitor e do autor. Alguns destes quadrinhos, como as Pílulas Azuis de Fredrik Peeters, têm ainda o ponto positivo de abrir ao leitor a possibilidade de experimentar uma alteridade coletiva em que vários cotidianos são apresentados como uma tessitura particular que retrata a fundo um drama pessoal e específico.

Frederik Peeters ainda é um desconhecido por aqui. Por isso mesmo a escolha de publicar seu trabalho biográfico foi bem acertada. O livro trata de sua vida junto com a companheira, Jude, e seu filho, ambos soropositivos.

Pílulas leva o leitor a atravessar uma ponte pouco visitada - aquela que separa a realidade de quem deve conviver com a AIDS e a imagem de desespero e perigo que é rapidamente evocada pelo imaginário da doença. Alternando momentos de sensibilidade e austeridade, Peeters monta uma trama enxuta em que duas grandes qualidades se apresentam como uma arma eficiente contra o preconceito - sobriedade e maturidade.

Mais do que a situação da companheira, é a maturidade das reflexões de Peeters em relação ao seu dia-a-dia que chama a atenção no gibi. Com um pragmatismo sensível, o autor vai expondo seus medos, tanto particulares quanto do casal, e vai demonstrando como que, paulatinamente, a relação dos dois se transforma em um companheirismo sóbrio, consciente da "normalidade anormal" da posição em que se encontram. Sem heroísmos ou melodramas. Ao final somos brindados com algumas páginas feitas anos depois, onde Peeters apresenta seu traço mais atual e realista, em que vemos um depoimento dos familiares envolvidos. Com certeza um dos melhores quadrinhos do ano.

2 - NOVA MARVEL X-MEN #1 a 15 – Brian Michael Bendis & Chris Bachalo (Panini, 2015 [New Marvel Uncanny X-men #1 – 18, 2014])

Já falamos muitas vezes aqui na RL que, quanto mais próximo da realidade um quadrinho de super-herói se posiciona, pior é sua qualidade. A imagem fantasiosa do herói super poderoso se desmonta em perigosos tons reacionários quando confrontada com problemas reais que pedem por soluções reais. A melhor forma com que o quadrinho super-heroístico pode abordar a realidade é sempre através da metáfora... algumas mais diretas que outras, e é assim que um título X consegue entrar nessa lista.

Há vários anos eu deixei de comprar gibis para acompanhar personagens e passei a acompanhar escritores de HQ. Das vezes em que retorno a ler X-Men, é por que algum autor que me interessa está capitaneando o gibi. Depois de ler muitas resenhas, resolvi correr atrás da fase do escritor Brian Michael Bendis. Com seu estilo característico em que mistura diálogos extensos com criativas viradas de roteiro, em X-Men Bendis extrapola a essência do grupo de mutantes no que eles têm de mais poderoso: na metáfora entre a causa mutante e as lutas por igualdade de direitos empenhadas pelos mais diversos grupos civis que se sentem lesados por uma insuficiência social em reconhecer suas diferenças.

Criados em um EUA pós-conflitos por direitos civis, Stan Lee via em seu pacifista Professor X um Martin Luther King, enquanto que a verve belicosa de Malcom X estava presente na atitude terrorista de Magneto. Essa imagem permanecia parcialmente inalterada até alguns anos atrás. Resumindo, porque a parte chata é a novelinha, após uma mega-saga que joga X-Men contra Vingadores (embora a premissa seja simplista, a relação entre minorias VS maioria se torna bastante explicita nessa saga, mas isso fica pra outra hora) e que termina com o personagem líder dos X-men, Ciclope, matando seu mentor Professor X (nenhuma surpresa ai, ele deve voltar em breve como todos os mortos da Marvel) e sendo considerado um terrorista internacional, o grupo se divide entre os que seguem o sonho de Xavier e os que preferem a realidade proativa de Ciclope, que passa a se tornar um ícone da luta mutante. A fase de Bendis é marcada ainda pela chegada dos X-Men originais para o presente, através do plano de um Fera moribundo que serve para confrontar o Ciclope terrorista com sua versão mais nova. É aquela típica confusão mutante pelo tempo, mas que acaba tornando-se um ótimo exercício de caracterização na mão de Bendis. O ponto negativo é a arte, por conta de um cansativo Chris Bachalo, antes um herói indie dos anos 90, agora um desenhista pouco criativo e que parece fora de sintonia com o roteiro na maioria das páginas.

O que importa aqui, e o que faz o titulo entrar nesta lista, é a nova atitude do ex-líder do grupo. No gibi vemos um Ciclope fugitivo reconstruir a escola Xavier nas ruínas do projeto Arma X e recrutar os membros descontentes dos X-Men. Em sua fase, Bendis deixa claro que o espaço entre a metáfora e a realidade se torna mais estreito do que nunca. O fator super poder é jogado para segundo plano e o que brilha é o desdobramento político das ações do personagem. A renovação do herói "escoteiro" como um tipo diferente de anti-herói, um anti-herói que simboliza e atua na luta coletiva investindo na ação proativa, quebrando com o status quo. Com habilidade, Bendis se aproxima e se afasta desse paradigma político evitando cair na relação aniquiladora entre fantasia e realidade, e com isso dá um novo frescor aos personagens e uma verdadeira sensação de mudança. Ou, como o próprio Ciclope comenta ao ser criticado pelo novo status de criminoso político: "Engano seu. Odiado. Temido. E salvando o mundo. Diga-me o que mudou.”

3 - CUBE – Marcelo d’Salete (Veneta, 2015)

Há uma relação nada sutil entre este item da lista e o anterior. Se Bendis radicaliza a metáfora dos mutantes como comentário social proativo, em Cumbe não há metáforas e nem dúvidas quanto ao posicionamento de seu autor em relação à luta contra as injustiças sociais.  Cumbe é uma exposição crua da história de resistência negra contra a sociedade escravagista no Brasil colônia. O último trabalho do quadrinista Marcelo d´Salete transporta sua temática dos excluídos e periféricos para um ambiente histórico buscando jogar uma luz muito necessária nos esforços ativos e pouco mostrados da resistência negra à escravidão.

Como é dito no próprio livro, Cumbe é uma palavra bantu que significa O Sol, O Dia, A Luz, O Fogo e também um sinônimo para Quilombo. Em três histórias que se entrecruzam, d´Salete mostra a crueldade de um sistema de trabalho forçado onde aqueles que eram obrigados a se submeter eram tratados como menos que animais, alguns enlouquecendo até tomaram a própria vida e outros tantos resistindo ativamente, dia a dia, para escapar da situação degradante de violência e retomarem a posse das próprias vidas. 

Sem metáfora.

O traço de d'Salete continua com seu vigoroso e poético preto e branco, abrindo mão de um realismo que, em qualquer nível, seria insuficiente para captar a crueza do período. Ele prefere apostar em suas áreas de tonalidades cinzentas feitas com esmero com seu pincel seco. Se em trabalhos anteriores o autor usava sua técnica para escancarar as fronteiras sociais demarcadas pelo vocabulário urbano - hora picho, hora logotipo - em Cumbe seu pincel estiliza o cenário colonial com um minimalismo ao mesmo tempo singelo e sufocante.

Os personagens de Cumbe também guardam a mesma relação paradoxal: seus rostos de limitadas expressões dão lugar ao volume ensurdecedor de suas ações. Cumbe é forte e direto sem abrir mão das suas possibilidades intersubjetivas e expõe não apenas o contraste do período colonial com o nosso presente, mas, principalmente, suas muitas semelhanças.

4 - O GRALHA: TÃO BANAL QUANTO ORIGINAL – José Aguiar e vários autores (Quadrinhópolis, 2014)

Na sequência desta lista nós temos outro quadrinho de super-herói. Aliás, um dos melhores quadrinhos de super-heróis - O Gralha, com o álbum Tão Banal Quanto Original. 

O Defensor das Araucárias é uma criação coletiva que envolve os autores Gian Danton e José Aguiar e os artistas Alessandro Dutra, Antonio Eder, Augusto Freitas, Edson Kohatsu, Luciano Lagares, Nilson Muller e Tako X. Havia muito tempo que tinha lido o primeiro álbum do personagem, lançado pela Via Lettera em 2008, e esta segunda antologia de histórias do Gralha me lembrou por que o conceito do personagem é tão divertido, sendo uma das melhores leituras do ano.

Vários autores, várias visões, o Gralha é um personagem pensado para se adequar a qualquer criador. O resultado é um quadrinho mais potente e facetado que qualquer outro gibi de super-herói. Lógico que todos os elementos do gibi de herói estão lá: Gustavo Gomes é o neto do Capitão Gralha e defende uma futurista Curitiba de uma galeria de vilões tão bizarra quanto idiossincrática - A gigante Araucária, o deformado Homem Lambrequim, o gênio do mal Craniano, o metalinguístico Homem Dor-De-Cabeça... a lista é extensa.

Esse segundo álbum dá continuidade às aventuras do personagem. Em destaque temos história "O Ovo e a Gralha", em que o macabro Craniano reflete sobre a necessidade de ser o arqui-inimigo de um herói tão abaixo de seu nível intelectual, com roteiro de José Aguiar e a bela pena de Jairo Rodriguez. A mesma dupla também narra uma história de singela beleza no divertido "Dia do Pinhão". Em "A Volta do Lambrequim", José Aguiar, acompanhado de Tako X, revela a intimidade do monstruoso Homem-Lambrequim, e na ótima "As Origens do Craniano", Aguiar, agora cuidando tanto da arte quanto dos desenhos, tenta dar uma explicação para o vilão com cabeça Pêssanka.

Como se pode perceber pelos nomes, a cultura curitibana e paranaense se tornam um dos personagens mais presentes nas histórias do Gralha, mas em momento algum estes traços regionais parecem forçados ou caricatos. Na verdade, o que diferencia o Gralha, a sua originalidade banal, é o fato de ser tão idiossincrático (uma característica de muitas produções do sul do país, como o rock sulista) que a cidade parece se destacar da realidade e se aproximar de outras metrópoles imaginárias como uma Metrópolis ou uma Gotham. Tudo isso sem perder o humor ou cair em dramas pedantes ou aventuras ufanistas sem graça. Um ponto negativo? Admito que me incomoda bastante a falta de diversidade étnica nos desenhos.

O gibi foi publicado pela Quadrinhópole e a mesma editora acabou de lançar a edição O Gralha Art Book, uma espécie de making of do personagem acompanhado de diversas pin-ups e pequenas histórias para o especial que foi patrocinado via Catarse. E em sebos ainda é possível encontrar a primeira edição do Gralha pela editora Via Lettera!

5 - HICKSVILLE – Dylan Horrocks (Drawn and Quartelly, 2010 [1998])

E por falar em idiossincrasias regionais, o quinto lugar desta lista fica para o Hicksville de Dylan Horrocks. Já falamos sobre este gibi na cobertura do FIQ, mas sua mistura de biografia à la “vida secreta dos ricos e famosos”, com um mistério envolvendo a história das HQ's no melhor estilo David Lynch, faz com que ela mereça voltar a ser citada.

A HQ acompanha o jornalista Leonard Batts em sua viagem para conhecer a cidade natal de Dick Burguer, uma estrela internacional do entretenimento hollywoodiano que chegou à fama vendendo o direito de seus quadrinhos para o cinema.

Hicksville, que também é o nome desta cidade fictícia que fica na ponta mais ao sul da Nova Zelândia, foi publicado em 1998. A edição que chegou até mim é a republicação de 2010 editada pela Draw and Quartely

e que conta com um belo capítulo inédito introdutório em quadrinhos onde Horrocks fala sobre as emoções e pulsões que levaram à criação do gibi.

Voltando à trama, Batts esbarra em uma cidade misteriosa e cheia de segredos onde aparentemente o pilar cultural de sua comunidade são as histórias em quadrinhos. De uma estalagem que conta com uma gibiteca carregada de edições raríssimas em perfeito estado até uma festa folclórica à fantasia em que toda a cidade se veste de personagens clássicos da história da HQ, Hicksville parece o sonho de qualquer apreciador de quadrinhos e leva um conceito bem conhecido da literatura para o meio dos gibis – o da biblioteca das histórias sonhadas e nunca publicadas. O resto, só lendo. Saiba mais sobre este gibi aqui.

6 - MISS: BETTER LIVING THROUGH CRIME – Philippe Thirault, Marc Riou e Mark Vigouroux. (Humanoids/DC comics, 2005 [1999])

Lançado nos estados unidos em 2005 pela finada parceria entre a Humanoids e a DC Comics,

Miss: Better Living Through Crime – álbum escrito por Philippe Tirault e com arte de Marc Riou e Mark Vigouroux – é um daqueles quadrinhos de crime que fascina tanto pela crueldade das situações, quanto pelo carisma de seus protagonistas. Numa decadente Brooklyn dos anos 20, uma órfã ruiva e um cafetão negro se juntam para sobreviver à miséria que os cerca e os empurra cada vez mais para o fundo do poço. Como resultado, viram parceiros na prestação de um serviço muito procurado tanto pela população empobrecida do local quanto pela elite que começa a se erguer dos escombros: assassinato por encomenda.

Nola, ou Miss, como é chamada por seu todos (trocadilho tanto para "senhorita" quanto um apelido dado à sua involuntária capacidade permanecer viva depois dos vários tiroteios dos quais participam) é uma personagem feminina cuja representação ultrapassa em muito o estereótipo das divas do charleston que ilustram o imaginário do período. Mãe viciada em drogas, pai falecido por abuso de álcool, criada em um convento de freiras onde cedo aprendeu a revidar, Lola é o lado negociante da dupla. O fato de ser branca é o cartão de visita para negociar com a alta sociedade de NY. Seu parceiro, Slim, é filho de uma família rica, com um irmão médico bem sucedido e várias complicações devido à sua vida como cafetão enfiado em todo tipo de negociata nas espeluncas de Brooklyn. Slim é a parte logística da dupla: sua desenvoltura no submundo complementa a dinâmica de trabalho dos dois.

Visualmente, a Nova Iorque de Miss varia entre a exuberância e as ruínas. Quadras vazias com cortiços mal acabados tomam conta da maior parte do álbum. A colorização, feita digitalmente e carregada em tons amarelos nauseantes, acentua a sensação de vazio da cidade. De certa forma, esse vazio também está presente nos personagens, de maneira mais acentuada ainda nos clientes e nas suas demandas imorais – um empresário que quer ver o filho do sócio morto, uma esposa de olho na fortuna do marido, outra que quer que a amante do marido desapareça – casos relativamente comuns que acabam levando a desdobramentos mais complicados. A dupla se vira como pode. Alguns sucessos, alguns fracassos, mas sempre com uma espécie de “nobreza” torta que ajuda a compor a dinâmica dos dois – Nola sempre direta e violenta, principalmente quando escuta que seu “empregado” deve esperar do lado de fora, e Slim sempre desvelando as hipocrisias da ascendente sociedade do Brooklyn ao assumir o trabalho que escolheu para subir na vida. Em alguns momentos, principalmente no início do álbum, algumas falas e transições entre requadros se tornam bastante confusas de entender, acredito que graças a uma dificuldade de tradução do francês para o inglês. Mesmo assim, Miss é um quadrinho certeiro, e o melhor policial que li no ano.

7 - BIG BOOK OF DEATH – Bronwyn Carlton e vários artistas (Paradox Press, 1995)

Existe um selo de quadrinhos perdido nos EUA que, embora fazendo parte do grupo Time-Warner e ligados à DC Comics, teve pouquíssimos trabalhos publicados por aqui (as edições de Gon da Conrad e A Estrada Para Perdição, para ser exato). Este selo é a Paradox Press. O carro chefe da editora é a série Factóide Books, grandes livros de antologias com historietas curtas de até cinco páginas girando em torno de um tema específico. Antes de se falar em Joe Sacco e jornalismo em quadrinhos, os Big Books da Paradox já faziam um apanhado narrativo vasto esmiuçando assuntos como discos voadores, mortes bizarras, mártires religiosos, crimes históricos, etc., com uma abordagem que mistura almanaque e documentário. A maioria dos livros é escrita por um escritor apenas e desenhada por uma vasta gama de artistas de quadrinhos do underground estadunidense, incluindo o citado Sacco.

Essa introdução é para apresentar o sétimo gibi da minha lista, o Big Book of Death. Duzentas e vinte e quatro páginas, em preto e branco, com centenas de relatos sobre a mais inescapável das sinas. O álbum, como todos os Big Books, mistura um relato aprofundado com uma arte que varia do realismo ao cartum resultando em diversão garantida (e fúnebre).

Os contos são organizados por temas: o primeiro capítulo conta a história do assassinato oficial, as execuções capitais, sua história e principais práticas. Este capítulo é de abrir os olhos para a maneira com que a lei evoluiu até nosso século XXI, deixando para trás algumas execuções extremamente doentias, como o pressionamento – onde o condenado se deita em uma cama de lâminas, seu corpo é coberto por uma tábua que cobre seu torso, e são colocados sobre a tábua vários pesos, vagarosamente, até que o corpo seja esmagado e perfurado. Enquanto o condenado ainda vive.

O segundo capítulo foca o homicídio criminoso e o suicídio. Mortes idiotas, cidadãos acima de quaisquer suspeitas que escondem um lado assassino brutal, a história da eutanásia, etc.

No terceiro capítulo temos os assassinatos em massa, as pragas históricas, tuberculose, febre tifóide, morte negra. As guerras e suas grandes matanças, as mortes religiosas e cultos suicidas.

O quarto capítulo se dedica aos falecimentos peculiares. Mortes inexplicáveis, combustões espontâneas, e todo tipo de morte bizarra.

O quinto capítulo, e um dos mais interessantes, revela a ciência da morte, seus limites biológicos e

 químicos, como funciona o exame da autópsia e as formas de preservação dos corpos.

O sexto capítulo faz um tour pelos cemitérios mais famosos ou bizarros do mundo, os museus da morte, e a morte como turismo.

O sétimo capítulo foca nas maneiras históricas e atuais de se desfazer de corpos, desde os enterros ritualísticos até os métodos da máfia italiana.

O oitavo capítulo aborda os costumes culturais envolvendo os mortos em todo mundo, e, finalizando, o nono capítulo fecha o livro com contos que abordam o que há, ou se há, algo após a morte.

É diversão garantida! Todos os textos foram escritos pela escritora Bronwyn Carlton, especializada em literatura criminal e forense, e as artes são feitas por um desfile de talentos como Craig Hamilton, D´Israeli, Rick Geary, Steve Bucellato, Linda Medley, Mark Badger, Joe Orlando, Hunt Emerson, e muitos outros. Recomendo também o fabuloso Big Book of Unexplained, onde o escritor de quadrinhos Doug Moench, junto com vários artistas, o levam a um passeio pelo mundo do estranho e bizarro, e eventualmente charlatanesco. Sempre com um bom humor negro e ironia.

8 - MARCO, O MACACO DO ESPAÇO - Daniel Lopes (Mês, 2014)

Em um mundo perfeito, a viagem do macaco Marco pelos confins da galáxia seria uma publicação semanal em coloridos suplementos de quadrinhos dominicais.

O álbum de Daniel Lopes, mais um grande trabalho saído do fanzine Mês (por motivos puramente cronológicos, o álbum O Aguardado, do também mensaleiro Augusto Botelho, não entra nesta lista) reúne os quadrinhos que foram publicados em um ano de produção em uma versão colorida e luxuosa.

Marco é o nome de um dos primeiros macacos lançado ao espaço pelos terrestres. Seu corpo já falecido é encontrado pelos pacíficos e avançados Vimanaranos que, por sua vez, o reabilitam e o evoluem ao máximo de sua capacidade física e intelectual. O que se segue é uma homenagem aos quadrinhos do passado, com todo um clima de ficção científica dos seriados de cinema e um ritmo sempre acelerado, mas sem esbarrar em um pastiche de referências visuais estéreis amarradas para acionar glândulas nostálgicas.

O Macaco do Espaço é um estudo do quadrinho clássico, dos heróis da ficção científica do início do século XX, mas sua existência e qualidade nos dias de hoje se deve ao fato de ser um catálogo desses mesmos quadrinhos. No espaço, o primata sofre de muitas das provações e desventuras que ocorrem nas tiras de space opera, mas sempre ao seu jeito, com o seu ponto de vista. Sempre calado, pensativo e atuante. O problema maior deste quadrinho é sua duração. O personagem tem potencial para ter uma epopeia em quadrinhos, mas o final acaba de forma abrupta, e o excesso de extras acaba fazendo você desejar mais histórias na edição. Mesmo assim, Marco o Macaco do Espaço é viciante como eram os quadrinhos de outrora. Uma leitura recompensadora.

9 - EC ARCHIVES: TWO FISTED TALES VOLUME 2 – Harvey Kurtzman e vários artistas (Gemstone Publishing, 2011 [1951-52])

Em nono lugar na lista das melhores leituras do ano de 2015 está o encadernado The EC Archives Two Fisted Tales Volume 2, reimprimindo em alta qualidade as edições de 7 a 12 da série de guerra da EC Comics. Sobre a EC é dispensável falar, se você está lendo este texto até aqui é por que sabe de cor o papel da editora em revolucionar o quadrinho no mundo, capitaneada pelas mãos de Bill Gaines

. A coletânea é da Gemstone Publishing, e a qualidade da edição é de cair queixo: papel luxuoso e capa dura. A colorização, infelizmente, não é a original (realizada pela lenda Marie Severin) mas segue seu estilo obsessivamente, mantendo o clima das edições originais e dando uma aula de cor para as edições de arquivo das grandes editoras norte americanas.

Todas as histórias foram concebidas, escritas e editadas pelo genial Harvey Kurtzman, e são uma janela nefasta para o que ocorria nos fronts em que os EUA estavam envolvidos. Entre os destaques da edição estão "Rubble!", com arte de Kurtzman, onde vemos a saga de um pai de família norte-coreano em construir, pedra por pedra, a casa de sua família apenas para que tudo, a família e a casa, deixem de existir. A narrativa é um duelo de onomatopeias onde os sons destrutivos da guerra atropelam os miúdos chiados, rastejos e marteladas que levantaram um lar. Esta história vai ser homenageada pela dupla Jason Aaron e R. M. Guera em uma edição fechada de Scalped mais recentemente. Em "Corpse on the Imjin", também com arte de Kurtzman, temos uma reflexão sobre a vida e a morte durante tempos de guerra. Como o espetáculo da morte, mesmo no caso de um corpo flutuante no rio Imjin, pode ofuscar a vida, ainda mais na soturna rotina da guerra: “Muitas coisas bóiam no Imjin! Madeira velha, caixas de munição, embalagens de ração, cápsulas de bala!… nós ignoramos estes destroços flutuantes! Por que então, um corpo sem vida chama tanto a atenção do nosso olhar?... bom, apesar de esquecermos, a vida É preciosa, e a morte é horrível e nunca passa despercebida!” Um quadrinho angustiante. Este material, entre outros da EC, estão na lista dos quadrinhos com mais urgência de serem publicados no Brasil. Já está na hora de alguma editora tomar a frente desse projeto e trazer o catálogo da EC para cá, principalmente o material de crime e guerra.

10 - MULTIVERSITY – Grant Morrison e vários artistas (DC Comics, 2014-2015)

Fechando essa lista está mais uma história de super-heróis, e, pior ainda, uma história de uma das grandes editoras! Mas, inegavelmente, os especiais de série Multiversity estão entre os melhores e mais instigantes quadrinhos que li em 2015. Escrita por Grant Morrison e com arte de vários artistas, a minissérie conta a história de um perigo tão grande que obriga heróis de várias dimensões a se unirem pra resolver o problema. Essa parte é dispensável. É interessante como Morrison abusa das metáforas para mostrar como a super comercialização dos heróis, as preocupações do mundo real e os limites editoriais estão matando o quadrinho de super-poder. Os monstros que ameaçam a realidade da história são a corporificação desses problemas e são chamados de The Gentry, uma crítica direta da gentrificação realizada no meio pelos grandes estúdios que chegam desconstruindo e reformatando os personagens. Interessante, mas dispensável, já que acaba por levar a uma outra história sem fim. O que é realmente interessante é o intricado multiverso que Morrison constrói e como cada edição especial é carregada da criatividade e da ousadia narrativa que são a marca do autor. Publicada em sete capítulos e mais um guia do multiverso, cada edição da minissérie é uma janela para um mundo paralelo do universo DC que se encontra às margens da destruição total, e temos até uma edição que se passa no “nosso” mundo e que tenta esclarecer a noção de “super-herói” que o autor prega.

Em destaque temos os deliciosos S.O.S. e Thunderworld, um universo de aventura pulp e o mundo de Shazam, respectivamente. Poucos trabalhos do autor são tão diretos quanto estas edições. Em Society Of Super-Heroes, com a belíssima arte de Chris Sprouse, um grupo de aventureiros se reúne para evitar um armagedom inca, e falham. Em Thunderworld, junto com Cameron Stewart, Morrison mostra como se faz história de super-heróis do jeito certo – muita aventura e um otimismo infantil que faz com que os heróis lutem com um sorriso no rosto mesmo diante da invasão final de Doutores Silvana de todas as dimensões.

De acordo com o mapa que o autor desenvolveu, o posicionamento da dimensão em relação a ele

 indica o quanto de realismo ou ingenuidade uma determinada dimensão agrega. No lado diametralmente oposto ao sonho juvenil dos Marvels está a edição Pax Americana, uma crítica quadrinística cifrada endereçada a Alan Moore. Retomando sua parceria com Frank Quitely, em Pax há uma intenção clara de ser uma interpretação de Watchmen. A dimensão em que se passa a história é a da Charlton Comics, lar do Besouro Azul, do Questão e do Capitão Marvel, a matriz original da série da obra-prima de Moore. Pax é uma pequena obra-prima em si mesmo, mas seu hermetismo e obsessão acabam por diluir o prazer da leitura. Mesmo assim o roteiro levanta vários questionamentos interessantes, como o momento onde explica o sucesso dos filmes de super-heróis: “Após a queda das torres, nós vendemos sonhos infantis para adultos amedrontados.” Questão e Capitão Átomo são outros destaques da revista, mas valem ser lidos e não narrados aqui.

Ultra Comics e O Guia do Multiverso são os capítulos mais metalinguísticos. Ultra Comics é o herói criado em um mundo sem super-heróis. Na verdade trata-se de uma revista em quadrinhos com uma ideia memética que funciona como um super-protetor psicológico que é acionado quando a revista é lida. Um capítulo muito interessante e que merece ser lido duas vezes para ter o efeito desejado. O guia é um passeio pelas diversas outras dimensões concebidas pelo escritor. Temos também The Just, uma deliciosa dimensão onde os anos 90 nunca acabaram e os filhos dos heróis desse período reencenam as lutas clássicas de seus pais enquanto festejam como adolescentes ricos. Uma homenagem ao Reino do Amanhã e aos anos Image da DC. Fica faltando apenas Mastermen, uma dimensão onde o foguete de Super-homem cai na Alemanha e o presente é dominado pelo terceiro Reich. Os heróis que resistem são considerados terroristas e há uma boa emulação de como a realidade pode ser distorcida entre um país e outro. Mas, nesse sentido, o Bendis lá no começo desta lista fez muito melhor. Multiversity está sendo publicada no Brasil pela Panini no mix picareta da série Multiverso DC.

É isso meus caros! Até a próxima. 

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 1

2015 não foi exatamente o ano mais terno, mas nem por isso vamos deixar de celebrar as experiências quadrinísticas que vivemos em meio a mortes de celebridades, caos na política do nosso país, filmes aguardadíssimos e grandes eventos sobre gibis. Nos próximos dias vamos publicar as listas das melhores leituras que fizemos neste ano fora da casinha.

Cada membro do staff Raio Laser tem seus próprios critérios, e, assim como temos feito desde o princípio aqui, a escrita é livre, a abordagem é selvagem, cada um faz como quer. Eu, por exemplo, que começo, não estou fazendo uma lista dos melhores quadrinhos lançados em 2015. Peço desculpas. Não pude acompanhar uma avalanche de lançamentos de todos os tipos simplesmente porque estava concomitantemente escrevendo uma tese de doutorado (ai minha cabeça). Portanto, resolvi escrever sobre os melhores quadrinhos que li de qualquer época. Isso também é legal. A gente pode revisitar os clássicos, escrever sobre aquele volume que tinha faltado, acertar as contas com sua própria coleção. Algumas coisas li quando ainda estava na França, e outras já no Brasil. Deu, por exemplo, para falar sobre o grande Shigeru Mizuki, falecido no fim de 2015. Não é uma beleza? Esta lista não está em ordem de qualidade. Não está, aliás, em qualquer ordem significativa. Apenas pegue os textos que mais te interessarem e leia na ordem que quiser. Nos próximos dias, as muito diferentes listas dos outros caras da RL. Acompanhem! (CIM)

Parte 2

Parte 3

por Ciro I. Marcondes

1 - KITARO: LE REPOUSSANT (Kitaro, o repulsivo) – Shigeru Mizuki (Collection Paul, 2007 [1959]): o mangaka Shigeru Mizuki, falecido em 2015 com 93 anos, era ao mesmo tempo um mestre dos gêneros gekigá (quadrinho japonês mais sombrio, com auge nos anos 50 e 60) e do yokai (histórias de monstros folclóricos e fantasmas). Eu havia comprado o primeiro volume de uma edição francesa de sua obra mais famosa, GeGeGe no Kitaro, quando estive fora, e, assim que soube da morte do autor, resolvi ler para ver de qual era. Mesmo que as primeiras histórias sejam ainda um tanto primitivas (foram publicadas em 1959) e careçam de consistência, elas vão melhorando incrivelmente à medida que a leitura avança. Kitaro é uma espécie de morto-vivo, uma criança mágica das trevas, que rasgou o útero de sua mãe morta para ser o último de sua espécie. Ele é acompanhado apenas pelo sinistro olho ambulante (literalmente) de seu pai, o mais bizarro dos sidekicks. Mizuki aproveita esta ideia de errância para fazer o garoto-monstro cruzar com todo tipo de ser folclórico e criatura medieval japonesa (a estranheza aqui é grande: um deles é uma gosma; outro, uma espécie de nuvem com olho macabro; e outro é pura e simplesmente um olho com halo de trevas).

Kitaro é incrivelmente imaginativo, e as situações em que o autor coloca o menino são absurdas, de um fascinante encantamento com o mundo do oculto e do sobrenatural, ressaltando a presença feérica destes yokai em contraposição à estupidez racionalizante do mundo moderno. Mizuki lutou na segunda guerra, contraiu malária, perdeu um braço e esteve muito próximo de ser executado. Sua visão assombrada do mundo, mesmo que lírica, não deixa de ser um reencantamento em relação à indústria de matar da guerra moderna, e sobrevive. É um bom momento para todos lermos Kitaro.

2 - RADIO LUCIEN / RICKY BANLIEUE / LULU SMACK (Lulu S’maque) – Frank Margerin (Les Humanoïdes Associés / Abril Jovem, 1982, 1987, 1987 [1992 no Brasil]): trazer vida à juventude do revival rockabilly na Paris dos anos 80: esse era o propósito de Frank Margerin ao criar o personagem Lucien e sua turma de losers quando foi (prancheta debaixo do braço) trabalhar para a Métal Hurlant no início daquela década. Hoje Margerin é uma instituição francesa. Seus quadrinhos groz-nez, de enorme facilidade narrativa e imenso carisma, são tudo que podemos esperar de algo despretensioso, leve, mas tomado por vida de verdade em todos os lados. Os problemas da sua galera são coisas reconhecíveis: pegar uma moto emprestada, enfrentar um Natal chato em família, tentar montar uma banda de rock ou uma rádio pirata. Margerin é despojado, sarcástico, e uma bem calibrada lente de leitura de sua época. Dentre as três edições que li em 2015, apenas uma (Lulu Smack), saiu no Brasil, e esta é justamente uma HQ de passagem para o autor: é sua primeira história longa, que relata o nascimento de um romance, e foi até mesmo publicada como graphic novel pela Abril em 92. Preferi as histórias curtas das outras duas, mais rasteiras e com faro para ironia mais apurado. Todo Margerin, porém, é relevante, e isso faz dele um autor que precisa urgentemente de mais traduções por aqui.

3 - DOIS IRMÃOS - Fábio Moon e Gabriel Bá (Cia das Letras, 2015): nossa resenha completa desta HQ aqui.

4 - BOULES DE CUIR (Bolas de couro) – Phicil e Drac

 (Tournon-Carabas, 2012): esta foi achada no sebo, naqueles deliciosos exercícios de simplesmente se perder numa multidão de quadrinhos desconhecidos e, por puro “feeling”, ir sacando aquilo que pareça interessante e difícil de encontrar em qualquer outro lugar. Não conhecia o quadrinista francês Phicil (Philippe Gillot), que, com as cores de Drac, realizou este primoroso álbum em “quadrinhos antropomórficos de época”. Meio Crumb, meio Disney, e, lógico, bastante BD, Boules de cuir tem humor sagaz na medida certa, incrível detalhismo fotográfico em seu retrato de uma Paris do entre-guerras (sem perder a pegada cartum), e excelente punch narrativo. É uma história deliciosa: um pato verde e mala, Bec (versão francesa do Plucky dos Tiny Toons), e um ingênuo e delicado ursinho chamado Tintin se envolvem no pernicioso mundo do boxe de feira, cheio de trambiqueiros, para extraírem para si algumas lições. A ambientação do roteiro é estudada e fascinante, os diálogos têm forte personalidade e os desenhos são muito carismáticos. Verdadeira aula de quadrinhos narrativos. No aguardo, agora, do último lançamento de Phicil: “Zen, meditações de um pato egoísta”, novamente com Bec como protagonista.

5 - MULHERES – Yoshihiro Tatsumi (Zarabatana Books, 2007 [1961]): uma prostituta que recusa o ex que a abandonou pela família. Uma garota que ganha benefícios de acordo com o amante e dá seu salário a um jovem bem mais inocente. A mulher que é maltratada pelo marido, que a rejeita publicamente. Estes são alguns dos motes desta coletânea de quadrinhos dos anos 60 do grande Tatsumi, mestre e inventor do gekigá que, em uma narrativa quase pulp, situada entre o cotidiano e o íntimo grotesco, com influência do cinema noir e dos romances eróticos baratos, consegue deflagrar a vida da mulher japonesa de sua época. São agruras, contradições, crimes passionais. Certo, não é o melhor de Tatsumi, mas, sendo o único material dele publicado no Brasil, é o que temos para hoje, e uma boa amostra. Como Mizoguchi no cinema (ver Akasen chitai, 1956), Tatsumi radiografa certo ethos feminino do Japão do pós-guerra de maneira crua, cirúrgica, sem proselitismo. Para a época, é revolucionário em vários aspectos, e um quadrinho essencial dentre os publicados pela Zarabatana.

6 - PINÓQUIO (Pinocchio)

– Winshluss (Les Requins Marteaux / Globo, 2008 [2012 no Brasil): com atraso, finalmente li a celebrada adaptação de Winshluss (Vicent Paronnaud) para o Pinóquio de Collodi (e da Disney!). Eu poderia começar mencionando a estupefante qualidade gráfica, mistura de livro infantil da primeira metade do século XX com comic strips da era de outro (especialmente nas cores); poderia falar da desconstrução perturbadora da história original (um conto moralista sobre a perda da inocência), que faz varredura da podridão imoral das instituições modernas; poderia falar da genial transformação e adaptação de cada evento das histórias que o inspiraram. Mas eu gostaria mesmo é de ressaltar a coragem de Winshluss em investir numa narrativa dinâmica e quase inteiramente silenciosa. Balões viram universos de imagens a serem descobertos. Abundam expressões que trazem teatro e cinema aos quadrinhos. Páginas com geniais soluções visuais e narrativas se intercalam com os monólogos politicamente incorretos do escritor beatnik em que se transforma o Grilo Falante (Barata Joe). Winshluss comprova, ao comparar a ladainha da Barata Joe ao seu vasto acervo gráfico, que a HQ muda pode ter exuberante floresta de informações e enorme complexidade a ser decodificada. Demorou, mas valeu a espera.

7 - LES PASSAGERS DU VENT – LA FILLE SOUS LA DUNETTE (Os passageiros do vento – A garota sob o tombadilho) – François Bourgeon (Delcourt, 1979): outra instituição da BD franco-belga, François Bourgeon é um dos únicos autores de HQ de pirataria capaz de ser comparado a Hugo Pratt.

La fille sous la dunette, primeiro volume de sua longa série dos “passageiros do vento” – vencedora em Angoulême (1980) – , uma das mais populares HQs de aventura francesas, é um arroubo de elegância e cuidado com a reconstituição histórica. Passando-se em alto mar, entre a França e a Inglaterra no século XVIII, este volume é não apenas meticuloso a ponto de Bourgeon ter construído maquetes para os cenários, desenhado modelos para os navios e ter se baseado em fontes fielmente documentais. Ele é também uma aventura de tirar o fôlego envolvendo trocas de identidade, vinganças cabulosas, incríveis batalhas navais e um socializante discurso a respeito do tráfico de escravos. Além disso, o traço realista, fino, de inigualável verossimilhança, do autor, traz todo um aspecto vívido e colorido, além de lindo erotismo, a esta HQ popular, recorde de venda na França. Popular não deve (e nem pode) ser coisa ruim, e esta obra é prova concreta disso.

8 - OS MAIORES CLÁSSICOS DO DEMOLIDOR (Daredevil,the man without fear, Nº 168-192) – Frank Miller e Klaus Janson (Marvel / Panini, 1981-83 [2002]): entusiasmado com a série da Netflix, resolvi mexer nas minhas memórias de adolescente e reler a fase clássica de Frank Miller em Demolidor

, algo que sempre ficaria reminiscente em minha lembrança como “a melhor coisa que Miller já fez”. Peguei logo as reedições da Panini, que recompilam nada menos que 24 volumes desta brilhante fase, a partir do momento em que Miller assume os roteiros. Uau. Você lê esse material e parece que um trem trombou com a sua cara. Roteiros concisos, fortes, equilibrados e imediatos se unem a uma arte milleriana que, se ainda não atingiu o auge, se aproxima a um perfeito ponto de equilíbrio entre Cavaleiro das trevas e Sin City, por assim dizer. Todo Miller já está ali: a versatilidade no uso de grandes quadros horizontais, o apagamentos das arestas (influência de Eisner), liberando a sarjeta, o approach urbano (tornando a série eminentemente moderna, quase fundando a era de bronze), recursos de zoom, câmera lenta, sinestesia, quase todo tipo de letreiro em primeira pessoa (todos narram: Ulrich, o Mercenário, Foggy ), enfim, um primor absoluto. Fora isso, o carisma do herói contado por um autor jovem, vigoroso, cheio de ideias incríveis. Os duelos com o Mercenário. A ascensão do Rei do Crime. A morte de Elektra. Etc. Etc. Tempo bom, que não volta nunca mais.

9 - ORDINÁRIO – Rafael Sica (Cia das Letras, 2010): apesar do título desta HQ, Rafael Sica não é um quadrinista ordinário. As tiras mudas (sem falas) reunidas neste volume da Cia das Letras estão entre o que de mais interessante surgiu em quadrinhos (hmm) “experimentais” no cenário recente brasileiro. Com o espaço francamente subvertido pelos paradoxos intrínsecos à própria arte dos quadrinhos, ele vai criando fábulas, sonhos, anedotas, alegorias. Espécie de Liniers mais sombrio, Sica nos leva a situações e mundos onde as sombras ganham vida, onde um narciso urbano se afoga numa poça de água suja na rua, onde um homem se esconde atrás de tudo, inclusive dos espaços próprios ao quadrinho em si. São tiras existencialistas (o “ordinário” estando neste absurdo da vida que todos compartilhamos), nada banais, com apelo surrealista e cheias de dolorosos enigmas. Quadrinhos assombrados, vindos de um artista assombroso.  

10 - UNE ENQUÊTE DE L’INSPECTEUR CANARDO – LE CHIEN DEBOUT (Um caso do inspetor CanardoO cão de pé) – Benoît Sokal (Casterman, 1981): e eis que estou elegendo aqui mais quadrinhos antropomórficos com patos marrentos, desta vez sob chave “noir”, em uma história cheia de elementos diversos e pitorescos. As investigações do inspetor Canardo, um pato alcoólatra, fumante de haxixe e depressivo, são também um patrimônio da BD e O cão de pé é sua primeira aventura publicada em álbum. Antes disso, os leitores do mercado franco-belga já haviam tido contato com o pato em histórias curtas publicadas na clássica revista (A suivre), responsável por lançar toneladas de autores de BD que depois se consagrariam. Esta primeira história é um prato cheio: Canardo é mero coadjuvante na história de amor fatal vivida pelo cachorro (também) alcoólatra Fernand, que retorna à sua cidade para tentar reaver uma garota que ele descobre assassinada. Lá ele cruza o caminho de Canardo e o de um mundo de escroques: chefões do crime, cientistas loucos, femmes fatales. Os diálogos são afiados, a história é potente e magistralmente bem conduzida, e a arte do belga Sokal encontra aqui um de seus auges. A atmosfera sombria é retratada em tom cartunesco, mas isso não deixa a história menos apavorante. Escura e cínica, ela abusa de recursos do cinema noir, como o close-up nos olhos, as imagens na penumbra e as cenas de violência. Vetor da representação de uma sociedade acabada e exímio participante no jogo do reaproveitamento dos gêneros, Sokal tem em O cão de pé um debut de cinco estrelas. Hoje já são mais de 20 álbuns lançados com o pato como protagonista, e Sokal não para: além de quadrinista, ele desenvolve jogos de videogame para a Microïds. Nada mal para um cara que, no Brasil, permanece desconhecido.

11 - BARATÃO 66 - Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu, 2013): nossa resenha completa desta HQ aqui.

12 - THE GIRL FROM H.O.P.P.E.RS. – A LOVE AND ROCKETS BOOK (A garota de HoppersUm livro de Love and Rockets) – Jaime Hernandez (Titan Books / Fantagraphics, 2007 [1985-1989]): as histórias reunidas neste segundo volume da inglesa Titan Books já não têm aquele tom das primeiras que apareceram em Love and Rockets: sem naves espaciais, sem dinossauros, sem alienígenas, super-heróis e sem o insuportável Rand Race. Ou seja: é muito mais “love” do que “rockets”. Eu já tinha lido algum deste material aqui e ali, mas nunca a série completa assim, de um só fôlego. Enquanto as primeiras histórias deste monumento da HQ indie eram mais abiloladas, cheias de toques surrealistas e non-sense misturado ao humor, à coolness e àquele erotismo esperto, esta fase que se inaugura a partir de 1986 (digamos, fase “Maggie gordinha”) esfria estas tensões malucas e coloca a histórias de Maggie, Hopey, Izzy e tantas outras garotas incríveis num patamar mais “pé no chão”. O que não significa menos emoção. É justamente aqui que Jaime Hernandez vai progressivamente construindo sua saga da fictícia cidade de Hoppers (na Califórnia), habitada principalmente por famílias de origem mexicana, a partir de uma teia afetiva que não dispensa as marcas que tornaram a série (conhecida como Locas) famosa: as desventuras afetivas das personagens, os conflitos entre gangues, situações do cotidiano, os improváveis entrecruzamentos entre a luta livre feminina e o resto dos plots, etc.

Mas nada disso resume Locas. O que verdadeiramente conta ao lermos uma série assim é o mergulho no dia-a-dia microdetalhado destas personagens tão vivas que parecem transportadas diretamente de uma realidade maravilhosamente atraente. Afinal: bandas de rock, garotas descoladas, wrestling feminino, bebedeiras, romances tórridos. Quem não gostaria de viver dentro desta HQ? O que encanta, no final das contas, é aquele fator “Hopey fica com Maggie, cuja irmã fica com Speedy, que por sua vez é apaixonado por Maggie, cuja tia Rena é uma estrela da luta livre e tem vários romances no passado”, etc. Hernandez vai e volta nas histórias sem deixar a peteca cair, em longos flashbacks totalmente verossímeis, alterando a idade, o visual e o contexto dos personagens de maneira perfeitamente coerente e envolvente. Se cada fase de Locas tem seus méritos, sendo a primeira mais avant-garde e inauguradora de todo um filão dos quadrinhos, esta segunda certamente prima pela maturidade com que Jaime investiga a psicologia de suas personagens. De certa forma, isso aproxima Locas de Palomar (de Gilbert), que já nasceu, por assim dizer, completo e maduro. Um quadrinho indispensável (e todos aqueles clichês de crítica, blá blá blá).  

Quatro irmãos

por Ciro I. Marcondes

Lá pelos idos de 2002 eu era apenas um estudante de Letras e me lembro que, em uma aula de Literatura Brasileira Contemporânea, entre a prosa lacônica e enfadonha de João Gilberto Noll e os textos histéricos, wanna be contemporâneos de Marcelino Freire, caiu nas minhas mãos Dois irmãos, o hoje já clássico segundo romance de Milton Hatoum, publicado em 2000, sobre a eterna rivalidade de um par de irmãos gêmeos no seio de uma família libanesa-brasileira na Manaus do século XX. Nunca tinha ouvido falar. Li com voracidade, porque, na verdade, não se trata de um livro que simplesmente lemos, mas sim que consumimos.

Ao contrário dos autores citados, Hatoum fazia-se contemporâneo usando uma linguagem simples: não flertava com o cinema, não abusava de discursos indiretos livres e narrativas frouxas que se confundem com a errância do autor, e não fragmentava seus personagens em mil diferentes excertos para tentar redefinir o que seria um romance. Pelo contrário, buscava delinear cada aspecto de seu texto, e a polifonia da história se dava através de um vai-e-vem que engancha o passado no futuro sistematicamente. Sua modernidade residia, portanto, nos tipos de sincretismo entre as várias possibilidades de Brasil que são oferecidas ao leitor numa Manaus que hoje parece ainda mais remota e indefinível.

Hatoum segue, logicamente, a tradição antropofágica do modernismo brasileiro, mas seu interesse maior, em Dois irmãos, parece ser se alinhar na consistência narrativa do romance, em tratar da minúcia insubstituível da família, nas agudezas do ambiente, nos cantos recônditos da História. Algo, assim, que tem Capitães de areia, Viva o povo brasileiro, Incidente em Antares. Naquela ocasião, foi-me concedida, como monitor, a oportunidade de lecionar uma aula sobre o livro. Talvez tenha sido a primeira aula que dei na vida para uma turma de faculdade, não sei. Como era de praxe, juntei os pedaços do livro, cataloguei-os buscando um sentido unívoco, equilibrado, que projetasse para um significado maior. Tipo de hermenêutica burra. Lembro de ter concluído que o narrador da história, o mestiço Nael, seria espécie de alegoria do futuro do Brasil: mesclado, moderno, filho da vaidade e do dandismo de um dos gêmeos da história, Omar, e da disciplina matemática do outro, Yaqub. Como se resumisse em si próprio todo um processo civilizatório. As pessoas acharam que minha leitura superinterpretava o romance. Também acho que sim. Hoje, lendo a adaptação para os quadrinhos que os outros gêmeos, Bá e Moon, realizaram do romance, pude redescobrir este livro e refazer minha própria leitura. Foi uma entusiasmente redescoberta.

Bá e Moon fizeram a adaptação de Dois irmãos com deferência em relação ao texto fonte. Talvez até excessiva. O romance é recontado na mesma estrutura narrativa do original (se não em engano), com a mesma ordem narrada dos eventos, incluindo flashbacks, inversões e subnarrações feitas pelos personagens. Diálogos e caixas recitativas são mantidos como na letra de Hatoum, e há pouca perversão (ou subversão) do material literário no material gráfico. Isso não é ruim. Resolveram não mexer na vaca sagrada. Neste sentido, a adaptação que eles fizeram do O alienista foi um pouco mais longe.

Mesmo assim, não falta quadrinhos ali. Longas passagens silenciosas realizando uma devassa gráfica da fauna, da flora e da arquitetura colonial de Manaus, assim como (algo que eles fazem com maestria) a divisão dos quadros na página perfeitamente adaptada às funções emocionais do roteiro, e por fim economia no texto dos letreiros (algo que não ocorre em nove entre dez adaptações literárias para os quadrinhos) fazem de Dois irmãos um perfeito modelo de como transferir a complexa experiência literária para a não menos complexa experiência dos quadrinhos, sem que um fira as belezas intrínsecas do outro. O fato de as quatro primeiras páginas serem apenas quadros sem falas, com detalhes da paisagem e da arquitetura do cenário, acena para uma introdução que diz “aqui é quadrinho, meu filho”, e funciona bem. O fato de ser tão exemplar, porém, faz desta uma linda adaptação, mas não um quadrinho particularmente brilhante. O excesso de zelo acabou matando um pouco a autoria dos gêmeos, que está à flor da pele, por exemplo, em Daytripper. Fico curioso ao imaginar a história (ao invés do preto e branco chapados) em verdejante colorido.

Diante de tudo isso, resta a contagiante história de Milton Hatoum. Ela se passa em Manaus, entre os anos 1910 e 1960, e atravessa gerações de uma família de imigrantes libaneses. Neste meio, o melting pot de formação da sociedade manauara: índios, africanos, estrangeiros de todos os tipos, as várias formas de comércio, bares, comidas típicas, e todo tipo de organização social. O foco é a cultura libanesa. Podemos sentir, nas ilustrações caricaturais, mas detalhistas, dos gêmeos, o mormaço fluvial da paisagem, o cheiro dos peixes, a agitação febril da cidade. E assim é também o conflito eterno dos irmãos gêmeos da história: a violência passional de Omar; o calculismo paciente de Yaqub. Mais do que uma síntese qualquer de qualquer futuro que o Brasil viesse a ter, estes gêmeos, numa paisagem profundamente local e instigante, aspiram ao universal.

Se, num texto shakespeariano como A comédia dos erros, a questão dos gêmeos se centra na aparência que anula as diferenças (provocando a confusão e o riso), em Dois irmãos, tipo de tragédia mais shakesperiana que o próprio Shakespeare, são as diferenças que se aviltam, revelando um abismo de oposições por trás da máscara familiar, do corpo idêntico. Conto do duplo terrível, onde um é a visão infernal do outro, Dois irmãos aposta também numa origem dupla para a rivalidade e a tragédia: em uma (tragédia shakespeariana), é a origem familiar, o detalhe da criação, a minudência do afago da mãe, ou um amor de infância, que produz o conflito bestial. E em outra (tragédia grega), é o destino, o cosmos: os gêmeos nasceram assim.

Diferentes, ao que parece, são os gêmeos Fábio e Moon, parceria de irmandade para além do sangue, sem que cada um perca sua natural individualidade. Para realizar uma empreitada tão difícil, tiveram que marcar e recriar cada expressão fácil dos inúmeros personagens da história, com seus trejeitos, vícios de fala, suas belezas particulares. Assim, momentos muito elaborados no romance (um irmão que é acorrentado, um poeta que é morto pela ditadura, uma mulher descrita como de excepcional beleza) são traduzidos num vislumbre, em um grande requadro, em um lampejo de quadrinhos que se sobressai sobre a literatura. Desta forma, por diferentes que possam ser a trajetória destes quatro gêmeos, é nestes momentos que eles se tornam também quatro irmãos.     

Três dias em Hicksville: cobertura do FIQ!

por Lima Neto

Prólogo -  Hicksville: uma pequena resenha

Há alguns meses atrás chegou às minhas mãos a graphic novel Hicksville, de Dylan Horrocks. Não conhecia a revista ou seu autor com profundidade e a comprei baseado num burburinho difuso que a fazia se destacar um pouco dentre as outras possibilidades de compra, além da bela capa um tanto Jayme Hernandez. 

Hicksville é um mistério. Acompanhamos o jornalista especializado em quadrinhos Leonard Batts a uma jornada pelos confins da Nova Zelândia em busca de elementos para escrever a biografia definitiva de um astro fictício dos quadrinhos contemporâneos chamado Dick Burguer. Sua busca o leva à pequena cidade de Hicksville, localizada “no cu do hemisfério sul”, uma espécie de Twin Peaks onde todos os habitantes – do banqueiro ao zelador – são apreciadores, críticos e potenciais criadores de histórias em quadrinhos. A investigação de Batts não é fácil. Tudo que ele descobre é que toda a cidade odeia Burguer e suas criações e que ninguém vai revelar nada relacionado a este ódio... e que café não é uma bebida popular na Nova Zelândia. 

No clímax da história, em uma festa comunitária anual chamada Hogan's Alley Party (para aqueles que não são nativos da cidade, Hogan's Alley é o nome da tira que apresentou ao mundo o Menino Amarelo e consolidou as páginas dominicais como um sucesso da imprensa do final do século XIX), vemos toda a comunidade da cidade fantasiada de seus personagens de quadrinhos preferidos. São tantas referências visuais, mundiais e específicas da Nova Zelândia, que a sensação é inebriante: Capitão Haddock, Fu Manchu, Mestre do Kung Fu, Ferdinando, Terry de Terry e os Piratas, etc. Esta festa é o ápice de uma sensação de valorização superlativa das HQs que emana de todas as páginas de Hicksville

Dick Burguer é um mega astro de Hollywood graças às adaptações milionárias de seus quadrinhos para o cinema. A revista para a qual o repórter Batts trabalha paga uma viagem ao outro lado do mundo para construir um perfil de um quadrinista. A mágoa envolvida em torno do que aconteceu na cidade e sua estrela internacional é tão intensa que a sensação que se tem é que o mundo gira em torno das histórias em quadrinhos. E esta sensação é o dado mais fantástico da trama. É o elemento que quebra com o realismo das interações entre os personagens e a cidade. Totalmente irreal...

...ou será que não?

FIQ 2015

Este texto é um levantamento do Festival Internacional de Quadrinhos 2015, ocorrido entre os dias 11 e 15 de Novembro. Um levantamento bem pessoal, deixando claro, pois cheguei a Belo Horizonte somente no dia 13, sexta-feira. Mas a ideia é bem por ai. Estas linhas não pretendem ser um substituto da experiência de participar do FIQ. Muito pelo contrário, elas vão mostrar um pequeno diário que busca expor a sensação de que, por alguns dias, eu estive em Hicksville. E lá sempre é uma festa. 

Dia 13 de Novembro

Uma semana de poucas horas de sono não tiraram a excitação de que nos próximos três dias eu iria respirar quadrinhos, ou pelo menos mais quadrinhos do que eu já respiro normalmente. A chegada é aquele ritual apressado – guarda mala, toma banho, almoça e vai pra Serralheria Souza Pinto, o tradicional espaço físico onde ocorre o evento. A própria localização do lugar já é peculiar: um enorme galpão no centro-sul de Belo Horizonte, embaixo de um viaduto que também serve de área de lazer e sempre ocupado aos sábados pelo pessoal do Hip Hop. Logo ao lado da Serralheria está o Parque Municipal Américo Renne Gianetti, um dos parques mais bonitos que eu já vi com uma vastidão de árvores que compõem um ambiente bucólico, porém não livre dos problemas sociais que estão presentes na maioria dos grandes centros: uma comunidade de cidadãos dependentes de entorpecentes que tomam as ruas e becos sem o alento de nenhum cuidado social, apenas obedecendo ao contrato implícito de que, se não mexerem com a população, estarão salvaguardados de intervenção policial. Todo o centro de Belo Horizonte refletia esta descrição, o que ajuda sempre a lembrar à multidão de apreciadores de quadrinhos o verdadeiro significado de “sarjeta”. Como evento de quadrinhos, o FIQ se posiciona lado a lado com um “underground” de Belo Horizonte, refletindo sua relação com as possibilidades subversivas do meio, mas sempre como um potencial de integração e não segregacionista. É muito significativo que o FIQ ocorra neste lugar. 

Diferente de edições anteriores, a versão 2015 parecia um pouquinho menor. Não havia uma área de salas de aula onde ocorriam as oficinas bem no meio do saguão principal, e também faltava o diário do FIQ, publicação que resumia os acontecidos do dia anterior. Mesmo assim a sensação é de finalmente estar em casa, reencontrar os amigos. A falta de uma área de salas abria espaço para mais mesas de artistas, e ainda era pouco. Foram mais de 200 lançamentos, muito mais do que qualquer orçamento poderia acompanhar. Apliquei então uma metodologia simples: apenas iria meter a mão no bolso depois que visse todas as bancas e mesas de lançamentos. Olharia tudo com calma e tirei uma fotografia das publicações que me pareciam interessantes. A tarefa não foi tão fácil quanto parece. No final do primeiro dia, registrei apenas uma parede e meia de mesas de artistas e standes de editoras. 

Chaykin e Mike McKone

Este FIQ 2015 teve como tema principal o papel da mulher nos quadrinhos. Longe de ser recente, esta discussão encontra eco na quantidade enorme de mulheres com lançamentos programados. Não por acaso, as palestas e a escolha dos convidados eram reflexo deste tema. Cada vez mais as HQs vêm perdendo seu papel de entretenimento masculino adolescente para se assumir com arena de discussão e atuação das minorias. Gail Simone, Babs Tar, Marcelo D'Salete, Jen Wang, Marguerite Abouet e até mesmo Howard Chaykin, cada autor tinha um discurso a expressar e buscar repercussão na imensa quantidade de visitantes. Seja através do tema principal, o  feminismo, seja passando pelas minorias étnicas, raciais e sexuais, até à sempre urgente necessidade de aceitação seus apetites sexuais (sim, estou me referindo a Chaykin). 

Um fanboy e Howard Chaykin

Neste meu primeiro dia ocorreu a palestra com Howard Chaykin no auditório do evento (batizado de  Mateus Gandara como uma emocionante lembrança desse artista que carregava todo mundo com sua ferrenha empolgação). Bem-humorado, Chaykin interpretava um papel pouco visto entre os artistas norte-americanos: longe de ser simpático, o autor de American Flagg era provocador e carismático. Sempre com um “fuck” no discurso, o que acabava atraindo a atenção dos olhares para o tradutor de libras tentando descobrir quais eram os gestos correspondentes ao palavrão, Chaykin atirava para todos os lados. Ofendia alguns fãs de maneira jocosa, destratava a industria dos EUA e resmungava pelo fato de seu traço não ser mais apreciado nos quadrinhos de hoje. Howard Chaykin estava se sentindo bem à vontade. Fez uma pequena biografia onde revelava as origens precoces de suas experiências sexuais (achou quando muito pequeno uma caixa de revistas pornográficas - “não eram do tipo Playboy” - que construíram sua sexualidade) e revelou os interesses fashionistas muito presentes em seu trabalho dos anos 80. Chaykin soava como um dos personagens amargurados de Hicksville. Entretanto, esta amargura não escondia sua felicidade por estar lá. Como ele próprio disse, “nada me deixa mais feliz do que ser reconhecido e respeitado." 

Jeff Smith!

Cheguei ainda a tempo de conseguir um autógrafo do autor de Bone, Jeff Smith. Aguentar uma fila de 40 minutos para conseguir um autógrafo é, para muitos, muito mais uma chance de trocar alguns dedos de prosa com um artista que você admira do que agregar valor a quadrinhos que podem ser revendidos. Esse aspecto é muito valorizado pelos artistas internacionais, e eles consideram o público brasileiro muito mais como carente de atenção do que como mercenários profissionais caçadores de autógrafos. 

Mas é de noite que a sensação de estar em um mundo paralelo em que todos leem quadrinhos se acentua. Neste lado B da sexta-feira de FIQ, fomos todos a um complexo de bares no centro da cidade, bem próximo do local do evento, apelidado de “maleta”. É nesta outra mesa redonda que as conversas se aprofundam. Artistas famosos, estrelas internacionais, críticos e estudiosos das HQ´s, todos se acotovelam entre as mesas para comemorar e relaxar. Bebi e conversei com gente como Evandro Esfolando – autor de quadrinhos e divulgador das HQs e do rock nas escolas públicas do DF; Dandara Palankof – amiga íntima, tradutora da Mythos e ex-editora da HQM, responsável por retornar a publicação de Strangers in Paradise no Brasil (mesmo que por um breve período); Márcio Júnior – Pesquisador dos quadrinhos e vocalista da banda Mechanics de Goiânia, publicou recentemente o livro COMICZZZT! Rock e Quadrinhos: possibilidades de interface; Daniel Lopes – um dos editores da DC Comics no Brasil e atuante nos vídeocasts do site Pipoca e Nanquim; Paulo Floro – Jornalista da revista O Grito! Marcos Maciel – fundador da Kingdom Comics. Todos com os pulmões devidamente hiperventilados de histórias em quadrinhos. 

O livro de Márcio Júnior

A conversa variava entre comentários sobre os lançamentos, levantamentos sobre os eventos e troca de experiências editoriais, isso sem contar o saudável papo furado que fazia de todos seres humanos normais. Destaco dentre as conversas o acalorado e um tanto deprimente bate-papo com Márcio Jr. e sua realista visão do mercado. Para Márcio, se as editoras estão trabalhando com tiragens de 1000  exemplares, isso quer dizer que existem apenas 1000 leitores de quadrinhos no Brasil inteiro e que um evento como o FIQ, por mais festivo que seja, é uma reunião de todos esses leitores para trocar gibis que eles mesmos produzem entre si. Difícil não ver um pouco de verdade neste ponto de vista, e muito fácil esquecê-lo ao se colocar a cabeça no travesseiro às 4 da manhã sabendo que vai acordar daqui a 4 horas para mais festa.

Dia 14 de Novembro

O sábado marcava 38 graus nos termômetros e, no dia mais cheio de FIQ, a temperatura parecia o triplo! O calor só dava para aguentar com os din-dins (ou chup-chups, ou sacolés, etc...) de fruta que eram vendidos no evento. Salvaram minha vida e de muitos outros habitantes da vila dos quadrinhos. Outra possibilidade de salvamento era a área de descanso localizada na frente do auditório, devidamente mobiliada com pufs, bancos e muito ar condicionado. 

Este sábado de FIQ foi o mais cheio por diversos motivos, mas o principal deles foi a presença de

Maurício de Souza

. Com a intenção de celebrar e divulgar seu bem sucedido projeto de Graphic Novels, o pai da Mônica e do Cebolinha não apenas compareceu, como teve a mesa de autógrafos mais cobiçada de todo o evento! Crianças se espremiam, adultos choravam, jovens admiravam a longevidade deste polêmico criador que aparentava a fragilidade de seus oitenta anos. Entretanto, de todos os eventos que ocorreram neste dia, apenas consegui assistir a uma palestra – a entrevista com a americana autora da graphic Koko Be Good, Jan Wang. A entrevista foi mediada por outra quadrinista que merece atenção: Lu Cafaggi – cujo belo  e vaporoso traço deu um rosto para todo o evento. Lu se destacou junto com seu irmão - Vittor Cafaggi – pela produção do primeiro álbum da Graphic MSP, intitulado Laços, e que teve também uma continuação recente.

A razão de eu não conseguir participar das palestras foi a continuação da saga logística de visitar todos os estandes e mesas de artistas antes de comprar qualquer coisa. A essa altura, já previa que alguns lançamentos se esgotariam antes que eu terminasse e por isso concebi um plano para adiantar o processo: eu iria pular toda banca que vendesse prints de Guerra nas Estrelas ou cujo trabalho fosse um quadrinho de zumbi. Isso garantiu que no domingo, o último dia, eu já pudesse ir atrás do que eu iria comprar após realizar um verdadeiro tetris monetário em que encaixava a intenção de compra com a realidade orçamentária. Mas o domingo não viria antes de mais uma rodada de cerveja no “maleta”, novamente acompanhado dos amigos e rodeado das celebridades dos quadrinhos... surreal descreve bem o sentimento.

Dia 15 de Novembro

Levemente de ressaca e já com um cheirinho de saudade no ar. É assim que se inicia o dia 15 de Novembro, o último do FIQ. E ele teve a temperatura um pouco mais amena e a quantidade menor de pessoas dava uma agrádavel sensação de conforto. Dei início às compras com o novo (e lindo) álbum de Lélis, Goela Negra, publicado pela editora Mino - e corri pra que ele assinasse sua obra com uma de suas miniaturas de aquarelas. O processo está filmado e poderá ser visto em breve aqui na Raio Laser. De Lélis passei para a mesa de Marcelo D´Salete, onde comprei seu último livro, Cumbe, e levei para assinar, bater um papo e observar o pincel seco do autor construir sua arte em seu peculiar traço sujo e direto. O combo de autógrafos termina com o paraibano Shiko, um dos autores com mais quadrinhos circulando pelo evento. Da sessão de autógrafo no stand da Mino, eu saí com quatro títulos deste desenhista de traço belo e formalista, porém de alma agressiva e explícita. Após a sessão, dei prosseguimento às aquisições escolhidas após o levantamento extenso dos dias anteriores. Mais na frente vamos publicando resenhas desse material, mas pela foto dá pra se ter uma ideia do espírito da coisa. 

Shiko

O domingo fecha com a aguardada mesa redonda da escritora Gail Simone. Em sua palestra ela fala de sua experiência ao sair do salão de beleza em que trabalhava para sua seção de crítica e humor no site Comic Book Resources, e como virou uma das escritoras proeminentes do feminismo dentro da indústria dos quadrinhos. Seu blog intitulado “Women in refrigerators” se tornou sinônimo da denúncia da utilização instrumental das personagens femininas a favor do protagonista masculino dentro das grandes editoras e sua passagem por títulos como “Birds of Prey”, “DeadPool”, “Secret Six”, “Wonder Woman” e “Batgirl” a transformou em uma estrela conhecida por seu estilo bem humorado e atual (mesmo que bastante formalmente convencional, na opinião pessoal deste narrador). 

Gail Simone

Mesmo não tendo acompanhado todo o evento, não foi difícil perceber como a temática se desenvolveu em suas mesas redondas e atrações. A sexualidade livre e prazerosa de Chaykin não passa muito longe da liberdade feminista de Simone, ou da presença maciça de novos rostos de diferentes nacionalidades, todos buscando seu espaço nesta mídia que há muito deixou de ser de massa, mas que ainda tem frescor o suficiente para se reinventar para o futuro. No fim das contas, o FIQ não deixa de ser um refúgio, uma ilha em que se reúnem os últimos sacerdotes de uma religião em franco processo de esquecimento. Porém, como em Hicksville, as pessoas responsáveis por resguardar estas histórias e a maneira de contá-las vão cumprir seu dever com prazer e partilhando de um sentido comunitário em torno das HQs que vai contra este movimento consumista internacional onde todo o fluxo do desejo é transferido para uma megacorporação midiática. Enquanto houver FIQ, haverá pequenas publicações e um público caridoso para consumi-las. Como em Hicksville, o FIQ é uma cidade pequenina onde todos leem gibis. Onde todos partilham de uma ligação afetiva com a narrativa de imagens reprodutíveis – dos clássicos obscuros do início do século XX até os super-heróis que assolam todos os países. Somos todos consumidores e guardiões dessas histórias. 

Se você gosta de quadrinhos, de todo gênero, não deixe de visitar o FIQ pelo menos uma vez na vida! Com certeza você vai achar algum bairro nessas ruas apertadas e abarrotadas de gibis onde vai se sentir tão em casa que seu peito dói quando termina. 

Eu irei em todos!

Até o próximo FIQ!