O que podem os quadrinhos?

por Ciro I. Marcondes

Qual não foi minha surpresa quando, ao ler um artigo de Richard Abel, pesquisador do primeiro cinema, descobri que o filme “Regador regado” (Arroseur Arrosé, 1895), dos irmãos Lumière, havia sido “muito provavelmente” baseado em uma história em quadrinhos de Christophe, um famoso pioneiro da HQ francesa? Este filme, uma piada registrada em uma só tomada, é do ano da primeira exibição pública cinematográfica, e do ano da primeira publicação americana em quadrinhos, o Menino amarelo de Richard Outcault. Mais interessante: é considerado o primeiro filme de ficção, ou seja, a primeira vez que se apresentava ao público uma encenação cinematográfica, e, agora, provavelmente é também a primeira adaptação cinematográfica. A partir de uma história em quadrinhos.

Krazy Kat

O dado histórico é interessante porque afunila ainda mais as relações já tão próximas entre HQ e cinema, colocando ambos não apenas dentro de um patamar comum, que os gerou – o advento da modernidade, dos avanços científicos e da cultura de massas no fim do século 19 –, como também localiza os dois meios de expressão dentro de uma origem no mesmo gênero: a comédia. Esta ligação não seria à toa e não perderia a continuidade em mais de 30 anos de trajetória dos quadrinhos. Sabe-se, em primeiro lugar, que de Töpffer, a Ângelo Agostini, ao próprio Christophe e a uma infinidade de tabloides britânicos do séc. 19, as raízes dos quadrinhos se localizam no cartum, na charge, nas publicações de humor da primeira fase industrial da imprensa. E sabe-se que, desde o Menino amarelo até os anos 30, quando impactam os quadrinhos de aventura, são especialmente formas de humor – seja de um tipo anárquico (Sobrinhos do capitão), arquetípico (Krazy kat) ou até surrealista (Felix) – que predominam nas publicações de jornal.

Christophe

Félix

Estes quadrinhos se juntavam a outros modelos que alçavam voos substanciosos para fora do gênero, como a delirantemente óptica Upside downs, que mudava de sentido quando se virava a tira de ponta-cabeça (flertando com a arte moderna da época), ou a obra-prima Little Nemo, de Winsor McCay, verdadeiros poemas surrealistas em linda art-nouveau, um fenômeno inclassificável. A primeira era dos quadrinhos, portanto, longe de ser um anedotário vintage de velharias de curiosidade somente histórica, foi um fenômeno que passeou no campo fértil da criação selvagem, ainda sem um grau de imposição que os restringisse ao mercado infantil ou à desqualificação atribuída aos produtos de massa, mesmo que ainda não se cogitasse enxergar aquilo como “arte”.

Yellow Kid

Agostini

Tudo isso serve para se pensar que, antes que os quadrinhos tivessem seu espectro de atuação muito reduzido pelas censuras dos anos 50 (no mundo todo), estas matrizes no humor, na poesia e no surreal que se instalaram nas origens se desenvolveram até a forma de potentes narrativas de guerra, ou inacreditáveis contos de terror, no fim dos anos 40. Mesmo aprisionados pela condição de cultura “menor” e pelos termos da indústria editorial, a trajetória histórica comprova bem o potencial expressivo dos quadrinhos, tudo a partir de uma relação que de certa maneira se opõe ao “primo rico” cinema: sem grandes efeitos de tecnologia, tudo se resume à “química” que se pode produzir entre duas coisas: sequências de imagens paradas e palavras.

A simplicidade do processo material de produção das histórias em quadrinhos acaba sendo proporcional à sua maleabilidade expressiva, e à capacidade de representar a partir da transformação do traço. Ao contrário do que argumenta Scott McLoud, a maioria dos quadrinhos se utiliza de traços cartunescos ou caricaturais não porque haja algum tipo de “identificação icônica” (uma abordagem nada semiótica) entre nós e o cartum, mas sim provavelmente porque as HQs surgiram no ambiente da charge, onde estas deformações eram premissa, e depois migraram para histórias de humor, nas quais esse tipo de ilustração é obviamente adequado. E por que isso se tornou um axiomático para esta forma de arte? Ora, porque... é fácil fazer assim, e se pode fazer assim. Como o cinema registra imagens fotográficas, foi natural que ele se tornasse uma narrativa gráfica de premissa mais realista (veja que, quando efeitos especiais entram em jogo, quase sempre dão vazão à fantasia). No caso dos quadrinhos, a abertura ao humor, ao sonho, ao delírio e à fantasia se tornou flagrante na medida em que a imaginação e o traço dos ilustradores tornassem isso possível.

O ícone em McLoud: NOT

Upside Downs

A última fronteira, portanto, é a revolução da linguagem. Se os quadrinhos são um dispositivo de representação no limite da imaginação, então sua configuração estética também deveria acompanhar esse potencial, e acompanha. Se, no cinema, desde Eisenstein, a montagem entre planos é pensada como dispositivo potencializador de representação, nos quadrinhos equivale a noção de configuração. Se no cinema ou na pintura a noção de moldura pode ser problematizada, mas em geral possui um aspecto limitador, nos quadrinhos ela é parte muito mais ativa, já que a forma, a ordem e o aspecto dos quadros configuram a página e atribuem sentido ativo àquilo que está sendo visualizado dentro deles – e ao que está sendo imaginado entre eles. Este avanço não é pouca coisa, porque possibilita a ideia de que cada artista, ao configurar sua história em quadrinhos, tem em mãos a possibilidade de recriar a linguagem desta forma de arte, só para si.

Töpffer

Talvez “o que podem os quadrinhos” não seja a pergunta mais conveniente. Já que, em uma época em que quase todas as formas expressivas históricas sofrem de um esgotamento de suas possibilidades, os quadrinhos, aprisionados por décadas pelo desinteresse geral e pelos códigos de censura, encontram na atual libertação o caminho para a maturidade e passa a tomar conta dos campos da arte e da comunicação. Cabe a flexão: o que então poderão, a partir de agora, os quadrinhos?

Little Nemo

HQ em um quadro: o despertar de Akira, por Katsuhiro Otomo



Takashi é executado por Neru, na frente de Akira (Katsuhiro Otomo, 1982): de acordo com Jost e Gaudreault (1989), no cinema, a temporalidade é dividida entre um tempo da história, diegético, e um tempo da narrativa, que determina a ordem, a duração e a frequência com que os eventos aparecem no decorrer desta mesma diegese (sendo a diegese o mundo proposto pela ficção - a "realidade" do filme). No caso da frequência com que o evento narrativo pode ocorrer no filme, existe um tipo interessante, repetido com maestria na edição número 16 da saga de Akira (na velha edição colorida da Globo), a obra máxima do mangá escrita por Katsuhiro Otomo nos anos 80. É chamada "narrativa repetitiva", com n narrativas para uma só história. O que isso quer dizer? Takashi morre, na diegese, apenas uma vez, mas sua morte nos é mostrada nada menos que seis vezes. Qual o propósito deste recurso narrativo?

O quadro acima mostra a brutal cena de assassinato de Takashi, uma das crianças-psíquicas, fundamentais para a série, pelo nefasto Neru. Até então a presença de Takashi vinha sendo crucial para o desenvolvimento da trama, que misteriosamente vai costurando os segredos envolvendo os paranormais, que determinam uma drástica e apocalíptica mudança no mundo do séc. 21. Mais do que isso, é o elo fundamental que une todas as crianças psíquicas, via paranormalidade, que deflaga o grande impacto na rede de afetos estabelecida entre eles. A morte de Takashi traz este impacto. Como um grande estremecimento, um terremoto na teia psíquica que liga o equilíbrio frágil entre as crianças, o evento súbito provoca ondas de tormento, volumes de pânico, tempestades de tortura! Nada seria como antes.

Akira, até então sonolento e entorpecido pelo recém-despertar da câmara criogênica, sente o pavor irreconciliável da perda do elo psíquico. Rompe-se um cordão umbilical entre os paranormais. Akira, efetivamente, desperta. O evento é acompanhado pela expressão doentia, de profunda desolação e desespero, das outras crianças psíquicas, Masaru e Kiyoko. O que se segue é uma edição quase inteiramente plasmada numa grande catástrofe visual, uma das mais impressionantes representações artísticas de uma hecatombe, lembrando bastante o clássico filme de Kaneto Shindo, Os filhos de hiroshima. Akira energiza-se numa redoma côncava de poder que vai crescendo quase até dominar a cidade inteira, levando populações ao extermínio, à tomada de Neo-Tóquio por tsunamis, à queda convalescente de prédios, tudo ilustrado em uma força dinâmica dificilmente equiparável em HQ, com grandes quadros duplos, em páginas que vão virando na velocidade do próprio impacto da hecatombe. Perdemos o fôlego, e uma história em quadrinhos se transforma numa epifania de quadros colossais, verdadeira arquitetura da destruição. No final da edição, vemos o inocente Akira brincando com uma pedra no chão, enquanto acompanhamos, silenciosamente (palavras para quê?), a chegada rasteira de ninguém menos que Tetsuo, ao mesmo tempo rival e amigo da criança psíquica: um encontro que inseminará o resto da saga. Ambos voam ao céu. Um clímax se estabelece.

A cena do ataque a Takashi é tão violenta, impactante e determinante para a continuidade da saga de Akira que ela precisa ser repetida seis vezes nesta mesma edição. Entre as páginas 15 e 19, acompanhamos Takashi morrer seguidamente, em vários ângulos e pontos-de-vista diferentes, criando um efeito dramático de dilatação temporal, como se aquele instante, aprisionado, precisasse ser detido para o resto da série, congelado como Akira, paralisado na arte de observação que é a história em quadrinhos. Portanto, seis narrativas da morte de Takashi e apenas uma história. É este o efeito da narrativa potente que é Akira, em que recursos elaborados de linguagem são conjugados em uma aventura absolutamente eletrizante, que não conseguimos parar de ler, capitulada por eventos tão drásticos quanto surpreendentes, de cinético dinamismo, mudando nossa visão a respeito de sequências visuais, seja no cinema ou nos quadrinhos. Abaixo, além da página original, do quadro acima, as outras 5 "mortes" de Takashi. (CIM)

 

Popeye e os demônios

por Ciro I. Marcondes

Sabe-se que Elzie Crisler Segar escreveu e desenhou a tira diária Popeye até o ano de sua morte, em 1938. Desde as origens, com a tira Thimble Theater, que estrelava especialmente Olive Oil (Olívia Palito), Segar primou por um humor cotidiano, mas ao mesmo tempo escarninho e exótico, beirando o surrealismo. Sendo conhecedor da fama da qualidade destas tiras, demorei-me buscando alguma coisa que contivesse a produção original da Segar. Bati na trave em Buenos Aires, quando deixei de comprar o volume Popeye da imperdível coleção Biblioteca Clarín de La historieta, que continha material de seu criador. Recentemente, num sebo, consegui um volume de 1972 publicado em português pela Editora Paladino. Trata-se de uma revistinha velha, pregada com durex e feita de papel jornal, com anúncios de outros gibis como Pinduca, Mutt e Jeff, Mandrake e Zé, o soldado raso (hoje Recruta Zero), com suas capas redesenhadas à mão juntamente com biografias de gente como Vicente Celestino, Agnaldo Timóteo e Roberto Carlos. Custou-me quatro mangos e este texto.

O que me chamou a atenção neste gibi foi, é claro, a preciosa assinatura de Segar logo na primeira página, num layout simples: “Popeye” (em letras garrafais, como na logo tradicional do herói) por: Segar (em letras grandes). A questão é: se Segar morreu em 1938 e o “World rights reserved. Copr. 1938. King Features Syndicate. Inc” de todas as tiras nos confirma a publicação no ano de sua morte, como saber se o arco de histórias contido neste volume 4 de Popeye foi mesmo produzido pelo criador do comedor de espinafre? Bem, caso eu faça uma pesquisa mais profunda ou me depare novamente com esta história republicada, terei a delicadeza de corrigir-me aqui. Por hora, fico com a possibilidade de estar lendo um original do grande criador de Popeye, e possivelmente uma de suas últimas histórias.

Rei Zezinho: monarca hedonista? :)

O arco de tiras contido neste volume 4 de Popeye não possui um título, como é de praxe nas publicações da King Features, o sindicato/editora criado pelo famoso magnata William Randolph Hearst (que inspirou Cidadão Kane, e o mais importante mecenas dos primeiros quadrinhos), que lançou tanto Thimble Theater como Popeye. Como era também de praxe nas histórias de Popeye, assim como de Mandrake, Fantasma ou Rip Kirby, por exemplo, as tiras de cinco ou seis quadros eram sequenciais entre elas, continuando sempre longas histórias que os leitores acompanhavam afoitos, fosse semanalmente ou mesmo diariamente. Portanto, no material que me chegou em mãos, três assuntos predominam em uma série de situações malucas, muitas vezes non-sense, sem qualquer relação com o que estávamos acostumados a ver, por exemplo, na série animada do Popeye, por onde a maioria de nós primeiro travou contato com o marinheiro. São eles, os temas: os súditos de um inepto (rei Zezinho); o espírito belicoso das monarquias (rei Cabooso); e uma ameaça invisível (os demônios). O que isso tem a ver com o marinheiro Popeye? É uma pergunta que também até agora me aflige.

Dudu e Olívia

Popeye é um tipo clássico, e uma série de características importantes de um imaginário ligado a ele aparecem nesse arco de histórias: primeiro, o próprio marinheiro, aqui no papel de primeiro ministro para Zezinho (conhecido também por Zezé ou Gugu), coroado rei de um exótico país chamado Demônia. Como isso ocorreu, eu não faço ideia, já que não tive acesso ao arco anterior de histórias. Popeye é rabugento, viril, meio sacana. Sua participação na história é bastante coadjuvante, já que, ainda herdeiro de Thimble Theater, sua tira é na verdade uma ciranda de personagens malucos que vão entrando e saindo de cena, realmente como num pequeno teatro, cada um tentando resolver a situação à sua própria maneira, delineando o perfil caricato de cada. Temos, por exemplo, a manhosa Olívia Palito; o mesquinho Dudu, comedor de sanduíches, de índole meio imoral; o teimoso Poopdeck Paps, pai de Popeye, de 99 anos, um velho estranho, obcecado por exercício e tolo como qualquer outro dos personagens; temos Chiquinho, o gigantesco guarda-costas do rei Zezinho; além do próprio bebê-rei, filho adotivo de Popeye, que em sua meiguice parece ter herdado a vibe sacana do pai.

Poopdeck Paps: pai de Popeye, tão tolo quanto qualquer outro

Os quadrinhos destas histórias não possuem qualquer complexidade: são diretos e rasteiros, como a maioria das tiras dos anos 1930. Há pouquíssima variação no enquadramento (já que eram tiras, afinal de contas): quase tudo é moldado dentro de um pequeno quadro retangular virado pra cima, e toda angulação obedece ao plano americano ou ao plano de conjunto. Fiel ao gênero sitcom, o Popeye de Segar possui um traço ainda fino, delicado, claro, atento a pares como Richard Outcault, Chic Young ou Hergé. Se, no início, parecemos padecer a uma certa morosidade da história, sem pé nem cabeça, fora de contexto, fora de um cânone do personagem; logo começamos a nos aproximar da simpatia dos tipos que vão aparecendo, do padrão ritmado das repetições das gags, da ciranda de tentativas de se resolver os problemas, e do humor simplório, escarninho, meio mongol mas delicioso (screwball), que vai se apresentando neste estranho gibi.

Popeye meets Yellow Kid

Ameaça invisível, monarca inepto, seres belicosos

O enredo desta história é, como já disse, maluco: Zezinho, um bebê, é coroado rei de Demônia e precisa enfrentar, basicamente, dois perigos: os demônios que vivem no subsolo, que são criaturas mais afáveis e divertidas do que se imagina; e a rivalidade com um certo rei Cabooso, monarca do um país chamado Cuspidônia, que entra em crise diplomática com Demônia por assuntos da mais urgente importância: caretas, insultos, presentes desagradáveis, etc. Cada um destes assuntos pode ser submetido a uma análise, digamos, estrutural, já que estamos falando de categorias maiores e elevadas de poder e sociedade, como a monarquia e a religião. Segar, um dos heróis da história das HQs, um jovem iconoclástico lamentavelmente falecido de leucemia aos 43 anos, certamente sabia do poder sub-reptício que as mensagens de seus quadrinhos poderiam invocar, e não surpreende que, em primeiro lugar, possamos associar os demônios que vivem no subsolo de Demônia a algum tipo de “ameaça invisível” (o que nos leva desde ao Phantom Menace de Star Wars até a “guerra ao terror” de George W. Bush como exemplos da multiplicação deste meme).

Como os demônios nunca aparecem, é natural que todos os personagens passem a duvidar de suas existências, de maneira que, aos poucos, instigados por um rei que nada faz (Zezinho, um bebezinho, deflagra estruturalmente um tipo de hedonismo da própria monarquia), a própria população acaba se tornando paranoica, voltando-se uns contra os outros, mas ainda assim prestando devida deferência ao seu monarca. É apenas quando surge um conflito de natureza diplomática com outro rei inepto (mas que desta vez peca pelo belicismo, e não pelo hedonismo), é que a população de camponeses de Demônia passa a questionar a autoridade do próprio rei, forçando Popeye, o primeiro ministro, a tomar atitudes delicadas, na fronteira entre a guerra e a diplomacia. No fim das contas, a história trata de um discurso de reis, assombrados por uma possível ameaça invisível, enquanto a população, distante do poder, gira, camaleônica, de um lado para o outro, sem convicção de nada.

Com mil demônios!

Não surpreende, afinal, quando a hilária e abilolada história vai ganhando contornos mais sólidos, que, quando os demônios finalmente aparecem, eles não apenas demonstrem um comportamento de alguma maneira afável (um deles chega a ser apaixonar por Olívia), mas também possuam uma aparência bem “fofa”, de jeito também angelical, propiciando uma trégua no final. E foi justamente no final que eu, já não duvidando de mais nada nesta história, percebi que, em todo o quadrinho, Popeye não havia comido uma lata sequer de espinafre. Este clímax, bem emocionante, vale confessar, é guardado apenas para os últimos instantes, quando, após tentar de todos os jeitos bater nos demônios sem apelar para seu famoso super-alimento, Popeye, apanhando, pede uma lata a Olívia. O efeito, vale também dizer, é devastador, mas de um jeito muito digno, sem ser espalhafatoso, diferente de quando o acompanhávamos no desenho animado. Popeye, casca-grossa, meio que recruta a lata do poder apenas quando está sendo vencido pelo maior de todos os demônios. A lata, é claro, é o suficiente pra ele sentar a porrada em todos os outros demônios, que passam a trabalhar em favor da população. No final das contas, é o homem do povo, sem a ajuda dos dois lados do poder, é que consegue se sobrepujar, dentro de sua dignidade camponesa, e vencer a “ameaça invisível”, que também nem era tão ameaçadora assim. E é isso mesmo: Popeye luta contra demônios. Por essa você não esperava. ­

Macanudismo no Brasil


por Gustavo Trevisolli

Para um cara que vem de Campinas, interior de São Paulo, morar no Rio de Janeiro tem suas vantagens. Apesar do trânsito e da considerável quantidade de mamíferos presentes nesta cidade, os eventos culturais não são tão escassos como os próprios cariocas reclamam.

Além de ir em todos os grandes eventos do Centro Cultural no Banco do Brasil e da Caixa Econômica, ainda fui em outros eventos voltados aos quadrinhos, como ComiKong com presença de Oliver Copiel, artista responsável por inovar o visual do Thor; a Bienal de Livro, em uma mesa redonda com Rafael Coutinho, André Drahmer, Lourenço Mutarelli e Rafael Sica; além da segunda edição da Comic Con Rio, com exposição de originais de Will Eisner, presença de diversos cartunistas, inclusive do roteirista Chris Claremont. Recentemente acabou uma exposição em que houve mesas redondas e oficinas com Cartunistas de Brasil e Argentina.

Esta Exposição foi Macanudismo, com mais de 650 tiras, Cartuns e quadrinhos de Liniers. Argentino, nascido em Buenos Aires, atingiu fama e glória com suas tiras no jornal Lá Nácion, assim como em ilustrações para revistas como a Rolling Stone. Lançou até agora 8 álbuns dos Macanudos, sendo 5 traduzidos aqui no Brasil, lançados pela Zarabatana Books. A editora, com sede em Campinas, também lançou outros álbuns de quadrinhos argentinos, como a Fierro, colêtanea da revista argentina que apresenta diversos cartunistas do país.
As tiras online para o Jornal Lá Nácion podem ser lidas aqui


Liniers estava presente na abertura, pintando um lindo mural que pode ser visto até hoje na caixa cultural, enquanto o músico Cheba Massolo apresentou as encantadoras músicas de seu álbum Coyazz - que teve a capa ilustrada por Liniers - acompanhado do músico Maximiliano Padin.
O artista assina a trilha sonora original do documentário Liniers, el trazo simple de las cosas, que também está na programação. Visite o myspace do músico aqui.

Toda interação contribuiu com um sentimento de conforto que encontramos também nas tiras em exposição do autor. Além das centenas de tiras, também estavam historias em quadrinhos, ilustrações das capas de discos, pinturas e os cadernos de viagens que ele carrega para suas excursões ao exterior. Havia também todos os álbuns do autor para consulta e leitura em uma mesa nos fundos da exposição. No dia seguinte, ocorreu a abertura para o público em geral e também lançamento de Macanudismo 5, na qual Liniers deu autógrafos.


Visitei a exposição em vários dias, pois é difícil conferir tanto conteúdo apenas uma vez. Sou fã dos personagens criados pelo argentino: o monstro imaginário Olga, os Pinguins e os Duendes, O homem Misterioso, e o Gato Fellini. Aliás, as tiras da menina Henriqueta com o gato e o Urso Madrigiaga são, na minha opinião, o ponto alto de Macanudismo. Gosto muito da sensibilidade e das referencias que encontramos, e eu creio que é dentro das expressões, do sensível, que sentimos o quão adulta pode ser uma história na qual boa parte dos leitores são crianças.

E é nesse sentido que reina o trunfo de Liniers: em trazer uma pegada “fofinha”, mas ao mesmo tempo adulta. Fica um patamar diferente em relação aos concorrentes infanto-juvenis. Não quero generalizar, mas é difícil achar uma produção atual que consiga satisfazer diversas faixas etárias como a dele. Nas tiras, principalmente aqui no Brasil, nos últimos anos, reina um teor muito adulto. Tiras clássicas da Turma da Mônica, Charlie Brown ou Calvin e Haroldo aos poucos dão lugar a outras tiras com temas mais sérios.

Na programação do Rio, vale a pena comentar a iniciativa de se fazer uma mesa redonda com Adão Iturusgarai e Laerte. Mesmo com o Laerte não aparecendo devido a um problema de saúde, só o evento com o Adão valeu a pena, pois contaram com outros quadrinistas, entre eles André Valente, de Bátima, e um bate-papo com Allan Sieber, criador de Preto no Branco, Negão Bola Oito e Vida de Estagiário, além de ser sócio proprietário da Tosco Graphics Studio, empresa de animações para a família Brasileira; André Drahmer, o criador das tiras Malvados e Quadrinhos dos anos 10, e também Arnaldo Blanco, roteirista, jornalista, criador dos polêmicos e hilários Capitão Presença e Mundinho Animal. O encontro rendeu ótimas risadas e piadas com assuntos sobre como molestar uma cabra ou como fazer sexo com um mosquito, além das interessantes viagens do Adão pelo mundo. Por falar nisso, o bate papo fez parte do lançamento de seu novo livro Minha vida ridícula, que contém tiras autobiográficas feitas por ele, sua mulher Laura, além de participações de amigos cartunistas.

Também houve os workshops e oficinas, que eu não pude participar devido ao meu trabalho, mas, para quem teve a oportunidade de presenciar (gostaria de receber suas impressões pelos comentários), foram estas:
Minizimbres, com Fábio Zimbres, no qual ele ensina a fazer um Zine.
Uma Oficina com introdução Ao mundo da Tira, com Adão.
Quadrinhos de Observação, com Rafael Coutinho.
e outros temas que podem ser vistos aqui.

Os quadrinhos de língua espanhola estão passando por um ótimo período aqui no Brasil, depois do paradigma quebrado pela Zarabatana. Hoje em dia é comum ver álbuns publicados de língua espanhola no país. Dia 20/09 presenciei uma mesa redonda entre André Drahmer e Max, cartunista old school de quadrinhos da Espanha, que aqui no Brasil teve publicado apenas o álbum O prolongado sonho do Sr. T.

O livro “Bienvenido”, do Jornalista especializado em quadrinhos Paulo Ramos, também aborda os quadrinhos feitos na Argentina. No início do ano viajei para o Chile e também conferi o que acontece por lá, e escrevi sobre isso aqui na Raiolaser, que, aliás, tem vários textos sobre quadrinhos de lingua espanhola.



HQ em um quadro: Milazzo, em negativo. Por Berardi e Milazzo.

O grupo de Ken Parker parte, em vão, para evitar estupro, morte e rebelião (Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, 2002): que no gibi Ken Parker destila-se um adensado painel sociológico dos nossos dias atuais, sempre veiculado pelo gênero mítico que é o western, associado a um painel multicultural (vejam: histórias no velho oeste americano, feita por italianos, com fôlego universalizante), o bom leitor de HQs de qualidade (ou seja: o leitor de Raio Laser) já deve saber. Não surpreende, portanto, que na história em dois arcos "Um sopro de liberdade", publicada pela Mythos no Brasil em 2002, encontremos um debate ético capcioso, envolvendo sistemas prisionais, racismo, sociabilidade, estupro, jornalismo marrom e toda uma miríade de enlaçamentos contemporâneos que não nos surpreenderia se se passasse num presídio na São Paulo dos dias atuais. 

Aqui, Ken Parker está simplesmente... preso. O olhar humanitário do herói permite que se deflagre, deste ambiente, uma fauna rica de pessoas que estão encarceradas por motivos diversos: do cara que está ali vítima de puro racismo, ao mafioso veterano, ao psicopata. Fora isso, um coronel procurando fazer a coisa certa, mas levado a executar a coisa errada, um prefeito com o cuidado de não manchar sua imagem, um jornalista inescrupuloso, mas tentando fazer seu trabalho, e duas damas da sociedade feitas reféns dão o tom para que esse barril de pólvora inevitavelmente exploda.

Sobre o brilhantismo do texto de Berardi, não há mais muito o que comentar. Dentro deste painel delicado, ele demonstra que, se se consegue erigir um equilíbrio frágil na rebelião que se instaura na prisão a partir de extensa negociação política (os presos, afinal, queriam melhores condições em relação aos sádicos carcereiros), basta uma maçã podre (e não é muito difícil achar algumas delas neste ambiente) para desencadear o velho processo de tudo se esvair por água abaixo. Neste caso, basta a fome sexual animalesca de um dos presos para que uma chocante cena de estupro ocorra pouquíssimo antes do quadro destacado aqui. O que parecia uma produtiva negociação em favor dos presos se torna o álibi perfeito para a entrada do exército no presídio, e um massacre ocorra. Uma história baixa, como tantas outras. 

No quadro destacado, o genial desenhista Ivo Milazzo consegue captar a intensidade do momento com um recurso simples. Cabe aos gênios exaurir as potências dos recursos simples, sempre. Milazzo, um mestre estilístico da luz e da sombra, dono de um grafismo radical que deslacra as possibilidades expressivas dos quadrinhos, abre a página 71 com um quadro de cores invertidas. No opaco fundo branco, vemos as sombras do grupo de Ken Parker correrem num plano de conjunto absolutamente frontal, como se se dirigisse ao próprio leitor. Qual a mensagem de quadro tão simples, mas tão magistralmente arrojado? A resposta é menos simples: invertendo as cores, Milazzo primeiro subverte o equilíbrio e a ordem até então instauradas na negociação. Como se dissesse, cromaticamente: algo deu errado! Em segundo lugar, o enquadramento frontal nos coloca na linha de fogo do conflito. O embate ético, que antes se vinculava aos personagens e suas contingências, agora é também um desafio ao leitor, que precisa ficar acuado, como se convidado a entrar no conflito. Desta maneira, Milazzo quebra a difícil quarta parede dos quadrinhos, transportando-nos para um inferno social que passa a ser também um inferno íntimo. (CIM)

Do registro indestrutível da memória: sobre Marjane Satrapi


Após um pequeno hiato para que nosso time de redatores possa respirar, voltamos à ativa na Raio Laser com a estreia de mais uma querida colaboradora. A bola da vez é de Gabriela Sobral (blog dela aqui), jornalista, analista de comunicação e fã de quadrinhos. Gabi tem talento e sensibilidade para as narrativas eternamente (e ternamente) afetivas, e resolveu se debruçar um pouquinho sobre a obra da querida (em vários meios) quadrinista iraniana Marjane Satrapi. Esperamos, logo, mais colaborações da Gabi. Seja bem-vinda! (CIM)

por Gabriela Sobral

Sagas da família, álbuns de família, histórias que os avós contam sempre foram coisas muito caras para mim. Sempre procuro algo nesse cheiro de passado, por puro encanto; uma necessidade de me perceber naquelas pessoas. Esse diálogo com a minha memória até hoje é essencial para a construção do que sou, e aos poucos vou tecendo um elo entre os “eus” antigos e os presentes. Essa introdução justifica o interesse em escrever sobre a obra da Marjane Satrapi, nas quais vejo os retratos de pessoas que não conheci, mas que adquiri. Agora, deixemos de lado minhas enrolações e vamos falar de quadrinhos. 

Por causa de meu hobby mofado, assim que tive contato com a obra de Satrapi, senti uma identificação imediata com a abordagem da quadrinista que mistura história, histórias de vida e um resgate de suas experiências, pois a narrativa nada mais é do que contar memórias, reais ou criadas. 


A memória pode surgir daquilo que adquirimos seja por experiências próprias ou pelo contato com outros; é a manifestação do que está arquivado em nós. Essa célula, parte do que somos, pode se manifestar de diversas maneiras, e a autora as manifestou por meio de seus belos e sensíveis quadrinhos, a partir de acontecimentos-chave na História do Irã que se confundem com a rotina privada da família Satrapi. Se você está achando esse texto meloso, a intenção é essa. 

Talvez a obra de Marjane comunique tanto por trabalhar com sentimentos presentes nas consciências coletivas de muitas pessoas. Apesar de trabalhar mais propriamente a realidade iraniana, conflitos sociais, repressão, retratos de governos autoritários, conflitos familiares, imigração e questões existenciais são temas que estão presentes na vida de várias nações. Além disso, em toda a sua obra essas questões ‘macro’ são mostradas pela perspectiva privada, da convivência familiar. Podemos perceber e entender o comportamento daquela realidade pelas conversas das mulheres, enquanto tomam seus chás, pelas relações amorosas, pela necessidade de liberdade, pela relação entre pais e filhos, pelo papel da mulher naquela sociedade, etc.

Em Persépolis encontramos uma obra mais profunda, com elementos que nos passam tanta verdade que é difícil não se sentir sensibilizado com aquilo, em algumas passagens. Contudo, em outras histórias, com um recorte mais específico, como Frango com Ameixas e Bordados, encontramos situações mais esmiuçadas. Essas relações entre quatro paredes fazem o leitor criar todo um imaginário emocional, capaz de catalisar uma identificação com todas as experiências de Marjane, fazendo com que o leitor se encontre, muitas vezes, com suas próprias memórias familiares (pelo menos no meu caso). 

 Em Bordados vi isso quando encontrava pontos de semelhança com aquela muralha de mulheres, que sempre me rodeou, falando sobre sexo, virgindade, aflições e política, e eu sentia que estava ‘ventilando o coração’ junto com as tias, avó e as amigas das avós de Marjane. Talvez essa ligação entre leitor e narrativa aconteça em cima de espaços e tempos que não conseguimos definir ou localizar, uma vez que nossas memórias são construídas entre emaranhados de lembranças e vivências de terceiros. De acordo com Halbwachs, “sempre levamos em nós um certo número de pessoas inconfundíveis” e de histórias inconfundíveis, e isso acaba, de alguma maneira, ficando inscrito em nós. Por mais que essas lembranças pertençam à autora, são construídas e apoiadas pela coletividade, ou seja, dentro de nossas cabecinhas. Dessa maneira, cada quadradinho se eterniza não só no registro material – livro – mas no registro indestrutível – a memória. 

A balada de Astrid e Stu


por Pedro Brandt

Stuart Sutcliffe foi um beatle por pouco tempo. Ele trocou a música por suas verdadeiras paixões: as artes plásticas e a namorada, Astrid Kirchherr, fotógrafa alemã que virou amiga dos rapazes de Liverpool antes da fama, durante a temporada do grupo em Hamburgo — onde eles aprimoram seu poder de fogo em cima do palco tocando em inferninhos na zona boêmia da cidade. É neste período que se passa a história em quadrinhos Baby’s in black — O quinto beatle.

Como o título sugere — e como o subtítulo A história de Astrid Kirchherr e Stuart Sutcliffe confirma —, a HQ escrita e ilustrada pelo alemão Arne Bellstorf tem os Beatles como coadjuvantes do curto, mas intenso, relacionamento do baixista com a fotógrafa. Stu, como era conhecido, tocou baixo nos Beatles entre 1960 e 1961. Especular como teria sido a história da banda caso ele tivesse permanecido nela é um exercício que não vai muito longe. Sutcliffe morreu de aneurisma cerebral, aos 21 anos, em 10 de abril de 1962.


O romance do casal foi bastante linear, sem conflitos, ainda que com um final trágico. Nesse sentido, Bellstorf pouco acrescenta para fazer a histórias dos protagonistas mais interessantes, se atendo aos relatos biográficos. Astrid foi apresentada aos Beatles pelo amigo (na época, namorado) Klaus Voormann, jovem que, assim como ela, era estudante de artes plásticas. Klaus conheceu a banda no Kaiserkeller, bar escuro, esfumaçado e cheio de gente onde o então quinteto varava a madrugada (à base de entusiasmo e anfetaminas) tocando clássicos do rock’n’roll americano. Em 1960, o grupo era formado por John Lennon, Paul McCartney e George Harrison nas guitarras e vozes, Pete Best na bateria (em breve, ele seria substituído por Ringo Starr) e Stu Sutcliffe no baixo e, eventualmente, ao microfone (para cantar a balada Love me tender). A banda se diferenciava das demais que faziam o mesmo circuito pelo carisma e energia.

Mangá e nouvelle vague

No palco, Stu se destacava entre os beatles com um charme à James Dean, meio tímido, meio indiferente (por vezes, tocando de costas para o público). Astrid se apaixonou por ele na primeira visita ao Kaiserkeller. Ela falava pouco inglês e Stu pouco alemão, mas o idioma não foi barreira para a união do casal. Em pouco tempo, o baixista estava morando no porão da casa da mãe da moça, onde montou um ateliê e voltou a se dedicar à pintura.

Em algumas passagens, Astrid e seus amigos estudantes de arte comentam o quanto gostam da literatura e do cinema francês. Arne Bellstorf transporta essa predileção estética para a condução da história. Os tempos mortos da narrativa, o preto e branco das imagens e as cenas deixadas em aberto para o leitor preencher evocam a nouvelle vague.
 
A isso, o autor adiciona desenhos com algo de mangá, o quadrinho japonês, especialmente na maneira de desenhar os rostos dos personagens — deixando todos “fofinhos”. Bellstorf narra o romance de forma intimista — os primeiros encontros, as trocas de olhares, os passeios pelo bosque e as conversas debaixo do cobertor são apresentadas com delicadeza.

Ao contrário das gravações feitas pelos Beatles acompanhando o cantor Tony Sheridan no período vivido em Hamburgo, que geralmente interessam apenas aos fãs mais dedicados do quarteto, não é preciso conhecer uma músicas da banda para curtir Baby’s in black.

Baby’s in black — O quinto beatle
De Arne Bellstorf. 214 páginas. 8inverso Graphics. R$ 51.