Considerações sobre a mídia "História em Quadrinhos"

A já clássica definição de McCloud Nos últimos tempos tenho me dedicado a leituras especializadas e à participação em cursos teóricos sobre a mídia "Histórias em Quadrinhos" (Comic Books) e, a partir dessa bagagem cultural, quero efetuar algumas breves considerações sobre o tema.

As obras teóricas Narrativas Gráficas, do genial quadrinista Will Eisner, e Desvendando os Quadrinhos, do estudioso Scott McCloud, são fundamentais para uma definição segura do que seja essa forma de arte e de comunicação. Eisner trata as HQs como verdadeiras "artes sequenciais", ou seja, enquanto "imagens dispostas em sequência, de modo a transmitir ideias e comunicar uma história".

McCloud tece uma definição mais específica, tratando as HQs como "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações ou produzir uma reposta no espectador/leitor". Em outras palavras, as HQs seriam como que "recipientes midiáticos" que podem conter diversas idéias, imagens, temas, conteúdos, estilos e técnicas narrativas e artísticas, o que desde já desconstrói a opinião corrente de que possuem relação direta com temas específicos de caráter infanto-juvenil do porte de super-heróis ou de "animaizinhos" falantes engraçados. 

Apesar de muitas HQs possuírem tais conteúdos temáticos, elas não se resumem a isso e mesmo quando narram aventuras de super-heróis ou de animaizinhos falantes, tais como Watchmen, de Alan Moore, ou o Pato Donald, de Carl Barks, bem, tais HQs são impressionantes por vários motivos, sejam psicológicos, filosóficos, existenciais, históricos, sociológicos, dentre outros.

Na verdade, me parece que as opiniões depreciativas do público em geral sobre a mídia Histórias em Quadrinhos possuem diferentes motivos, a começar pela ignorância da maioria das pessoas sobre o que realmente seria tal veículo de comunicação e de manifestação artística (e emprego a palavra ignorância aqui em sua etimologia, como sendo o ato de opinar sobre algo sem o devido conhecimento de causa).

Juntando-se a isso temos a tradição de certos posicionamentos preconceituosos de educadores e "especialistas em juventude e adolescência" que, no decorrer das seis primeiras décadas do século XX, consideraram as HQs como sendo "vulgares, estúpidas, moralmente condenáveis e/ou como a expressão do baixo senso intelectual daqueles que não gostavam de livros". Muitos desses ditos intelectuais afirmavam em alto e bom tom que os leitores de HQs seriam jovens incapazes cognitivamente, sendo todos eles facilmente "manipuláveis diante de imagens de cores berrantes, rostos disformes e esgares contorcidos de ódio e terror, uma forma de manifestação que careceria de senso estilístico e gramatical".

Tais opiniões pejorativas e preconceituosas direcionadas às HQs aparecem no estudo de Thierry Groensteen sobre especialistas em juventude e delinquência nas décadas de 1950 e 1960. Muitas dessas opiniões sendo sintetizadas na impactante e absurda obra Seduction of the Innocent, do psiquiatra Fredric Wertham, de 1954. 

O autor desta obra, inserido no contexto do macarthismo (movimento político de perseguição a atividades consideradas subversivas que se baseava nos trabalhos de investigação do senado americano) estaria preocupado com a delinquência juvenil e com as influências nefastas de certos bens culturais midiáticos na moral tradicional estadunidense da época, o que levou a indústria das HQs à defensiva, condicionando a criação do tão difamado e contraditório Comics Code Autority.

Mesmo assim, a visão simplista sobre a mídia História em Quadrinhos não se resume a um contexto de paranoia coletiva ou mesmo de falta de senso “intelectual” sobre qualquer juventude transviada. É possível colocar na conta também de muitos especialistas das ditas humanidades que até a década de 1960 tinham posições bem demarcadas em torno da existência de uma cultura de elite em completa oposição a uma cultura popular, essa última sendo normalmente vinculada ao que se costumava denominar como "cultura de massas".

Escola de Frankfurt, Estudos Culturais

Para resumir essa dicotomia, é como se os artefatos culturais voltados para o homem comum, do povo, fossem naturalmente de baixa qualidade, quando não constituídos para a total alienação dos receptores de bens culturais, com fins ideológicos ou mesmo econômicos, dentro do processo de mercantilização e massificação da cultura do século XX. 

Alguns expoentes da famosa Escola de Frankfurt e também alguns pensadores marxistas expressaram posições que dicotomizaram a cultura como um todo, preocupando-se com os processos de alienação e dominação ideológica das massas via produção e difusão de bens culturais voltados para tais setores subalternos da sociedade (um viés importante, mas que acabou gerando tal visão hermética e unilateral das mídias em geral e dos quadrinhos em particular). 

Indiretamente ou não, as HQs, consumidas por milhares de jovens a partir da década de 1930, acabaram sendo depreciadas, sendo vistas como expressão da alienação das massas, como produtos massificados da ideologia dominante ou como bens culturais produzidos para fins exclusivos de lucro e acúmulo de riqueza de uma pujante e inovadora indústria cultural (é comum a utilização do termo mainstream, que designa certos artefatos culturais produzidos a partir de uma linha de produção de tipo industrial).

Ora, posso traçar aqui dois tipos de leituras teóricas distintas sobre os produtos massificados da dita indústria cultural mainstream, incluindo os quadrinhos, e isso, a partir das explanações do filósofo Douglas Kellner sobre o que ele tão bem denomina de “Cultura da Mídia”. 

Por um lado temos as leituras teórico-conceituais de alguns expoentes da Escola de Frankfurt (principalmente Theodor Adorno), que consideraram os produtos da indústria cultural (termo cunhado pelos pensadores dessa supracitada escola filosófico-teórica) como expressões da dominação de classe e/ou da alienação das massas. Por outro lado, temos os chamados Estudos Culturais Britânicos, que procuraram compreender a dialética intrínseca existente nesses produtos massificados, suas formas de alienação e ao mesmo tempo os posicionamentos críticos intrínsecos nos mesmos, ou seja, a expressão dos conflitos culturais e políticos existentes em nossa sociedade. 

Depreendo a partir disso que a visão preconceituosa da Escola de Frankfurt sobre os bens culturais da dita indústria cultural condicionou muitas das visões depreciativas no que tange aos quadrinhos, ainda que existam posições distintas que observam os produtos culturais voltados para as massas como sendo expressões igualmente críticas, subversivas e até inovadoras.

Canclini

Para ajudar no entendimento dessa dicotomia, seria possível traçar outras opiniões sobre bens culturais, agora a partir de dois importantes estudiosos da cultura: o primeiro, Edgar Morin, que relaciona a cultura de massas à indústria cultural para fins exclusivos de lucros rápidos em detrimento da cultura popular genuína e o segundo, Nestor Garcia Canclini, que considera existir uma hibridização entre a cultura de massas e a cultura popular, sendo a primeira consumida em razão de ecoar visões de mundo em amplos setores da sociedade contemporânea, porque mesclada ao popular, “ela se faz entender pelos receptores de bens culturais, podendo auxiliar, inclusive na formação crítica e da cidadania dos mesmos”, uma visão que se distancia da opinião corrente de que tudo o que é voltado para o povo significa alienação.

O caso da Marvel Comics

Para explicar como se daria a leitura de Canclini, seria imperativo trazer aqui um caso bastante peculiar relacionado à  famosa Marvel Comics, uma das grandes empresas de quadrinhos de super-heróis dos séculos XX e XXI. Exemplifico esse caso a partir das considerações extraídas da obra Marvel Comics, a História Secreta, de Sean Howe. Quando foi rearticulada em 1961 pelo escritor, roteirista e editor Stan Lee e pelo desenhista e criador Jacky Kirby, a Marvel se tornou uma espécie de "Casa das Idéias" de novos artistas, inovando o gênero dos super-heróis nos EUA e no mundo. Isso ocorreu porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas bastante antenadas com o contexto de seus leitores, gerando identidade nos mesmos em relação a super-heróis adolescentes ou mesmo homens e mulheres cheios de defeitos e contradições psicológicas, como se fossem meras pessoas comuns.

Quarteto Fantástico de Kirby: defeitos e contradições psicológicas

Com o tempo, porém, o espírito criativo foi entrando em conflito com o espírito corporativo da empresa, ocorrendo uma expansão gradual da linha de super-heróis Marvel e dos lucros das empresas que gerenciavam a linha editorial do gênero (só para constar, ao longo das três primeiras décadas de reformulação, a Marvel passou por três corporações diferentes). 

Starlin: comics não-alienados

Nos anos 1970 e 1980, certa independência dos artistas e editores-artistas geraram narrativas bastante engajadas, críticas e inovadoras (as narrativas cósmicas de Jim Starlin, por exemplo, fugiam a qualquer espírito corporativo que tivesse preocupações exclusivas com os lucros imediatos ou com qualquer alienação) ao mesmo tempo em que foram sendo controladas pelo corpo editorial, mais tarde centralizado nas mãos do virtuoso roteirista Jim Shooter.

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, as coisas mudaram radicalmente, visto que os próprios artistas, agora verdadeiras celebridades do meio, começaram a não se preocupar mais tanto com a qualidade das narrativas de super-heróis, mas sim com desenhos multicromáticos e detalhistas, além de ações impactantes que gerassem nos leitores o fascínio pelas HQs, incrementando assim a mercantilização por parte de colecionadores e/ou especuladores do gênero, em meio ao crescimento do público mais adulto e consolidação das lojas de revistas especializadas (o chamado mercado direto de vendas). 

Artistas como Todd McFarlane e Rob Liefeld não precisavam de ordens de cima para se desvencilhar daquele espírito crítico e dinâmico da Casa das Ideias dos anos 1960, 1970 e início dos 1980. Eles simplesmente foram se inserindo no esquema dos especuladores de HQs cromáticas, com capas e artes detalhadas ao extremo e histórias cheias de ação gratuita e vazias, quase que pasteurizadas. Ainda assim, bons arcos podiam aparecer na Marvel e nada era maquiavelicamente pensado para alienar ou mesmo para gerar convulsões sociais entre os jovens leitores.

Os lucros sempre fizeram parte da equação empresarial, desde os anos 1960 (até antes disso, nos tempos da Timely Comics) e não afetaram diretamente as boas idéias dos artistas da empresa nas primeiras décadas de reformulação Marvel, ainda que por causa dos descontentamentos por direitos autorais, muitos desses artistas tenham se desentendido com a Marvel ao longo dos anos (incluindo o maior dos criadores do universo Marvel, Jack Kirby).

Spawn, de McFarlane: em tudo, excessos

Estudos sobre quadrinhos no Brasil

Agora, seria importante mencionar também que existem no Brasil diversos especialistas em HQs, todos eles referências para qualquer estudioso que pretenda seguir por essa seara, muitos dos quais respeitados em suas respectivas áreas de conhecimento, o que demonstra uma mudança gradual acerca do olhar voltado para essa mídia. 

Alvarão de Moya, na Primeira Exposição

Internacional de Histórias em Quadrinhos

Nomes como de Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Zilda Augusto Anselmo, Waldomiro Vergueiro, Sérgio Augusto e Moacy Cirne devem ser listados nas bibliografias de qualquer trabalho acadêmico sobre a mídia, sendo que todos esses autores possuem trabalhos complexos e interessantes que são facilmente encontrados na internet. 

Em um artigo recente, Vergueiro específica os tipos de estudos acadêmicos existentes sobre quadrinhos na USP e sua classificação pode auxiliar quaisquer novos pesquisadores sobre o assunto. Em primeiro lugar existem aqueles estudos que tratam da linguagem das HQs, a forma como são constituídos, com seu tempo espacializado, sua elipse narrativa, as formas de enquadramento e de perspectivas, as representações de sons, chamadas de onomatopeias, as linhas cinéticas que dão movimento às imagens e até mesmo o estudo da "sarjeta", que seria aquele espaço vazio entre os quadros e que serve à elipse narrativa, onde os leitores interagem com o escritor para dar continuidade e significados às sequências dispostas.

Em segundo lugar podemos elencar a análise de conteúdos, ou seja, os significados presentes nas HQs, bem como os processos de codificação das mensagens das mesmas. Em terceiro lugar, temos as análises históricas das HQs, quando foram produzidas, publicadas e distribuídas e as relações com os seus respectivos contextos históricos, o que seria a análise das conjunturas, do levantamento das publicações e da recuperação da memória das narrativas, seja dos artistas ou de seus editores. Em quarto lugar são elencadas as análises das sociedades e culturas subjacentes às produções de HQs, que seria uma abordagem relacionada a temas comuns presentes nas mesmas e em nossa sociedade e cultura, tais como violência urbana, guerra, racismo, sexismo, feminismo, xenofobia, etc. 

Seguindo aqui as premissas do historiador Paul Veyne, “todo estudo histórico é igualmente sociológico, significando que as perspectivas histórica e sociológica se interpenetram”. Outras formas de leituras seriam a análise técnica e estética das HQs, as formas de aplicações práticas em marketing, bem como as análises de recepção, ou seja, como as histórias foram lidas e quais as reações do público leitor ante as narrativas das mesmas (essa tarefa é facilitada hoje em dia devido à internet e blogs especializados, aonde os leitores efetuam comentários sobre o que foi publicado em termos de narrativas gráficas). Isso sem falar nos estudos sobre a economia das HQs, as tendências de mercado, os tipos de público para cada gênero, suas segmentações.

Coloco aqui mais um tipo de estudos que me interesso sobremaneira, os estudos sobre os "usos do passado", ou seja, estudos sobre o contexto histórico de produção e difusão de algum arco ou história que tenha um passado histórico qualquer como tema (por exemplo, a famosa obra Asterix, de René Goscinny e Albert Uderzo, que trata da conquista das Gálias por Júlio César no século I A.C.), o que sugere uma análise sobre a forma como é representado esse passado no mundo contemporâneo.

O caso de Alan Moore

Para finalizar, gostaria de tecer alguns comentários sobre Alan Moore, que criou narrativas de extrema qualidade do porte de Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, Do Inferno, Promethea, e tantas outras.  Após observar atentamente seus comentários no documentário The Mindscape of Alan Moore percebo que sua obra Promethea é a expressão mais genuína daquilo que ele define como arte e magia. O que me impressiona em Moore, além de sua enorme erudição, é o fato de vincular arte com magia, como se uma manifestação artística fosse a elevação do homem para outro nível de consciência, como se o artista, inspirado por forças mágicas, pudesse, com seus artefatos culturais, moldar e transformar o nível de consciência dos indivíduos de modo que esses transformem a realidade à sua volta, adquirindo uma consciência igualmente mística ao tocar o mundo sobrenatural com tal consciência.

Promethea: ocultismo, kabhala, esoterismo - some crazy shit!

Para muitos críticos das opiniões de Moore (e devo dizer aqui, críticos que não entendem o conteúdo das palavras do roteirista inglês), isso parece a expressão da mais pura insanidade embebida em drogas, mas Moore reinterpreta, por meio de seus conhecimentos e releituras sobre Ocultismo, Kabhala e Esoterismo, o que pensavam os antigos poetas aedos gregos, que concebiam sua poesia como a inspiração das musas e das forças primordiais, como se fossem tocados pela luz da verdade. 

Como bem reitera o estudioso antiquista Marcel Detienne ao tratar do pensamento mítico entre os gregos antigos, a aletheia significaria para eles a verdade, a luz que ilumina o homem com a inspiração das musas, que tira os entraves da ignorância e da escuridão, representadas pela lethe. Para os aedos, ou seja, para os poetas gregos dos tempos homéricos, a arte servia para a inspiração e a elevação do pensamento humano, das consciências. 

Se Moore tem alguma leitura teórica sobre tudo isso, é difícil afirmar (eu realmente acredito que sim), mas com certeza seu conhecimento empírico, embebido pela literatura, pela filosofia e pela mitologia (a partir das premissas de Joseph Campbel, presumo) fez com que ele se veja como um poeta aedo dos quadrinhos, o que estaria próximo das artes da magia. 

O fato de ele se ver como um mago leva muitas pessoas a taxarem-no de insano ou excêntrico, mas a magia para ele seria a arte que inspira e toca a consciência do seu público leitor e isso, para os grandes filósofos gregos (como Aristóteles, por exemplo) seria o dever da poesia, de inspirar e colocar as grandes questões existenciais em pauta. Só para finalizar essas breves considerações: Moore chega a afirmar que mitologia é uma forma de linguagem complexa (e quanto mais deuses existentes em um corpus mitológico, mais complexa), uma ideia encontrada em pensadores como Roland Barthes e Juanito de Souza Brandão. 

Se ele leu os dois pensadores, realmente não sei afirmar, mas ele expressa ideias bastante ricas e complexas e isso mostra que sua obra não é apenas um punhado de tinta e letrinhas psicodélicas sobre o papel. Se pararmos para pensar em tudo isso, podemos afirmar então que os quadrinhos possuem um alto grau de abstração e sabedoria de vida, tal como seriam os mitos para Moore e Campbell, claro, desde que bem escritos, elaborados e articulados.

O que depreendo de todas essas considerações estabelecidas no presente texto é que, antes de julgarmos as Histórias em Quadrinhos como uma forma de arte ou de comunicação eminentemente popular de massas (em seu sentido depreciativo) e alienante, que conheçamos antes seus autores, produtores, desenhistas e leitores e que percebamos a complexidade dessa mídia, ou seja, que vejamos as suas especificidades e riquezas. 

A mídia, histórias em quadrinhos pode conter diversos tipos de narrativas, podendo ser narrativas infantis, adultas, adolescentes ou até mesmo mescladas, contraditórias e misturadas, com toques variados. Podem ser até mesmo ensinamentos filosóficos para a elevação da consciência humana. Vejamos os quadrinhos como devem ser vistos, ou seja, como uma forma de comunicação e de manifestação artística, logicamente que apropriada pela industrial cultural mainstream para a geração imediata de vultosos lucros, ainda que possuindo diversos elementos interessantes, críticos e até subversivos. 

A verdade dos quadrinhos e os ciúmes


Alexandre Linck Vargas é professor universitário de Cinema. Atualmente faz também doutorado sobre Teoria dos Quadrinhos e escreve para um blog diferente, com uma proposta "além", o Quadrinhos na Sarjeta. Linck realiza leituras analíticas, muito contextuais, deslindando visões estéticas e sociopolíticas a partir dos quadrinhos, e seu blog é altamente recomendado. Aqui, colaborando para a gente, ele escreve sobre a Academia e os Quadrinhos, um tema relevante. Como em qualquer assunto, os quadrinhos são matéria-prima para o pensamento estético, filosófico e/ou sociológico. Não existe absolutamente qualquer razão para que assim não o seja, considerando que o "pensamento acadêmico" por sí só não existe, a não ser como direcionamento do próprio pensamento em si. Obrigado Linck e boa leitura a todos! (CIM)

por Linck

Antes de tudo gostaria de agradecer o convite do Ciro para escrever aqui. Demorei para achar o tom na medida em que já escrevo em outro lugar e não queria apenas fazer mais um texto de “rotina”. Pensei então em concentrar uma discussão que de certa maneira se dissemina em cada texto lá no Quadrinhos na Sarjeta: A verdade das HQs! (música de revelação). Isso é pretensioso? Demais. E é mentiroso também. Eu não falo da verdade, muito menos das HQs, mas quero pensar um pouco o problema da verdade.
                                         
É sabido que historicamente os quadrinhos foram pouco lidos pela academia. Há diversas iniciativas que se destacam, mas pontuais. No Brasil existem duas tradições bastante fortes, a tradição semiótica e a tradição marxista. Mesmo assim num país pouco escolarizado e bastante alheio ao mundo acadêmico, essas duas linhas não encontraram muita ressonância no leitor comum. Com isso criou-se um curioso cenário de isolamento. Não só isolamento da academia com o leitor, mas também entre os pequenos grupos que estudavam quadrinhos no âmbito acadêmico.


Tudo isso que aponto, tenho por base algumas conversas que ouvi do pessoal da velha guarda, como Álvaro de Moya e Moacy Cirne. Mas também noto isso falando com os antigos colecionadores de quadrinhos. Seja como for, o que me parece evidente é que grupos ou pessoas, no isolamento cultural natural dessa arte, outrora “lixo”, desenvolveram verdades a respeito das HQs para si. A falta de interlocução fora do “clube” propiciou isso. Então chegamos aos anos 2000.

O gradual movimento de valorização das HQs na Europa nos anos 1960, no Brasil nos anos 1970 e nos EUA nos anos 1980 fez os quadrinhos integrarem toda uma sorte de debates nos dias de hoje, sejam eles estéticos, políticos, mercadológicos, etc. Somados à internet, com a profusão de blogs e sites a respeito, qual o resultado mais provável? Um estranhamento. Mas não qualquer estranhamento, falo do tipo ciumento mesmo, ensimesmado que quando vislumbra um olhar muito diferente sobre algo já consolidado para si, tende a deixar de ver, rejeitar ou até mesmo agredir. “Como ousa dizer que o Batman é assim quando ele é assado?” é a personificação desse gesto. Academicamente outro clichê é “você não pode ler Batman assim ignorando a teoria a, o autor b e tradição c”!

O que está em jogo no cenário atual é uma espécie de choque com o reflexo. “Como alguém que curte Conan, como eu, pode ser tão diferente?”  A resposta, creio eu, é porque as HQs são de fato uma arte rica, como qualquer coisa que pode ser enriquecida quando tanta gente devota uma paixão. O maior desafio agora, entre os leitores, nos blogs e na academia, é a abolição da verdade. Do conceito de verdade, dessa metáfora que a gente usa pra encerrar uma discussão e preservar narcisicamente um pensamento. “Isso é verdade, tudo o que você disser contrário é mentira!”. A afirmação de uma verdade é a maior covardia perante a responsabilidade que um olhar pode ter. Só hipocritamente se eximindo de nossa atuação extrínseca que dá pra qualificar como verdadeiro algo intrinsicamente.

Semioticismo, marxismo, ou qualquer outro ismo são formas de ver, ferramentas que uns julgam mais eficientes, outros não. Faz parte do jogo. A mesma coisa vale com aquele leitor que nunca precisou recorrer a essas teorias pra ler um gibi. Teorias são atravessadas na cultura, a diferença é quando conhecemos a tradição que nos inserimos e praticamos ou não. Por isso a necessidade de largar mão de certos ciúmes, aceitar outros olhares no que há de contínuo, criativo, estranhamente diferente no outro. É por aí que se potencializa a artes das HQs, não no vale tudo da relatividade, mas no próprio poder de inventividade dos argumentos. Contra o choque monocromático da verdade é preciso o diferencial da afecção de cada um. Longa vida criativa então aos espaços dedicados a pensar os quadrinhos de forma aberta – mesmo que sejam eles, também, muito estranhos ao meu olhar! Sigamos, como quadro após quadro, na diferença do desenho, que estabelece uma única narrativa.