Ode à idiotia: a morte de Groo
/por Ciro I. Marcondes
Sempre fui um fã de Sergio Aragonés. Lembro-me perfeitamente de, back in the good old nineties, comprar uma edição velha de Groo, o errante (uma que tinha Groo caminhando, num plano bem aberto, no deserto, junto a um esqueleto de urubus) e ler e reler aquela edição, até então única para mim, de maneira quase psiquiatricamente obsessiva. Estava ali, antes que eu conhecesse o humor da verve da MAD (da qual Aragonés foi um dos mais assíduos colaboradores), um tipo de diferente de HQs, primado por um humor negro, mas não baixo e cínico, como quase tudo que se vê em humor (mesmo de qualidade) hoje em dia. O humor de Groo conseguia ao mesmo tempo ser irônico, ácido, crítico, e leve, suave, quase inocente. Que tipo de inteligência mordaz seria capaz de produzir uma paródia de Conan que conseguia ser quase melhor que o original? Certamente não uma bitolada mente americana. Aragonés, o espanhol-mexicano, com pleno domínio da quadrinização, era a própria mente multicultural que poderia produzir o quadrinho mais engraçado dos anos 80: acostumado a deitar e rolar na linguagem dos quadrinhos mudos em Louder than words para a MAD, ele fez, junto ao impagável Mark Evanier, de Groo uma obra-prima tanto da estética, quanto das paródias, quanto do humor, quanto da linguagem em quadrinhos.
Quando chegou, esses dias, às minhas mãos a edição, escrita e ilustrada por Aragonés em 1998, chamada
Dia de los muertos (publicada pela Pandora Books em 2001 no Brasil), era impossível não pensar: “preciso escrever algo sobre Aragonés para a Raio Laser. Urgente. Preciso, mais do que tudo no mundo. Aragonés. Preciso. Urgente.”. De alguma forma, a obsessão psiquiátrica parecia ter retornado de maneira persecutória e patológica. Porém, um Aragonés de 1998 não é a mesma coisa que a fase áurea de Groo, um compêndio adorável e insuperável de aventuras medievais protagonizada por um idiota de fazer inveja a Homer Simpson. Em Groo, não deixamos de ver tudo que compete aos fanáticos por mediavalismo pop: reis, bandidos, castelos, navios, menestréis, guerreiros, belas donzelas e belas amazonas, tudo no traço ricamente detalhado e potentemente vívido de Aragonés, um mestre da indumentária medieval, dos costumes de época e genial ao verter esta cultura em uma forma de humor.
Groo é a casa do cão Ruferto, o único que acredita em sua astúcia. Groo é a casa do Sábio, que procura ajudá-lo, mas inevitavelmente se impacienta com ele. Groo é a casa de Grooela, a rainha mesquinha e irmã do herói, que preferia vê-lo morto. Groo é a casa de um incontável número de grandes coadjuvantes, personagens que dão cor à saga do mais idiota entre os idiotas. Se Dia de los muertos era apenas uma anedota, já meio preguiçosa, a respeito do capitalismo e da imbecilização dos americanos em relação a culturas estrangeiras, eu precisava voltar ao meu tesouro original. Precisava voltar a Groo.
Infelizmente, porém, a minha coleção completa de
Groo, assim como 90% da minha coleção inteira de quadrinhos, foi levada pelos cupins, estes seres bestiais. A única coisa que me restava em mãos, assim, para satisfazera obsessão persecutória, era reler a edição de A morte de Groo, uma edição fechada, do selo Graphic novel da Abril (que curiosamente não lançava Graphic Novels, mas sim apenas histórias curtas e fechadas, one-shots), que eu comprara num sebo recentemente. Esta história foi publicada originalmente em 1987, e saiu no Brasil em 1989. Com tratamento gráfico diferenciado, amplos quadros detalhadíssimos, colorido à mão e com um roteiro muito inspirado de Mark Evanier, A morte de Groo é uma das histórias canônicas do personagem, e sua sutil inversão moral, quando Groo, retornando como desconhecido, é recebido como herói, torna esta também uma das histórias com maior amplitude para uma leitura final da saga.
Em A morte de Groo, o bárbaro é mais odiado por todos do que nunca antes. O rei Krag, figura enfastiada e de péssimo humor, odeia Groo, e ao mesmo tempo é obcecado por Groo. Seu bobo da corte precisa repetir seguidamente “odeio Groo” para convencer o rei de que... odeia Groo o suficiente. E isso não basta. Há muito ódio sobrando para Groo. Krag chega a mandar matar um homem... por se parecer com Groo. Outro... por andar como Groo. E um vendedor de queijo (comida favorita de Groo)... por feder como Groo! A obsessão do rei por espancar bonecos de Groo e colocar cartazes decretando o repúdio geral a Groo levam a cidade (um pequeno feudo) a uma hilariante caça às bruxas por Groo. Este exasperante repúdio à idiotia de Groo tem um sentido, explicado pelo menestrel, em flashback: o bárbaro, então escudeiro do rei, defenestrou seu exército após se confundir e alçar um bandeira de guerra, ao invés de uma bandeira de paz, conforme era o plano (maquiavélico) do rei. Desde então, Krag não governa, não se importa com seus súditos, não faz um plano de economia, não se preocupa com sua sociedade. Tudo que lhe importa é espalhar aos quatro ventos o ódio a Groo, que se torna obrigatório a todo o reino.
Groo, sem entender o que se passa, acaba virando um fora-da-lei, e, quando entra em contato com o dragão Floom-Floom, buscando redenção, acaba deixando suas roupas e espadas junto a um monte de ossos, que logo são confundidos com a ossada... dele próprio. A notícia da morte de Groo então se espalha, e enormes festividades são lançadas pela cidade, sendo particularmente hilário o funeral de Groo, onde uma galeria de personagens clássicos aparece para demonstrar seu repúdio ao grande idiota. Sempre dentro da lógica da comédia de erros, porém, Groo traça um plano: “As pessoas não sabem o quanto precisam de Groo. Por isso, não sentem falta. Eles iam se dar conta se um grande vilão aterrorizasse todo mundo! Pena que não existe nenhum grande vilão! Nesse caso, vou virar um”.
A tônica de uma HQ como Groo segue a mesma premissa de um humor antigo como o do Krazy Kat de Herriman: Groo sempre tentar fazer tudo de um jeito certo, mas, de alguma forma randômica, ou vítima de sua própria idiotia, tudo sempre sai errado para ele. Ao mesmo tempo, saindo tudo errado, Groo sempre consegue triunfar no final, da mesma maneira que o rato Ignatz sempre acaba preso pelo guarda Pup ao tentar acertar tijolos na cabeça de Krazy. Isso torna, certamente, Groo um dos mais quixotescos personagens dos quadrinhos, e, não por acaso, nesta história, quando Groo procura se tornar o vilão, ele acaba revertendo-se num improvável herói. Isso me lembra o capítulo do próprio Quixote analisado por Erich Auerbach, em que, quando Sancho e o Quixote decidem trocar de papéis, as coisas estranhamente passam a dar certo, mas uma dinâmica de ação ao qual estavam acostumados se esfarela, fazendo ruir a interação entre os protagonistas. Aqui, quando Groo procura se tornar o vilão e reconstruir sua imagem, estranhamente suas ações deletérias acabam por ajudar a cidade, fazendo-o viver um dilema típico do Homem-Aranha: quanto mais ele procura fazer o bem, mais implacavelmente caçado ele se torna.
A exacerbação da idiotia de Groo e todo esculacho pelo qual ele passa certamente fazem do bárbaro um herói ainda muito contemporâneo: profundamente paródico, é um perfeito espelho às avessas dos ideais do heroísmo clássico. Porém, uma verdade mais inteligente emerge das histórias de Groo se analisarmos seus antagonistas: mesquinhos, egocêntricos, traíras e covardes (além de profundamente idiotas), eles nos remetem ao contexto de que o pecado original de Groo (a idiotia) é compartilhado por todos, e não há como não preferir a errância molóide do bárbaro ao mundo dog-eat-dog em que ele erra. Desta forma, Groo ainda traz um reflexo, ainda que pálido, dos heróis da era moderna: torcemos por ele não por ele possuir virtudes, mas por, através de pura ingenuidade, evitar os vícios.
Pinóquio das trevas
/“A história a seguir é uma adaptação bastante livre do romance de Carlo Collodi”, avisa o roteirista e desenhista Winshluss antes da primeira pagina ilustrada de sua versão em quadrinhos para Pinóquio. Nas mãos deste artista francês (nascido Vincent Paronnaud, em 1970), a marionete que ganha vida não é de madeira e seu nariz não cresce se ele mentir. O boneco também não tem fada madrinha, um pai carinhoso preocupado com ele ou um grilo falante fazendo papel de consciência.
Se tanto a obra de Collodi quanto a animação feita a partir dela pelos estúdios Walt Disney pregavam lições visando o bom comportamento dos petizes, Winshluss apresenta em 183 páginas uma visão sombria do mundo que nada tem de conto de fadas. Uma publicação, definitivamente, não recomendado para crianças — mas indicada para quem quiser conhecer uma das mais impressionantes HQs francesas em anos recentes, vencedora do prêmio máximo no festival de Angoulême em 2009. À qualidade do conteúdo, soma-se o ótimo acabamento editorial, com capa dura, papel de alta gramatura, impressão impecável e uma adaptação muito bem-feita da tipografia original.
Com uma trajetória ainda curta nas histórias em quadrinhos, Winshluss é mais conhecido pela premiada versão em longa metragem de animação da HQ Persépolis (cuja autora, Marjane Satrapi, assina com ele a direção do filme). Essa relação com a sétima arte ajuda a entender a habilidade do francês como narrador visual. Boa parte de Pinóquio é contada com imagens, sem balões de fala — é com olhares, movimentos e expressões, acompanhados de diversos recursos gráficos, que ele comunica, com excepcional eficácia, ações, ideias e intenções. Os diálogos ficam reservados para as sequências (algumas, hilárias) estreladas por Jiminy Barata, o Grilo Falante da vez. O inseto, um escritor boêmio e em crise que mora na cabeça de Pinóquio, mais parece a cigarra preguiçosa da fábula de Jean de La Fontaine.
Autômato
Winshluss pontua a história com tramas paralelas, que vão se amarrando com o passar das páginas. O leitor é apresentado a intrigas, assassinatos, tráfico de órgãos e violência doméstica. O Pinóquio de Winshluss foi criado por um Gepeto que de bonzinho tem apenas a aparência. Feito de peças robôticas, o menino pode realizar de tarefas domésticas a ataques militares, mas é um autômato (aparentemente) sem vontade própria ou sentimento.
Solto no mundo, o protagonista é manipulado por todos que cruzam seu caminho. E são esses personagens — em geral, perversos, gananciosos ou perturbados — que vão guiando a história, caso da dupla de mendigos (um trapaceiro, outro cego e fanático religioso), do menino de rua que vira amigo de Pinóquio, do policial depressivo e alcoólatra, dos sete anões pervertidos, do monarca vaidoso e do industrial que explora trabalho infantil. Se tem uma lição que Winshluss dá com seu Pinóquio é que, no meio de tanta escuridão, só se chega à redenção com sentimentos puros.
Pinóquio
De Winshluss. 192 páginas. Editora Globo. Preço R$ 75.
JORNADA!!!
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Local: Auditório 1 do Instituto de Ciências Biológicas
Coordenação: Regina Dalcastagnè (UnB)
Comitê organizador: Ciro Inácio Marcondes (UnB), Gabriel Estedis Delgado (UnB), Igor Ximenes Graciano (UFF), Ludimila Moreira Menezes (UnB), Maria Clara da Silva Ramos Carneiro (UFRJ)
Organização: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea
Apoio: Departamento de Teoria Literária e Literaturas
Inscrições pelo e-mail:jornadaromancesgraficos@gmail.com
Nesse âmbito, a Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos, organizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, chega à sua terceira edição confirmando-se como um espaço necessário ao aprofundamento de tais discussões. Reunindo estudantes, profissionais da área de comunicação, artes e literaturas, professores e pesquisadores, o evento cresce a cada ano, envolvendo, a cada vez, novos eixos de debates.
8h às 10h
Paulo Ramos (Unifesp)
Ciro Inácio Marcondes (UnB)
André Cabral de Almeida Cardoso (UFF)
10h30 às 12h
Benjamim Picado (UFF)
Pascoal Farinaccio (UFF)
Rosângela Maria Soares de Queiroz e Cleriston de Oliveira Costa (UEPB)
14h30 às 16h
Sílvia Herkenhoff Carijó (UFF)
Naiana Mussato Amorim (UFU)
Vinicius da Silva Rodrigues (UFRGS)
16h30 às 17h30
Alex Vidigal Rodrigues de Sousa (UnB)
Pedro Galas Araújo (UnB)
8h30 às 10h
Junia Regina de Faria Barreto (UnB)
Anne Caroline de Souza Quiangala (UnB)
Adelaide Calhman de Miranda (UnB)
10h30 às 12h
Valéria Fernandes da Silva (FTB/Colégio Militar de Brasília)
Daniel Leal Werneck e Letícia Cardoso Barreto (UFMG)
14h30 às 16h
Larissa Silva Nascimento (UEG)
Tiago Canário de Araújo (UFBA)
André Valente (UnB)
16h30 às 18h
Rita de Cássia Silva Dionísio (UNIMONTES)
Marcia Heloisa Amarante Gonçalves (UFF)
Juliano de Almeida Pirajá (UEG)
8h30 – 10h
Maria Clara da Silva R. Carneiro (UFRJ)
Rafael Martins (UFMG)
Guilherme Lima Bruno E. Silveira (UNESP/São José Rio Preto)
10h30 – 12h
Ludimila Moreira Menezes (UnB)
Breno Couto Kümmel (UFMG)
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad (UFMG)
14h30 – 16h
Dennys da Silva Reis (UnB)
Raimundo Clemente Lima Neto (UnB)
Eliane Dourado (UnB)
16h30 – 17h30
Lucas de Sousa Medeiros (UFU)
Angela Enz Teixeira (UEM)
Oficina Básica de HQ’s, com André Valente
Oficina “História dos quadrinhos em 3 atos”, com Ciro Marcondes
Número 39 da revista Estudos de literatura Brasileira Contemporânea, com dossiê sobre “realismo e realidade”.
Lixo extraordinário: sobre as HQs de Zé Carioca
/por Ciro I. Marcondes
Dadinho é o caralho! |
Malandraij |
Locomotiva do Brazeel |
A verdade dos quadrinhos e os ciúmes
/Inverno dos quadrinhos
/por Ciro I. Marcondes
Em 1957, cinco cartunistas espanhóis publicaram aquilo que seria, talvez tecnicamente, a primeira revista independente de quadrinhos da história. Guillhermo Cifré, Carlos Conti, Josep Escobar, Eugenio Giner e José Peñarroya, até então, eram os mais formidáveis cartunistas da mais formidável editora espanhola, a Bruguera, vivendo ali seu esplendor do auge da era editorial no século XX. Alguns dos quadrinhos mais populares desta época na Espanha eram editados pela Bruguera através da saudosa revista Pulgarcito: El reporter Tribulete, Don Pío, Zipi y Zape e, é claro, Mortadelo e Filemón (aqui: Mortadelo e Salaminho), o mais internacional quadrinho espanhol, criado por Francisco Ibáñez, de uma geração imeditamente posterior. O cômico-absurdo e politicamente incorreto desta HQ dá o tom de toda uma geração hoje bastante esquecida, mas que não tarda em ser resgatada a partir da memória da iconoclástica revista Tio Vivo. Insatisfeitos com as condições de trabalho e partindo para uma nova aventura editorial, estes cinco voluntariosos homens se demitiram da Burguera no auge de suas pretensões como cartunistas, numa época em que, em plena ditadura franquista, quadrinistas eram vistos como mera working class, precisando varar madrugadas para cumprir prazos absurdos, com salários baixos e nenhum reconhecimento. Já os quadrinhos eram uma extensão pobre e baixa do milionário mercado editorial, que via, antes da popularização da televisão, uma multiplicação sem precendentes da extensão de seu domínio.
Esta história é contada, com magnífica sensibilidade documental e artística, pelo proeminente Paco Roca, talvez o grande quadrinista espanhol da atualidade. Roca já havia surpreendido com o multipremiado romance gráfico Arrugas, de 2007, que gerou uma animação candidata ao Oscar, desenhando intrigante retrato do Mal de Alzheimer, e volta-se para a metalinguagem em El invierno del dibujante (O inverno do desenhista) para narrar, de forma quase aleatória, sem sequencia causal, sem marcadores tradicionais como letreiros e narradores, em um embelezado padrão de cores mornas, a aventura e posterior derrocada destes quadrinistas, incapazes de manter viva a revista Tío vivo (a publicação independente) graças a uma prática, bastante brutal, de phising (espécie de chantagem mercadológica) feita pela Brughera junto às distribuidoras da Espanha para que a nova revista nunca chegasse às bancas. Roca desenha seus mestres com forte detalhismo documental, preocupando-se com o que vestem, o que comem, para que time torcem, o que fumam (uns fumam charutos, outros, cigarros, outros, cachimbos, mas todos fumam), além de trazer nuances, em cenas bastante isoladas, que parecem “pescadas” do mundo real, a respeito do perfil psicológico de cada um, enchendo a história com pequenos easter eggs para o conhecedor da HQ europeia. A história é contada em 8 capítulos, entre 1957 e 1958, cada um representando uma estação do ano, e, cada estação, em uma cor diferente para as páginas, além de um amargo epílogo, no outono de 1979. A edição da Astiberri é bastante luxuosa, com textos complementares e a mais absoluta deferência prestada a esta viagem de volta à Barcelona dos anos 1950.
Gênese para "Mortadelo e Salaminho"
Ibáñez
Como a história é contada em fragmentos fora de ordem, em chave absolutamente melancólica – vemos, afinal, a euforia de se abrir uma editora independente e de se livrar das “garras opressoras”; e depois a decepção do naufrágio de toda empreitada e o retorno, com o rabo entre as pernas, dos cartunistas para a Bruguera – a experiência de se ler El invierno del dibujante não pode ser diferente de um impressionismo contemporâneo, em que não conseguimos efetivamente nos tornarmos íntimos de seus personagens, mas ao mesmo tempo percebemos as sombras fantasmáticas de seus existências, de seus autógrafos dados, as piadas contadas, de seus rascunhos nunca publicados. Este impressionismo reverbera em um olhar mais severo a respeito das condições difíceis de uma vida sob imperiosa ditadura, somadas às imposições castradoras de um mercado editorial potente.
Censurando a "Pulgarcito"
É por isso que o personagem mais ambíguo e envolvente da história acaba sendo o diretor de redação da Bruguera, Rafael González, também um personagem real. Ex-escritor e roteirista (frustrado) de quadrinhos, abertamente prejudicado pelo regime franquista em suas aspirações, é ele quem cuida de censurar previamente os quadrinhos com sua caixa de lápis vermelhos, além de manter, com mão de ferro, a linha editorial e obedecer às ordens dos irmãos Burguera. Francamente solitário, este homem censura suas próprias paixões e passa a censurar as de seus empregados, tudo em nome da manutenção de sua própria, extensa, e problemática família. No final das contas, após subornar o talentoso cartunista Vásquez (alcoólatra e endividado) para que denunciasse as atividades dos colegas, ele consegue impedir que a publicação independente Tío Vivo possar vingar no mercado espanhol. Tão melancólico quanto qualquer outro, o final de González representa a autofagia de todo o sistema editorial: sua família o abandona graças à sua fé inabalável em seu cargo.
Invernal como poucas, esta lírica e ao mesmo tempo sóbria (por contraditório que pareça) história em quadrinhos é mais do que uma homenagem e documento à história dos quadrinhos espanhóis. Seu formato arrojado, que pemite que escolhamos a ordem de leitura dos capítulos, assim como sua falta de amarras narrativas tradicionais, permite que o vejamos como um compêndio metalinguístico a respeito do processo de maturação (growing pains), enquanto indústria e enquanto arte, das histórias em quadrinhos, sendo ao mesmo tempo uma cicatriz e um exemplo de resistência. Talvez por isso o traço de Paco Roca se situe de maneira tão perfeita entre o realismo e o cartunismo, como se, tornados desenhos, aqueles homens não deixassem de passar a se assemelhar aos cômicos personagens a partir dos quais (com suor e lágrimas) eles puderam atravessar os mares turbulentos que são períodos de transição em qualquer forma de arte.