Entre a utopia e a distopia: Mickey no ano 2000

Em 1988 a Editora Abril lançou três grandes e lindos volumes recompilando todas as primeiras edições de “Pato Donald”, que não apenas foram as primeiras publicações de Disney no Brasil, como também as primeiras publicações da própria Abril. E, naquela época, levado por meu pai a uma das feiras do livro de Brasília, eu estava lá, observando a linda capa do Volume 1, com Donald xerife de peito de aço recebendo saraivada de balas. Eu estava lá, e pedi a meu pai que comprasse aquele volume pra mim. Tenho certeza de que esta edição de “Anos de ouro do Pato Donald” foi muito importante para a minha formação quadrinística. Lembro-me de ler este volume algumas vezes, bastante afoito. E lembro-me de uma história em especial, que nunca me fugiu à mente depois que o volume desapareceu da minha casa, em meados dos anos 90.

“Mickey no ano 2000” é uma história do ano de 1950, e não faço ideia a quem se deve atribuir a autoria (“Copyright 1950 Walt Disney Productions”). É uma história absolutamente admirável e, nela, o camundongo recebe, de maneira muito não-usual, uma encomenda pelo correio com uma caixa e o seguinte bilhete: “Querido Mickey! Ponha esta capa invisível e verá as maravilhas do ano 2000. – Um amigo da ciência”. Se a própria noção de uma “capa invisível” já parece junk-science o suficiente, imagine o que ela – e todo o resto de vitupérios científicos que viriam nas páginas a seguir – podiam realizar na cabeça de um menino de sete anos. Essa coisa do ano 2.000 sempre me fascinou de tamanha maneira (obviamente, antes que o ano modorrento que ele efetivamente foi chegasse) que eu também aderi de um jeito um tanto irracional a outra obra de retrofuturismo que abordava (de uma maneira, digamos, ligeiramente diferente) a mesma questão: o filme 2001, um odisseia no espaço. Quando encontrei, mais recentemente, num sebo, esta mesma edição por preço até módico, catei ela da prateleria e resolvi reler esta minha incrível história de formação.

Hohoho. E Papai Noel, vai bem?

É surpreendente que uma história tão ingênua tenha sido capaz de me reencantar. Para entender o processo todo, cabe um pequeno exercício de futurologia e análise retrofuturista: após vestir a capa, Mickey efetivamente se materializa no ano 2000. Em primeira instância, temos uma investigação do nosso herói – após atravessar o simbólico portal para a nossa suposta contemporaneidade – da vida, coisas e hábitos do ano 2000. Além de engenhocas como hidrantes esquisitos e máquinas que te vestem e lavam, há um fascínio pela conquista do espaço aéreo, com helicópteros cumprindo todas as funções do nosso trânsito, a ponto de Mickey, ao observar o aero-ônibus “Bonde aéreo à praça da Sé” (a tradução paulistana é impagável), soltar a seguinte observação: “Formidável! Solucionaram o problema de transporte de passageiros!”. Se cabe um comentário ao camundongo, vale dizer que nós, habitantes verdadeiros do ano 2000, nunca sequer soubemos de um “problema de transporte de passageiros” em São Paulo... em 1950! Quão surpreso nosso herói ficaria se pudesse como realmente andam essas coisas nos anos 2000.

Além de algumas previsibilidades interessantes e acertadas, como as videoconferências e a emulação de algumas contingências sociais derivadas disso, a primeira parte é toda motivada por um espanto do personagem (junto com Pluto) em relação a uma tecnização absoluta do mundo: pessoas se alimentando de pílulas, vendendo terrenos nas nuvens, mendigos dormindo em redes flutuantes. Há outros tipos de comentários sociais neste “admirável mundo novo”, como a presença de um “olho elétrico” que impede que Pluto entre num mercado avesso a animais. Todo este ato, corolário da eficiência da tecnologia (e de um mundo racionalizado pela técnica) ganha seu comentário definitivo quando Minnie é sequestrada por Bafo de Onça (“Pete”), e Mickey se dirige à polícia. Lá ele toma conhecimento de que “não há crimes no ano 2000” (estranho: se não há crimes, pra quê existe polícia? E estranho essa designação de “ano 2000” como um lugar, e não como uma época). Em 2000, uma conquista do espaço aéreo como espaço de habitação e convivência (alguém aí lembrou o Elevado de São Paulo?) e uma tecnologia capaz de realizar tudo que precisamos (inclusive plantando árvores artificiais para nós) leva o mundo a uma utopia. Quase uma utopia comunista, conforme Marx havia imaginado que teleologicamente aconteceria. É irônico que esta história tenha sido escrita dentro da empresa de maior pegada industrial de quadrinhos dos EUA, no meio da era do macartismo.

 A essa altura, a história já era suficientemente interessante sob vários aspectos, mas ela melhora ainda mais no segundo ato quando descobrimos que Bafo de Onça (conflito!) vive dentro de uma nuvem onde existe uma outra abordagem sobre a tecnologia, complexificando enormemente a versão ingênua do primeiro ato. Aqui, nosso herói deve se deparar com um mundo perversamente tecnizado, dominado por um ditador à 50’s (o próprio Bafo), que pretende, nada mais e nada menos, que “conquistar o universo”. Neste seu reino particular, Bafo controla um exército de autômatos (“robots são como autômatos”, eles precisam explicar) que usufruem de todo tipo de armas e techno bubbles, assim como compõem as divisões de defesa, política e organização de uma sociedade inteiramente não-humana. Prevê-se uma substituição completa da humanidade por duplos mecanizados, obedientes, seguidores de programações . Uma distopia se anuncia, e Mickey se depara com horripilante perspectiva ao perceber que Bafo havia construído um clone mecânico seu, com suas virtudes de herói, mas revertidas para a servidão. Um problema do complexo de Frankenstein, da tecnofobia, e um comentário sobre cibercultura contemporânea se estabelece: se nosso duplo fáustico for um duplo mecânico, devemos temê-lo mais ainda?

Bafão

Tudo caminha, então, para a concretização desta distopia que nos levaria à extinção quando, mais uma vez, esta engenhosa história que – à parte uma análise futurista ingênua que apontaria apenas os itens sonhadores que não se concretizaram –, numa imanência subliminar, parece entender de alguma forma nossa própria época e ao mesmo tempo lançar os antídotos para solucioná-la. Assim como Mickey, Minnie também tem um duplo robótico (a sensual Mimi, não exatamente igual a Minnie, mas cumprindo mesma função narrativa). Mimi, o robô humanizado, tão retratado na ficção científica, se apaixona por Mickey, e, lançando-se à vontade de se tornar indefectivelmente humana, sabota a operação de Bafo, reprograma os outros robôs, salva o mundo e – pasmem – ainda é tragicamente assassinada pelo facínora. No final das contas, à maneira de outro conto sombrio que também denunciava metaforicamente a tecnização do mundo (O gabinete do Dr. Caligari), Mickey desperta e percebe que tudo aquilo não passara de um sonho que ele tivera após brincar com seu sobrinho e seus bonequinhos de “robots”.

Bem, que leitura eu poderia retirar desta fábula tão bem construída em dois atos sólidos e excelente quadrinização, altamente problematizadora e invertendo relações na cabeça de um modesto garoto de sete anos? Neste mundo de 2000, excetuando-se a bobagem de prever o futuro (sempre o erro dos que pensam que sci-fi serve pra isso), vemos um ambiente onde algumas das principais questões do século 20 são retratadas de maneira dinâmica, com a possibilidade de reprogramação da distopia pela utopia utilizando das mesmas ferramentas que levaram a sociedade ao colapso: o velho paradoxo da tecnologia. Não é à toa que Mickey fantasia este mundo através de um objeto infantil, cuja premissa de repetição é a mesma da técnica. A criança que brinca (já dizia Walter Benjamin) quer continuar brincando (e não há mal nisso). Mas o adulto não pode mais brincar, e, ao invés disso, cria uma fantasia narrativa sobre o processo cumulativo, repetitivo e asséptico da técnica, que, felizmente, ainda pode ser reprogramado.

Serviço de utilidade pública: III Jornada de Romances Gráficos


III JORNADA DE ESTUDOS SOBRE ROMANCES GRÁFICOS
Data: 24 e 25 de setembro de 2012.

Local: Auditório 1 do Instituto de Ciências Biológicas – Universidade de Brasília


O Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea convida para a terceira edição da Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos. Dando prosseguimento e ampliando as discussões sobre as narrativas gráficas e suas relações, alcances, disputas no campo literário, o evento consistirá de apresentação de trabalhos, palestras com convidadas(os), oficinas, lançamentos sobre o tema. O público alvo é composto de pesquisadoras(es), estudantes, profissionais da área e interessadas(os) em geral, que poderão participar com a apresentação de trabalhos ou como ouvintes.

Inscrição: A inscrição será realizada pelo e-mail do evento – jornadaromancesgraficos@gmail.com – a partir de 15 de abril.
Pagamento da inscrição: O pagamento deverá ser realizado no primeiro dia do evento.
Professoras(es): R$ 70,00. Alunas(os) de pós-graduação: R$ 50,00. Alunas(os) de graduação: R$ 30,00. Ouvintes: R$ 20,00.

Vagas: 30 para apresentação de trabalhos e 100 para ouvintes.
Informações: http://www.gelbc.com.br
Submissão de trabalhos: 
Para inscrição de trabalhos, as(os) interessadas(os) deverão encaminhar resumo a ser analisado pela organização do evento. Estudantes de graduação poderão participar com a apresentação de pôsteres. O prazo final para envio é 20 de maio.

As(os) proponentes receberão um e-mail com a resposta até o dia 30 de junho, informando da aceitação ou não do seu resumo.
Todo o processo de encaminhamento de resumos será feito via e-mail do evento: jornadaromancesgraficos@gmail.com

Normas para apresentação do resumo para avaliação: 
A apresentação da proposta de trabalho deve conter, nesta ordem:
1) Nome completo da(o) autor(a), cidade, instituição a qual está vinculada(o), tipo de vínculo, e-mail para contato.
2) Indicação do eixo temático onde o trabalho pode ser inserido.
3) Título do trabalho, fonte times new roman, corpo 14, em negrito, centralizado.
4) Resumo, com no máximo 250 palavras, em fonte times new roman, corpo 12, espaço simples.

Eixos temáticos:
- Memória e subjetividades
- Gênero e sexualidades
- Reportagem, testemunho e relato
- Quadrinhos como expressão pictórica
- Quadrinhos de entretenimento
- Quadrinhos e mercado

Informações para apresentação de trabalhos orais: 
As apresentações terão duração máxima de 20 minutos. Será disponibilizado power point; para sua utilização, o arquivo com o trabalho deverá ser entregue com antecedência à organização do evento.

Informações para apresentação de pôsteres:
Caso o trabalho seja aceito, o pôster deverá, obrigatoriamente, ser fixado e retirado pela(o) participante no dia e local definidos pela organização. Mais detalhes serão fornecidos posteriormente.

Normas para submissão dos trabalhos científicos para os Anais:
1. Os trabalhos deverão ser enviados exclusivamente pelo e-mail do evento.
2. O trabalho deverá ter no máximo 30 páginas, incluindo as referências, conforme modelo definido pela organização, a ser divulgado. 
3. Mensagens relacionadas ao status de avaliação/aceitação ou não do trabalho serão enviadas por meio de e-mail informado na ficha de inscrição do(a) autor(a). 
4. Os trabalhos que não estiverem de acordo com as normas de submissão serão automaticamente desconsiderados para os anais.

Coordenação:
Profª Drª Regina Dalcastagnè (UnB)

Comitê organizador:
Ciro Inácio Marcondes (UnB)
Igor Ximenes Graciano (UFF)
Ludimila Moreira Menezes (UnB)
Maria Clara da Silva Ramos Carneiro (UFRJ)

Comissão acadêmica: 
Prof. Dr. Anderson Luís Nunes da Mata
Profª Drª Cíntia Schwantes
Profª Drª Maria Isabel Edom Pires
Prof. Dr. Paulo César Thomaz
Profª Drª Virgínia Maria Vasconcelos Leal

Organização: 
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea

HQ em um quadro: Mandrake, doutrinador de Hollywood, por Lee Falk





















Mandrake dá palmadas virtuais em astro mirim de Hollywood (Lee Falk, 1938): voltando de uma viagem à Itália,  meu irmão veio com uma edição bem puída, datada dos anos 70, de uma coletânea de histórias de Mandrake (Editoriale Corno (!); coleção Super fumetti in FILM), incluindo um ciclo completo realizado pelo próprio Lee Falk em 1938, além de três outros dos anos 60, da ótima fase de Phil Davis. A edição é curiosamente um produto de convergência, procurando republicar heróis que haviam aparecido também no cinema. No caso de Mandrake, uma série de pequenos filmes, 12 episódios, bem vagabunda, lançada em 1939 (outros heróis da coleção incluem Doc Savage, Diabolik, Kriminal, Drácula, Fantasma, Satanik... bem legal). Como não sei italiano, para ler o gibi desfalecente e mofadinho tive que fazer um mínimo múltiplo comum de português, francês e espanhol. A coisa meio que funcionou e tornou a experiência ainda mais pitoresca. Un altro trucco di Mandrake!


O que chama a atenção para este requadro selecionado é o fato de pertencer ao arco da história (publicado pelo King Features Syndicate) escrita pelo criador do personagem, bem apropriadamente chamada "Mandrake em Hollywood", antecipando o lançamento da série para o cinema. Logicamente, esta série em quadrinhos foi publicada em tiras de 3 em 3 quadros, tornando a coletânea uma leitura bastante monótona. A arte, digamos, "primitiva", lembra os próprios primórdios do cinema - pouca ação, com baixa variação de ângulos (quase todos em "plano americano") e exploração primária de recursos básicos como flashbacks, letreiros e outros elementos dos quadrinhos. Estes "primeiros quadrinhos" eram balizados, em quase sua totalidade, nos diálogos. O conteúdo moral das histórias, porém, bem duvidoso, não parece processar a mesma ingenuidade.

Aqui, Mandrake, o mago da "magia branca" (como o prefácio do gibi faz questão de esclarecer), assina contrato como ator de Hollywood e passa a investigar casos envolvendo as celebridades de Beverly Hills. Os dois casos mostrados em "Mandrake em Hollywood" apresentam o mesmo detour moral: no primeiro, uma vedete loira e orgulhosa, namoradinha da América, que não gosta de atuar e maltrata sua dublê, se vê cair num golpe engenhoso (dá-lhe vilões!): a dublê assume sua identidade e bota a biscate na miséria. Mandrake, o enfadonho gentil-homem, passa a investigar, desvendar o caso, prender a dublê e restaurar a ordem. Nas tiras subsequentes, o fato de a atriz humilhar anteriormente a dublê não é mais mencionado. Para o velho mago, dois pesos são duas medidas diferentes. No segundo caso, ainda mais hilário, um pequeno Justin Bieber da época, o rabugento Sonny, é uma giga estrela mirim, indescritivelmente babaca, que humilha camareiros e motoristas, prestando respeito apenas à amizade sóbria de Mandrake. As coisas vão se dando assim até que alguns empregados, coerentemente de saco cheio, resolvem sequestrar o infame peralta e pedir a fortuna de 1 milhão de dólares como resgate. Claro que Mandrake passa a investigar tudo e restaurar a paz no reino de Hollywood novamente.

A diferença entre os dois arcos é que, na história de Sonny, Mandrake reconhece a personalidade "difícil" do menino e resolve usar de alguns corretivos para libertar a natureza bondosa que se escondia por trás daquele pequeno Hitler (o grande, por sinal, já chegava invadindo a Polônia naquela mesma época). O hilário é que, evidentemente, Mandrake não vai sujar suas mãos pra dar umas palmadas no moleque (afinal, quem é que bate no filho dos outros?). Então, ele cria uma ilusão (tipo um... hmmm... cinema?) que mostra a mãe de Sonny aplicando-lhe o corretivo, como se o ato passivo da espectatorialidade, conforme muito bem se acreditava a respeito do cinema na época, provocasse o distanciamento necessário para que fossem aplicadas às massas, num doutrinamento técnico, os corretivos capazes de reconstruir as imagens individuais e coletivas de um povo. Hitler que o diga! Cinema é magia! (CIM)


Q para QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes

Eu fui pego de calças curtas. Tendo adquirido Ovelha negra – A revista que o Brasil não leu encomendando-a pela Internet através do site da Pandemônio, fui lendo-a sem saber exatamente do que se tratava. Apenas tinha a referência de ser de autoria do Professor da UFMG e quadrinista retumbantemente aficcionado Daniel Werneck, em parceria com o desenhista Ricardo Tokumoto. Era o suficiente. Porém, ao começar a ler o gibi, envolvi-me num mundo mais intrigante do que poderia esperar: tratava-se de uma recuperação (“restauração”) devidamente comentada e contextualizada, de uma revista de HQs de contracultura que havia balançado a cena belorizontina, como zine ou revista, nas décadas de 50, 60 e 70. O material era incrível, e a evolução dos desenhos e quadrinistas, acompanhando a trajetória sociopolítica do Brasil, mais ainda. O trabalho de “pesquisa” parecia extremamente bem-feito, especialmente em contextualizar o desaparecimento, sem rastros, da revista nas décadas seguintes, devido à linha dura do governo militar. Até que, de repente, um estalo me bateu à cabeça: “Como é possível que uma revista desse calibre, com experimentações avançadas de linguagem e conteudo forte e contracultural, não seja absolutamente idolatrado pelos quadrinistas de hoje, na era da Internet, ou isso não seja recorrentemente citado por artistas do calibre de Angeli ou Adão. Como é possível que eu mesmo nunca tenha ouvido falar nisso”?? Não aguentando mais, chequei as últimas páginas e percebi que todo o gibi de tratava de um tipo de mockumentary, ou um “jornalismo falso em quadrinhos”.

F for fake.

Este parágrafo escrito acima é um parágrafo falso. O que ocorreu na verdade foi bem diferente. Werneck já anunciava a publicação desta HQ pelo twitter muito antes de ela efetivamente sair, no final de 2011, e eu tive a oportunidade de conhecê-lo (apenas virtualmente), via @raiolaserhq, já há algum tempo e, através de meses a fio, acompanhei o desenvolvimento desta HQ: a redação das notas de rodapé, importantíssimas para se entender o comentário ideológico e estético da obra; a construção dos documentos forjados; a conceituação estética de cada uma das tiras, diferentes entre si (assim como dos “autores”), referindo-se a culturas diversas de quadrinhos dos 50’s aos 70’s; e até mesmo a chegada das pinups desenhadas por ótimos quadrinistas da presente geração hipermoderna de HQs no Brasil. Quando recebi Ovelha negra, portanto, rasguei o papel da embalagem e li numa sentada só, conferindo o apuro detalhado com que aquiilo havia sido concebido e executado.

O segundo parágrafo, acima, também é uma mentira? Pode muito bem ser, e esse é o ponto (perdoem a introdução fora dos padrões) a que eu gostaria de chegar sobre esta HQ: citando uma frase de Eumyr (o “maior falsário do século 20”), personagem de F for fake de Orson Welles, “se você pindura uma pintura falsa por muito tempo numa parede, ela se torna real”. Por mais que Ovelha negra não seja um fake que não se admite, como o filme de Welles (está tudo devidamente explicadinho, nas páginas finais, incluindo as homenagens aos quadrinistas históricos que a HQ emula), esta brincadeira (avançada) com o jornalismo dos e em quadrinhos tem toda uma charmosa narrativa subjacente, cativante para mentes espertas, que percebem não apenas uma maneira classuda de se reler a história de BH e do Brasil, mas uma construção, de vários jeitos inédita, de se contar a história dos quadrinhos em si, underground (o foco mais óbvio) ou mainstream (de maneira paralela). É desse jeito que esse gibi nos aprisiona em várias frentes: além de toda a construção metalinguística, os autores tiveram a preocupação de criar bons quadrinhos em sua farsa, respeitando suas referências originais (questão de coerência com a História e com o próprio mockumentary) e ao mesmo tempo pingando gotas de originalidade e autoria em cada uma delas. Assim, os falsos autores de quadrinhos vão ganhando personalidades delineadas na própria evolução histórica das tiras, que vão se intensificando em conceitos diferentes, tudo a partir dos mesmos dois autores implícitos. Mestres da falsificação.

A "evolução" do Capitão Raio-Laser Fica, então, a lição mais bonita de Ovelha negra. Por mais que identifiquemos ali, naquelas tiras, a Revista MAD, Peanuts, Gato Félix, Flash Gordon, Agente X-9, Recruta Zero, Zap Comix, Angeli, Laerte e o escambau (basicamente duas páginas inteiras de citações), os quadrinhos em si são encantadores. Vale pensar na autonomia metalinguística do traço simplório de Sir Roderick, ou o comentário sobre a cultura do rock em Os meteoros, ou que bela e sagaz tira real daria Urubu rei e Cristiano; ou o apelo à HQ mais abstrata na nada ingênua Crás, boom e bang; ou, fazendo eu mesmo a minha própria ficção derivativa e alucinatória, o comentário político em Capitão Raio Laser, cujo nome teria sido inspirado neste mesmo site que vocês leem neste momento.

Ovelha negra chega justamente num momento em que o reconhecimento das HQs como arte segue a uma gigante exponenciação do potencial desta mesma arte, com artistas no mundo inteiro investindo nesta carreira e apontando para todas as direções possíveis. Verdadeira diáspora das HQs. Como o cinema (não se enganem: esta é uma arte hoje decadente) fez nos anos 60. Vale, pra finalizar, mandar outra frase de F for fake, citada (supostamente), do poeta Kipling: “Adão, nosso pai, ao chegar no paraíso, pegou um graveto no chão e começou a fazer lindos desenhos na lama, quando, sorrateiramente, o diabo se aproxima dele e sussurra, ao pé do ouvido, a danação: estes desenhos são muito bonitos, mas eles são arte”? Bem, quanto a isso, posso apenas sugerir que Ovelha negra seja lido em cada falso detalhe de cada falso editorial, em cada falsa sessão de cartas, em cada falsa nota de rodapé, em cada falso documento da ditadura. Nestas entrelinhas, sinais de arte verdadeira.

Sir Roderick é uma das piadas mais interessantes de "Ovelha Negra"

Angeli: minerador de crises





Esta estreia, nas colaborações, do meu irmão Luiz Gustavo Marcondes tem sabor especial. Primeiro: porque a promessa de colaboração já vem de longa data. e finalmente se deu. Segundo: porque Guga se predispôs a cobrir, com ótimas fotos, esta incrível expo do Angeli, em nem eu nem Pedro pudemos conferir. E ainda num fim de semana futebolístico complicado (salve, tricolor paulista!). Terceiro: porque seu texto tem uma clareza sintética e ao mesmo tempo objetividade crítica que às vezes faltam aos rocambólicos escribas daqui. Gustavo é jornalista do Correio Braziliense, e escreve para o melhor Caderno de Esportes do Brasil. É aficcionado por cultura pop e arte em geral, e curte, é claro, quadrinhos além. (CIM)

texto e fotos por Gustavo Marcondes

Em um dos vídeos que faz parte da exposição Ocupação Angeli – aberta apenas até o domingo 6 de maio, com entrada gratuita –, em São Paulo, o cartunista diz que perdeu o tato para escrever e desenhar “tiras”. Uma confissão franca e que não esconde o cansaço criativo do artista de 55 anos com relação ao formato que o consagrou, ainda nos anos 1970. Um passeio com calma pela pequena sala do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, porém, pode indicar que a coisa não vai tão mal assim.



Nos trabalhos mais recentes, Angeli realmente opta pela charge, que, em vez da tira em dois, três ou mais quadros, é formada por uma única imagem. É assim que ele prefere, hoje, escancarar a sordidez do poder ou a monotonia/o vazio/o caos das metrópoles. E os muitos exemplos na Ocupação mostram que também nesse modelo ele atingiu a excelência. Em uma das paredes da exposição, por exemplo, 19 enormes charges mostram a visão Angeli do poder. Numa das mais legais, dezenas de bandidos armados com metralhadores se escondem na sombra da estátua da Justiça, cega.  Em outra, a entrada de uma paranoica São Paulo é separada: de um lado entram os fumantes; do outro, os não fumantes. Mais atual impossível.

Mas é inegável que o público ainda vibra mais com as tiras e os personagens clássicos de Angeli. Normal, como num show de rock em que os fãs aguardam pelos velhos hits. E na Ocupação estão todos os clássicos do artista: Rê Bordosa, os Skrotinhos, Los Três Amigos, Bob Cuspe, Wood & Stock, Luke e Tantra, Let’s Talk About Sex, etc. etc. etc.. Em uma montagem que aproveita ao máximo o espaço reduzido do Itaú Cultural, dezenas de gavetas se abrem para quase 40 anos de acidez. A concorrência para abrir qualquer delas tão alta quanto a para ver as imagens nas paredes.

São 880 obras, sendo 80 originais. Trabalhos sobre sexo (em uma área separada, teoricamente para maiores de 18 anos), jazz, pôsteres de festivais de cinema, capas de discos, caricaturas e edições da histórica revista Chiclete com Banana complementam a exposição, além de fotos do arquivo pessoal de Angeli, com imagens de sua infância e adolescência. Em outra boa sacada, há diversos livretos distribuídos pela sala, com trabalhos temáticos de vários personagens – esses bem menos concorridos que as gavetas. Em resumo: é preciso mais tempo que o aparente (pelo tamanho do local) para ver com propriedade todas as partes da exposição e passear com calma pelas diversas fases do artista.

Há um espaço bastante generoso dedicado a uma das séries mais recentes da obra dele: Angeli em Crise. Dezenas de imagens do cartunista sentado em seu estúdio, fumando, pensando, bebendo, agoniando-se, questionando a profissão, fumando mais... A crise dos 50, como ele admite no vídeo gravado para a exposição. Mas só para ele. Pois o conjunto das tiras – sim, a maioria delas no formato de tiras de três quadros – mostra um artista que se recria bebendo da suposta falta de criatividade. Ave Angeli!


Ocupação Angeli
Até 6 de maio no Itaú Cultural, Avenida Paulista 149, Metrô Brigadeiro, das 11h às 20h














Quadrinhos além... do papel!












por Lima Neto
Ahhh! Terremotos! Tsunamis! Crises monetárias mundiais!
Realmente o mundo anda vivenciando um clima aconchegante de apocalipse. Mas, se o tempo e o espaço pudessem ser resumidos em uma palavra, talvez “mudança” fosse a mais apropriada. Mudança causa terror! Mudança causa apreensão! E mudança traz esperança, para aqueles que são de sentir esperança. Um desses abençoados é um velho conhecido do mundo do quadrinho norte-americano: o escritor Mark Waid, famoso pela sua visão do futuro do universo DC junto com o artista Alex Ross em Reino do Amanhã e outros trabalhos tanto para a editora da Warner quanto para a Marvel.



Mark Waid escreveu Reino do amanhã. Sujeito cabuloso
No final do ano passado, Waid deixou seu cargo de editor chefe da editora Boom!, onde publicava seus títulos Irredimable e Uncorruptible, para voltar ao estatus de escritor freelance. Mas seus objetivos eram maiores que isso, e bem mais proféticos! Waid agora é o porta-estandarte dos quadrinhos digitais. De acordo com o escritor, uma série de fatores, como a popularização de mídias portáteis de leitura, a imensa queda nas vendas dos quadrinhos impressos, o alto custo da impressão em papel, a porcentagem absurda taxada pelas distribuidoras – além de impossibilitar a entrada de sangue novo no mercado, vão mudar o perfil da indústria de quadrinhos até o ponto de dar um fim ao quadrinho impresso na maneira como são produzidos hoje nos EUA. E para ele (e para mim também) está é uma boa mudança.
Apostando em Waid, a Disn... digo, a  Marvel comics anunciou o lançamento do selo Infinty de quadrinhos online e app's de realidade aumentada, visando o mercado dos tablets. Em uma decisão sábia, colocou o próprio Waid como chefe da linha. A decisão é sábia pois Waid não só faz campanha a favor do quadrinho digital como, junto de artistas colaboradores, vem pesquisando técnicas narrativas que exploram as potencialidades do meio digital. Você pode conferir parte desse processo, ainda inicial, neste vídeo abaixo:


O resultado da parceria Waid/Marvel pode ser vista na edição Avengers Vs X-men Infinity, uma introdução à saga que você pode baixar via um código dado na compra da edição número #1. A revista tem arte de Stuart Immonen, que recebe crédito de co-roteirista. Esse crédito não é dado por acaso. Existe um leque enorme de possibilidades para produção do quadrinho online e, de acordo com o próprio Waid, a ideia não é fazer um quadrinho animado, como já houve em outros experimentos, e sim procurar a afinação correta em que se possa explorar alternativas, mas sem tirar do leitor o controle sobre o timing da narrativa. Nessa perspectiva, o artista acumula uma nova função: a de contar a história com a tecnologia disponível para a mídia digital.
O maior problema, no entanto, não está na exploração da capacidade narrativa do meio, o que na verdade é um motivo de empolgação para os artistas envolvidos, mas sim em outros aspectos mais, digamos, quantitativos. Atualmente existem terabytes infinitos de quadrinhos online sendo publicados na net. Existem graus diferentes de qualidade, é verdade, mas o grande ponto em comum entre eles é o fato de não receberem pagamento pela veiculação dos mesmos. Lógico que o grande sonho é que seu quadrinho faça sucesso o suficiente para poder daí ser lançado na mídia de revista. Mas para mapear todos os quadrinhos online sendo produzidos no mundo seria preciso uma dedicação realmente sobre-humana.
Neste panorama, o respaldo de editoras já estabelecidas no mercado poderia servir como um portal de extrema utilidade para se conhecer novos trabalhos que tenham um nível efetivo de qualidade. É lógico, porém, que tal ação funcionaria como um filtro que obedeceria a critérios muito específicos e que acabem não privilegiando a criatividade ou qualidade destas HQs.
Uma boa saída para este impasse pode estar justamente na criação de portais cooperativos de artistas associados e autônomos que possam, em conjunto, colaborar para a manutenção da produção e da qualidade buscando apoio monetário via publicidade no site. Pensar este novo lugar para o quadrinho pode ser uma boa saída frente às limitações impostas, tanto monetárias quanto ideológicas, do quadrinho impresso. Lógico que o trabalho de produção continua o mesmo e demanda o mesmo tempo. Mas o que vejo é uma boa época para que o quadrinho independente, com todo o potencial artístico envolvido neste termo e sem preconceitos de gênero (de histórias, não o sexual), possa tomar o lugar que vai ser deixado vago pelas grandes corporações em breve.
E, agora que acabo de escrever o artigo, o site Comics Alliance acaba de postar uma matéria sobre um site que ajuda a procurar quadrinhos online postando primeiro quadro de cada título. Just the first frame é o nome do site e uma boa maneira de passar os olhos por um conteúdo de quadrinhos online bem extensos e que sofre updates constantes. Outra novidade, que chegou até mim via Ciro Marcondes - uma das mentes por trás do site Raio Laser - é o Tumblr Maria Nanquim, que posta charges e tiras nacionais e gringas sempre com uma verve mordaz e com vários artistas novos. 

Fantasia cotidiana






















por Pedro Brandt

O prêmio de revelação dado em 2009 a Bastien Vivès no Festival de Angoulême — evento francês dentre os mais relevantes para as histórias em quadrinhos na Europa — colocou em evidência o talento do jovem autor e da obra pela qual ele foi premiado na ocasião, O gosto do cloro (Le goût du chlore). Publicada originalmente em 2008, ela acaba de chegar ao Brasil pelo selo Barba Negra (ligado à editora Leya). Independente de distinções e honrarias, o trabalho merece ser conhecido por seus méritos próprios. É, desde já, um dos melhores lançamentos do ano.


Se o leitor quiser chegar logo ao final da história, consegue passar pelas 140 páginas em 15, 20 minutos. No entanto, cada uma delas é um deleite visual, permitindo uma leitura mais demorada, atenciosa e, consequentemente, mais prazerosa. Todo os elementos apresentados ali são preciosos, desde a escolha das cores (o verde e o cinza, em diversos tons, estão em toda parte), as angulações das cenas, as expressões dos personagens e, especialmente, como o desenhista consegue causar a sensação da passagem do tempo ao longo da narrativa. Os silêncios e tempos mortos são detalhes muito bem explorados pelo autor. Isso talvez se explique pala formação de Bastien Vivès: o francês de 28 anos é graduado em artes plásticas e cinema de animação. Se ele quiser transformar O gosto de cloro em curta-metragem, já tem pronto um minucioso story board.

Amizade na água

Em nenhum momento da HQ são apresentados os nomes dos personagens e as informações sobre eles são praticamente inexistentes. Nem precisaria ser diferente, já que no desenrolar da breve história os poucos diálogos são o suficiente para causar empatia.

A HQ começa em uma sessão de fisioterapia. O protagonista é aconselhado a praticar natação para melhorar seu problema nas costas. A pouca habilidade para nadar, a solidão na piscina (e o tédio decorrente dela) fazem com que ele pense em desistir.

 A situação muda quando o personagem finalmente conhece uma nadadora. O rapaz já a observava havia algum tempo. A moça o ajuda com dicas sobre natação. Ele quer conhecer um pouco mais sobre ela, faz perguntas. Ali na piscina, nasce uma amizade. Eles brincam, nadam e conversam. A natação, antes um fardo, ganha outra dimensão na rotina do protagonista.

A partir de um determinado momento na narrativa, preencher as lacunas deixadas por Bastien Vivès fica a cargo do leitor. Um relato bastante cotidiano até então, O gosto do cloro ganha, nas últimas 21 páginas, leves ares de fantasia. A sequência final — que pode ser encarada como uma metáfora sobre o inalcançável — é de tirar o fôlego, literalmente.

O gosto do cloro
De Bastien Vivès. 144 páginas. Barba Negra/ Leya. R$ 39,90.