O obscuro, sempre

 


por Ciro I. Marcondes

I just don’t see why I should even care
It’s not dark yet, but it’s getting there

            - Bob Dylan, “Not dark yet”.

É muito comum que grandes artistas ou pensadores, no final de suas vidas e carreiras, venham a olhar para um certo lado obscuro da existência. Atenhamo-nos ao básico: a faceta niilista e caótica das últimas tragédias de Shakespeare; a abissal missa de Réquiem de Mozart, composto para seu próprio enterro; o pessimismo derrotista nos últimos quatro álbuns de Bob Dylan; e até mesmo Freud demonstrou-se profundamente desiludido com a humanidade em seus últimos textos. Se conseguirmos aceitar isso como algum tipo de padrão – há que se considerar sempre as exceções. A nona de Beethoven, por exemplo, é um canto de cisne carregado de paixão e alegria – acho que ele se conforma com a resposta aparentemente mais óbvia, mas que só acreditamos quando acontece conosco: o envelhecimento é um processo muito difícil, de flagrante padecimento do corpo (e, portanto, de proximidade com a morte), e com ele confluem o acúmulo de frustrações e fracassos, de questões não-resolvidas, de inscrições cicatrizantes que vamos carregando na alma. Além disso, é evidente que o mundo não está ficando muito melhor, e daí é possível que estes artistas busquem uma última lufada de ar, carregada de pestilência fúnebre, que finalize com maturidade e severidade o próprio processo vital e artístico de cada um.

No caso que eu quero analisar aqui, é muito curioso o fato de se tratar de André Franquin, não apenas um mestre dos quadrinhos, mas também um mestre do humor nos quadrinhos. E o humor ganha particularidades insubstituíveis quando embebido de um tanto de... obscuridade. E Franquin acabou revelando-se um mestre também naquilo a que chamamos “humor negro”. Porém, antes de passar de vez a esta análise de seu humor, eu gostaria de pedir licença e analisar seu terror, a partir do mesmo sentido com que Francisco de Goya, o grande pintor do romantismo, instilou terror em sua fase terminal, já doente (circa 1820), surdo e quase cego, pintando as paredes de sua casa com cenas sombrias de rituais macabros, deuses pagãos e pessoas desfiguradas.

Esta brilhante fase de Goya, não planejada para ser exposta publicamente, acabou se tornando referência imediata aos movimentos modernos na pintura, como o expressionismo e o surrealismo, buscando revelar estados da alma a partir da figuração do monstro. Tornou-se famosa uma frase do pintor: “o sono da razão produz monstros”. É curioso pensar que Franquin, já nos anos 1970 e contando 47 anos (chegando ao auge da maturidade, portanto), dedicou boa parte de suas Ideias obscuras (Idées noires, publicadas ao longo de um par de anos na revista Fluide Glacial) a um imaginário surrealista, quase, quase sempre vinculado a ideias políticas ou éticas. Mas não há como negar que às vezes eram imagens puramente... monstruosas. Neste caso, basta citar uma história de uma página das Idées noires: dois homens passeiam por um trecho da cidade que mais se assemelha a um parque industrial, com viadutos, prédios em construção, gruas, plataformas. Um deles se queixa de que ali, antigamente, havia um bonito mercado, e que esse novo cenário destruiu o que havia de interessante na cidade. O outro, mais cético, fiz que ele está apenas cheio de nostalgias, e que o progresso é interessante, etc. A conversa avança até que o cético diz que ele está precisando mesmo é de um copo de vinho e uma boa noite de sonhos. Sem qualquer artifício para se fazer a passagem (letreiros, diálogos, mudança na moldura do quadro, etc.), Franquin então abre um gigantesco quadro panorâmico, fascinante, em que aquelas gruas, viadutos e plataformas erguem-se do chão, na forma de monstros, e começam a caminhar sobre a terra, povoando o sonho do coitado com um recalque indesejável.


Este imaginário onírico e certamente perturbado, que se assemelha ao de Goya justamente por não apenas dar vida, mas também por cultivar a vida dos monstros internos, é o que faz de Idées noires a obra-prima de Franquin. Uma obra-prima marcada por um tom macabro, impiedoso, quase irrefutável. E não estamos falando de qualquer autor, e sim daquele que escreveu a fase mais famosa de Spirou e criou Gaston Lagaffe (estátua dele aqui), símbolo dos quadrinhos na Bélgica.
Goya

Franquin
O pessimismo é um humanismo

Lagaffe
Se Spirou e Fantasio de Franquin é uma HQ mais infanto-juvenil mesmo, cheia de aventuras loucas e diálogos espertos, em Gaston Lagaffe já podemos reconhecer um pouco das ideias de Idées noires, porque já trazem um pouco do sabor do humor negro. Nas histórias do picareta Lagaffe, a estrutura mesma das páginas já se assemelha à das ideias obscuras: meia, uma ou no máximo duas páginas resumem tudo que precisa ser expressado, terminando geralmente numa explosão, em algum ato cômico de violência ou humilhação, e quase sempre num grande e expressivo quadro panorâmico. Da mesma forma, é em Gaston Lagaffe que Franquin vai criar a fórmula de inventar um ditado antecedendo cada história, geralmente no padrão “não se deve confundir essa coisa com essa outra coisa”, muitas vezes num trocadilho intraduzível do francês para o português (falando nisso: alô editoras – publiquem Idées noires no Brasil urgentemente!). Exemplo: “Il ne faut pas confondre pâle capitaine et peine capitale” (“Não se deve confundir ‘pálido capitão’ com ‘pena capital’”).

Mas o que é realmente fascinante em Idées noires é sua mistura curiosa de pessimismo e humanismo, numa concentração que nunca vi em nenhuma outra obra artística, o que (minha opinião) torna essa HQs quase crepuscular de Franquin tão interessante e ousada quanto as obras-primas citadas no primeiro parágrafo. Franquin era famoso por seu ativismo green e por sua defesa às causas dos direitos humanos, mas em Idées noires estes temas se tornam vinganças perversas. Vendedores acabam esquartejados por suas máquinas, militares passam a bombardear merda pelo mundo, imoladores de sangue humano em sacrifício à Terra passam a ver o planeta vomitar suas oferendas.

Franquin é particularmente virulento com a imagem da guilhotina, um tema delicado na França, que reverbera o da pena de morte. Numa das histórias, a lei é proclamada: “toda pessoa que matar uma outra voluntariamente terá sua cabeça decapitada”. Franquin vai fazer desta uma hilária imagem do infinito: burocratas passam a executar os assassinos “voluntários” na guilhotina. Então, depois disso, outro burocrata vem e decapita o burocrata (“assassino voluntário”) precedente, e assim por diante. Noutra, em três quadros (francamente inspirados em Rodolphe Töpffer) um velho reacionário olha uma passeata por direitos humanos pela janela e começa a praguejar, dizendo que sente saudades de quando ainda havia pena de morte e que, por ele, as execuções voltariam a ser públicas. No que, após ele dizer isso, no último quadro, a janela se rompe, se fecha e decapita o velhote.


                                                                         
O que mais me encanta em Idées noires, ainda assim, não são nem estas às vezes rasteiras, às vezes muito espertas, reflexões éticas, e sim o momento em que Franquin se transfigura nesse Goya doente, moribundo, pintando Cronos grotescamente devorando os próprios filhos assim que nascem. A “paleta de cores” usada pelo belga evidencia isso: preto e branco chapados, “só que ao contrário”. Assim, na maioria das ideias obscuras, o fundo é todo branco, e os desenhos todos pretos, sem muito delineamento de rostos ou detalhamentos, a não ser nas expressões, nos olhos, naquilo que basta. Quem conhece o traço de Franquin sabe que ele é mestre no estilo cômico gros nez, com fisionomias típicas da BD belga. Seus personagens são exagerados, com movimentos espalhafatosos, e geralmente descabelados, meio hippies, meio punks. Em Idées noires, isso também assume um aspecto sombrio, com um twist meio sádico, que de certa forma nos incomoda como aqueles super-heróis malvados em Crise nas infinitas terras.

 Creio que três exemplos resumem, por fim, a gratuidade genial do sadismo de Franquin nestas histórias: a de um sujeito caminhando só, na neve, morrendo de fome e desesperado, que avista as “luzes da civilização” e dá graças a deus. Porém, quando ele se aproxima mais, as “luzes da cidade” eram na verdade os olhos de mil lobos, que se revelam no último e grande quadro. Outra: a absurda história de um garotinho na praia que assusta as pessoas com uma barbatana falsa de turbarão. Ele é surpreendido no quadro final quando se atrai por uma outra garotinha que era na verdade... um boneco falso de ser humano usado por um tubarão (!!!) para atrair garotinhos... Por fim, uma das mais interessantes, e mais abstratas: um sujeito está correndo no espaço vazio quando uma grande pedra passa a descer em direção à cabeça dele, para esmagá-lo. Ele vai chegando, com pensamentos positivos, com máximas da força de vontade, quase chega, quase chega e, no último quadro, a pedra esmaga sua cabeça.

É este, portanto, o tom do humanismo de Franquin. Não diferente do de Mário de Andrade em Macunaíma: “cada um por si e deus contra todos”! Não é à toa que, ao nos despedirmos desta HQ, no deparamos com um carinha sorridente que diz: “quem me ame, que me siga!”. E ele vai em frente, seguido apenas por um urubu com más intenções. Se nem a degenerescência e nem a idade de Franquin eram físicas e avançadas como as de Goya, vale salientar que o velho pintor tinha seus motivos também políticos para se isolar numa velha casa e pintar monstruosidades mitológicas, já que estava realmente de saco cheio de fazer pinturas oficiais para a corte espanhola. No caso de Franquin, sua revolta contra o status quo (basicamente todo e qualquer discurso edificante de “progresso”) o fizeram voltar seu humanismo para algo próximo a um niilismo, fazendo da sua arte o único espaço em que ele podia soltar os cachorros e se vingar, com lindos requintes de crueldade, de todos aqueles “masters of war”. Viva o “lado negro da força”.


Sigam-me os bons!!

Solanin: crônica da juventude






















por Roberta Machado

Solanin é uma daquelas histórias que tocam nas lembranças emotivas do leitor sem apelar para o drama óbvio. Tentar resumir sua história só torna claro que a ação não é o forte dessa narrativa, que se apoia nas entrelinhas e torna o espectador parte ativa da trama. Cada decisão, reflexão ou conclusão tomada pelos personagens cria um profundo raciocínio impossível de não relacionar com fortes experiências pessoais.
Meiko é uma garota de 23 anos que mora com o namorado dos tempos de faculdade e se vê presa num trabalho enfadonho e frustrante. Ela já não depende dos pais, mas entrou no limbo em que o emprego temporário virou ocupação, e o futuro é uma incógnita que em nada lembra as aspirações da adolescência. O próprio companheiro da protagonista, Taneda, abriu mão do sonho de viver de música para ganhar o mínimo em uma posição de designer freelancer.


A menina decide então pedir demissão da empresa em que trabalha, mesmo sem contar com um plano B. A decisão de Meiko de largar o emprego estável sem nenhum plano imediato pode soar para o leitor uma atitude impensada e precipitada, mas é necessário lembrar que a história se passa no Japão, onde esse ato é ainda mais grave, praticamente um suicídio social. Mais importante do que ganhar dinheiro, a cultura asiática valoriza aqueles que contribuem com a sociedade. O país sofre hoje com toda uma geração de jovens que representam um fardo para a nação ao cederem à pressão psicológica e desistirem de participar da máquina industrial do arquipélago (eles são conhecidos como neets, not in education, employment, or training, ou como hikikomoris, os que nem mesmo têm coragem de deixar o apartamento).

A rotina de Meiko então é subtraída de sua vida, e em pouco tempo ela percebe que o fio de segurança de seu antigo emprego era o que a impedia de encarar a realidade: ela não sabe o que quer da vida, só tem certeza do que não quer. As tardes perdidas na rua ou em frente ao videogame também não ajudam, o tempo passa sem que uma solução se apresente. Logo fica óbvio que o futuro não vai se apresentar à protagonista em uma bandeja de prata, e as brigas com família e amigos são inevitáveis.

Os companheiros da jovem, aliás, constroem uma narrativa à parte, onde fica claro que todos sofrem com conflitos semelhantes. Quem herdou o negócio da família, quem continua na faculdade, quem recebeu uma promoção: todos vivem constantes questionamentos sobre seus objetivos e se perguntam constantemente sobre a própria felicidade. Sufocados pela mediocridade, eles procuram ressuscitar os sonhos do passado em busca daquela mesma sensação da juventude de que tudo é possível.

Mesmo quem não se identifica com a trama pode desfrutar de uma narrativa cotidiana bem contada, muito comum aos grandes títulos de graphic novels que lotam as prateleiras das livrarias nos últimos anos. Com a diferença de que o lugar comum da trama é justamente o que a torna especial. Em dois volumes de pouco mais de 200 páginas cada, Solanin fala numa linguagem despretensiosa, que conta uma história comum à maioria dos jovens. Sem grandes pretensões, alcança com sutileza a memória emotiva do leitor, causando uma experiência de reflexão valiosa.

Solanin

De Inio Asano. 216 páginas. 
Coleção L&PM Pocket. Duas edições. Preço: R$ 16.











Algumas palavras... antes de Before Watchmen



Sim, ficamos um mês de férias, sem avisar. Deem um desconto. O povo aqui tem vida. Mas tem mais coisa pra mostrar em Raio Laser. Preguiçosamente, depois dos nossos orgulhosos dois dias de Omelete, retornamos. E quem puxa o bonde é o colaborador Lima Neto, dono da Kingdom Comics, figura onipotente das HQs em Brasília, etc, etc ("bocejo") que traz texto reflexivo, com enorme potencial de polêmicas, sobre a famigerada "Before Watchmen" (eu, na minha humilde desatenção, digo que parece maneiro). Gostaria de salientar que tenho orgulho de ter Lima como colega no PPG-COM da UnB. Valeu Limão! (CIM)
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por Lima Neto

“Os quadrinhos são os filhos bastardos da imprensa com o mercado” disse Art Spiegelman certa vez (Art Spiegelman, caso você tenha entrado neste site por engano à procura de promoções em tratamento estético a laser, é um dos principais quadrinistas a chamar a atenção do grande público para a arte das HQ´s, e seu potencial é para abordar temas mais sérios e espinhosos como campos de concentração e antissemitismo, caso de sua obra-prima Maus). E como mercado e HQ´s mainstream são meus assuntospreferidos para tratar aqui, evoco a fala de Spiegelman e acrescento que estes filhos, em sua encarnação mais mercadológica – os comics norte-americanos – além da sua infeliz condição de bastardos, estão passando hoje por um momento de exploração intensiva e abusiva por parte dos grandes conglomerados do entretenimento, acrescentando a uma relação incestuosa (como coloca Alan Moore) um nível só visto antes na aurora da indústria dos comics.


E, já que falamos aqui do escritor Alan Moore, recentemente a DC Comics anunciou uma série de especiais entitulados Before Watchmen, onde um eclético grupo de escritores e artistas exploram o passado do universo criado pelo polêmico mago inglês e pelo artista Dave Gibbons. Preciosismos à parte, a lista é de impressionar: Darwin Cooke, Amanda Corner, Adam Hughes, Jae Lee, Joe e Adam Kubert, Brian Azarello, além do controverso escritor J. Michael Straczinsky. Há ainda um nome curioso que está há bastante tempo sem produzir e que tem sua carreira entrelaçada à de Moore por motivos não menos curiosos: Lein Wein.  Wein é um notório antipatizante de Moore e criador do personagem Monstro do Pântano, que foi a porta de entrada do mago nos comics. Lein era editor da DC quando quis alterar o final da minissérie por considerar ser uma idéia não muito original. Tendo razão ou não, a tensão no final da série marcou a relação de Moore com a DC e os trabalhos futuros. Ironicamente, agora Wein vai ter a chance de mostrar sua visão da série em Before Watchmen.

Nem preciso dizer que este projeto incendiou os fóruns e a imprensa especializada, e que isso irritou bastante Alan Moore, que já havia se posicionado contra qualquer utilização da história em projetos caça-níqueis posteriores. E que, enquanto o editor Paul Levitz capitaneava a editora, este acordo de cavalheiros se manteve inalterado até a Time Warner decidir que deveria assumir as rédeas administrativas daquela pequena editora que possuíam e que mal rendia lucros com suas vendas (lógico, falo isso dentro da ótica agigantada de um monstro corporativo do porte da Warner), mas que tinha propriedades criativas que lhe rendiam bilhões de dólares nas portas dos cinemas e nas lojas de brinquedos.

Há aproximadamente um ano, o quadrinista Darwin Cooke, a mente e mãos por trás de obras como o libelo da era de prata DC Nova Fronteira e suas muito bem recebidas Graphic Novels Richard Stark´s Parker: The Hunter e Parker: The Outfit – que adaptam os livros da novela policial de Donald Westlake – , disse ter sido abordado pela nova direção da editora de Super-Homem  para trabalhar em um projeto com os personagens de Watchmen. Cooke afirmou nutrir um respeito imenso pela obra e que considerava ofensiva uma tentativa de retornar a este universo sem que seus criadores originais estivessem envolvidos ou que houvesse ao menos uma autorização por parte de Moore. No entanto, ao anunciarem Before Watchmen para o público, seu nome figurava como uma das maiores estrelas envolvidas no projeto, encabeçando títulos que, imaginados pela sua visão particular, exalam o perfume apetitoso que suas obras liberam : Minutemen – o equivalente à Sociedade da Justiça do universo de Dr. Manhattan e sua trupe de heróis disfuncionais; e o título Silk Spectre – narrando as aventuras da heroína mascarada da era de ouro e que será ilustrada pela artista Amanda Corner. 

Além destes títulos ainda temos Brian Azarello em colaboração com seu parceiro de trabalho Lee Bermejo em uma série de Rorchach e, tendo J. G. Jones com colaborador, uma série do Comediante.  O já citado Lein Wein fará dois títulos, uma série de Ozimandias com a soturna arte de Jae Lee; e uma revista misteriosa chamada Crimson Corsair desenhada por John Higgins. J. Michael Strazinsky estará por trás dos roteiros de uma série do Doutor Manhattan, ilustrado com a bela arte de Adam Hughes e também da série de Nite Owl, que conta com o lápis de Andy Kubert e o nanquim de seu pai, o mestre Joe Kubert (que cairia melhor, talvez, no título do Comediante).


Obviamente, junto a esse projeto já estão programados estátuas e figuras de ação produzidas pela DC Direct, ramo da DC comics que cuida dos produtos colecionáveis. Aliás, este mês também a DC Direct mudou de nome, e agora atende por DC Collectibles.  A troca do nome atende às mudanças que a nova direção impôs, afinal, colecionismo doentio é uma das modas propagadas pela principal vitrine da DC: o seriado Big Bang Theory. Mudar o nome é uma ótima estratégia para guiar o público da série para o setor da empresa que transforma o hobby em moda e estilo de vida.


Retornando aos gibis, pensar no produto que estas mentes podem conceber é algo que realmente dá água na boca. E não me sinto nem um pouco culpado em reconhecer isto. Pelo menos não tanto quanto me sentiria em ler um fanfic de boa qualidade que envolvesse os personagens de Watchmen. Alias, a palavra que mais se encaixaria para descrever este projeto seria exatamente esta: Fanfic. Lógico que os fãs envolvidos na produção desta ficção são profissionais de grosso calibre, fato que não desmerece qualquer mérito estético-narrativo que essas obras possam vir a ter. Mas o que me impede de nomear Before Watchmen como Fanfic é um único e importantíssimo fator: Não se paga, ou se lucra, por fanfics. O objetivo de um Fanfic é sempre o de extravasar as histórias que ainda continuam sendo escritas nas cabeças dos fãs anos depois de eles terem lido determinadas obras. O que empesteia todo esse empreendimento, manchando boas índoles profissionais e desrespeitando criaturas e criadores é a insistência dos executivos da Warner em disfarçar exploração descarada de bens intelectuais que se perderam em acordos jurídicos assinados em uma época que era impossível prever o que tais obras se tornariam (Batalha DC XShuster/Siegel, alguém? Alguém?) com um discurso de “homenagens” a importância dessas obras ou criadores. Ano passado, outra “homenagem” de mau gosto enfureceu a família do falecido Dwayne McDuffie. A editora anunciou uma edição especial de seu personagem Static Shock,  conhecido no Brasil como “Super Choque” em que por U$ 5,95 você podia relembrar a obra de McDuffie sem que nenhum centavo das vendas desta revista fossem repassados a família. Os parentes do autor, lógico, obrigaram a editora a cancelar a edição.

Na contramão disso tudo, autores independentes têm encontrado na net um terreno fértil para publicarem seu trabalho. Tão fértil, que é preciso muitas horas livres para garimpar as perolas potenciais deste novo meio. Meio este que também é responsável pelo grosso do prejuízo que os conglomerados midiáticos monstruosos vêm sofrendo com a distribuição gratuita de filmes e scans de gibis. Se isso é bom ou ruim é outra complexa discussão, mas que, graças ao escritor Mark Waid, seu novo blog de opinião e seu novo cargo como coordenador do selo Marvel Infinity de quadrinhos desenvolvidos direto para tablets e iphones, tentaremos pincelar no nosso próximo texto. Concluo imaginando, em um futuro bem próximo, um Alan Moore bonachão liberando na net as páginas de Before Watchmen para todos que quiserem matar a curiosidade de ler estas homenagens à sua obra. E cobrando o preço justo que uma obra não autorizada deve ter.    

HQ em um quadro: Zarla, a guerreira impiedosa, de aspecto a aspecto, por Guilhem e Janssens






















O movimento ameaçador da garotinha (Jean-louis Janssens e Guilhem Bec, 2007): Zarla, guerrière impitoyable é uma BD bastante genérica publicada pela Dupuis, a mais tradicional editora belga de HQs, em 2007. Seu enredo consiste numa tentativa da editora de misturar o mundo tão específico das HQs de fantasia medieval com a tradição, própria da Dupuis, de criar personagens bastante humanos e cativantes, que se misturam a meios tradicionais da ficção fantástica. O que ela faz na narrativa detetivesca em Spirou e Fantasio, ou com o folk lore em Schtroumpfs, são exemplos. Zarla é uma garotinha, filha de caçadores (hoje mortos) de dragões, criada por um velho bruxo e uma sevente giganta. Ela herda também a arma principal dos caçadores de dragões - um cão demoníaco e enfeitiçado, chamado Hydromel, que a acompanha como um bicho preguiçoso, mas que se transforma num guerreiro assustador quando Zarla se encontra em perigo (salvando-a sem que ela perceba).  

Zarla é uma HQ muito simpática, com traço encantador (Guilhem) e doses corretas de humor e aventura. É um produto infantil. Mas, à parte a sugestão de um produto de qualidade nesta categoria, eu gostaria de salientar como, de uma hora pra outra, os quadrinhos simplesmente abrem tudo que podem, num vortex vertiginoso, do modo como é descrito naquele belo poema de Drummond "A máquina do mundo", ou aquele assombroso conto de Borges, "O Aleph": um sistema todo se abre diante de nós, num momento, num átimo, numa condensação onírica - e depois se fecha, levando-nos a esquecer aquela epifania, relegando-nos novamente à burocrática passagem do tempo, a separar as coisas umas das outras, a tentar decodificá-la a partir de tedioso sistema classificatório.

Quando, num acesso de movimentação espacial entrecortado por pouquíssima passagem de tempo - aquilo que McLoud chama "transição de aspecto-para-aspecto" - , Zarla parece apenas a indefesa garotinha que pressupõe a série, e implora ao inimigo que não a faça mal, e então, num rompante, perfeitamente inscrito na sarjeta entre um quadro e outro, a menininha loira desatina sua farsa e diz "e tome isso!", empunhando uma pequena e frágil espadinha, quando isso acontece, nós nos convencemos, neste movimento sugerido, de todo o conceito da série. Se há algo de essencial, digamos, no próprio briefing que deve ter dado origem a esta série, isso deve ser a oposição entre a candidez inocente da menininha, acreditando que todos fogem dela, e não do cão-demônio, e a postura irascível e amedrontadora que ela assume, ao se portar com absoluta certeza de ser uma guerreira completa. Se é uma dicotomia, se é uma oposição paradoxal, se uma infeliz ironia, isso tudo se submete ao poder imagético da alegoria. A alegoria que tão bem se repousa na imagem. Imagem que tão bem se debruça nos quadrinhos. Quadrinhos que são capazes de sintetizar, num movimento tão sutil, o cosmos conceitual todo do produto a que dão suporte. Nesta simples sarjeta rastreada de uma HQ absolutamente ordinária, não apenas a série se abriu toda, sem possibilidade de ser convencida do contrário, como também o sistema representacional das HQs, tão distante das palavras e letras da literatura, em tudo racionais, explicativas, que se alongam tanto, e condensam tão pouco. Difícil não pensar num Aleph esotérico: Zarla empunhando a espada me levou à Mona Lisa, às pinturas góticas, às cavernas de Lascaux, aos sonhos de toda humanidade. (CIM)

Street Fighter Mirim: meu primeiro mangá

Street Fighter Mirim: meu primeiro mangá

Quer dizer que, depois da “polêmica” do texto anterior, você voltou à Raio Laser cheio de esperança de ler outra iluminada crítica do Ciro Marcondes?! Pois você se deu mal! As linhas a seguir falam de lembranças afetivas, de um mangá semi-pirata e de videogame. Se você também leu esse gibi lá nos idos de 1993, deixe seu depoimento na caixa de comentários.

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Raio Laser's Comics' Quicky #01






















por Ciro I. Marcondes

Escrevi aqui sobre alguns dos quadrinhos nacionais que me chegaram em mãos recentemente. Tem mais coisa por vir, mas a ideia é fazer uma tentativa de mapear (sem obrigação de regularidade, sem obrigação de cobrir tudo, sem seguir lançamentos e sem deadline) uma fração da imensa quantidade de coisas que se tem produzido em HQs em nosso país, seja em publicações luxuosas, coisas independentes, zines ou online. Nesta primeira versão da nova seção, privilegiei alguns artistas daqui de Brasília, não apenas pra ser um pouco bairrista, mas também porque a cidade está se tornando um celeiro interessante de quadrinistas. Quem quiser nos enviar suas produções, basta nos escrever em “contato”, ok?

BátimaAndré Valente (Samba, 2011): Haveria com certeza algum jeito de interpretar sociologicamente essa pérola-express que é o gibizinho (lembram dos gibizinhos da Turma da Mônica? Esse é um Mini-samba) Bátima. Afinal, é sobre um cara classe-C que trabalha o cão (estaria vestido “simbolicamente” de Batman pra mostrar o “herói da vida real” que é) num McDonalds e manda cartas pra mãe fingindo ser um redator da Globo. Porém, conhecendo o autismo artístico (não se enganem. Isso é uma qualidade rara) de André Valente, prefiro ver esta pequena história pelo prisma de sua verve non-sense. Prefiro vê-la (não sei bem explicar por quê) como salto sem volta na sensorialidade psicótica de um sujeito ainda mais miserável, enlouquecido pela cultura pop e pela solidão. Um sujeito sem arestas egoicas que escreve cartas para uma mãe inexistente, sobre um emprego inexistente, processando o derretimento de seu aparelho psíquico. E tudo teria começado quando ele foi batizado “Bátima” (como alguns são batizado “Mai Conjecso” ou “Cridence”) após seu nascimento.


Não fui euAndré Valente (2011): Se André Valente é um quadrinista que possui certo autismo artístico, é porque em suas histórias eventualmente há um elemento que nos escapa, um ponto cego onde apenas habita o artista, e nunca o leitor. Isso seria decepcionante se ele não preenchesse todo o resto com referências e solidez cultural que escapam à maioria dos quadrinistas brasileiros, fazendo-nos ter que investigar entrelinhas em quadrinhos simples, mas engenhosamente despojados, com senso de humor que mistura “O Pasquim” com “Além da imaginação”, bastante refinado. Esta aparentemente modesta coletânea “Não fui eu”, que se inicia com Sol e Lua àMéliès, traz uma ótima amostra do equilíbrio quadrinístico e do desequilíbrio mental de Valente, com destaque para os lindos painéis do primeiro capítulo da novela gráfica “Coelho”, e para a surrealista “Uma espinha”, que poderia ser a história longa que o Laerte nos deve há muitos anos.

Peixe fora d’águaDiego Sanchez e Laura Lannes (Org., 2011): Esta publicação independente reune mais de 20 artistas diferentes e com certeza é uma iniciativa louvável e bem-feita. O problema é que, sustentando essa postura “do it yourself” que vem junto com a pecha de “peixe fora d’água”, quase todos os quadrinhos, sketches e poemas dão essa impressão de mal-acabado, de orgulho de ser tosco, de sumir no non-sense por falta de ideias ou medo delas. A quantidade de metalinguagem inócua e piadas internas acaba comprometendo o trabalho todo. Há uma variedade interessante de estilos e técnicas gráficas, mas a maioria do material sofre com essa síndrome de não querer produzir nada relevante, de um niilismo inútil. Quadrinhos com baixa autoestima. Não é à toa que a melhor série do livro é “Them wishing wells”, de Guilherme Lírio e Vidi Descaves, bem sacada, feita com desenhos de palitinhos. Logicamente, vale destacar “Certa manhã acordei de um sonho agitado”, em que a quadrinista Laura Lannes (talentosa) acorda no corpo do pintor Francis Bacon, além de uma paródia inteligente de Batman feita por Diego Gerlach. Mas, francamente, quem ainda está afim de ler mais uma paródia do Batman?

Garoto Mickey – Yuri Moraes (Dobro quadrinhos, 2011): Quando dou aula de roteiro cinematográfico, acho que a lição mais valiosa que passo é a seguinte: “se você não tem nenhuma ideia para criar um roteito, não faça um roteiro sobre como você não tem nenhuma ideia para criar um roteiro”. Acho que essa simples lição limaria metade dos artistas contemporâneos, e esse seria um mundo melhor. Garoto Mickey não é uma novela gráfica ruim, que fique claro. Yuri Moraes tem claro domínio e consciência narrativa, além de um traço expressivo e simpático. A história é dividida em duas partes muito claras: primeiro, uma espécie de revisão autobiográfica que tem força especial nas agruras melancólicas da infância, quando ele fazia uma HQ porradeira da qual todos gostavam, substituída pelo eterno carma do quadrinho autoral. A relação com o amigo um tanto obtuso e imbecil, abandonada na idade adulta, acaba sendo um ponto de verdade na HQ, além de insights de linguagem e algumas ironias bem marcadas. Mas parece que tudo se perde e a procura por uma psicologia de si mesmo ganha absurda autoindulgência, com o autor querendo antecipar as próprias críticas que as pessoas fariam à HQ, numa obsessão em prever e tapar seus próprios defeitos, o que se transmite, evidentemente, para os defeitos da HQ. A segunda parte, quando essa autojornada cínica se converte numa história de ação absurda e até piegas (com o autor fazendo questão de deixar claro que está fazendo algo piegas – como não?), é que a coisa se esfarela completamente e as virtudes da HQ se perdem. Não o talento de Yuri Moraes, é claro. Mas afirmar-se como loser numa HQ não torna ninguém menos loser, que fique claro.

Valente para sempreVitor Cafaggi (Pandemônio, 2011): Na contramão de uma tendência muito experimentalista de boa parte dos quadrinhos brasileiros contemporâneos, Valente vence pela simplicidade. Na forma de uma tira tradicional, num traço simples em preto-e-branco (mas confiante e cheio de expressões), o talento de Vitor Cafaggi para representar ideias parece orgânico e fácil, como se simplesmente tivesse estado a vida toda ao lado dele. E assim é a vida do cachorro Valente, seus amigos, amores e desamores: simples, natural, intenso, vivo. Publicada pela Pandemônio, na antiga forma retangular e monocromática com que antigos gibis de Garfield e Mafalda saíam, esta coletânea (de tiras ainda saindo na Internet) é um presente ideal para corações românticos. Uma HQ que, ao optar por navegar, confiante, pelas águas dos clássicos, dirige-se rumo ao triunfo.

Duo.toneVitor Cafaggi (2011): É estranho que a minha reação a Duo.tone, após ter lido Valente, tenha sido de ligeira frustração, já que esta é uma publicação de fôlego um pouco maior, coloridinha e mais longa, com certeza de maior ambição. A revistinha (legal chamar assim, porque de fato é isso que essa HQ é), de leitura fácil e despojada em linguagem simples (mas bem dosada em sequências silenciosas, serializações, metarrequadros, diálogos naturais e outros recursos) é certamente adorável, e tem potencial encantador para o público infantil. Mas confesso que, ao contrário do Valente, onde a gente se envolve e se emociona, aqui tanta fofura e ternura infantil causam um tanto de desconforto, uma certa ingrisia que vai se desatinando em mau-humor. Uma coisa assim, leite de pêra e ovomaltino. Eu aprecio histórias de growing pains, mas a primeira delas, do menino loirinho, é muita dor pra pouca desgraça, o que me fez preferir a segunda, toda silenciosa, do garoto japonês cool e intrépido, em que Cafaggi arrisca mais na sua habilidade narrativa, e faz uma homenagem menos piegas ao contato que um quadrinista tem, na infância, com o mundo dos super-heróis.

Mix tapeLu Cafaggi (2011): Estes outros quatro mini-gibis trazem essa proposta lírica de emular quatro fitinhas K-7, abordando os temas do som a da música de uma maneira completamente contrária ao que se poderia esperar de tal empreitada (ou seja: ideias tímidas se afogando num mar citações e referências). Ao contrário, fã de fitinhas K-7 como sou (passei a adolescência gravando-as pras minhas garotas favoritas), respirei com alívio ao ver que o trabalho de Lu Cafaggi compõe um delicado tributo à própria memória, à sinestesia de nossos passados, sendo um deles (o melhor) uma pequena sinfonia (muda – e isso me afeta!) de sons preferidos; o segundo a memória de uma pessoa guardada no som de um piano; a terceira (mais fraca) um diálogo imaginário com a cantora Patti Smith; e a última a experiência onírica de uma doce super-heroína. O aspecto fosco, de um violeta apastelado, monocromático, faz a experiência de ler quase táctil. Uma HQ especial, à altura do trabalho que Lu Cafaggi, Mariamma Fonseca e Samanta Coan realizam no blog Ladys Comics.

Kowalski #2Gabriel Góes (Org., Samba, 2011): Esta revista é um spin-off do grupo Samba, daqui de Brasília, que já constitui uma geração completa de quadrinistas talentosos e realiza um dos trabalhos mais interessantes das HQs nacionais atualmente. Participam dela, além de Gabriel Góes, editor e criador do personagem-título, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita (os outros caras da Samba) e convidados de peso. Aos poucos, na medida em que as publicações do grupo vão aparecendo, uma estética em princípio caótica e desajeitada vai se organizando. Fruto do casamento herético dos quadrinhos com as artes plásticas, a geração Samba desenvolve uma relação muito visual com os quadrinhos, com a narrativa muitas vezes servindo como serialização para impressões imagéticas, profanas, coisa de pesadelo mesmo. Para tornar isso uma práxis refinada, os caras bebem de tudo: cinema, fotonovela, pin-ups. A capa de Eduardo Belga, surreal e obscena, dá uma amostra das ambições do grupo. Esta número 2 dá continuidade e aprimora as ideias da número 1, com alguns feitos mais narrativos, como a paródia “Cidadão Z”, de André Valente, que horroriza com a figura controversa de Ziraldo, fazendo-o beber de seu próprio veneno e estilo (do mesmo jeito, mas mais irônico, que Valente havia feito com Maurício na número 1); e uma das primeiras histórias de maior consistência (hmm..) “filosófica” do grupo, “Quando éramos cavalos”, de Góes e Mesquita, que conta o mundo horrendo e impressionista (cheio de personagens fofinhos de outros gibis) de um sujeito que presencia um suicídio.


Mas eu ainda acho que o grande destaque é a série do próprio personagem que dá título à revista, algo que parece um produto puro, bruto, saído da mente... diferente de Gabriel Góes. Kowalski e seus amigos são cartoons junkies, que assaltam para fumar crack ou cheirar pó, e Góes serializa essas histórias num traço infantil e perturbador, com quadros minúsculos e tortos, sendo a própria viagem do leitor montar estes efeitos rítmicos. “Kowalski” é sim um tipo de monstruosidade crua e imoral, parecendo uma versão nada idealista do clássico Freak Brothers, do genial Gilbert Sheldon, mas Góes aos poucos acrescenta mais sacadas e refinamentos a essa série, mesmo que ainda não seja possível (se é que um dia será) entender o que esse universo quer dizer. Vale destacar também a série “A casa das mulheres-pássaro”, de Gehre, um prostíbulo de action-figures (os antigos “bonequinhos”) e a série de impressões visuais, circulares, de Gehre e Mesquita, sobre seres em decomposição. Eu tiraria duas tentativas de séries narrativas: a fotonovela (sei que dá trabalho, mas não tá engrenando) e “A estrada do diabo”, que, apesar de graficamente interessante (mas muito derivado de Clowes e Lynch), é menos impactante do que parece querer ser.

Sim – Gabriel Góes (Projeto 1000, 0005, Barba Negra/Cachalote, 2011): Góes é um ilustrador de mão cheia, e uma de suas maiores virtudes é mudar de estilo sem perder sua marca pessoal. Seja no traço torto e macabro de Kowalski, seja numa história em 3-D, num cartaz de festival de rock, ou numa história de livro-jogo, sua personalidade, ainda que coerentemente adaptada aos diferentes gêneros, está sempre visível, sempre imediatamente identificável. Sua habilidade como narrador e quadrinista ainda é um ponto a emergir completamente, e esta Sim é prova de que sua versatilidade onírica e seu imaginário claustrofóbico vêm ganhando camadas e camadas de densidade.  Como de praxe nesta grande iniciativa da editora Barba Negra e seu Selo Cachalote, esta é uma HQ sem palavras. Góes, metamorfoseado numa criatura antropomórfica e primitiva (cabeça de lobo e um tacape na mão), atravessa paisagens psicodélicas e alucinatórias, como se avançando em camadas mais profundas ou desdobramentos de dimensões de si mesmo, cruzando com figuras míticas, arquetípicas. Esta HQ, que se experimenta numa leitura rápida, pode ser pensada toda num sentido jungiano, um tipo de representação mítica e lisérgica, mas vou deixar essa análise pra lá. O que vale mesmo é a robustez do traço e dos grandes requadros panorâmicos de Góes, imagens inalcançáveis e errantes.

Desvio – Daniel Gisé (Projeto 1000, 0003, Barba Negra/Cachalote 2011): Desvio, do mesmo projeto que Sim, curiosamente parte de uma premissa semelhante, mesmo que o resultado seja muito diferente. O fato de, quando obrigados a construírem uma série sequencial sem palavras, quadrinistas tendam a representar o mundo dos sonhos e delírios, geralmente encaixando mundos dentro de mundos, deve dizer algo muito importante sobre a linguagem visual muda. Sem a correção das palavras, as imagens têm o poder de correr soltas, transportarem-se de um mundo para o outro, num livre fluir de formas e cores. Desvio é mais causal do que Sim, e Gisé modela uma estranha história envolvendo dois recém-casados, uma psicótica, um lenhador gay e outras coisas, num traço clássico, fino, lembrando uma HQ dos anos 50 (onde se imagina ser também a época da história). A virtude está em, no meio de ações que subitamente se tornam imaginação e sonhos, o encadeamento sem palavras da HQ ainda manter os pés no chão, numa organização de alta compreensibilidade, criando uma aura de enigma não muito fácil de ser alcançada, mesmo que o final não ofereça respostas.  QHQ

Chico e Rita: do Cubop ao Oscar




Chico e Rita, de Fernando Trueba e Javier Mariscal, está sendo lançada em duas formas artísticas ao mesmo tempo: uma HQ de 200 páginas e uma animação que já concorre ao Oscar, em sua categoria, neste ano de 2012. Se a animação é sem dúvida maravilhosa, a HQ não fica atrás e ressalta a arte de Javier Mariscal de modo mais artesanal e aurático.

Esse lado mais “cru” do desenho de Mariscal na HQ harmoniza bem com a atmosfera da história: em uma Havana pré-revolução (1959), dois músicos, um pianista e uma cantora, iniciam uma relação simultaneamente amorosa e profissional. Sonham com a fama em Nova York, onde o jazz de figuras como Charlie Parker e Thelonious Monk chegava ao auge, e a música cubana (o “cubop”) ganhava espaço.

Chico e Rita é uma história de amor, sonhos e música. A representação da ensolarada Havana e de uma Nova York fria e escura é precisa, bem como a dos personagens que as habitam, muito bem construídos. Os diálogos aproveitam o forte espanhol dos cubanos, e a coloração da HQ ressalta “com mucho gusto” a belíssima tonalidade de sua pele.


Em tempo, há um lado político nas obras que merece ser mencionado. Está presente tanto na HQ quanto na animação: mas, como em toda boa obra de arte, sem maniqueísmos. De um lado, a Cuba pós-revolução irá desestimular o jazz americano quando Chico retorna a Cuba; por outro, Rita, já consagrada nos EUA, não pode hospedar-se nos hotéis onde se apresenta. O mesmo preconceito que sofreram músicos geniais (e também negros) como Duke Ellington.

Contradições históricas dos dois países, e que não reduzem as obras (nem a HQ e nem a animação) quando abordadas por Fernando Trueba e Javier Mariscal: deixam-nas mais interessantes.