Fantasmas de Lucille


























Uma nova colaboradora desponta na Raio Laser! Trata-se de Roberta Machado, jornalista e colega do nosso querido Pedro no Correio Braziliense. Roberta tem um texto de perfil analítico e literário. Nada melhor para quem quer romper certas fronteiras, levando os quadrinhos... além. (CIM)

por Roberta Machado

Embora seja uma ficção, a natureza dos dramas narrados em Lucille mais se assemelha à série de histórias biográficas que impulsionaram a venda das graphic novels nas livrarias nos últimos anos. A vida da adolescente que dá título à obra poderia ser de qualquer garota. Assim como muitas anônimas, a estudante francesa sofre entre a rejeição que tem por si mesma e a desaprovação que imagina ter dos outros. A situação da protagonista agrava-se devido à anorexia suicida causada por um trauma de infância.

Sob o traço econômico e fluido de Ludovic Debeurme, Lucille é uma garota de baixa autoestima, que ora tenta parecer normal para obter a aprovação dos outros, ora se esconde sob um grande par de óculos e uma postura derrotista. Em vez de se enturmar com os colegas, ela opta por ignorar os apelos da mãe e usar a timidez como desculpa para escapar num mundo de fantasia. Ela vê nas amigas e na boneca Linda o estereótipo de beleza e felicidade que almeja por meio da fome.


Mas é graças ao distúrbio alimentar que Lucille conhece Arthur, garoto ainda mais perturbado que ela. Entre o alcoolismo do pai e a indiferença da mãe, o adolescente se vê obrigado a sustentar a família, apesar da imaturidade. Para ele, a magreza exagerada de Lucille é bela, e diferente de toda a instabilidade de sua vida de garoto pobre e desajustado. Assim como a protagonista tenta controlar seus problemas pulando refeições, a confusão na vida de Arthur resultou num transtorno obsessivo compulsivo. Os dois encontram conforto nas loucuras do outro.

Os cenários são suprimidos na maioria das páginas, e as linhas dos quadros que geralmente limitam as ações das graphic novels não estão presentes na história. O estilo aponta o verdadeiro objetivo de Debeurme: onde estão os personagens, o que estão fazendo, nada disso importa. A narrativa é sobre o que eles sentem e pensam. O leitor é levado a uma viagem ao subconsciente desses dois jovens, traumatizados ainda na flor da idade. Mesmo quem não se identifica com os problemas vividos pelos protagonistas nessa viagem de autoconhecimento pode tirar da história alguma reflexão sobre os próprios conflitos.

Na jornada dos dois adolescentes, o interessante é observar as mudanças sutis que eles sofrem. Lucille deixa a inocência para se tornar uma mulher bonita, pois é assim que Arthur a vê. Já o garoto transborda confiança e supera o medo da responsabilidade ao assumir naturalmente o papel protetor da amada, mesmo que agindo muitas vezes de forma impensada. Debeurme disse em entrevistas que as transformações pelas quais os personagens passam foram espontâneas: ele desenhou a história sem planejá-la, descobrindo aos poucos os rumos da trama.

Lucille é um livro que alterna o drama, entre momentos de tensão como brigas e assassinatos, com reflexão, que mostra os dilemas psicológicos dos adolescentes. A exposição dos pensamentos mais profundos dos personagens, no entanto, são mais capazes de tirar o fôlego que as cenas em que a ação de fato se desenrola. Sem necessidade de ganchos previsíveis para manter o interesse do leitor, o ritmo do romance francês flui  de forma natural, o que torna fácil devorar as mais de 500 páginas de uma só vez.

Ludovic Debeurme conquistou diversos prêmios com ajuda de Lucille. Entre eles, o destaque no Festival de Angoulème, festa icônica dos quadrinhos que acontece todos os anos na França. O sucesso internacional da obra — que o levou pela primeira vez às livrarias norte-americanas — garantiu a produção de uma sequência, lançada na França em agosto. A nova história, batizada de Renée, exibe traço muito mais rebuscado que sua antecessora, e trabalha a psique dos personagens de forma ainda mais onírica e perturbadora.

Lucille
De Ludovic Debeurme. 544 páginas. Editora Leya. R$ 54,90.

Este texto foi publicado originalmente no Correio Braziliense, no dia 06/02/12.

VIAGEM AO PAÍS DOS QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes
fotos por Gustavo Marcondes e Marcos Inácio Marcondes

Uma coisa que poucos sabem sobre a Bélgica (um país do tamanho do Estado de Alagoas) é que, além de ser uma terra famosa pelos chocolates, cervejas, diamantes e quadrinhos, ela é também o país com as garotas mais lindas do mundo. Sim, pode parecer surpreendente, afinal, ninguém nunca mencionou isso, mas isso é, aparentemente, o maior segredo dos belgas, guardado ao ar livre. Afinal, é difícil não se sentir encantado ao ser servido, com extrema cordialidade e simpatia, em qualquer lugar (no museu, nos cafés, no McDonald´s, ou simplesmente ao perguntar alguma informação a uma ruivinha andando de bicicleta), por uma criatura doce e feérica, de olhos verdes e cabelo naturalmente alaranjado. Você começa a sentir que entrou em um país de contos de fadas.

É por isso que não me surpreende que o belga Pierre Culliford (aka Peyo) tenha começado seu império nos quadrinhos, na animação e na cultura pop com um gibi sobre uma terra medieval encantada (Johann e Pirluit) que progressivamente se transformou num gibi sobre duendes azuis, os Schtroumpfs (aka Smurfs, dã). Estas informações também me lembram do quanto os belgas, apesar de serem uma cultura desconhecida e considerada derivativa, situada na Europa central, diferem dos europeus “canônicos” num aspecto essencial pra um turista: são simpáticos, poliglotas, gentis, parecem adorar sua presença, demonstram interesse em te conhecer.

Este pequeno panorama, que inclui charme, simpatia, credulidade e modéstia serve para entendermos o porquê de a Bélgica possuir uma cultura tão diversa e internalizada em seu diminuto território, e o porquê de eles serem tão aficcionados por uma cultura sólida e tradicional de quadrinhos, com várias obras-primas não traduzidas sequer para o inglês, sendo sua gigante influência sobre a HQ europeia referenciada sempre de forma tão tímida.

Um pouco de arquitetura dos Flandres

Tive a sorte de passar uma pequena temporada na Bélgica e tentar equacionar esses fatores todos que a tornam um destino tão peculiar às pessoas pacatas, ao devoto incontéstil de uma vida introspectiva, e a quem verdadeiramente ama as histórias em quadrinhos, claro. A Bélgica fica na região dos flandres, que se estende até a Holanda e que se distingue por uma arquitetura de cores quentes e rurais, de tijolinhos vermelhos, e que se moderniza numa art nouveau envidraçada e rococó, com florais de bronze, coisa fina e leve, irretocável. Apesar de a parte mais internacional e vigorosa da cultura de quadrinhos belga pertencer à influência francesa, parece mais enraizada essa secular ascendência flamenga. A Bélgica é um país bilíngue, mas é somente na capital, Bruxelas, que isso é realmente praticado na região dos flandres. Em todo o resto dos flandres, fala-se holandês (ou a língua flamenga, uma variação muito próxima do holandês) e eles preferem que você se comunique com eles em inglês, porque há o cultivo de uma certa rivalidade (voltarei a isso adiante) com a região de matriz francesa.

É por isso, por exemplo, que os belgas fazem a melhor cerveja do mundo (é verdade mesmo. Experimentei umas 30 marcas diferentes, de dupla ou tripla fermentação, ou estilo abadia, ou cervejas trapistas, ou cervejas de 12% de concentração alcoólica; enfim, uma visão do paraíso cervejeiro), uma coisa tão associada à Europa central, quando os franceses gostam mesmo é de beber vinho. E é essa proximidade tão grande com a cultura holandesa (eles têm até um próprio bairro da luz vermelha), com quem compartilham esse passado comum, que os faz serem também tão maconheiros! Em Bruxelas, eles meio que apertam seus baseados dentro dos cafés (vale até um Giraffas local qualquer), fumam na rua, na porta de entrada dos shows, e realmente não pareciam nem ligeiramente preocupados com qualquer intervenção policial.

Pintura flamenga e quadrinhos

Brueghel, o Velho: A queda dos anjos rebeldes, no Museu de Belas Artes de Bruxelas

Uma das possíveis origens para o entusiasmo dos belgas com os quadrinhos é a forte tradição flamenga (não, nada a ver com o time vagabundo regido a mão de ferro pela popularidade carnavalesca do Ronaldinho Gaúcho) nas artes visuais, e isso é certamente algo que belgas e holandeses têm muito que se orgulhar. Afinal, essa arte historicamente ocupa um epicentro de transformação entre a pintura gótico-medieval e o Renascimento italiano. Figuras como Brueghel, o velho, Jan Van Eyck, Rogier Van Der Weyden e, é claro, o estupor horrorizante de Bosch (quem não ficou pasmo ao observar os detalhes do Jardim das delícias?) foram responsáveis não apenas por desenvolver a tinta a óleo com que os italianos (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, enfim, todos que você ficou sabendo através das Tartarugas Ninja) revolucionaram a cultura ocidental, mas também por abordar pioneiramente a pintura da paisagem, os hábitos da vida do campesinato, e por introduzir, de maneira bem consciente, a ideia de que o feio e o grotesco poderiam ser um forte tipo de expressão com que a as artes poderiam se identificar. Escrevi, entre outras coisas, uma análise do quadro O triunfo da morte, de Brueghel, neste livro aqui, na página 294, caso haja interesse.

Guadglíneos?

Pra quem não sabe, a cultura de quadrinhos belga é tão antiga quanto os quadrinhos modernos em si, e as escolas desenvolvidas entre os anos 20-50 pelas revistas mix Tintim e Spirou não só geraram a influente escola francesa, como praticamente toda a cultura europeia de quadrinhos. Influência pouca não é bobagem, e não é à toa que uma cidade como Bruxelas tem estátuas de seus personagens espalhados pelas ruas, assim como paredes inteiras dos prédios pintadas com cenas de seus gibis. Além disso, os cafés das cidades belgas possuem pilhas de gibis para você pegar e ler distraidamente enquanto toma um chocolate quente ou uma cerveja.

Na época dos pintores flamengos, era comum que a cultura gótico-medieval já abordasse a narrativa visual seriada, e um pintor como Van Der Weyden é reconhecidamente um dos mestres da pintura em retábulos, em que cenas diferentes da paixão de Cristo ou outros motivos bíblicos eram pintados em diferentes quadros, alguns que se abriam como um livro, e que podiam ser entendidos como uma sequência interligada. Assim como os quadrinhos, os belgas amam sua tradição em pintura medieval, e em cada cidadezinha de 10 mil habitantes podem-se encontrar museus e obras destes mestres pioneiros. Isso sem falar na continuidade barroca e pós-renascentista trazida pelo antuérpio Peter Paul Rubens, um dos pintores mais influentes de todos os tempos.

Centre Belge da la Bande Dessinée

Art Nouveau

É por isso que, além de museus de arte flamenga e de instrumentos musicais (muito maneiros), há também um Centre Belge de la Bande Dessinée, ou o Museu Belga das Histórias em Quadrinhos, em Bruxelas. Logo na entrada do museu – um prédio envidraçado projetado pelo mestre da art nouveau Victor Horta – uma estátua de Gaston Lagaffe, o pai de todos os picaretas belgas, criado pelo genial André Franquin, nos lembra que aquele é um lugar amigável para o fã de quadrinhos. Já no hall de entrada, antes mesmo de pagar, nos deparamos com uma série de estátuas legais de personagens tradicionais da BD francobelga: os Schtroumpfs, várias coisas de Tintim (o foguete lunar, os personagens vestidos de astronautas, um busto em bronze), Lucky Luke, etc, além do carro vermelho vintage de Spirou todo pichado e desenhado pela nata histórica destes quadrinhos: Morris, Goscinny, Uderzo, Peyo, etc. Depois disso, o museu se divide em uma didática sessão sobre como as BDs são confeccionadas tradicionalmente, com rico material original, desde a concepção, os roteiros, o letreiramento, a coloração, a impressão, o marketing, enfim, todas as etapas da industrialização dos quadrinhos. Há dois salões de exposições temporárias (em um dos quais estava instalado um interessante panorama das HQs romenas) e, é claro, o andar principal, onde, entre escadarias e vãos de leveza art nouveau, podemos acompanhar, cronologicamente, entre estátuas, réplicas, brinquedos e instalações muito divertidas, toda a trajetória da BD belga (somente belga; nenhum artista francês é relacionado ali).

Neste andar principal, três tipos de subdivisão interessam. Em primeiro lugar, uma vasta e interativa sala toda dedicada ao personagem Tintim e ao seu criador, Hergé, com, além de ilustrações originais e modelos em escala humana, instrumentos de trabalho e painéis informativos ilustrados sobre o refinamento artístico, narrativo e humanístico do personagem, deslindando sua grande importância para a cultura das BDs. Com o lançamento do filme de Spielberg, os belgas, é claro, estavam em alvoroço, e o Tintim estava em toda parte.

Passando por esta sala de abertura, começamos a entender a concepção de curadoria do museu. A divisão das salas é mais ou menos cronológica e separada por autores (o primeiro deles é o pioneiro Jijé, criador do Spirou nos anos 30, tão importante, digamos, que também tinha um museu só pra ele em Bruxelas), mas estas salas (na verdade, elas funcionam como grandes divisórias de um labirinto de quadrinhos) são divididas em duas grandes estruturas pelo andar, separada por uma charmosa banca de jornal no modelo dos anos 40: de um lado, toda a história do semanário Spirou, com centenas de capas clássicas, e a trajetória ano a ano de seus editores. Do outro, a trajetória do jornal ou revista Tintim (ambas são revistas de variedades em quadrinhos e publicavam dezenas de personagens e autores diferentes), com as capas dispostas da mesma maneira.

Saindo, então, das salas que contam as histórias das revistas que, cultivando saudável rivalidade, permitiram o desenvolvimento da HQ belga, fica mais fácil e claro entender as salas dos próprios autores, dezenas deles, com várias páginas originais de cada, rascunhos, objetos pessoais, além de textos bastante ricos informando-nos a trajetória editorial do autor, suas influências, o método de criação, a concepção de seus personagens, sua popularidade, etc. Vale mencionar que as salas dos autores são personalizadas de acordo com suas criações. A sala de Franquin, por exemplo, é disposta como se fosse o escritório zoneado de Gaston Lagaffe, além de um corredor escuro que homenageia sua obra-prima tardia, as Idées noires. A de Morris se parece com um saloon que homenageia Lucky Luke, e assim por diante.

Acabei demorando-me um bocado de tempo nestas salas, procurando conhecer os muitos autores ali dos quais eu nunca ouvira falar, e foi uma pesquisa muito fértil. Foi possível entrar em contato, por exemplo, com Raymond Macherot e seu Sibylline, uma popular HQ de animais falantes, na melhor tradição Disney ou Pogo, que constrói inteligente comentário social a respeito da Europa nos anos 50-70. A sala de Macherot era decorada com modelos das árvores onde seus personagens vivem, com diminutas famílias arranjadas dentro dos troncos. Pude também dar uma olhada melhor no autor Maurice Tillieux e sua BD detetivesca Gil Jourdan. Por sorte, pude comprar versões compiladas, extremamente bem editadas, de todas as BDs que me interessaram. Coisas dos anos 40, 50 e 60, reeditadas em obras completas, mostrando o profundo respeito que os belgas devotam à sua tradição quadrinística.

Vale também mencionar a sala de Peyo. Além de originais e coisas de praxe, encontramos um mini-museu só dos Schtroumpfs, com modelos dos “edifícios” e construções dos Schtroumpfs.... em escala Schtroumpf. Há também uma grande tela de tinta a óleo com toda a vila dos Schtroumpfs pintada pelo próprio Peyo. Outras coisas de interesse estão na grande sala dedicada à BD Boule e Bill, de Jean Roba, uma história infantil muito simpática e popular, calvinesca, sobre um garotinho e seu cachorro, além de muitos outros personagens que já foram publicados até em português, como Alix (Jacques Martin), ou Le chat (Phillipe Gerluck).

Módulo Lunar (modelo) do Smurf Astronauta

Módulo Lunar de Tintim

Por fim, uma curiosidade substancial é a maneira como os autores que se originam da cultura dos flandres (e, portanto, são publicados em holandês) possuem um tratamento diferenciado no museu. Segundo o que o curador de um pequeno museu de música informou ao meu irmão na cidade da Antuérpia, basicamente a maioria dos belgas nos flandres se identifica com essa cultura, e a capital só fala francês graças a uma imposição de Napoleão após ter conquistado o país. A cultura francesa (obviamente também orgulhosa) na Bélgica, situada na região da Valônia, é bem mais pobre a marginalizada do que os ricos belgas de origem flamenga. Talvez isso explique por quê, no museu, os influentes autores flamengos ostentem os textos de curadoria em holandês acima dos textos em francês, ao contrário de todo o resto. Os principais nomes desses quadrinhos – Willy Vandersteen, chamado “verdadeiro criador da linha clara” e sua imensamente popular BD familiar Bob e Bobette; e Marc Sleen, criador de As aventuras de Nero – ocupavam espaço de grande destaque no salão central do museu. Depois, ao tentar comprar a HQ Nero e não encontrar nenhuma edição em francês (e carregando somente uma tradução em inglês nas mãos), perguntei pra velhinha que atendia na loja: “Nero em francês está em falta”? No que ela respondeu: “Não, isso nunca foi publicado em francês”. Oh, I guess I struck a nerve.

BD World

Acho que tudo que me esforcei para escrever com clareza acima dá uma ideia da complexidade cultural de um país com 30 mil km² e apenas 10 milhões de habitantes. Especialmente para os fãs de quadrinhos, é um tour que vale a pena. Tanto quanto chocolaterias (esqueci de dar algum destaque a isso, porque, ao contrário de 99% da população mundial, não gosto muito de chocolate), há um universo de lojas de quadrinhos na Bélgica, especialmente em Bruxelas. Cheguei a visitar umas 4 ou 5, afinal, o tempo era curto e tinha muita cerveja pra beber. Faço questão de destacar a BD World, uma loja labiríntica, com milhares de quadrinhos, atendida por duas preciosidades a quem eu não recusaria um pedido instantâneo de casamento; a Multi-BD, cujos atendentes são tão atenciosos que escrevem suas próprias mini-resenhas e colam junto às capas dos quadrinhos, classificando-as como “premiadas”, “favoritas da casa”, etc; e a própria loja instalada no museu, a Slumberland, franquia de uma megastore de quadrinhos que tem outras 5 ou 6 lojas espalhadas por Bélgica e França. A Slumberland é quase como uma Fnac só de quadrinhos, e praticamente somente quadrinhos francobelgas. Os comics americanos, aliás, parecem bastante desprezados pelo país. Pouco se vê deles pela Bélgica. Vou me abster apenas de falar no bizarro hábito de comer batatas fritas com maionese como se fosse cachorro-quente, e de dar mais detalhamento sobre a qualidade da mulher belga, primeiro para não entediar nossas leitoras, e segundo porque esta é uma qualidade que deixo à imaginação, e àqueles que se aventurarem para uma visita in loco.

Bruges, na Bélgica: você senta-se no café, pede um chocolate quente e pega um gibi pra ler.

Agradecimentos ao meu irmão Guga (verdadeira fanático por pintura flamenga, prestou ótima assessoria), meu irmão Quilk (que tirou a maioria das fotos) e ao colega Pedro Brandt (que morou na Bélgica e me informou alguns detalhes essenciais sobre o país).

HQ em um quadro: a ciência do sono induzido, por Pablo de Santis e Juan Sáenz Valiente





O hipnotizador Arenas desmistifica seu ofício através de um argumento científico (Pablo de Santis, Juan Sáenz Valiente, 2007): É comum que se associe culturas midiáticas visuais a um tipo específico de hipnose. No cinema, isso foi alvo de teorias cheias de complexidade (ver Münsterberg ou Morin). O mundo visual traduzido em enquadramentos ordenados e organizados em dispositivos de causa e efeito, em algum grau, parece nos submergir em distintos estados de transe ("projeção-identificação", nas palavras de Morin). Quando o famoso escritor argentino Pablo de Santis (histórico roteirista da Fierro), ao trabalhar com o virtuoso ilustrador Juan Sáenz Valiente, traz o tema do hipnotizador a esta magnífica história publicada em capítulos pela nova versão da Fierro, isso pode ou não ter sua carga de metalinguagem. Gosto de achar que sim, e as reviravoltas na história soturna de um mestre argentino desta antiga arte, que desvela o passado das pessoas através do sono, mas não consegue dormir, parece um indicativo interessante de seu dilema enquanto artista que alterna as funções de escritor e de roteirista de HQs (da qual ele estava afastado havia anos). O escritor domina a arte de induzir o sono imaginativo construído na mente de leitor. Ao quadrinista cabe o trabalho de sonhar pelo mesmo.

O hipnotizador foi republicado em bela edição da Reservoir Books na forma de novela gráfica em 2010. Seria uma bela pedida de tradução para o português. Numa narrativa sombria e cheia de desgastes úteis, tipo noir da antiga Buenos Aires, os autores vão desenhando um trama insólita e kafkiana, entre o sonho, o transe e o pesadelo, prestadora de tributo a tipos geniais como Borges ou Poe. As ilustrações e a amostra caricatural na galeria de personagens, cheia de gente pérfida, arrasada, trágica, não deve nada a um Dobro de cinco, de Mutarelli, ou a um Daytripper, em termos de engenhosidade. Cabe lançar um olhar delongado aos nossos nobres vizinhos. Valiente é dono de uma arte líquida, aquarelada, onde predominam púrpuras e pastéis de um passado obscuro, de capital latinoamericana. Neste quadro simples, apenas um numa página com nove, Arenas põe os pingos nos "i"s de seu obscuro ofício: "A hipnose, senhores, não é magia. É uma poderosa forma de sugestão. É a ciência do sono induzido". Tampouco parece magia a arte de narrar e elaborar uma história em quadrinhos. Parece, na verdade, uma ciência do sono voluntário (CIM).  

Contatos imediatos: entrevista com Lourenço Mutarelli






















por Pedro Brandt

No começo da carreira, nos anos 1980, Lourenço Mutarelli teve dificuldades para publicar seus primeiros trabalhos. Nenhum editor queria suas histórias em quadrinhos. A ironia é que, pouco depois, ele se tornaria um dos mais respeitados autores brasileiros de quadrinhos. Tanto que, quando Mutarelli anunciou que deixaria de produzir HQs para se focar em seus livros (e em trabalhos para cinema e teatro), muita gente lamentou a aposentadoria precoce do paulistano. Por isso mesmo, existia uma certa expectativa a respeito de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, trabalho anunciado como sua volta aos quadrinhos.

Na verdade, o título ainda não é o tão aguardado retorno de Mutarelli ao formato. “Quando eu comecei a fazer os estudos em quadrinhos, vi que a história não ia ter fôlego para isso. Então eu fiz essa contraproposta para a editora (Companhia das Letras), de fazer uma história ilustrada. E eles aceitaram numa boa”, ele conta. Mais do que narrar um contato imediato de terceiro grau (em termos ufológicos, o encontro com extraterrestres), Lourenço Mutarelli, 47 anos, faz de seu novo trabalho uma reflexão sobre a memória e o passar do tempo.
No começo do livro, o narrador — anônimo — avisa que não foi testemunha do que será relatado nas páginas a seguir. Os pais do personagem passaram seus últimos dias juntos em uma vida tranquila e doméstica. Ela gostava de assistir novelas. Ele, de comprar máquinas de escrever e de costura para desmontá-las e depois montá-las. O homem também colecionava fotografias antigas compradas em uma feira perto de casa. A rotina do casal seria abalada pela morte súbita da senhora. Com a perda da mulher, o velho homem entrou em depressão.

Para ajudar o irmão em luto, o tio do narrador convida o viúvo para pescar em uma cidade do interior. Durante a pescaria, os dois avistam uma estranha luz no céu e a perseguem. Pouco depois, o pai do narrador some noite adentro. Quando reaparece, tem histórias surpreendentes para contar.
 
Interação

A leitura apenas do texto de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente é rápida e pode passar uma impressão precipitada da obra, como se ela fosse uma história muito simples, banal. A posterior leitura das ilustrações, mais do que complementar o que está sendo narrado com palavras, funciona no sentido de causar sensações. Diversas imagens são apresentadas mais de uma vez, mas com alguma coisa diferente. Assim como uma foto desbotada, uma lembrança antiga ou as imagens criadas na mente quando se ouve uma história (ou ainda, quando elas surgem na cabeça fruto de algum delírio), as ilustrações de Mutarelli no livro são — além de um deleite visual — um convite à sugestão.

Assim como na leitura de uma história em quadrinhos, a participação ativa do leitor em Quando meu pai se encontrou com o ET… se faz necessária para preencher algumas lacunas e silêncios que Mutarelli espalha pelo livro. E é com o auxílio desse artifício — a liberdade para interagir com o que se lê — que a obra transcende as páginas.

Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente
De Lourenço Mutarelli. 112 páginas. Quadrinhos na Cia. (Companhia das Letras). R$ 44,50.

ENTREVISTA: LOURENÇO MUTARELLI
 
Como é o seu processo para conceber as histórias que cria?
Quando eu começo a pensar na história, eu parto geralmente de algum argumento pequeno. Não é nem um argumento, é uma ideia que eu sinta que possa desenvolver. Quando é em quadrinhos, eu sempre começo a fazer uma pesquisa de imagens, tentar pensar como eu vou ambientar a história, e começo a fazer uns estudos. E a partir desses estudos, pensando no que é a história, eu tento encontrar uma técnica, uma forma de contar essa história.

Quanto tempo você levou para concluir o Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente?
Levou um ano. Eu terminei ele em maio, junho do ano passado.

Qual a técnica usada nesse trabalho?
Eu usei basicamente tinta acrílica sobre papel. Às vezes tem até algum filete em nanquim, mas aí é pincel, mais uma técnica de pintura. Eu achava a cor interessante nessa história, dar uma amortecida nas cores, o acrílico é uma cor muito intensa. Eu comecei a fazer alguns estudos cromáticos, uns estudos de cor e vi que era o caminho que eu queria seguir.

As técnicas são uma novidade pra você?
Sem dúvida. Eu tinha trabalhado em pouco coisa com tinta acrílica, nos trabalhos de faculdade. E nunca mais tinha mexido com acrílica. Como eu tenho um projeto que eu mais gosto, que eu venho fazendo, que são meus cadernos de… não são nem uns estudos, são meu laboratório, coisas que eu brinco… 

Sketchbooks? 
É, são sketchbooks. Eu não sei se são sketchbooks, eles são mais ou menos o que eles são ali. Eu tiro muita ideia dele. A minha intenção é gerar coisas ali, com cor. E eu tinha comprado há um tempo atrás alguns tubos de acrílica e estava usando nesse cadernos. Mas de uma forma bem… não é nada demorado, não tem que ter acabamento, é uma coisa muito rápida nesses cadernos. E aí, para esse projeto, para o processo desse trabalho, é algo muito mais elaborado, mais trabalhoso. E eu achei que o desafio também me estimularia a encarar esse trabalho.

É o seu primeiro trabalho colorido?
Nos anos 1990, começo de 2000 — 2000, eu acho — tinha o Cyber Comix, um site. Uma das exigências deles é que as histórias fossem coloridas. Então eu fiz uma série de histórias coloridas pra eles, que depois eu reuni num álbum, que é Mundo pet, uma coletânea dessas histórias. Aquela é a minha única publicação colorida.

Essa história tem algo de biográfica?
Como a narração é em primeira pessoa dá a impressão de ser uma história autobiográfica. Ela tinha uma frase no começo que deixava claro que não era, mas eu acabei suprimindo isso, para deixar essa dúvida. Ela não tem nada de autobiográfica — a não ser o uso da imagem de alguns amigos, como o Mário Bortolotto e o Paulo de Tarso, que eu usei como referência para uns personagens, e umas fotos da minha infância que eu misturei nas fotos que o velho colecionava. E o velho, o pai, tem a cara do escritor William Burroughs. Eu desenhei muito o Burroughs e um dia percebi que sempre misturo o rosto dele no do meu pai. E eles não tem nada a ver! A única semelhança é o lábio muito estreito, quase não tem o lábio superior.

E os seus pais estão vivos?
Só a minha mãe. Meu pai faleceu tem 10 anos — igual na história (risos). Eu falo que não tem nada biográfico, mas meu pai morreu há 10 anos. Mas não foi num asilo, não viu ET…

Acho que a frase que melhor resume isso é uma frase do Arquivo X
“A verdade está lá fora”. Eu adorava Arquivo X, é uma série que eu acompanhei muito nos anos 1990.

A frase que tem no poster do escritório deles é ainda melhor: “Eu quero acreditar”.
Ah, sim, é verdade! “I want to believe”. A gente passou o fim de ano num sítio, na casa de campo de um amigo, onde a gente sempre passa, e eu passei a olhar muito para o céu. Eu sempre olhei muito pro céu porque sempre me fascinou as tonalidades. Como eu levanto cedo, geralmente eu vejo o sol nascendo, é uma coisa que sempre me fascinou. Mas nunca estava procurando nada ou tinha esperança (de ver alguma coisa). E nesse final de ano, o meu filho me perguntou “você está procurando ET” e eu disse que adoraria ver (risos).

Você gosta de histórias de ETs?
É uma coisa que me fascinava quando eu tinha uns 14, 15 anos. E que ficou meio apagada, nunca tive mais interesse. E há algum tempo atrás, o Marçal Aquino — para quem eu dedico o livro — me contou uma piada que era sobre ET. Era uma piada bem boba, mas que tinha a frase “leve-me ao seu líder”, a frase clássica dos ETs. E isso ficou na minha cabeça. A partir daí, eu comecei a pensar na história, a fazer uma pesquisa maior sobre o assunto, a acompanhar um monte de séries de tevê a cabo, pesquisar imagens no YouTube… Eu adoraria ver alguma coisa. Nunca vi nada, não sei se acredito ou não, mas acho fascinante entrar num mundo que não fazia parte das coisas que eu questionava ou pensava.

Você ouviu falar do ET Bilu?
Eu estava dando uma oficina ano passado no Sesc, e uns meninos me contaram. Eu até anotei isso na minha agenda, para procurar, mas nunca fui atrás.

Já está trabalhando em um novo projeto?
Vou voltar para o meu projeto dos Amores Expressos.

Como está essa história?
Eu fiz um livro, mas a Companhia das Letras não gostou e pediu uma série de alterações. Eu alterei, mas depois… como ele estava previsto para o ano que vem, e eu vi que eles não gostaram muito… daí, andei pensando e vou reescrever. A história vai ser no mesmo cenário, mas com outros personagens. Vou manter só um capítulo do outro livro que eu escrevi.

E o filme do Dobro de cinco, por que não teve continuidade?
Fizemos um teaser, a princípio, para uma tv a cabo. Era para ser uma minissérie em alguns capítulos. Mas essa emissora, quando viu o teaser e teve contato com os livros, achou muito bizarro e desistiu. Eles tentaram com uma outra também não aconteceu. Aí veio a ideia de virar um longa, mas seria um projeto muito caro, então está engavetado.

Uma pena, porque esse teaser ficou bem legal
Até chorei quando vi, foi muito emocionante. A direção do Denison, o Grampá cuidou de toda parte visual, a maquiagem… Mas é uma coisa quase inviável, a maquiagem do Cacá Carvalho dura quatro horas e meia e acabou, ela é jogada fora.


Você acompanha alguma coisa de quadrinhos hoje em dia?
Não tenho acompanhado quase nada, e já faz muito tempo. Às vezes me mostram alguma coisa, mas muito pouco, não tenho acompanhado nada.

O que você gosta de fazer para passar o tempo?
Ouvir música e jogar paciência no computador.

Você ainda gosto dos compositores de vanguarda erudita?
Sim, tem umas duas décadas que eu venho mais focado nessa música. Glass, John Cage, György Ligeti, Arvo Part… tenho ouvido um cara que é bem obscuro, Harry Part, que é maravilhoso.

Você tem um traço bem pessoal, é até difícil perceber as suas influências…
A minha relação com as minhas influências nos quadrinhos nunca foi de tentar imitar esses caras. Tem caras que eram referências, por exemplo, Hal Foster, no Príncipe Valente, ou Hergé no Tintim… eles têm um trabalho tão bem resolvido no estilo deles… o Tardi ou Munhoz, que pra mim é o melhor. São caras que eu nunca tentei imitar. No começo do meu trabalho, quando eu não conseguia publicar, eu tentei fazer humor, e aí quando eu tentei fazer humor, eu me influenciei mais pelo underground americano. Mas foi uma fase inicial e depois eu voltei para o que eu já era. Eu costumo dizer que o estilo é a tua limitação, é o jeito que eu sei fazer. Eu tento experimentar sempre nesse meu processo, mas é por aí, eu gosto disso. Acho que eu sempre tive mais influências literárias e de artes plásticas.

Mudar de traço é se desafiar?
É uma busca mesmo. Mesmo nas histórias antigas, tem uma variação de uma para a outra. Em cada história, eu tentava encontrar um traço que eu acreditasse que ajudava a contar a história ou ambientar melhor essa atmosfera. Eu acho muito desagradável chegar numa coisa que deu certo e ficar insistindo nisso, é muito fácil você ficar numa coisa que deu certo.

E quando você volta, efetivamente, para os quadrinhos?
Eu fiz algumas coisas em 2007, comecei um projeto novo totalmente experimental e em quadrinhos mesmo. Em algum momento eu devo voltar, mas queria encontrar uma forma nova, que fosse experimental, que me desafiasse a encontrar alguma coisa diferente do que eu fiz nesse anos todos.

Moon e Bá em Brasília

Fábio Moon e Gabriel Bá participam hoje (terça-feira, 31 de janeiro), a partir das 19h30, de um bate-papo no teatro Eva Herz, localizado da Livraria Cultura do Iguatemi Shopping (Brasília) - o acesso é livre. Na pauta, o sucesso de Daytripper, os caminhos do quadrinho nacional e os próximos trabalhos dos irmãos. Na entrevista a seguir, os gêmeos paulistanos adiantam um pouco da conversa que vai rolar à noite. (PB)
* Crédito da foto: JR Duran




Daytripper repercutiu muito bem, nacional e internacionalmente. Qual dos reconhecimentos recebidos pela obra deixou vocês mais felizes? Por que?
Gabriel: Todo reconhecimento do Daytripper nos deixa felizes, de formas diferentes. Nos Estados Unidos, foi nosso maior projeto autoral e serviu para nos consolidar como autores, não só como desenhistas. Aqui no Brasil, foi nosso primeiro trabalho que conseguiu reunir o reconhecimento que temos no exterior, os prêmios que a obra ganhou, a visibilidade que temos na mídia e o fato do próprio livro estar sendo lançado e disponível no país inteiro. Estamos muito felizes com tudo.

E qual o reflexo dessa boa repercussão na carreira de vocês?
Gabriel: Hoje somos mais reconhecidos como autores, não só desenhistas, e as editoras estão mais abertas para nossos projetos — não só para usar nossos desenhos nas histórias dos outros. Vários convites para convenções e eventos de quadrinhos ao redor do mundo são resultado desta repercussão e temos tentado balancear as viagens com o trabalho, pois é importante divulgar e promover os livros, mas é preciso continuar produzindo material novo.

Vocês conseguem perceber o surgimento de novos leitores para o trabalho de vocês?
Fábio: Estamos sempre buscando novos leitores. Quadrinhos não são só pra “nerds” ou “crianças”. Queremos expandir o mercado de quadrinhos e mostrar a pessoas que não costumam ler HQs que elas podem encontrar ali histórias incríveis. Acredito que o Daytripper esteja fazendo um pouco isso, mas precisamos continuar produzindo este tipo de quadrinhos pra conseguir realmente formar este público “novo”.

Um assunto recentemente muito discutido por quem faz e lê quadrinhos foram as propostas de lei para cotas de produção nacional nas editoras brasileiras. Vocês acompanharam essa história? O que pensam a respeito dessas propostas?
Gabriel: Acho que pode ajudar na formação de público se bem utilizado nas escolas e faculdades (como propõe o artigo 5º da lei). Mas não acredito que resolverá a vida dos autores e criará problemas para editoras, principalmente as pequenas. Nunca se publicou tanta HQ como hoje em dia, em variedade de gêneros e títulos, tanto estrangeiros quanto nacionais.

O que vocês leram de interessante de quadrinho nacional em 2011 e recomendariam para as pessoas?
Gabriel: Um projeto muito bacana de 2011 foi uma página de quadrinhos no IG, de onde surgiram três trabalhos excelentes: O beijo adolescente, de Rafael Coutinho; Roberto, do Edu Medeiros; e Tune 8, do Rafael Albuquerque. Tanto o Beijo adolescente quanto o Tune 8 foram compilados e publicados em papel. Outra HQ legal foi Achados e perdidos, do Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, pois é uma boa história infanto-juvenil, gênero pouco trabalhado no quadrinho nacional.
Fábio: E quem continua firme e forte numa ilustre carreira nos quadrinhos é o Gustavo Duarte, que depois das premiadas (2009) e Taxi (2010), lançou Birds, mais uma HQ sem falas, contando tudo com seus elegantes desenhos.

Quais os planos de vocês para 2012? Quando poderemos ler o próximo trabalho de vocês?
Fábio: Este ano vamos lançar um álbum da série Cidades Ilustradas, da Casa 21, sobre São Luís do Maranhão. Além disso, também deve sair por aqui o Casanova, série que fazemos nos Estados Unidos com o escritor Matt Fraction. Estamos trabalhando na adaptação para os quadrinhos do livro Dois irmãos, do Milton Hatoum, mas vai demorar ainda pra ficar pronto.

HQ em um quadro: a indizível morte de Assad, por Ozamu Tezuka





















Sidarta presencia a morte violenta do asceta Assad, que entrega o corpo para ser devorado pelos lobos (Ozamu Tezuka, 1972): a série Buda, publicada por Ozamu Tezuka ao longo dos anos 1970, é tão magnanimamente constituída em todas as suas estruturas de quadrinhos que não valeria a pena escrever um texto longo sobre ela. Caberia um sobre cada um dos 14 insuperáveis volumes. Ou seja, um livro (hmm... pensar a respeito). Portanto, para não deixar em branco este que é um dos meus quadrinhos favoritos e certamente um dos melhores de todos os tempos (seria uma espécie de Em busca do tempo perdido das HQs), resolvi comentar um único momento, dentre literalmente dezenas e dezenas de ações sublimes na história, para prestar tributo. A título de curiosidade, Buda é a obra mais ambiciosa deste gênio das HQs, e aquela em que o deus do mangá mais se dedicou de corpo e alma, elaborando todos seus elementos estilísticos (humor, drama, ação, personagens-atores, metalinguagem, narrativas cruzadas, etc.) num profundo grau de resolução filosófica e existencial, sem jamais perder a pegada de aventura e a leveza de seu humor. Além disso, é um dos momentos em que seu grafismo espacial chega à máxima exponencialidade, com páginas inteiras de paisagens impressionistas e percepções narrativas espalhadas num único quadro, em nada deixando a dever a um Patinir ou a um Debret.

Estes três quadros estão no sétimo volume da saga, quando Sidarta inicia sua jornada espiritual ao buscar um caminho tortuoso de ascese hindu na floresta de Uruvella, onde homens passam os dias sendo comidos por formigas, queimados pelo sol e furados por pregos, além de outros tipos de autoflagelo. Após questionar estes pricípios e ser rejeitado pelos ascetas, Sidarta vê-se só em sua jornada, acompanhado apenas pelo pequeno Assad, um monge melequento que, em primeira instância, não passa de um estorvo inútil e que, depois de passar por uma transcendental experiência de quase-morte, recebe o dom de previsão exata do futuro. Desde o princípio, Assad prevê o exato dia de sua própria morte, seis anos no futuro, devorado por bestas selvagens. A brutalidade da previsão e a serenidade do pequeno monge impressionam o jovem príncipe, que faz tudo para protegê-lo. A preocupação do leitor acompanha a de Sidarta, já que Assad é o tipo de personagem que angaria simpatia progressivamente e, como suas previsões nunca falham, a cada volume alimenta-se a expectativa sobre sua morte vaticinada.

A beleza da história desse personagem se equipara à força que com ela impressiona o futuro Buda. Cada um dos reis, soldados ou camponeses que vão se consultar com Assad recebem de volta uma resposta plácida, técnica e frustrante: seus futuros nunca serão o que esperam, e geralmente resultam em mágoa, frustração ou insuficiência, que precisam ser comunicados com ascetismo pelo pequeno monge. Admira-nos, portanto, o olhar incompassivo e resignado com que Assad realiza sua leitura do mundo, anunciando a importância do desapego budista em níveis absolutamente extremos. Na véspera de sua própria morte, Assad comporta-se de maneira idêntica aos outros dias de sua vida, consciente da inutilidade de cultivar paixões contra aquilo que está além de sua capacidade de resolução. Sidarta amarra-o numa árvore para impedir que as bestas selvagens o ataquem, mas um castor, na calada da noite, rói as cordas e Assad vai parar perto de uma ninhada faminta de lobos, que chora, sem alimento. Resolutamente, sem paixões ou afetos, Assad oferece seu próprio corpo para os pais dos lobos, que o dilaceram diante dos olhos de Sidarta que, atrasado, nada pode fazer. O desprendimento total em relação a qualquer tipo de posse, apego ou adesão acha um apogeu neste generoso ato de martírio ("não me pertence nem minha própria vida") onde Assad entende, como um dever inquestionável, que a vida daqueles lobos necessita mais dele do que ele próprio. Foi este o verdadeiro prego cravado no coração daquele que se tornará o Buda. (CIM)

Este post é dedicado à KK, que dividiu comigo, por um ano todo, a entusiasmente experiência de ler a série completa do Buda.













Um zumbi no carnaval






















por Pedro Brandt

Yuri escolheu o dia errado para morrer. De saco cheio do carnaval do Rio de Janeiro (“não sei sambar, nunca tive temperamento tropical”, ele diz), esse publicitário pulou de um prédio no domingo. Ressucitou na segunda, ainda com a festa tomando conta da cidade. “Você diria que eu ganhei um milagre. A chance de consertar meus erros. Mas eu não mudei. Porque sou o mesmo de antes. Burro, feio e chato. Sem missão divina, sem dinheiro e atrasado para o trabalho”. De volta ao mundo dos vivos, Yuri percebe que a única coisa em comum entre ele e o Rio é que ambos estão apodrecendo — Yuri saiu do túmulo como um zumbi.
Como azar pouco é bobagem, bastou apenas um dia para que ele perder o emprego para um estagiário e a mulher para um ricardão qualquer. Mas nem tudo está perdido para o protagonista da história em quadrinhos Yuri: quarta-feira de cinzas. Com a ajuda de Andrei, um ladrão de carros (gordo, gay, oportunista, inconsequente e, acima de tudo, carismático), ele decide ir à forra antes de morrer de vez. Até a última página, Yuri desafiará o rei momo, cabrochas, foliões, blocos de rua e uma turba descontrolada que acredita ser ele um santo milagroso.


Primeira HQ autoral do diretor de animação e ilustrador carioca Daniel Og, Yuri: quarta-feira de cinzas consegue uma façanha ainda pouco frequente entre os novos criadores de quadrinhos nacionais: seus personagens têm personalidade vívida, que salta das páginas. O protagonista é alguém que tem tudo, mas se deixa vencer pelo tédio. Andrei não tem nada a não ser seu próprio senso de sobrevivência. Juntos, mesmo brigando o tempo todo, a dupla parece se completar.

Sem forçar a barra, o autor também é bem-sucedido em fazer comentários sociais e levar brasilidade para a história. E tudo isso com muito humor. Og radiografa parte do Rio mostrando tanto a alegria contagiante do carioca, quanto o lado mundo cão da cidade, onde maladro é malandro, mané é mané e todos querem passar a perna uns nos outros. E ainda que o carnaval seja pano de fundo para a trama, o autor não se agarra aos clichês que geralmente estão presentes nos roteiros passados na cidade maravilhosa.

Ao conceito da história e à construção dos personagens, soma-se uma arte em preto e branco carregada de personalidade e estilo, ainda que simples, quase minimalista (como bem comenta Allan Siber no texto de introdução). Yuri: quarta-feira de cinzas foi lançada no final de dezembro. Por isso mesmo, merece figurar em qualquer lista de melhores HQ nacionais de 2012.

Yuri: quarta-feira de cinzas
De Daniel Og. 272 páginas. Conrad Editora. R$ 36.


Entrevista com Daniel Og:

Você considera o Yuri o seu alter ego de alguma forma? Você viveu alguma das histórias narradas na HQ?
Um pouco, mas não. O Yuri começa a história em um ponto que eu vivi. Tinha saído de um “bom emprego”, estava duro... Estava desesperançoso de chegar nas conquistas que quando menino tinha me imposto! Hahaha! Mas aí justamente por estar nessa situação (eu não pensei nisso na época, só me dei conta agora, na verdade) tive a liberdade de mudar e fazer meu quadrinho como eu queria, sem me importar com opinião de ninguém. Aproveitei essa chance de renascimento bem melhor que o Yuri. De uma certa forma, a vida que Yuri deixa pra trás é a minha. Mas a partir do momento que o Yuri encontra o Andrei, a história e o personagem já não têm mais nada a ver comigo. Mesmo assim, usei muitas referências da minha vida. Muitos amigos como base para criar os personagens... Enfim, tem muito de mim na história, mas não é nada autobiográfico! Nunca fui chifrado daquele jeito, por exemplo!

A HQ tem uma identidade local muito forte. Como você trabalha roteiro e personagens?
O que eu acho que falta nos quadrinhos brasileiros é uma perspectiva diferente. Culturalmente, o Brasil produz pouca coisa com identidade nacional e divertida. Geralmente, divertido é sinônimo de cinema de ação. Japonês, americano, coreano, que seja, mas o entretenimento brasileiro é muito realista! Chato, eu diria! Então, a referência fica ou fazer uma coisa com cara de Brasil e pesada — sofrida, doída — ou fazer uma coisa com cara de europeu ou americano e sem identidade, sem referências realmente próprias. Acaba que a falta de trabalhos lúdicos com identidade própria — e divertidos — faz com que surjam menos trabalhos que sigam nessa linha também. Foi uma intenção que fosse um quadrinho divertido antes de tudo! Ainda que fosse um quadrinho burro, ainda que fosse um quadrinho tosco, tinha que ser divertido.

Yuri é uma HQ de fôlego, com 272 páginas. Quanto tempo você demorou para realizá-la?
Na prática, eu levei cinco anos. Mas a história apareceu na minha cabeça há uns oito. Levei algum tempo até ter coragem de sentar e escrever. Considero que realmente comecei o projeto depois do primeiro roteiro escrito. Que depois eu acabei jogando fora quase inteiro!

Qual o maior desafio da produção deste trabalho?
Tempo. Nada além disso. Paciência. Na verdade, o maior desafio talvez tenha sido juntar coragem e me forçar a levar o projeto do início ao fim. Porque, técnica e criativamente, foi fácil de fazer. Era um quadrinho que eu queria muito fazer. E por não ter uma carreira conhecida, não havia nenhuma expectativa. Eu podia ir melhorando a técnica à medida que fazia... podia errar. O duro mesmo foi me convencer de que havia chegado a hora de começar e, levando o tempo que levasse, que eu ia chegar até o fim uma hora, que ia valer a pena. Mas mais uma vez, meus resquícios de punk rock me ajudaram. Eu não me importava muito se ia ficar bom ou não. Só queria ver meu bichinho pronto.

Quem você considera as suas principais referências nos quadrinhos? Quais os seus autores favoritos?
Conheço até pouco de quadrinho pra falar a verdade! Hahaha! Não achava isso até conhecer alguns outros autores e apreciadores de quadrinhos. Por que o povo conhece tudo! Então sou humilde com meus conhecimentos. Mas adoro quadrinho! Meu pai sempre teve muita Mad e Peanuts em inglês em casa, aqueles livrinhos de bolso... eu e minha irmã destruíamos a coleção dele literalmente. Minhas referências são os clássicos (Charlie Brown, Winsor McCay, Hugo Pratt, Manara, Asterix…), quadrinhos de humor (Quino, Laerte, Allan Sieber, Angeli, Fernando Gonzales), mangá, que eu gosto muito (Dr. Slump, Preto & Branco, Naruto, Vagabond, Battle Royale…), alguma coisa de quadrinho de herói também, que eu lia muito quando moleque. O Mike Mignola, inclusive, foi muito plagiado em vários sentidos… o timing dele é um negócio misterioso. Estudo muito ele.

Já está preparando sua próxima HQ?
Estou! Já vinha preparando a história há um tempo, enquanto desenhava o Yuri. Mas não tem muito a ver com o Yuri. Não repito muito as coisas. Gosto de experimentar com tudo que eu faço. Mesmo com animação e cinema, eu raramente fiquei muito tempo em uma mesma área. Apesar de meu ganha pão ser animação, é uma animação experimental... são projetos variados sempre no jeito de executar e nos roteiros. E eu quero dar um tempo. Um ano talvez. Nesse meio tempo quero fazer umas histórias curtas para revistas independentes que quiserem um colaborador e lançar um livro fechado com essas historias. Já tenho algumas feitas até.