O que podem os quadrinhos?

por Ciro I. Marcondes

Qual não foi minha surpresa quando, ao ler um artigo de Richard Abel, pesquisador do primeiro cinema, descobri que o filme “Regador regado” (Arroseur Arrosé, 1895), dos irmãos Lumière, havia sido “muito provavelmente” baseado em uma história em quadrinhos de Christophe, um famoso pioneiro da HQ francesa? Este filme, uma piada registrada em uma só tomada, é do ano da primeira exibição pública cinematográfica, e do ano da primeira publicação americana em quadrinhos, o Menino amarelo de Richard Outcault. Mais interessante: é considerado o primeiro filme de ficção, ou seja, a primeira vez que se apresentava ao público uma encenação cinematográfica, e, agora, provavelmente é também a primeira adaptação cinematográfica. A partir de uma história em quadrinhos.

Krazy Kat

O dado histórico é interessante porque afunila ainda mais as relações já tão próximas entre HQ e cinema, colocando ambos não apenas dentro de um patamar comum, que os gerou – o advento da modernidade, dos avanços científicos e da cultura de massas no fim do século 19 –, como também localiza os dois meios de expressão dentro de uma origem no mesmo gênero: a comédia. Esta ligação não seria à toa e não perderia a continuidade em mais de 30 anos de trajetória dos quadrinhos. Sabe-se, em primeiro lugar, que de Töpffer, a Ângelo Agostini, ao próprio Christophe e a uma infinidade de tabloides britânicos do séc. 19, as raízes dos quadrinhos se localizam no cartum, na charge, nas publicações de humor da primeira fase industrial da imprensa. E sabe-se que, desde o Menino amarelo até os anos 30, quando impactam os quadrinhos de aventura, são especialmente formas de humor – seja de um tipo anárquico (Sobrinhos do capitão), arquetípico (Krazy kat) ou até surrealista (Felix) – que predominam nas publicações de jornal.

Christophe

Félix

Estes quadrinhos se juntavam a outros modelos que alçavam voos substanciosos para fora do gênero, como a delirantemente óptica Upside downs, que mudava de sentido quando se virava a tira de ponta-cabeça (flertando com a arte moderna da época), ou a obra-prima Little Nemo, de Winsor McCay, verdadeiros poemas surrealistas em linda art-nouveau, um fenômeno inclassificável. A primeira era dos quadrinhos, portanto, longe de ser um anedotário vintage de velharias de curiosidade somente histórica, foi um fenômeno que passeou no campo fértil da criação selvagem, ainda sem um grau de imposição que os restringisse ao mercado infantil ou à desqualificação atribuída aos produtos de massa, mesmo que ainda não se cogitasse enxergar aquilo como “arte”.

Yellow Kid

Agostini

Tudo isso serve para se pensar que, antes que os quadrinhos tivessem seu espectro de atuação muito reduzido pelas censuras dos anos 50 (no mundo todo), estas matrizes no humor, na poesia e no surreal que se instalaram nas origens se desenvolveram até a forma de potentes narrativas de guerra, ou inacreditáveis contos de terror, no fim dos anos 40. Mesmo aprisionados pela condição de cultura “menor” e pelos termos da indústria editorial, a trajetória histórica comprova bem o potencial expressivo dos quadrinhos, tudo a partir de uma relação que de certa maneira se opõe ao “primo rico” cinema: sem grandes efeitos de tecnologia, tudo se resume à “química” que se pode produzir entre duas coisas: sequências de imagens paradas e palavras.

A simplicidade do processo material de produção das histórias em quadrinhos acaba sendo proporcional à sua maleabilidade expressiva, e à capacidade de representar a partir da transformação do traço. Ao contrário do que argumenta Scott McLoud, a maioria dos quadrinhos se utiliza de traços cartunescos ou caricaturais não porque haja algum tipo de “identificação icônica” (uma abordagem nada semiótica) entre nós e o cartum, mas sim provavelmente porque as HQs surgiram no ambiente da charge, onde estas deformações eram premissa, e depois migraram para histórias de humor, nas quais esse tipo de ilustração é obviamente adequado. E por que isso se tornou um axiomático para esta forma de arte? Ora, porque... é fácil fazer assim, e se pode fazer assim. Como o cinema registra imagens fotográficas, foi natural que ele se tornasse uma narrativa gráfica de premissa mais realista (veja que, quando efeitos especiais entram em jogo, quase sempre dão vazão à fantasia). No caso dos quadrinhos, a abertura ao humor, ao sonho, ao delírio e à fantasia se tornou flagrante na medida em que a imaginação e o traço dos ilustradores tornassem isso possível.

O ícone em McLoud: NOT

Upside Downs

A última fronteira, portanto, é a revolução da linguagem. Se os quadrinhos são um dispositivo de representação no limite da imaginação, então sua configuração estética também deveria acompanhar esse potencial, e acompanha. Se, no cinema, desde Eisenstein, a montagem entre planos é pensada como dispositivo potencializador de representação, nos quadrinhos equivale a noção de configuração. Se no cinema ou na pintura a noção de moldura pode ser problematizada, mas em geral possui um aspecto limitador, nos quadrinhos ela é parte muito mais ativa, já que a forma, a ordem e o aspecto dos quadros configuram a página e atribuem sentido ativo àquilo que está sendo visualizado dentro deles – e ao que está sendo imaginado entre eles. Este avanço não é pouca coisa, porque possibilita a ideia de que cada artista, ao configurar sua história em quadrinhos, tem em mãos a possibilidade de recriar a linguagem desta forma de arte, só para si.

Töpffer

Talvez “o que podem os quadrinhos” não seja a pergunta mais conveniente. Já que, em uma época em que quase todas as formas expressivas históricas sofrem de um esgotamento de suas possibilidades, os quadrinhos, aprisionados por décadas pelo desinteresse geral e pelos códigos de censura, encontram na atual libertação o caminho para a maturidade e passa a tomar conta dos campos da arte e da comunicação. Cabe a flexão: o que então poderão, a partir de agora, os quadrinhos?

Little Nemo