Contos sobre a decomposição: conheça Al Feldstein

por Ciro I. Marcondes

Al Feldstein é mais um daqueles nomes que hoje pairam sob obscura sombra na história das HQs. Seu trabalho como editor, ilustrador e, principalmente, de roteirista nas clássicas publicações da EC Comics nos anos 50 (e posteriormente em MAD) hoje parece, especialmente no Brasil, relegado a um vão ostracismo, quando quadrinhos de horror, crime e ficção científica, tão populares naquela segunda aurora para o comic book, vão se tornando não apenas obsoletos, mas verdadeiras peças de arqueologia. Um pulo na banca de jornal hoje e tudo o que se vê são dezenas de publicações com os mesmos super-heróis de sempre, apenas remodelados para um design contemporâneo (de traço realista e fino, pouco estilizado, geralmente colorido em computação gráfica), com a diferença de sua ética e estética serem estrategicamente adaptados ao gosto contemporâneo. Um nojo, em geral. Quadrinhos de péssimo gosto, sem imaginação ou variabilidade de gênero.

Não deixa de ser irônico, portanto, que os quadrinhos da EC, tão vilipendiados nos anos 50 devido a uma vultosa caça às bruxas promovida tanto por setores moralistas da sociedade, quanto por intelectuais, quanto pelo próprio governo americano, sejam hoje lidos por aficcionados e colecionadores como trabalhos de qualidade estética, laboratório para grandes desenhistas (como Wally Wood, Bill Elder e John Severin) e como inventário de incríveis histórias, escabrosas, delirantes, anormais, detestáveis. O “mau gosto” e o tom altamente politicamente incorreto dos quadrinhos de horror e crime da EC, passados mais de 60 anos de suas publicações originais, se tornaram quadrinhos de culto, ousados, fora dos padrões de qualquer época para as HQs, verdadeiros tesouros elaborados por mentes delirantes que viam este salto politicamente incorreto como um passo além dos quadrinhos de aventuras, super-heróis e family strips que vinham sendo publicados nos Estados Unidos desde os anos 1930.

Al Feldstein foi um dos nomes principais desta geração e formava, juntamente com o editor-chefe Bill Gaines e o multi-talentoso roteirista e desenhista Harvey Kurtzman, a tríade que tornou a EC uma editora lendária. Caçada pela censura durante os anos de chumbo do macartismo, a EC não durou muito tempo, mas os três títulos de horror da editora, Tales from the Crypt (anteriormente Crypt of Terror), The Vault of Horror e The Haunt of Fear marcaram época ao apostar em temas-tabu como canibalismo, esquartejamento, putrefação, além de todo tipo de horror psicológico. Feldstein acreditava que era hora de a EC deixar de copiar histórias de crime que faziam sucesso em outras editoras (títulos como Crime does not Pay) e criar um gênero autêntico que os fizesse ser, por sua vez, copiados pelas outras editoras. Daí o insight de debater com Gaines a criação de revistas de horror escatológico, quase explícito, beirando o exploitation e o gore, tão populares hoje em dia, inspirado em aterradoras novelas de horror para o rádio dos anos 30.

A despeito da contribuição de Bill Gaines na hora de elaborar os argumentos, ou do resto do espetacular time da EC nos títulos de ficção-científica, guerra e crime, é o trabalho de Feldstein em Tales from the Crypt e nos outros títulos de horror que vai catapultar a EC a tornar-se o maior sucesso comercial dos quadrinhos americanos dos anos 50. Suas histórias possuíam certo senso de ironia e humor escarninho, bastante perversos, traduzidos especialmente no final com um twist grotesco de horror que nos leva, por exemplo, a imaginar situações que podem ser resumidas nas seguintes storylines: “um sujeito apaixonado por sua falecida amada que se tranca por acidente em seu mausoléu e é obrigado a se alimentar dela para sobreviver”; “um caçador e colecionar de troféus de caça que se vê caçado por um homem insano que transforma sua própria cabeça em um troféu humano”; “um homem que conduz uma carroça escondendo por dentro dela, atrás de seu corpo, um gêmeo siamês morto e apodrecido”, dentre centenas de atrocidades, enterramentos de pessoas vivas, mortes hediondas, monstros e criaturas pútridas que retornam para saciar quaisquer sedes de vingança que possuam. Para melhor pensar o estilo de Feldstein e seus quadrinhos, selecionei, para fazer um pequeno comentário, três histórias que compartilham, de alguma forma, um tema comum: a incapacidade de morrer ou os efeitos da postergação da morte.

Três níveis de postergação da morte

Na primeira delas, que vem a ser a melhor dentre as três, Feldstein cria um exótico efeito de suspense médico, deixando o leitor à deriva por quase todas as 7 tradicionais páginas das histórias da EC. The living death foi publicada em Tales from the crypt número 24, em 1951, e foi ilustrada com o traço tortuoso e deformativo de Graham Ingels, deixando os personagens da história com aspecto agressivo e grosseiro, o que não era novidade para os padrões da EC. Ao longo de uma narrativa sisuda, pontuada por muitos letreiros (este aspecto literário também era comum nos textos de Feldstein, que era mais uma mente criadora de histórias escabrosas do que propriamente um narrador habilidoso), somos apresentados a um conflito digno do final do século XIX: dois médicos, amigos de faculdade, anteveem futuros diferentes para a medicina, ao mesmo tempo em que amam a mesma mulher, Laurie. Enquanto Lester Jerome acredita que a maioria das doenças ocorre através de processos da mente (flertando com a pré-psicanálise de Charcot e Breuer, mesmo que mais de 50 anos depois que estas questões tomaram outros rumos na neurologia e na psicologia), Arnold Manning torna-se um halopata mais tradicionalista, sucesso em sua área. Jerome acaba se casando com Laurie, mas seus métodos (que incluem a hipnose) o levam ao obscurantismo, enquanto Manning alcança a glória como médico de renome. A ironia do destino leva a esposa de Jerome a desenvolver um câncer com pouquíssima probabilidade de cura. Tratada no hospital de Manning, a junta médica decide que o tratamento do médico famoso seria melhor do que os métodos pouco testados do marido dela. Laurie é tratada por Manning e morre, para o desespero de Jerome, que vocifera com olhar de desespero e vingança: “eu poderia ter salvado ela!”

A história poderia se encerrar neste caso por si só, já que estamos lendo um texto com um drama humano bastante razoável, com interessante insight sobre visões da medicina, ilustrado por uma arte simples, mas suficientemente brutal, seca e aterradora. Porém, Feldstein nos leva a um novo plot twist quando o próprio Manning é acometido por um câncer quase incurável, o que o leva a abandonar seus próprios métodos e a procurar, anos depois, o velho colega e rival pouco ortodoxo para tentar salvar sua vida. Amargurado e rancoroso, Jerome acaba aceitando realizar o tratamento por hipnose, infligindo-lhe a sugestão de “jamais morrer”, “independente de quaisquer circunstâncias”, “até que ele diga a palavra ‘Laurie’”. O que se sucede é bizarro. Manning efetivamente morre, quando seu coração sofre uma parada cardíaca, mas seu cadáver continua a emitir sons e grunhidos, mexendo-se grosseiramente, em algum centro motor, indefinidamente. E, por indefinidamente, considere-se meses. Manning treme e grunhe gemidos de dor até que a junta médica decide chamar o médico que o havia tratado: Jerome. É neste momento que emerge o único aspecto mais gore da história, justamente no último quadro, quando, em meio a resmungos, Jerome pronuncia a palavra “Laurie” e quebra a hipnose depois de meses. Instantaneamente, o corpo de Manning passa a putrefazer-se até virar uma massa disforme.

Apesar do final grosseiro (bem ao sabor da EC) e com um quê meio “WTF?”, a história de Jerome e Manning não deixa de ser uma das mais excepcionais de Feldstein, não apenas por não trazer monstros e elementos sobrenaturais, mas também por envolver sentimentos complexos como a vingança e a redenção, o amor e a competitividade profissional, além de um debate estranho a respeito do real alcance da hipnose, de um verdadeiro conceito de morte, alma, e do decaimento do corpo humano. Neste caso, o prolongamento da vida se dá por meio da sugestão sobre a mente, o que sugere uma separação em relação ao corpo, que insiste em morrer.

É um caso semelhante do que ocorre em Judy, you’re not yourself today, que Feldstein escreveu para Tales from the crypt  N° 25, ilustrada por ninguém menos que um precoce Wally Wood. Nesta curiosa história, uma formosa e loira dona de casa chamada Judy abre sua porta para uma velha mendiga que acaba por se revelar uma espécie de bruxa após praticar temível feitiço: à procura de um corpo jovem com o qual possa trocar de almas, ela encontra na beleza de Judy a saída perfeita, e executa a bruxaria. Aterradora, essa história se foca no choque com que a moça percebe a troca de corpos, tendo se tornado agora uma figura decrépita, frágil e horrenda. O marido de Judy, Donald, consegue, através de plano mirabolante, reverter o processo e assassinar a velha bruxa. O plot twist, neste caso, se dá quando, meses depois, mesmo com a velha enterrada no porão, a alma da bruxa consegue novamente fazer o feitiço se reverter, e Judy, de repente, se vê incorporada novamente no que restou, putrefato, do corpo morto. Judy se reergue, agora um monstro em decomposição, resistente à morte. 

Neste caso, a vida é prolongada por algum tipo de recurso sobrenatural, não tão sofisticado quanto a sugestão que rompe o equilíbrio entre morte e vida da história anterior, mas amparado por uma espécie de vontade recorrente e interminável de continuar vivendo, representado na alma demoníaca da bruxa. O que é mais exótico e perturbador é imaginar que, de alguma forma, e por algum mecanismo que desafia todo tipo de resolução que inclua o assassinato, o tempo, o enterro e a decomposição, os demônios sempre encontram alguma maneira de retornar e possuir os vivos.

Nossa última fábula de morte e decomposição foi retirada do imaginário do grande autor de ficção-científica Ray Bradbury, que transitava entre o pulp e a especulação filosófica, e cujas histórias foram em grande parte adaptadas por Feldstein (um grande fã do autor, que também reconhecia a qualidade da EC e firmou parceria) para os quadrinhos. The Black ferris foi publicada em Haunt of Fear N° 18, em 1953, e também apareceu por aqui na saudosa edição número 1 de Cripta do Terror, da editora Record, que saiu em 1991. Aqui, uma dupla de garotos vai a um parque de diversões velho durante uma noite sombria e presencia um acontecimento extraordinário: um homem adulto sobe na roda-gigante e, após algumas voltas controladas por um operador corcunda e cego, retorna... como um criança! O princípio todo da história é fabuloso e imaginativo, e parte da ideia de que esta roda gigante, com algum tipo de propriedade mágica sobre o tempo, acelera ou reduz (dependendo do sentido para o qual a roda está girando) o envelhecimento de quem está dentro dela. A trama se desdobra sobre um golpe praticado por este homem misterioso, que ora aparece como menino, ora aparece como adulto. O clímax ocorre justamente no final, quando as crianças procuram sabotar o plano maléfico deste homem-menino e abatem o operador cego, enquanto a roda gira para o futuro. O resultado, com a roda girando sem parar e o homem gritando freneticamente “parem a roda!”, não poderia ser menos assombroso: quando a polícia efetivamente consegue parar a roda, jaz apenas um esqueleto do homem, envelhecido “demais” pelo mecanismo de tal exótica máquina do tempo.

Se no primeiro caso temos um rompimento das relações normais entre mente e corpo através do procedimento meio mecânico e meio espiritual que é a hipnose, provocando o prolongamento de uma vida através de morte, e no segundo temos a insistência de um ser de pura vontade inefável de continuar existindo e se perpetuando (um espírito demoníaco), neste terceiro caso temos uma guinada completamente mecânica, quando o decaimento ou não do corpo e o prolongamento da vida é realizado por algo inteiramente externo: uma máquina, e, mais interessante ainda, uma máquina do tempo. Aqui, Feldstein encerra essa forçosa “trilogia” ao colocar cada um dos potenciais de ressurgimento ou apodrecimento do corpo e da alma em um limiar que inclui o mundo mecânico, da matéria, ou o mundo espiritual, da mente. Não que estas histórias, ingênuas e fabulosas apenas, em suas origens, se proponham a que sejam lidas em tal lente “metafísica”, mas não deixa de soar interessante imaginarmos que tais arquétipos como o da hipnose, dos demônios ou das máquinas do tempo possam ressoar uma significação comum, enredada: a do horror. Horror do prolongamento da vida. Horror do medo da morte.  

A morte, sempre

por Ciro I. Marcondes

Elijah faz parte da polícia filosófica e não pode morrer. Não que ele seja um imortal invulnerável, ou que não possa envelhecer. Elijah simplesmente vive em um mundo onde os seres humanos podem construir clones de si mesmos (“ecos”) que guardam em si todas as memórias precedentes, como a cópia de um arquivo de computador. Se um eco morre, os outros, como backups, carregarão as memórias e cópia idêntica do corpo físico daquele que faleceu, trazendo extensão e continuidade eternas às pessoas, que podem morrer apenas se decidirem matar todos os seus ecos.

É dentro desta lógica de imortalidade calculada em base de dados que se passa a incrível história de Os últimos dias de um imortal (Les derniers jours d’un immortel, Futuropolis, 2010), produzida  por dois talentos da BD francesa atual: o desenhista Gwen de Bonneval e o roteirista Fabien Vehlmann, que realizam trabalhos juntos desde os anos 90, quando se conheceram na cidade de Nantes. Este trabalho, talvez o mais ambicioso da dupla, esteve na seleção oficial de Angoulême em 2011, e é uma das obras mais criativas que vi em ficção científica recentemente. Singela, clean, introspectiva, cheia de pequenos apontamentos para as causas humanas, Os últimos dias de um imortal é uma graphic novel para ser lida e relida em suas várias possibilidades e penetrabilidades, como se cada enfoque (filosófico, antropológico, jurídico) dos temas abordados pela HQ fosse uma lente diferente que demandasse atenção exclusiva do leitor.

Elijah vive num mundo utópico e obedece a uma espécie de federação galáctica que controla as diversas espécies de alienígenas que precisam conviver a partir de suas brutais diferenças: fisiológicas, culturais, orgânicas, existenciais. Em um mundo ordenado e funcional que é operado por tecnologias que lembram magia, e em que os seres humanos podem desfrutar de uma imensa variedade de comportamentos culturais (como por exemplo se metamorfosearem em outros corpos para prática de sexo esportivo!), a função da polícia não deve deixar de ser filosófica. Para resolver crimes ancestrais, querelas arcaicas e impasses de profunda dimensão, um policial como Elijah deve ser um homem sereno, dotado de habilidades diplomáticas e conhecimentos de filosofia e antropologia. Em Os últimos dias de um imortal, o crime é um conceito que tange o pensamento filosófico, e não jurídico. De alguma forma, associando a motivação da criminalidade à proposição ética, e não estatística, esta HQ se aproxima de uma obra como Crime e castigo. Numa sociedade utopial, é legítimo voltar às ambições e motivações mais arraigadas para que o crime seja entendido como dedobramento de seus primeiros princípios, e sirva como complemento desta mesma sociedade.

Os últimos dias de um imortal vai desenvolvendo estes temas de maneira morosa, no traço limpo e quase juvenil, num preto-e-branco azulado, de Bonneval. A narrativa privilegia espaços abertos, modernistas, grandes quadros silenciosos, e diálogos lacônicos, ensimesmados. Em sua visão futurista soft, vamos passeando por obras de arte voadoras, espécies com um só espécime, seres que se comunicam pelo paladar, além de uma gama incrível de criaturas exóticas, como se Star Wars resolvesse dar verdadeira dimensão cultural ao seu variado número de monstros. Este aspecto, antropológico (ou antropobiológico, já que estamos falando de culturas não-humanas), soma-se ao debate diplomático e a uma ontologia da morte para cultivar verdadeiro leque de profundidades interessantes que os desdobramentos da trama são capazes de provocar.

Vale explicar: o cenário desta HQ, com seu estoicismo estético, já seria por si só uma forma provocativa e ampla de se registrar a arte dos quadrinhos, mas o roteiro de Vehlmann acaba se concentrando em aspectos ainda mais envolventes. Em primeiro lugar, Elijah vê seu melhor amigo, com que cultiva uma relação de profunda simbiose, subitamente optar pela morte, eliminando seus ecos e lentamente sumindo da memória daqueles que o conheciam. Aqui, uma instigação bastante original sobre a memória se instaura: Elijah sofre não apenas por perder o amigo, num mundo onde a mortalidade se torna cada vez mais rara, mas também por perder a memória sobre esse amigo, revelando a contradição principal dos afetos humanos: sofremos com a memória porque optamos por mantê-la, e a mantemos porque precisamos dela como alicerce de nossa própria mortalidade. Em um mundo de imortais, memórias são inúteis, porque desgastantes, e Elijah sofre com os desdobramentos desta contradição.

Sci-fi em aporia

A morte, aqui, portanto, seja a morte física ou a morte da memória, acaba encontrando-se em profundo estado de aporia, ou seja, um estado do impossível ou do impraticável (segundo Aristóteles), a divisa de onde não se pode ver a fronteira, o locus em que se instala a não-passagem, o espaço do não-ser. A aporia, portanto, é onde repousa o problema, o eterno intermediário sobre o qual não há solução, sobre o qual se reproduzem as intermitências da vida, um espaço a ser invadido, mas nunca compreendido, nunca contornado, nunca solucionado. Em conferência proferida em 1992, Jacques Derrida, em um belo texto, coloca a morte como a principal aporia, aquilo sobre o qual não podemos jamais falar. “Minha morte, ela é possível ?”, interroga-se o filósofo, como se, como evento fenomênico, fosse impossível falar-se da própria morte como se fala da morte do outro, já que a morte do outro pode ser observada, mas a de si próprio, não.

Neste caso, vale lembrar a belíssima passagem de Os últimos dias de um imortal em que Elijah recupera as memórias de um eco seu que morre devorado pelos temíveis seres Aleph: memórias traumáticas, de terrível dor e sofrimento, que levarão o protagonista a ressignificar a morte e a tomar drásticas decisões na continuidade da história. Todo este debate a respeito do desaparecimento da mortalidade leva à ideia de que este também seria o desaparecimento da aporia principal de todo o pensamento, desfazendo a aporia da morte mas criando outra, a aporia da imortalidade. Desta maneira, é neste jogo improvável entre morte e imortalidade que repousa o principal delineamento filosófico de Os últimos dias de um imortal. O que não é, afinal, a morte?

Esta questão encontra ressonância também no pensamento tardio de Jean Baudrillard (“A ilusão vital”), para quem nossa obsessão com o prolongamento da vida retoma um desejo de nossos ancestrais unicelulares, cuja carga genética era inteiramente reproduzida na divisão binária, tornando eles virtualmente imortais, exatamente da mesma forma que os “ecos” da HQ. Esta busca por uma imortalidade binária e estéril (Baudrillard chama o surgimento da divisão sexuada de “maior revolução da história”) parece ser justamente um dos últimos questionamentos da HQ. O impasse final de toda esta problemática parece ser, justamente, a resposta (impossível) da questão: desejamos/precisamos da morte?

Todo este debate, somado à crise antropológica/diplomática entre os seres Ganédons e Aleph (chegando a resvalar no terrorismo) que recai sobre a figura de Elijah, faz de Os últimos dias de um imortal uma ficção-científica toda especial, toda artisticamente entalhada, e humanisticamente perpassada. Diferentemente da BD clássica (Godard, Ribera, Forest, Druillet), que privilegia a space-opera e aventuras de fantasia, aqui temas uma renovação radical, adequada aos tempos atuais e necessária dos quadrinhos de ficção científica, voltada para um dos princípios do gênero, ainda tão translúcido: a ficção-científica deve colocar a humanidade em situações éticas impossíveis no mundo atual, mas verossímeis em um futuro presumido, e capazes de trazer respostas para perguntas de nossa época.

Não seria isso o mesmo que colocar em aporia?

Sem Palavras

 por Pedro Brandt

Conheci o trabalho do Gustavo Duarte, muito provavelmente, antes de colocar as mãos em qualquer HQ desenhada por ele. Acho que devo ter visto alguma de suas ilustrações por aí. A certeza é que o desenho dele me marcou, ficou registrado nos recônditos da mente – impressão que só foi reforçada quando li sua participação no primeiro MSP 50, em 2009. E, a partir desse momento, Gustavo entrou na minha lista de autores brasileiros a acompanhar. Pra minha sorte, desde aquele ano, ele tem lançado quadrinhos com certa regularidade. Taxi e Có! eu comprei dele, pessoalmente, na RioComicon (2010). Ambas guardam belíssimos autógrafos – e a lembrança de um breve bate-papo com Gustavo, cara gente boa. Birds comprei depois, numa loja de quadrinhos.

Essas três obras deixam bem claro que além de um desenho marcante, facilmente reconhecível como sendo do autor, Gustavo Duarte encontrou um caminho próprio dentro nas histórias em quadrinhos. Não que ele tenha reinventado a roda, ou faço algo inédito e exclusivo, mas achou uma maneira de contar histórias com características e recursos que reforçam a identidade conceitual e visual do artista.


A primeira coisa que você precisa saber sobre o trabalho de Gustavo Duarte é que ele não usa texto em seus quadrinhos. Quer dizer, claro que existe ali um texto, um roteiro. Mas você não vai ver nenhuma palavra saindo da boca de um personagem ou uma onomatopeia sugerindo um ruído. As histórias são mudas não por que os personagens não têm o que dizer. Pelo contrário. Eles conversam, gritam, ouvem música... o som está ao redor. E Gustavo comunica tudo isso com imagens.

A cultura pop permeia as criações do desenhista paulistano (da safra de 1977). Monstros, ETs, seres antropomórficos, rock, jazz, surrealismo, sonho e realidade, a vida e a morte... tudo se encontra e se confunde nas páginas das histórias de Gustavo Duarte.

Taxi, Có! e Birds, além de desenhos incríveis, têm também um acabamento editorial bastante caprichado, desde a gramatura do papel até a impressão, passando pela diagramação, paleta de cores e design. Impressionante para uma produção independente. Para mim, ficou óbvio que com um currículo desses, logo ele subiria para as “majorleagues” – ou seja, seria convidado para lançar um quadrinho por uma grande editora. O lançamento de Monstros, ano passado, confirmou esse palpite. O título saiu com a chancela de uma das mais prestigiadas editoras de livros brasileira, a Cia. das Letras, pelo selo Quadrinhos na Cia. (que tem um catálogo excelente – apesar de já ter lançado umas bobagens que eu não acreditei).

Monstros pode ser considerado o melhor trabalho em quadrinhos de Gustavo Duarte até agora. Ao mesmo tempo, não consigo classificá-lo como tal. Não por falta de qualidade, mas porque acredito que Taxi, Có!Birds e Monstros estão no mesmo nível (se fossem desenhos animados, não duvidaria de seu sucesso). Em todas elas, o desenhista mostra uma grande aptidão com aquilo que geralmente falta em muitos aspirantes e mesmo em alguns profissionais dos quadrinhos no Brasil: a habilidade narrativa, o talento para contar uma história com imagens, pegar o leitor pelo olhar, prendê-lo da primeira à última página. E fazer isso de maneira lúdica, leve (que poderia agradar leitores dos oito aos oitenta), bem-humorada e divertida.

Não é questão de saber desenhar bem. É como usar os recursos gráficos para “enganar” olhos e mentes e fazer com que no passar de um quadro pro outro, de uma página para a outra, o leitor tenha a sensação de continuidade, de movimento de espaço e tempo. Parece fácil, mas dominar a narrativa é um dos grandes desafios de quem faz história em quadrinhos – e fazer isso com uma identidade própria é para poucos mesmo.

Acho que não vale a pena comentar muito da sinopse de Monstros. Por ser uma HQ sem falas, as 80 páginas são consumidas pelos olhos rápida e vorazmente. Qualquer spoiler pode comprometer a satisfação da leitura. Então digo apenas que se você já viu algum seriado do estilo super sentai, esses de japoneses com roupas colantes coloridas, como Ultraman, Spectreman, Change-Man ou Power Ragers, você pode se identificar com a HQ. Mas antes que alguém pergunte: não é um quadrinho de super-herói!

Ano passado, na época em que Monstros chegou às livrarias, mandei por e-mail algumas perguntas pro Gustavo. Em viagem de trabalho, ele comentou que estava com pouco acesso à internet, mesmo assim, dias depois, chegaram as respostas – que, por motivos diversos, ficaram empoeirando no meu e-mail até a publicação deste texto. Em determinado momento, Gustavo comenta que pretende continuar fazendo HQs sem fala. Acho que esse formato bem-sucedido pode e merece ser explorado mais algumas vezes. No entanto, vislumbro Gustavo num projeto mais ousado (ousadia parece ser uma palavra desconhecida nos quadrinhos brasileiros recentes). E depois da leitura do Pinóquio de Winshluss, meu padrão de qualidade para quadrinhos desse tipo subiu a níveis estratosféricos.

E com quatro quadrinhos “mudos” embaixo do braço, acho que seria o momento do autor fazer seus personagens conversarem também com o auxílio dos balões de fala. A repetição, sabemos, causa desinteresse. Seja o que for, desde já, aguardo ansioso.

Entrevista Gustavo Duarte:

Como você desenvolveu a sua técnica narrativa? Sua arte tem muito de imagem em movimento, ou seja, cinema e desenhos animados. Já estudou/trabalhou na área? O que diria que aprendeu com essas linguagens?
Acho que venho desenvolvendo ainda. Quando moleque, li quadrinhos ao mesmo tempo que assistia filmes e desenhos. Isso influenciou e influencia até hoje o meu trabalho e, consequentemente, a narrativa. Nunca trabalhei com animação nem com cinema, mas acredito que são linguagens muito próximas aos quadrinhos, afinal, o objetivo é o mesmo: contar uma história se utilizando de imagens.

Os quadrinhos sem fala já viraram uma marca do seu trabalho. Pensa em seguir outros caminhos dentro da sua produção autoral? Você já fez quadrinhos com fala? O que achou do resultado?
Tenho gostado de trabalhar com histórias sem fala, mas também penso em fazer uma ou outra com fala. Já fiz algumas histórias com texto, mas nada muito grande. Gostei do resultado, mas não dá muito para comparar com as atuais já que foram histórias de poucas páginas.

Num trabalho em parceria, quem gostaria que escrevesse os textos?

Você já tem uma previsão de quais serão seus próximos trabalhos?
Agora em novembro (de 2012) começo o meu próximo livro, que será uma das graphic novels do Mauricio de Sousa. Farei uma história do Chico Bento e do Zé Lelé. E, como falamos acima, dessa vez usarei um pouco de fala. Afinal, não posso deixar de usar as palavras erradas que Chico e Zé falam.Sairá no ano que vem.

Seu traço tem muita personalidade. Quem considera suas influências? Você é autodidata?
Sou formado em Design Gráfico e desenho desde sempre. As influências são muitas. Poderíamos ficar horas falando sobre elas. Mas para citar algumas: Laerte, Ziraldo, Aragonés, Al Hirschfeld, Charles Schulz, Bill Watterson, Henfil, Will Eisner, Jim Henson...

Algumas inspirações de Monstros são mais explícitas, outras, imagino, nem tanto. Quais você diria que foram as principais referências para o livro?
Além das séries de monstros japoneses, que são as referências iniciais para a história, acho que Indiana Jones e outros filmes de aventura me influenciaram enquanto escrevia o roteiro.

É possível encontrar algumas conexões entre Monstros e as suas HQs anteriores: catástrofes, criaturas antropomórficas, bares, a vizinhança como cenário, crianças, música, automóveis antigos, o clima de sonho... diria que tudo isso aparece propositadamente, como que para fazer deste o seu universo?
Não sei se é proposital. Faço as minhas histórias com o que gostaria de ver nas que leio. Acho que é isso.

Você tem vontade de produzir uma série regular, com personagens fixos? E uma série regular, mas com conteúdos mais livre, teria vontade?
Sim, seriam experiências bacanas.

Como rolou o convite para lançar a obra pela Quadrinhos na Cia? Monstros foi feita sob encomenda para a editora? Como é o relacionamento entre as partes? O que você diria que muda (distribuição, maior tiragem, etc.) com a parceria? Já tem algum outro álbum engatilhado com a editora?
O primeiro contato veio na época da Có!,por meio do André Conti (editor). Viemos falando desde então. Ano passado (2011), apresentei a idéia de uma história de monstros japoneses invadindo Santos. O André gostou da ideia, então esse ano escrevi e desenhei o roteiro. O relacionamento tem sido ótimo desde então. Muda muita coisa. Principalmente a distribuição e a estrutura da Cia. Consegui produzir um álbum com toda a qualidade gráfica graças a isso.
E, pela primeira vez, conseguirei ter o meu livro no maior número de cidades possível.Quanto a um próximo álbum, já tenho algumas ideias para 2013. Conversarei sobre elas com o André nos próximos meses.

Você faz parte de uma geração de autores brasileiros (Bá, Moon, Grampá, etc.) que vem ganhando cada vez mais destaque. Como você enxerga a situação dos quadrinhos no Brasil para autores brasileiros?

O mercado está começando a existir no país. Isso é muito bom para nós que fazemos quadrinhos, mas ainda é muito pequeno, tanto é que os três autores que você citou vivem do mercado norte-americano. Porém, acredito que aos poucos os quadrinhos estão ganhando espaço e espero que ganhem cada vez mais.

Rock vs Comics!!


por Pedro Brandt

Se tivesse que escolher salvar de um incêndio uma revista em quadrinhos ou um disco, Evandro Vieira não teria dúvida: “Um quadrinho, é claro! Música é mais fácil conseguir de novo. Tenho um exemplar de Minha vida, do Robert Crumb, autografada pelo autor. Sei bem onde está guardado para pegar e fugir com ele!”. Rock e quadrinhos têm sido o pão com manteiga deste brasiliense desde a infância. Hoje, aos 42 anos, ele reúne uma considerável coleção de gibis, CDs e artigos relacionados, como bonecos e estatuetas de músicos, heróis e (principalmente) vilões. O mais recente item do acervo é de autoria do próprio Evandro e dialoga diretamente com essas duas paixões. O título já escancara: Rock vs.Comics.

Há 12 anos à frente da banda de hardcore Quebraqueixo, Evandro já foi vocalista dos grupos Macakongs 2099 e Royal Street Flesh. Alguns de seus amigos de adolescência se tornariam roqueiros famosos nas bandas Raimundos e Little Quail, duas das mais populares de Brasília durante os anos 1990. Evandro já colocou a voz em seis CDs e Rock vs.Comics é a quarta publicação com seu nome – ou o pseudônimo Evandro Esfolando – na capa.


A estreia foi o livro Esfolando ouvidos (2005), no qual conta memórias, causos e bastidores do rock em Brasília, especialmente das cenas punk e hardcore, desde meados da década de 1980 até o começo dos anos 2000. Depois, veio a coletânea de contos Grosseria refinada (2008). Uma das histórias ali presentes, Trabalho do Galinha Preta, foi transformada no longa-metragem Um assalto de fé (2011). Quebraqueixo – A banda desenhada saiu há quase três anos e batiza tanto o segundo CD da banda de Evandro quanto a revista em quadrinhos que o acompanha – nas páginas,as letras do quarteto foram transformadas em HQs pelas mãos dos melhores quadrinistas de Brasília.

Rock vs.Comics não trata de uma disputa de um contra o outro, pelo contrário. Na publicação, Evandro apresenta resenhas ilustradas de shows de rock e festivais de história em quadrinhos dos quais participou entre 2010 e 2012. O estalo para a criação de Rock vs.Comics, no entanto, surgiu de um embate. Na noite de 30 de março de 2011, ele teve de escolher entre assistir a um show do Iron Maiden ou a uma palestra do cartunista argentino Liniers. Como já tinha visto a Donzela de Ferro ao vivo (na primeira vez que a banda inglesa passou por Brasília), optou pelos quadrinhos.

Evandro conta que outra inspiração para Rock vs. Comics veio da leitura de O pequeno livro do rock, de Hervé Bourhis, no qual o francês apresenta com ilustrações os principais personagens, discos e episódios do gênero musical. “Achei a ideia incrível e pensei em fazer algo parecido com as histórias que eu conto no Esfolando ouvidos. Comecei a fazer uns ensaios, até para alimentar o meu blog (esfolando.wordpress.com), e vi que a coisa funcionava”.

Ao longo das 34 páginas da revista, o autor apresenta 25 resenhas ilustradas (em preto, branco e cinza) que vão desde shows de alguns de seus ídolos, como JelloBiafra (ex-vocalista dos DeadKennedys) e a banda SuicidalTendencies até de artistas que passam longe de seu gosto musical, como Bob Dylan e Ringo Starr. “Posso nem gostar muito da banda, o importante é ver um show maneiro”, pondera.

Disney, Mad, Moebius

A formação de Evandro enquanto leitor de quadrinhos começou na infância com os personagens de Mauricio de Sousa e Walt Disney. Posteriormente, a satírica revista Mad exerceu grande influência sobre ele. “O humor é uma ótima porta de entrada para o universo dos quadrinhos. E a partir dele você pode escolher qual caminho trilhar. Eu nunca gostei muito de super-heróis, sempre curti mais quadrinhos europeus, tipo as coisas do Moebius, e autores mais underground”, conta.

Autodidata, Evandro tem um desenho simples e minimalista (não confundir com tosco e sem estilo) e suas histórias são rápidas e direto ao ponto como uma música de hardcore. “Tento caracterizar os personagens com o mínimo de traços possíveis”, comenta. Até por isso, os detalhes fazem toda a diferença em suas resenhas ilustradas. “Eu sempre me desenho usando camiseta de alguma banda. A escolha da banda, geralmente, tem alguma coisa a ver com a história”. Cada resenha tem uma diagramação diferente e é possível perceber com o passar das páginas uma busca pela experimentação de novos formatos de contar uma história – prática que Evandro pretende expandir na próxima temporada de Rock vs. Comics. “Como no Brasil ninguém nunca fez um quadrinho com essa proposta, eu quero sentir a resposta do público – posso ser considerado um idiota ou um pioneiro. Mas fazer esses quadrinhos é uma paixão e, independente de qualquer coisa, pretendo continuar produzindo, nem que seja só para colocar no meu blog”, sentencia.

Publicado com o auxílio do FAC (Fundo de Apoio à Cultura), Rock vs. Comics será lançado  no Domingo, 24/03, no Espaço Laje (708 Sul Bloco A, casa 47 - Brasília). A entrada é gratuita e a revista estará à venda no local por R$ 15.

Cinco quadrinhos com rock:

Lôcas – Maggie, a mecânica, de Jaime Hernandez
Derrotista, de Joe Sacco
Red Rocket 7, de Mike Allred
Xampu – Lovely losers, de Roger Cruz

Top 5 Evandro Esfolando:

Rock: DeadKennedys, Raimundos, Ramones, Ratos de Porão e SuicidalTendencies.
Comics: Alan Moore, Angeli, Robert Crumb, Moebius e Liniers.

Raio Laser's Comics' Quicky #02

por Ciro I. Marcondes e Pedro Brandt

Conforme avisado na primeira edição, esta coletânea não tem a intenção de ter uma periodização regular. Assim, não se surpreendam com o atraso para a chegada deste Volume 2. Nós queríamos e pretendemos ser mais frequentes na cobertura de quadrinhos nacionais, mas às vezes os compromissos pessoais, a preguiça ou outras prioridades quadrinísticas empurram esta publicação um pouco mais pra frente. Da mesma forma, não nos cobrem pela incoerência. Tem coisas que estavam aqui fazia tempo, mas ainda não havíamos lido, e coisas mais novas. Esta seção não é exclusiva para lançamentos, que fique claro, apesar de privilegiarmos coisas recentes. Por fim, às crianças: a crítica é uma visão pessoal, ainda que embasada em qualquer coisa. Caso não goste do que está escrito aqui, por favor tente ignorar. De nossa parte, tentamos ser o mais construtivos possível. Acabou chorare, ok? (CIM)

Caso desejem aparecer aqui, favor enviar seus quadrinhos a:

RAIO LASER
SQN 407 Bloco A, Apto 213.
Brasília-DF
CEP: 70855-010

Aparecida Blues – Biu e Stêvz (Beleléu, 2011, 112 p.): apesar de já ter sido lançado há algum tempo, Aparecida blues é uma HQ que vale um bom comentário, já que prima por alguns méritos de experimentação intermidial não muito comuns seja nas produções nacionais, seja nas estrangeiras. Mesmo aparentemente non-sense, esta HQ, de um jeito fragmentado e esquizofrênico, consegue reunir estilos diversos de representação, como num ensaio livre, todo baseado em aspectos da teoria musical (daí a alusão ao famoso, difícil e maluco “O som e o sentido”, de JoséMiguel Wisnik), buscando tornar a referência da “história” um eterno ponto de fuga, como se, atacando seu tema principal (a solidão) por todos os lados, a HQ criasse a impressão de “caixa de ressonância de tudo”. É essa a marca de simultaneidade buscada pelos diversos registros tratados em Aparecida Blues: HQ non-sequitur, tira de jornal, diário, carta de amor, texto de jornal, álbum de fotografias. Tudo isso encaixado numa premissa simples, singela e admirável: um músico frustrado apaixonado por uma moça surda (não à toa, a epígrafe de “todos estão surdos”, do Roberto, marca presença). Este aparente rebuscamento ganha frescor com a arte minimal, mas adorável, de Stêvz, e comprova o amadurecimento do texto de Biu, já comentado antes aqui em Raio Laser. (CIM)


Cabeça Dinossauro Vol. 1Stêvz (Independente, 2012, 28 p.): esta pequeno volume produzido por Stêvz, de apenas 50 exemplares, começa com este entusiasmado texto de abertura: “O aluguel das cavernas anda os olhos da cara”. E é com este despojo mezzo naïve, mezzo non-sense, que o desenhista vai criar sua própria tira de dinossauros: uma tira sobre um dinossauro urbano encalacrado nos entraves do cotidiano, como o ato de pegar um ônibus, comprar um bilhete de loteria ou alugar um apartamento. A iniciativa é muito despretensiosa, os desenhos são rabiscos, e as piadas na maioria das vezes são bem inócuas ou simplesmente muito discretas para chegarem a ser “engraçadas”. Não é o caso de implicar com a falta de inspiração do artista, afinal, ele sabe ser irônico, como comprova a melhor tira do pequeno volume: o dinossauro pergunta no guichê: “é aqui a fila pro sucesso”? No que respondem: “Profissional, amoroso, financeiro ou familiar”? “Só pode escolher um”? “Quem falou em escolher”? Num ta fácil pra ninguém. (CIM)

NeebEduardo Medeiros (Independente, 2011, 36 p.): Neeb daria um ótimo curta de animação assim rasteiro, com amplo espaço para grandes linhas de ação, explosões incríveis, cenários majestosos e personagens canastrões, embebidos em adrenalina. Tudo isso se constrói muito bem, com enérgico senso de aventura cyberpunk, nesta simples e rápida HQ de páginas fáceis, viradas com velocidade e volúpia, graças ao traço vigoroso e bem finalizado de Medeiros, que imprime justamente ritmo de cinema aos seus quadrinhos. Feita para fãs de Star Wars ou Guia do mochileiro das galáxias, Neeb, apesar da história curta, rasa e, de algum modo, bem picareta, vale pelo jeito vertiginoso com que os personagens saltam das naves, atravessam canyons e derrubam robôs, imprimindo esse caráter de imersão, como se num videogame, tão fundamental para a experiência da arte no mundo de hoje. (CIM)


Se a Vida Fosse Como a Internet - Pablo Carranza (Independente/Proac, 2012, 83 páginas): em Se a vida fosse como a internet, Pablo Carranza faz graça com essa ferramenta que pode ser tanto de grande utilidade quanto uma perda de tempo imbecilizante. Qualquer um acostumado a passar horas na frente do computador em redes sociais, tuitando, facebookando ou simplesmente buscando informações e trocando e-mails poderá se identificar com os cartuns, tirinhas, histórias curtas ou curtíssimas de Carranza. Aliás, um dos méritos dos quadrinhos do autor (morador de São Paulo, sergipano de nascimento) é perceber o potencial para o humor das peculiaridades e comportamentos que compõem esse universo. Nem tudo aqui são grandes achados (algumas piadas não se sustentam ou são muito batidas), mas entre traições virtuais, vício internético, nostalgia tecnológica, vírus de computador, tosquices que circulam pelas caixas de e-mail e temas correlatos, o cartunista atinge o alvo (a risada do leitor – seja ela uma cosquinha no cérebro ou uma boa gargalhada) na maioria das vezes. Destaque para a dantesca "Submundo dos arquivos excluídos", na qual o protagonista parte para a lixeira do computador em busca de uma foto nua da ex-namorada. Carranza dá vida às ideias com um desenho cartunesco (em preto e branco na maioria das 83 páginas), aparentemente simples, mas bastante vivaz, com algo, no traço, de Crumb, Laerte, Angeli e Ota. Sua narrativa tem um bom ritmo, com páginas formadas por variados enquadramentos e angulações. E por falar em Ota (que assina o texto de apresentação), Se a vida fosse como a internet tem muito do humor da revista que o cartunista/editor tomou conta por décadas aqui no Brasil, a Mad – publicação para a qual, aliás, Carranza colabora. Editores de cadernos e revistas de informática, o que vocês estão esperando para transformar Se a vida fosse como a internet em um espaço semanal (ou diário, por que não) em seus veículos? (PB)


Bananas!Chiquinha + Cynthia B. (Independente, 2012, 24 p.): eis a chance de se ler a respeito de taras e obsessões femininas desenhadas por duas das mais talentosas quadrinistas da geração atual. O resultado, bem... diverge. Se as duas garotas têm o mérito de expor um certo jeito feminino de ser sem qualquer tipo de hipocrisia, escrevendo com uma honestidade brutal e chutando baldes com um humor franco e consideravelmente grosseiro, o resultado em quadrinhos é apenas um pouco tolo (no caso da Chiquinha) e bem mais charmoso, no caso da Cynthia. No primeiro caso, acompanhamos uma personagem bem gore e grotesca embarcando num ritual de macumba para emagrecer. Chiquinha capricha nas estrias e na escatologia, produzindo um humor provocativo, mas infantiloide e mongol um pouco pr’além da conta. Tosco, com orgulho. Já Cynthia trabalha melhor alguns tipos de dosagens em sua história, com algumas referências maneiras (Truffaut, Allen, Lennon), um traço mais singelo e saudável (bem menos anárquico que o da Chiquinha) e uma narrativa mais indie que reflete sobre seu próprio desejo, flertando com a ninfomania, mas meio que estragando tudo no final com excesso de explicações retóricas. Entre mortos e feridos, um lançamento significativo. Girl power, baby. (CIM)


Achados e Perdidos – Eduardo Damasceno, Luís Felipe Garrocho e Bruno Ito (Pandemônio/Quadrinhos Rasos, 2011, 212 p.): Até que ponto quadrinhos feitos “para todas as idades” podem não resultar em satisfatórios para idade nenhuma? É essa pergunta que me veio à cabeça ao terminar de ler este Achados e perdidos, um lançamento significativo em quadrinhos no Brasil, já que foi um dos primeiros a sair via Catarse, numa base crowd funding (da qual eu mesmo participei, por gostar do trabalho dos autores no site original). Todo feito com arte digital, Achados e perdidos tem lindo acabamento, muito respeito com seu leitor (com ótima introdução e making of), um CD com trilha sonora e toda boa vontade de mundo. Porém, a história-alegoria de um menino que um dia aparece com um buraco negro na barriga acaba esbarrando em alguns problemas, talvez facilmente consertáveis no desenvolvimento da carreira futura dos autores.

Em primeiro lugar, a arte digital, se às vezes aparece com colorido vívido e aproveita bem o contraste em sequências mais sombrias, ela é em geral muito esquemática, pouco detalhada e até simplória. Mesmo que o design dos personagens seja bem-feito e criativo, a execução final (os personagens em ação) deixa a desejar. Já a história padece de um problema facilmente diagnosticável em alguns quadrinhos indie brasileiros: o excesso de “fofura”. E aí volto ao início do texto: a história é uma alegoria simpática a respeito de nossos próprios recalques, as páginas passam rápido (porque privilegiam o visual) e as “lições de vida”, com seus personagens “corretos”, se encaixam todas no final. Porém, acabei não compreendendo se existe um público-alvo para a HQ e confesso que, enquanto leitor adulto, me senti de certa forma ultrajado com o excesso de doçura da história, como se não fosse possível construir uma fábula construtiva com matizes mais robustas de sobriedade e adulthood. De qualquer forma, vale ficar de olho no trabalho de Garrocho e Damasceno, ainda promissor. (CIM)


Fade out – Suicídio sem dor - Beto Skubs, Rafael De Latorre e Marcelo Maiolo (Independente/Proac, 2012, 64 p.): este trabalho apresenta um time competente. Nenhum deles é gênio, e, sim, há no que se melhorar. Mas Fade out – Suicídio sem dor consegue juntar romance, aventura, suspense e comédia como numa boa HQ, lembrando as boas aventuras do Homem-Aranha das antigas. Nada muito original ou surpreendente, mas uma leitura divertida. O roteiro de Skubs, especialmente, parece querer provar sua versatilidade. Tudo leva a crer que a trama se passa nos EUA, o que se confirma nos nomes e diálogos dos personagens, no tipo de humor e nas situações. Suspeitando que sua mãe pode ser a futura vítima de um serial killer, o universitário Kurt parte para uma investigação por conta própria. Paralelamente a isso, ele concilia uma namorada chata, uma pretendente misteriosa e a sombra de um pai ausente. Ao longo das 64 páginas, roteirista e desenhista conseguem manter o ritmo da história, com as reviravoltas aparecendo na hora certa. Ok, tudo acontece um tanto rápido, mas a narrativa não se atropela. O que não se explica tão bem é a vontade de morrer do protagonista, já que ele levava uma vidinha bem comum e pacata, sem grandes dramas. Deixemos a verossimilhança um pouco de lado então. Afinal, Fade out – Suicídio sem dor é uma HQ mais desencanada, para não ser levada tão a sério (ou assim eu a encarei). A narrativa gráfica de Rafael De Latorre flui bem (seu traço me lembrou o dos irmãos Luna), com bons enquadramentos e angulações – mas a fisionomia dos personagens poderia ser melhor trabalhada, já que eles se parecem demais uns com os outros. Um maior rebuscamento de cenários e detalhes de cena com certeza também lhe faria bem. Talvez seja questão de tempo. Não curti muito a paleta de cores (digital) de Maiolo, para mim, muito artificiais, mas também não me incomodei muito com isso, pois é um trabalho muito bem executado. Ainda não virei fã desses três, mas depois de Fade out – Suicídio sem dor eles conseguiram a minha curiosidade sobre seus próximos projetos. (PB)




Golden Shower Nº 2 Cynthia B. e Fabio Lyra (Org., Independente, 2012, 136 p.): a capa da Golden Shower já dá a deixa: “quadrinhos bizarros para adultos sem noção”. Sendo assim, não há muito o que contestar. Trata-se de uma coletânea (como as antigas revistas estilo “mix”) que reúne alguns dos melhores quadrinistas nacionais da atualidade em torno de temas singelos: putaria pesada, escatologia, baixaria de todos os tipos. Não que estes temas já não façam parte da rotina do quadrinho nacional já há algum tempo (parece uma geração que cresceu vendo pornô hardcore na Internet), mas o fato é que aqui podemos ler nomes como Stêvz, Diego Gerlach, Bruno Maron, Koostella, Daniel Lafayette, Cynthia B., Daniel Og, Laerte, Allan Sieber, Eduardo Medeiros, Chiquinha, dentre muitos outros, todos envolvidos numa maneira de celebrar o politicamente incorreto, de falar sobre uma sexualidade abusiva e desproporcional, de dar vazão a quadrinhos agressivos e alucinados, de se autoafirmarem como uma geração comix brasileira, sem concessões a super-heróis moloides ou bichinhos moralistas, tradicionais no meio. Golden Shower, com seu absurdo de sem-noçãozice, é quase um manifesto; é a demarcação de uma posição, um latido que acena para uma opção não só estética, mas (pasmem) política para os quadrinhos nacionais.

A editoração deste número 2 é bastante primorosa, com direito a pin-ups, contos, “poemas”, sketches, etc. Mas, à parte todo este material extra (quase tudo dispensável – melhor desistir da literatura, nesse caso), são os quadrinhos que realmente contam. Por mais que algumas coisas abusem do mau gosto (Pat Aulisio, Guido Imbroisi) ou sejam simplesmente insípidas (Felipe Velloso, Thiago Tomé, Daniel Ferreira), a maioria da revista é composta por material de primeira, com humor frenético, febril, como se os quadrinistas compartilhassem com prazer e orgulho essa doença da putaria desguarnecida, sem defesas, natural como a própria vida. Singelo como um banho de mijo. Vale destacar o trabalho da própria Cynthia B., com seu riscado firme e expressivo, seja em roteiro próprio ou num pequeno achado: um roteiro de um Allan Sieber quebrado, quadrinista fodido, num mau humor à Pekar, de 1997. Outra história incrivelmente engraçada é a de Pablo Carranza, que traz grande sacada relacionando sexo, TV e quadrinhos. Também é interessante a contribuição de Gerlach, misturando estilos e materiais, grotesca até o talo. Vale também certamente conferir a história de Koostella, talvez a melhor da revista, sobre um cara que morre e pode ver sua mulher trepando com mil caras diferentes. Por fim, fica destaque especial para a participação de Eduardo Belga, com seu estilo expressionista com certo naturalismo, numa história brutal, sem palavras, de bizarro erotismo, sobre um ritual de bruxaria. Sinal de que, entre uma fartura de quadrinistas, a Golden pode até pecar pelo excesso, mas dá conta do recado. (CIM)

F.A.B.I.O., edições 001 a 005 – André Valente e Gabriel Góes (Independente, 2013, 8 p. cada): ao ler estes cinco primeiros volumes (zines) do projeto F.A.B.I.O. (Góes e Valente se propõem a fazer 100 destes e enviá-los todos ao Fabio Zimbres), me vieram três constatações: primeiro, é impossível não pensar este trabalho como um work in progress, em que a materialidade do projeto não seja necessariamente parte do seu significado. Cada zine é impresso em um papel diferente, com um conceito geral diferente, como se o corpo todo do projeto fosse mesmo desenvolver conceitos visuais totais mais do que simples histórias em quadrinhos. Além disso, o trabalho de confecção é todo zinesco e manual, sem interferência de softwares de edição de imagens, procurando restaurar alguma “aura” a estes pequenos zines colecionáveis. Em segundo lugar, o fato de o projeto ao mesmo tempo parecer um trabalho diário e operário e obedecer a algumas regras de artesanalidade me lembraram o conceito Dogma proposto por Lars von Trier nos anos 90 como exercício de cinema: filmes com atores amadores, iluminação natural e imagens digitais. Por fim, por mais que o conteúdo dos quadrinhos em si prime pelo non-sense (Góes chega a enfileirar gratuitamente umas dezenas de buc*tas numa edição particularmente engraçada e sacana), tornando-se prontamente criticáveis (especialmente para os que esperam do quadrinho nacional uma pegada mais narrativa), é a força das ideias coletivas, rascunhadas e experimentadas de F.A.B.I.O. que o tornam um tipo de experiência sobre o próprio processo de criação, com seus desvios e falhas, seus excessos, claudicâncias e problemas. Entramos na mente dos autores. Temos suas caixas-pretas abertas. Vale destaque para as “histórias reais de escritório” de Valente, trabalhando o timing dos quadrinhos; os sketches de personagens de Góes, fazendo o que sabe fazer melhor; além dos perfis com retrato e hábito escroto dos personagens de Valente, dando sequencia à tradição que conhecemos em Angeli ou Allan Sieber. (CIM)





Ensaio do Vazio - Inspirado no livro de Carlos Henrique Schroeder. Adaptação e arte: Diego Gerlach, Pedro Franz, Berliac, Manuel Depetris, Leya Mira Brander (Editora da Casa/7 Letras, 2012, 140 páginas): A proposta deste Ensaio do vazio é boa e seria interessante ver outras iniciativas buscando livros de novos escritores brasileiros para transformar em histórias em quadrinhos. O argumento algo bukowskiano do livro de Carlos Henrique Schroeder apresenta um protagonista bastante escroto, um tipo sem escrúpulos rodeado quase sempre de outras pessoas escrotas. Sexo, drogas, assassinato e um pouco de romance pontuam uma história que passeia entre o realismo e viagens oníricas – “isso realmente aconteceu ou foi um delírio?” é uma pergunta que pode pipocar várias vezes na cabeça do leitor, impressão reforçada pela arte um tanto expressionista de alguns dos participantes. Se a ideia desse projeto em princípio é boa, não posso dizer que gostei do resultado. Fica claro que a opção editorial foi por ilustradores cujos desenhos têm mais a ver com as artes plásticas do que com os quadrinhos. Essa combinação não é novidade e já rendeu trabalhos consagrados (como as parcerias de Neil Gaiman e Dave McKean, só para ficar em um exemplo notório), mas aqui não funciona porque ao invés do que está escrito andar de mãos dadas com o que está desenhado, o texto serve como muleta para as ilustrações. Aliás, Ensaio do vazio parece mais um livro ilustrado (em alguns casos, mal ilustrado) do que uma história em quadrinhos propriamente dita. Fica clara a pouca familiaridade dos desenhistas com a linguagem narrativa dos quadrinhos (talvez o passo mais difícil para dominar a produção de uma HQ). O talentoso Pedro Franz poderia ser apontado como uma exceção aqui, mas já o vi bem melhor em outros trabalhos. Ensaio do vazio é, no geral, pouco convidativo visualmente (os ilustradores carecem de personalidade e estilo) e se for para contarmos só com o texto, melhor optar pelo leitura do livro que inspirou o projeto. Se os participantes aceitam uma sugestão, a leitura de Delírios cotidianos, de Mathias Schultheiss sobre texto de Charles Bukowski, pode se inspiradora. (PB)


Cabra macho






Cosmosmurf e o inconsciente coletivo

por Ciro I. Marcondes

Uma coisa que diferencia essencialmente uma HQ como Schtroumpfs (Smurfs) de outra como Tintim é aquela velha oposição mythos x logos, que já vemos nos filósofos pré-socráticos, e que, em meio a um embate dentre duas das mais celebradas obras de nossa cultura pop, se torna um alegre festejar de dois olhares distintos que a humanidade pode lançar sobre seus próprios desígnios.

Explico-me: se a característica principal, fundadora, de Tintim é a sua racionalidade e sua argúcia, tornando-a uma HQ cerebral (conforme traduzimos do poder dedutivo e da verossimilhança das histórias de seu protagonista), em Schtroumpfs temos de tudo o contrário: conforme sempre nos lembramos nas piadinhas sobre estes personagens (“duendes azuis que vivem dentro de cogumelos. O que o autor disso anda fumando?”), os Schtroumpfs são basicamente calcados no poder imaginativo. Suas narrativas não possuem argúcia, dedutibilidade ou lógica. Temos de acreditar naquele universo inverossímil, mergulhar nele, confiar em sua capacidade de traduzir, alegoricamente, algo sobre nosso mundo.

O foguete de Tintim: racional projeto de propulsão

A síntese máxima desta oposição está na história do Cosmoschtroumpf em relação aos dois álbuns de Tintim em que ele prepara uma viagem, e depois viaja, à Lua. Se, no caso de Tintim, temos um roteiro cheio de conspirações, com detalhado e racional projeto de propulsão à Lua (sendo o primeiro álbum inteiro apenas um preâmbulo que prepara a organização científica da viagem), numa história cheia de jogos de interesses e planos complexos de sabotagem (foi escrita nos anos 50), no caso do Schtroumpfs, a aventura escrita e desenhada por Peyo possui tom completamente diferente. Em primeiro lugar, a temática do sonho já chama a atenção: Cosmoschtroumpf (seria como um Cosmosmurf) passa dias e noites pensando em como ver as estrelas, viajar pelo cosmos, conhecer outros mundos. Sua ambição (e obsessão) é tamanha que ele constrói um simpaticíssimo módulo lunar que funciona com propulsão à base de pedaladas, e reúne toda a vila dos Schtroumpfs para testemunhar seu feito. O problema é que, com alguma lógica, as pedaladas do Cosmoschtroumpf não são suficientes para fazer a genringonça levitar, deixando o pequeno astronauta (ou cosmonauta, conforme Peyo, que me parece que fosse comuna, preferiu chamar sua criação – à maneira russa) desolado.

A história, que já parecia mirabolante o suficiente, ganha um inacreditável plot twist quando o Grande Schtroumpf (“Papai Smurf”) resolve armar um plano – em tudo fantasioso – para agradar o pobre Cosmoschtroumpf. Dopado (como não deveria deixar de ser em uma aventura dos Schtroumpfs), ele é carregado, assim como todo o seu módulo lunar (desmontado), junto com toda a vila dos Schtroumpfs, para a superfície de um longínquo vulcão inativo. Lá, o módulo é reconstruído pelos outros (reclamões) Schtroumpfs, que, ao mesmo tempo, tomam uma poção (talvez um psilocybe cubensis), feita pelo Grande Schtroumpf, que os faz parecer alienígenas. Por alienígenas, é claro, entendam: eles ficam cabeludos, com uma cor caramelada, uma tanguinha de feno, e mullets! Em meio a uma paisagem exótica e “lunar”, o Cosmoschtroumpf acorda achando que atravessou o cosmos, travando contato com seus mesmos amigos, porém disfarçados como seres lunares.

Os Schlips: selvagens! E de mullets!

Não é preciso evidenciar muito o culto à farsa (ou seria melhor dizer: ficção) que esta história carrega. Já dentro de um universo completamente alucinado (a vila dos Schtroumpfs) temos a invenção de um outro mundo alucinado: o “planeta” dos Schlips, que é como os Schtroumpfs transformados se autodenominam. Os Schlips acabam se mostrando uma cultura um tanto tribal, um tanto primitiva, dando vazão à ideia fantasiosa de que, de alguma forma, se encontrássemos uma sociedade na Lua, ela seria semelhante aos nossos povos selvagens. Esta ideia, Peyo certamente a retirou do filme Viagem à Lua, do mago pioneiro do cinema Géorges Méliès, um dos filmes mais famosos de todos os tempos. Rodado em 1902 e inspirado em Júlio Verne e H.G. Wells, este brilhante filme de ficção científica (especialmente no que tange à comercialização do cinema, e ao mesmo tempo à evolução de sua narrativa) coloca o colonialismo do séc. 19 em pauta ao tratar os astronautas como uma mistura de astrólogos, astrônomos e exploradores britânicos, e os selenitas como mimetizações de tribos africanas.

Ao associar a ideia de progresso científico (viajar à Lua!) ao pensamento mágico (tipo de cultura mitológica), Méliès acaba completando um círculo incomum, desenvolvendo subliminarmente a noção de que, no fundo de qualquer progresso científico há a fantasia. No fundo de qualquer pensamento racional, de alguma forma, resta ainda o pensamento mítico. (veja o filme com trilha sonora do Air).

De alguma forma, portanto, o pensamento mágico de Peyo desconfia da nossa aterrisagem na Lua (realizada um ano antes da publicação da HQ), já que, da mesma maneira que o Cosmoschtroumpf é ludibriado pelos seus conterrâneos, nós poderíamos ter sido ludibriados pelo mesmo processo, só que com uma diferença: assistimos à aterrisagem na Lua pela televisão, que é o grande meio de comunicação do séc. 20. No mundo real, a fantasia proposta por Peyo (usando não apenas a imaginação, mas também sedativos e drogas) é substituída pela mídia, o conversor universal da fantasia por excelência. Que o homem tenha aterrisado na Lua ou não, isso não vem ao caso (apesar de evidentemente tê-lo feito). O que importa é lermos em Peyo a conversão de um pensamento mágico num pensamento midiático, relacionando inteligentemente as diferenças entre os mundos mitológicos dos povos antigos e os mundos “mitológicos” criados por um mundo midiático e atual, do qual as histórias em quadrinhos fazem parte.

Assim, sobra desta reflexão a noção de como Peyo representa um contingente dos quadrinhos franco-belgas (BD), chamado gros nez (nariz gordo), alinhado ao mundo da deformação, do grotesco e da alucinação (Schtroumpfs que o digam), enquanto Hergé e seu Tintim, fundador da chamada linha clara, se desloca para o universo do logos, das aventuras bem-engendradas e racionais, fincadas no chão, servas da verossimilhança. De um jeito ou de outro, seja na antiguidade ou seja no mundo pós-midiático de hoje, esta dupla de HQs se revelam arquétipos fortes, condensados, importantes para percebermos o local das histórias em quadrinhos no nosso inconsciente coletivo. 

HQ em um quadro: as maravilhas tecnológicas do mundo de Storm, por Don Lawrence e Saul Dunn

Storm, Carrots e Kiley fogem de Ghast dirigindo um vagão elétrico (Don Lawrence, Saul Dunn, 1978): Storm é uma HQ de ficção-científica estilo space opera hoje bastante esquecida no Brasil, mas que havia sido publicada pela Abril naquele fértil período do final dos anos 80 e começo dos 90, quando saíram tantas coisas interessantes por aqui. Hoje não é tão difícil encontrar essas edições nos sebos, e foi por aí que me aventurei, comprando a número 1 e buscando nesta HQ algo além de aventuras mirabolantes e chamuscadas por aura tão pulp, algo além de histórias de sabor fantástico, mas datadas e carregadas de pouca credibilidade (especialmente para fãs de hard sci-fi). Esta história, que conta o início das aventuras - da série "deep world", já que há uma outra série de Storm, em universos paralelos, que continua sendo publicada até hoje - foi publicada ainda em 1978 e conta, com especial destaque, com a arte de Don Lawrence, criador do personagem, de realismo hiper-detalhista, cores intoxicantes e texturas tridimensionais. Sendo Storm um astronauta do Séc. 21 que acaba viajando no tempo e parando em uma Terra pós-apocalíptica sucumbida a um mundo barbárico, os cenários de Lawrence são ricos em representar cidades antigas, indumentárias chinesas ou mongóis, além de rostos tesos, difíceis, com largo espectro de expressões, geralmente colocando-os em close-up, para ressaltar a vivacidade de seus personagens, que parecem saltar (e realmente eles estão o tempo todo pulando de um lado para o outro) para fora das páginas. E sendo Storm uma HQ britânica, não é difícil rastrear a influência de Lawrence em nomes como Bolland ou Gibbons, ou até mesmo em americanos como Alex Ross. Ao mesmo tempo, é visível em Lawrence a presença de artistas como Hal Foster, Alex Raymond ou Burne Hogarth. Apesar de ser composto por histórias aventurescas de fácil leitura, com pouco rigor de verossimilhaça (ainda na tradição Flash Gordon/Buck Rogers, ou seja, na mistura de fantasia, ficção científica e um tipo de ficção exploratória, típica do início do Séc. 20), Storm, a partir do visual exuberante, guarda algumas surpresas. Na medida em que acompanhamos a trajetória do personagem pela nova Terra barbárica na qual ele acabara de aportar, vamos também descobrindo, junto com ele, uma sociedade secreta, que foge do tirânico Ghast, e que ainda mantém segredos tecnológicos. Descobrimos que, no passado, os oceanos da Terra foram represados por um gigantesco muro (!!!), separando duas ordens sociais, e que uma delas domina a energia elétrica e opera uma tecnologia que se mistura a espécie de magia, dotando a aventura de um charme especial, space fantasy. Além das referências à história da própria humanidade (a muralha da China), Storm traz, na forma destas tecnologias, curiosas miscigenações culturais. Uma espécie de espelho-comunicador, por exemplo, se parece com um calendário maia, rodeado por signos do zodíaco. Uma geringonça que serve para abrir a porta de um elevador se parece com um fliperama, e por aí vamos nos imiscuindo a um mundo de rico detalhismo e criatividade visual, ao mesmo tempo elaborando exotismo primitivista e retrofuturismo. No quadro acima temos o melhor exemplo desta miscelânia de história, tecnologia e sci-fi pulp. Storm, o gigante Kiley e a ruiva Carrots (as belas mulheres de Lawrence nos remetem imediatamente a Conan), fugindo do perverso Ghast, entram numa rede de túneis subterrâneos que contêm trilhos para a passagem de uma fantástica invenção: um pequeno trem, que mais se parece um vagão de parque de diversões, elétrico! A invenção, que seria capaz de solucionar problemas de trânsito em vários países, funciona que é uma beleza, e tudo fica ainda mais charmoso quando vemos que é a ruiva quem pilota o dispositivo. Todo este incrementado visual e criativo layout de máquinas nos lembra um pouco alguns universos steam-punk. Porém, no caso aqui, um punk com eletricidade primitiva, de intensa imaginação sobre a tecnologia. A alegria de sociedades primitivas, porém, dura pouco, e nosso fantástico vagão sofre um choque brutal nas páginas seguintes ao ser confrontado com... morcegos-aranha! A anatomia do mundo animal nesta HQ, porém, é assunto para outro texto. (CIM)