Q para QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes

Eu fui pego de calças curtas. Tendo adquirido Ovelha negra – A revista que o Brasil não leu encomendando-a pela Internet através do site da Pandemônio, fui lendo-a sem saber exatamente do que se tratava. Apenas tinha a referência de ser de autoria do Professor da UFMG e quadrinista retumbantemente aficcionado Daniel Werneck, em parceria com o desenhista Ricardo Tokumoto. Era o suficiente. Porém, ao começar a ler o gibi, envolvi-me num mundo mais intrigante do que poderia esperar: tratava-se de uma recuperação (“restauração”) devidamente comentada e contextualizada, de uma revista de HQs de contracultura que havia balançado a cena belorizontina, como zine ou revista, nas décadas de 50, 60 e 70. O material era incrível, e a evolução dos desenhos e quadrinistas, acompanhando a trajetória sociopolítica do Brasil, mais ainda. O trabalho de “pesquisa” parecia extremamente bem-feito, especialmente em contextualizar o desaparecimento, sem rastros, da revista nas décadas seguintes, devido à linha dura do governo militar. Até que, de repente, um estalo me bateu à cabeça: “Como é possível que uma revista desse calibre, com experimentações avançadas de linguagem e conteudo forte e contracultural, não seja absolutamente idolatrado pelos quadrinistas de hoje, na era da Internet, ou isso não seja recorrentemente citado por artistas do calibre de Angeli ou Adão. Como é possível que eu mesmo nunca tenha ouvido falar nisso”?? Não aguentando mais, chequei as últimas páginas e percebi que todo o gibi de tratava de um tipo de mockumentary, ou um “jornalismo falso em quadrinhos”.

F for fake.

Este parágrafo escrito acima é um parágrafo falso. O que ocorreu na verdade foi bem diferente. Werneck já anunciava a publicação desta HQ pelo twitter muito antes de ela efetivamente sair, no final de 2011, e eu tive a oportunidade de conhecê-lo (apenas virtualmente), via @raiolaserhq, já há algum tempo e, através de meses a fio, acompanhei o desenvolvimento desta HQ: a redação das notas de rodapé, importantíssimas para se entender o comentário ideológico e estético da obra; a construção dos documentos forjados; a conceituação estética de cada uma das tiras, diferentes entre si (assim como dos “autores”), referindo-se a culturas diversas de quadrinhos dos 50’s aos 70’s; e até mesmo a chegada das pinups desenhadas por ótimos quadrinistas da presente geração hipermoderna de HQs no Brasil. Quando recebi Ovelha negra, portanto, rasguei o papel da embalagem e li numa sentada só, conferindo o apuro detalhado com que aquiilo havia sido concebido e executado.

O segundo parágrafo, acima, também é uma mentira? Pode muito bem ser, e esse é o ponto (perdoem a introdução fora dos padrões) a que eu gostaria de chegar sobre esta HQ: citando uma frase de Eumyr (o “maior falsário do século 20”), personagem de F for fake de Orson Welles, “se você pindura uma pintura falsa por muito tempo numa parede, ela se torna real”. Por mais que Ovelha negra não seja um fake que não se admite, como o filme de Welles (está tudo devidamente explicadinho, nas páginas finais, incluindo as homenagens aos quadrinistas históricos que a HQ emula), esta brincadeira (avançada) com o jornalismo dos e em quadrinhos tem toda uma charmosa narrativa subjacente, cativante para mentes espertas, que percebem não apenas uma maneira classuda de se reler a história de BH e do Brasil, mas uma construção, de vários jeitos inédita, de se contar a história dos quadrinhos em si, underground (o foco mais óbvio) ou mainstream (de maneira paralela). É desse jeito que esse gibi nos aprisiona em várias frentes: além de toda a construção metalinguística, os autores tiveram a preocupação de criar bons quadrinhos em sua farsa, respeitando suas referências originais (questão de coerência com a História e com o próprio mockumentary) e ao mesmo tempo pingando gotas de originalidade e autoria em cada uma delas. Assim, os falsos autores de quadrinhos vão ganhando personalidades delineadas na própria evolução histórica das tiras, que vão se intensificando em conceitos diferentes, tudo a partir dos mesmos dois autores implícitos. Mestres da falsificação.

A "evolução" do Capitão Raio-Laser Fica, então, a lição mais bonita de Ovelha negra. Por mais que identifiquemos ali, naquelas tiras, a Revista MAD, Peanuts, Gato Félix, Flash Gordon, Agente X-9, Recruta Zero, Zap Comix, Angeli, Laerte e o escambau (basicamente duas páginas inteiras de citações), os quadrinhos em si são encantadores. Vale pensar na autonomia metalinguística do traço simplório de Sir Roderick, ou o comentário sobre a cultura do rock em Os meteoros, ou que bela e sagaz tira real daria Urubu rei e Cristiano; ou o apelo à HQ mais abstrata na nada ingênua Crás, boom e bang; ou, fazendo eu mesmo a minha própria ficção derivativa e alucinatória, o comentário político em Capitão Raio Laser, cujo nome teria sido inspirado neste mesmo site que vocês leem neste momento.

Ovelha negra chega justamente num momento em que o reconhecimento das HQs como arte segue a uma gigante exponenciação do potencial desta mesma arte, com artistas no mundo inteiro investindo nesta carreira e apontando para todas as direções possíveis. Verdadeira diáspora das HQs. Como o cinema (não se enganem: esta é uma arte hoje decadente) fez nos anos 60. Vale, pra finalizar, mandar outra frase de F for fake, citada (supostamente), do poeta Kipling: “Adão, nosso pai, ao chegar no paraíso, pegou um graveto no chão e começou a fazer lindos desenhos na lama, quando, sorrateiramente, o diabo se aproxima dele e sussurra, ao pé do ouvido, a danação: estes desenhos são muito bonitos, mas eles são arte”? Bem, quanto a isso, posso apenas sugerir que Ovelha negra seja lido em cada falso detalhe de cada falso editorial, em cada falsa sessão de cartas, em cada falsa nota de rodapé, em cada falso documento da ditadura. Nestas entrelinhas, sinais de arte verdadeira.

Sir Roderick é uma das piadas mais interessantes de "Ovelha Negra"

Angeli: minerador de crises





Esta estreia, nas colaborações, do meu irmão Luiz Gustavo Marcondes tem sabor especial. Primeiro: porque a promessa de colaboração já vem de longa data. e finalmente se deu. Segundo: porque Guga se predispôs a cobrir, com ótimas fotos, esta incrível expo do Angeli, em nem eu nem Pedro pudemos conferir. E ainda num fim de semana futebolístico complicado (salve, tricolor paulista!). Terceiro: porque seu texto tem uma clareza sintética e ao mesmo tempo objetividade crítica que às vezes faltam aos rocambólicos escribas daqui. Gustavo é jornalista do Correio Braziliense, e escreve para o melhor Caderno de Esportes do Brasil. É aficcionado por cultura pop e arte em geral, e curte, é claro, quadrinhos além. (CIM)

texto e fotos por Gustavo Marcondes

Em um dos vídeos que faz parte da exposição Ocupação Angeli – aberta apenas até o domingo 6 de maio, com entrada gratuita –, em São Paulo, o cartunista diz que perdeu o tato para escrever e desenhar “tiras”. Uma confissão franca e que não esconde o cansaço criativo do artista de 55 anos com relação ao formato que o consagrou, ainda nos anos 1970. Um passeio com calma pela pequena sala do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, porém, pode indicar que a coisa não vai tão mal assim.



Nos trabalhos mais recentes, Angeli realmente opta pela charge, que, em vez da tira em dois, três ou mais quadros, é formada por uma única imagem. É assim que ele prefere, hoje, escancarar a sordidez do poder ou a monotonia/o vazio/o caos das metrópoles. E os muitos exemplos na Ocupação mostram que também nesse modelo ele atingiu a excelência. Em uma das paredes da exposição, por exemplo, 19 enormes charges mostram a visão Angeli do poder. Numa das mais legais, dezenas de bandidos armados com metralhadores se escondem na sombra da estátua da Justiça, cega.  Em outra, a entrada de uma paranoica São Paulo é separada: de um lado entram os fumantes; do outro, os não fumantes. Mais atual impossível.

Mas é inegável que o público ainda vibra mais com as tiras e os personagens clássicos de Angeli. Normal, como num show de rock em que os fãs aguardam pelos velhos hits. E na Ocupação estão todos os clássicos do artista: Rê Bordosa, os Skrotinhos, Los Três Amigos, Bob Cuspe, Wood & Stock, Luke e Tantra, Let’s Talk About Sex, etc. etc. etc.. Em uma montagem que aproveita ao máximo o espaço reduzido do Itaú Cultural, dezenas de gavetas se abrem para quase 40 anos de acidez. A concorrência para abrir qualquer delas tão alta quanto a para ver as imagens nas paredes.

São 880 obras, sendo 80 originais. Trabalhos sobre sexo (em uma área separada, teoricamente para maiores de 18 anos), jazz, pôsteres de festivais de cinema, capas de discos, caricaturas e edições da histórica revista Chiclete com Banana complementam a exposição, além de fotos do arquivo pessoal de Angeli, com imagens de sua infância e adolescência. Em outra boa sacada, há diversos livretos distribuídos pela sala, com trabalhos temáticos de vários personagens – esses bem menos concorridos que as gavetas. Em resumo: é preciso mais tempo que o aparente (pelo tamanho do local) para ver com propriedade todas as partes da exposição e passear com calma pelas diversas fases do artista.

Há um espaço bastante generoso dedicado a uma das séries mais recentes da obra dele: Angeli em Crise. Dezenas de imagens do cartunista sentado em seu estúdio, fumando, pensando, bebendo, agoniando-se, questionando a profissão, fumando mais... A crise dos 50, como ele admite no vídeo gravado para a exposição. Mas só para ele. Pois o conjunto das tiras – sim, a maioria delas no formato de tiras de três quadros – mostra um artista que se recria bebendo da suposta falta de criatividade. Ave Angeli!


Ocupação Angeli
Até 6 de maio no Itaú Cultural, Avenida Paulista 149, Metrô Brigadeiro, das 11h às 20h














Quadrinhos além... do papel!












por Lima Neto
Ahhh! Terremotos! Tsunamis! Crises monetárias mundiais!
Realmente o mundo anda vivenciando um clima aconchegante de apocalipse. Mas, se o tempo e o espaço pudessem ser resumidos em uma palavra, talvez “mudança” fosse a mais apropriada. Mudança causa terror! Mudança causa apreensão! E mudança traz esperança, para aqueles que são de sentir esperança. Um desses abençoados é um velho conhecido do mundo do quadrinho norte-americano: o escritor Mark Waid, famoso pela sua visão do futuro do universo DC junto com o artista Alex Ross em Reino do Amanhã e outros trabalhos tanto para a editora da Warner quanto para a Marvel.



Mark Waid escreveu Reino do amanhã. Sujeito cabuloso
No final do ano passado, Waid deixou seu cargo de editor chefe da editora Boom!, onde publicava seus títulos Irredimable e Uncorruptible, para voltar ao estatus de escritor freelance. Mas seus objetivos eram maiores que isso, e bem mais proféticos! Waid agora é o porta-estandarte dos quadrinhos digitais. De acordo com o escritor, uma série de fatores, como a popularização de mídias portáteis de leitura, a imensa queda nas vendas dos quadrinhos impressos, o alto custo da impressão em papel, a porcentagem absurda taxada pelas distribuidoras – além de impossibilitar a entrada de sangue novo no mercado, vão mudar o perfil da indústria de quadrinhos até o ponto de dar um fim ao quadrinho impresso na maneira como são produzidos hoje nos EUA. E para ele (e para mim também) está é uma boa mudança.
Apostando em Waid, a Disn... digo, a  Marvel comics anunciou o lançamento do selo Infinty de quadrinhos online e app's de realidade aumentada, visando o mercado dos tablets. Em uma decisão sábia, colocou o próprio Waid como chefe da linha. A decisão é sábia pois Waid não só faz campanha a favor do quadrinho digital como, junto de artistas colaboradores, vem pesquisando técnicas narrativas que exploram as potencialidades do meio digital. Você pode conferir parte desse processo, ainda inicial, neste vídeo abaixo:


O resultado da parceria Waid/Marvel pode ser vista na edição Avengers Vs X-men Infinity, uma introdução à saga que você pode baixar via um código dado na compra da edição número #1. A revista tem arte de Stuart Immonen, que recebe crédito de co-roteirista. Esse crédito não é dado por acaso. Existe um leque enorme de possibilidades para produção do quadrinho online e, de acordo com o próprio Waid, a ideia não é fazer um quadrinho animado, como já houve em outros experimentos, e sim procurar a afinação correta em que se possa explorar alternativas, mas sem tirar do leitor o controle sobre o timing da narrativa. Nessa perspectiva, o artista acumula uma nova função: a de contar a história com a tecnologia disponível para a mídia digital.
O maior problema, no entanto, não está na exploração da capacidade narrativa do meio, o que na verdade é um motivo de empolgação para os artistas envolvidos, mas sim em outros aspectos mais, digamos, quantitativos. Atualmente existem terabytes infinitos de quadrinhos online sendo publicados na net. Existem graus diferentes de qualidade, é verdade, mas o grande ponto em comum entre eles é o fato de não receberem pagamento pela veiculação dos mesmos. Lógico que o grande sonho é que seu quadrinho faça sucesso o suficiente para poder daí ser lançado na mídia de revista. Mas para mapear todos os quadrinhos online sendo produzidos no mundo seria preciso uma dedicação realmente sobre-humana.
Neste panorama, o respaldo de editoras já estabelecidas no mercado poderia servir como um portal de extrema utilidade para se conhecer novos trabalhos que tenham um nível efetivo de qualidade. É lógico, porém, que tal ação funcionaria como um filtro que obedeceria a critérios muito específicos e que acabem não privilegiando a criatividade ou qualidade destas HQs.
Uma boa saída para este impasse pode estar justamente na criação de portais cooperativos de artistas associados e autônomos que possam, em conjunto, colaborar para a manutenção da produção e da qualidade buscando apoio monetário via publicidade no site. Pensar este novo lugar para o quadrinho pode ser uma boa saída frente às limitações impostas, tanto monetárias quanto ideológicas, do quadrinho impresso. Lógico que o trabalho de produção continua o mesmo e demanda o mesmo tempo. Mas o que vejo é uma boa época para que o quadrinho independente, com todo o potencial artístico envolvido neste termo e sem preconceitos de gênero (de histórias, não o sexual), possa tomar o lugar que vai ser deixado vago pelas grandes corporações em breve.
E, agora que acabo de escrever o artigo, o site Comics Alliance acaba de postar uma matéria sobre um site que ajuda a procurar quadrinhos online postando primeiro quadro de cada título. Just the first frame é o nome do site e uma boa maneira de passar os olhos por um conteúdo de quadrinhos online bem extensos e que sofre updates constantes. Outra novidade, que chegou até mim via Ciro Marcondes - uma das mentes por trás do site Raio Laser - é o Tumblr Maria Nanquim, que posta charges e tiras nacionais e gringas sempre com uma verve mordaz e com vários artistas novos. 

Fantasia cotidiana






















por Pedro Brandt

O prêmio de revelação dado em 2009 a Bastien Vivès no Festival de Angoulême — evento francês dentre os mais relevantes para as histórias em quadrinhos na Europa — colocou em evidência o talento do jovem autor e da obra pela qual ele foi premiado na ocasião, O gosto do cloro (Le goût du chlore). Publicada originalmente em 2008, ela acaba de chegar ao Brasil pelo selo Barba Negra (ligado à editora Leya). Independente de distinções e honrarias, o trabalho merece ser conhecido por seus méritos próprios. É, desde já, um dos melhores lançamentos do ano.


Se o leitor quiser chegar logo ao final da história, consegue passar pelas 140 páginas em 15, 20 minutos. No entanto, cada uma delas é um deleite visual, permitindo uma leitura mais demorada, atenciosa e, consequentemente, mais prazerosa. Todo os elementos apresentados ali são preciosos, desde a escolha das cores (o verde e o cinza, em diversos tons, estão em toda parte), as angulações das cenas, as expressões dos personagens e, especialmente, como o desenhista consegue causar a sensação da passagem do tempo ao longo da narrativa. Os silêncios e tempos mortos são detalhes muito bem explorados pelo autor. Isso talvez se explique pala formação de Bastien Vivès: o francês de 28 anos é graduado em artes plásticas e cinema de animação. Se ele quiser transformar O gosto de cloro em curta-metragem, já tem pronto um minucioso story board.

Amizade na água

Em nenhum momento da HQ são apresentados os nomes dos personagens e as informações sobre eles são praticamente inexistentes. Nem precisaria ser diferente, já que no desenrolar da breve história os poucos diálogos são o suficiente para causar empatia.

A HQ começa em uma sessão de fisioterapia. O protagonista é aconselhado a praticar natação para melhorar seu problema nas costas. A pouca habilidade para nadar, a solidão na piscina (e o tédio decorrente dela) fazem com que ele pense em desistir.

 A situação muda quando o personagem finalmente conhece uma nadadora. O rapaz já a observava havia algum tempo. A moça o ajuda com dicas sobre natação. Ele quer conhecer um pouco mais sobre ela, faz perguntas. Ali na piscina, nasce uma amizade. Eles brincam, nadam e conversam. A natação, antes um fardo, ganha outra dimensão na rotina do protagonista.

A partir de um determinado momento na narrativa, preencher as lacunas deixadas por Bastien Vivès fica a cargo do leitor. Um relato bastante cotidiano até então, O gosto do cloro ganha, nas últimas 21 páginas, leves ares de fantasia. A sequência final — que pode ser encarada como uma metáfora sobre o inalcançável — é de tirar o fôlego, literalmente.

O gosto do cloro
De Bastien Vivès. 144 páginas. Barba Negra/ Leya. R$ 39,90.

O obscuro, sempre

 


por Ciro I. Marcondes

I just don’t see why I should even care
It’s not dark yet, but it’s getting there

            - Bob Dylan, “Not dark yet”.

É muito comum que grandes artistas ou pensadores, no final de suas vidas e carreiras, venham a olhar para um certo lado obscuro da existência. Atenhamo-nos ao básico: a faceta niilista e caótica das últimas tragédias de Shakespeare; a abissal missa de Réquiem de Mozart, composto para seu próprio enterro; o pessimismo derrotista nos últimos quatro álbuns de Bob Dylan; e até mesmo Freud demonstrou-se profundamente desiludido com a humanidade em seus últimos textos. Se conseguirmos aceitar isso como algum tipo de padrão – há que se considerar sempre as exceções. A nona de Beethoven, por exemplo, é um canto de cisne carregado de paixão e alegria – acho que ele se conforma com a resposta aparentemente mais óbvia, mas que só acreditamos quando acontece conosco: o envelhecimento é um processo muito difícil, de flagrante padecimento do corpo (e, portanto, de proximidade com a morte), e com ele confluem o acúmulo de frustrações e fracassos, de questões não-resolvidas, de inscrições cicatrizantes que vamos carregando na alma. Além disso, é evidente que o mundo não está ficando muito melhor, e daí é possível que estes artistas busquem uma última lufada de ar, carregada de pestilência fúnebre, que finalize com maturidade e severidade o próprio processo vital e artístico de cada um.

No caso que eu quero analisar aqui, é muito curioso o fato de se tratar de André Franquin, não apenas um mestre dos quadrinhos, mas também um mestre do humor nos quadrinhos. E o humor ganha particularidades insubstituíveis quando embebido de um tanto de... obscuridade. E Franquin acabou revelando-se um mestre também naquilo a que chamamos “humor negro”. Porém, antes de passar de vez a esta análise de seu humor, eu gostaria de pedir licença e analisar seu terror, a partir do mesmo sentido com que Francisco de Goya, o grande pintor do romantismo, instilou terror em sua fase terminal, já doente (circa 1820), surdo e quase cego, pintando as paredes de sua casa com cenas sombrias de rituais macabros, deuses pagãos e pessoas desfiguradas.

Esta brilhante fase de Goya, não planejada para ser exposta publicamente, acabou se tornando referência imediata aos movimentos modernos na pintura, como o expressionismo e o surrealismo, buscando revelar estados da alma a partir da figuração do monstro. Tornou-se famosa uma frase do pintor: “o sono da razão produz monstros”. É curioso pensar que Franquin, já nos anos 1970 e contando 47 anos (chegando ao auge da maturidade, portanto), dedicou boa parte de suas Ideias obscuras (Idées noires, publicadas ao longo de um par de anos na revista Fluide Glacial) a um imaginário surrealista, quase, quase sempre vinculado a ideias políticas ou éticas. Mas não há como negar que às vezes eram imagens puramente... monstruosas. Neste caso, basta citar uma história de uma página das Idées noires: dois homens passeiam por um trecho da cidade que mais se assemelha a um parque industrial, com viadutos, prédios em construção, gruas, plataformas. Um deles se queixa de que ali, antigamente, havia um bonito mercado, e que esse novo cenário destruiu o que havia de interessante na cidade. O outro, mais cético, fiz que ele está apenas cheio de nostalgias, e que o progresso é interessante, etc. A conversa avança até que o cético diz que ele está precisando mesmo é de um copo de vinho e uma boa noite de sonhos. Sem qualquer artifício para se fazer a passagem (letreiros, diálogos, mudança na moldura do quadro, etc.), Franquin então abre um gigantesco quadro panorâmico, fascinante, em que aquelas gruas, viadutos e plataformas erguem-se do chão, na forma de monstros, e começam a caminhar sobre a terra, povoando o sonho do coitado com um recalque indesejável.


Este imaginário onírico e certamente perturbado, que se assemelha ao de Goya justamente por não apenas dar vida, mas também por cultivar a vida dos monstros internos, é o que faz de Idées noires a obra-prima de Franquin. Uma obra-prima marcada por um tom macabro, impiedoso, quase irrefutável. E não estamos falando de qualquer autor, e sim daquele que escreveu a fase mais famosa de Spirou e criou Gaston Lagaffe (estátua dele aqui), símbolo dos quadrinhos na Bélgica.
Goya

Franquin
O pessimismo é um humanismo

Lagaffe
Se Spirou e Fantasio de Franquin é uma HQ mais infanto-juvenil mesmo, cheia de aventuras loucas e diálogos espertos, em Gaston Lagaffe já podemos reconhecer um pouco das ideias de Idées noires, porque já trazem um pouco do sabor do humor negro. Nas histórias do picareta Lagaffe, a estrutura mesma das páginas já se assemelha à das ideias obscuras: meia, uma ou no máximo duas páginas resumem tudo que precisa ser expressado, terminando geralmente numa explosão, em algum ato cômico de violência ou humilhação, e quase sempre num grande e expressivo quadro panorâmico. Da mesma forma, é em Gaston Lagaffe que Franquin vai criar a fórmula de inventar um ditado antecedendo cada história, geralmente no padrão “não se deve confundir essa coisa com essa outra coisa”, muitas vezes num trocadilho intraduzível do francês para o português (falando nisso: alô editoras – publiquem Idées noires no Brasil urgentemente!). Exemplo: “Il ne faut pas confondre pâle capitaine et peine capitale” (“Não se deve confundir ‘pálido capitão’ com ‘pena capital’”).

Mas o que é realmente fascinante em Idées noires é sua mistura curiosa de pessimismo e humanismo, numa concentração que nunca vi em nenhuma outra obra artística, o que (minha opinião) torna essa HQs quase crepuscular de Franquin tão interessante e ousada quanto as obras-primas citadas no primeiro parágrafo. Franquin era famoso por seu ativismo green e por sua defesa às causas dos direitos humanos, mas em Idées noires estes temas se tornam vinganças perversas. Vendedores acabam esquartejados por suas máquinas, militares passam a bombardear merda pelo mundo, imoladores de sangue humano em sacrifício à Terra passam a ver o planeta vomitar suas oferendas.

Franquin é particularmente virulento com a imagem da guilhotina, um tema delicado na França, que reverbera o da pena de morte. Numa das histórias, a lei é proclamada: “toda pessoa que matar uma outra voluntariamente terá sua cabeça decapitada”. Franquin vai fazer desta uma hilária imagem do infinito: burocratas passam a executar os assassinos “voluntários” na guilhotina. Então, depois disso, outro burocrata vem e decapita o burocrata (“assassino voluntário”) precedente, e assim por diante. Noutra, em três quadros (francamente inspirados em Rodolphe Töpffer) um velho reacionário olha uma passeata por direitos humanos pela janela e começa a praguejar, dizendo que sente saudades de quando ainda havia pena de morte e que, por ele, as execuções voltariam a ser públicas. No que, após ele dizer isso, no último quadro, a janela se rompe, se fecha e decapita o velhote.


                                                                         
O que mais me encanta em Idées noires, ainda assim, não são nem estas às vezes rasteiras, às vezes muito espertas, reflexões éticas, e sim o momento em que Franquin se transfigura nesse Goya doente, moribundo, pintando Cronos grotescamente devorando os próprios filhos assim que nascem. A “paleta de cores” usada pelo belga evidencia isso: preto e branco chapados, “só que ao contrário”. Assim, na maioria das ideias obscuras, o fundo é todo branco, e os desenhos todos pretos, sem muito delineamento de rostos ou detalhamentos, a não ser nas expressões, nos olhos, naquilo que basta. Quem conhece o traço de Franquin sabe que ele é mestre no estilo cômico gros nez, com fisionomias típicas da BD belga. Seus personagens são exagerados, com movimentos espalhafatosos, e geralmente descabelados, meio hippies, meio punks. Em Idées noires, isso também assume um aspecto sombrio, com um twist meio sádico, que de certa forma nos incomoda como aqueles super-heróis malvados em Crise nas infinitas terras.

 Creio que três exemplos resumem, por fim, a gratuidade genial do sadismo de Franquin nestas histórias: a de um sujeito caminhando só, na neve, morrendo de fome e desesperado, que avista as “luzes da civilização” e dá graças a deus. Porém, quando ele se aproxima mais, as “luzes da cidade” eram na verdade os olhos de mil lobos, que se revelam no último e grande quadro. Outra: a absurda história de um garotinho na praia que assusta as pessoas com uma barbatana falsa de turbarão. Ele é surpreendido no quadro final quando se atrai por uma outra garotinha que era na verdade... um boneco falso de ser humano usado por um tubarão (!!!) para atrair garotinhos... Por fim, uma das mais interessantes, e mais abstratas: um sujeito está correndo no espaço vazio quando uma grande pedra passa a descer em direção à cabeça dele, para esmagá-lo. Ele vai chegando, com pensamentos positivos, com máximas da força de vontade, quase chega, quase chega e, no último quadro, a pedra esmaga sua cabeça.

É este, portanto, o tom do humanismo de Franquin. Não diferente do de Mário de Andrade em Macunaíma: “cada um por si e deus contra todos”! Não é à toa que, ao nos despedirmos desta HQ, no deparamos com um carinha sorridente que diz: “quem me ame, que me siga!”. E ele vai em frente, seguido apenas por um urubu com más intenções. Se nem a degenerescência e nem a idade de Franquin eram físicas e avançadas como as de Goya, vale salientar que o velho pintor tinha seus motivos também políticos para se isolar numa velha casa e pintar monstruosidades mitológicas, já que estava realmente de saco cheio de fazer pinturas oficiais para a corte espanhola. No caso de Franquin, sua revolta contra o status quo (basicamente todo e qualquer discurso edificante de “progresso”) o fizeram voltar seu humanismo para algo próximo a um niilismo, fazendo da sua arte o único espaço em que ele podia soltar os cachorros e se vingar, com lindos requintes de crueldade, de todos aqueles “masters of war”. Viva o “lado negro da força”.


Sigam-me os bons!!

Solanin: crônica da juventude






















por Roberta Machado

Solanin é uma daquelas histórias que tocam nas lembranças emotivas do leitor sem apelar para o drama óbvio. Tentar resumir sua história só torna claro que a ação não é o forte dessa narrativa, que se apoia nas entrelinhas e torna o espectador parte ativa da trama. Cada decisão, reflexão ou conclusão tomada pelos personagens cria um profundo raciocínio impossível de não relacionar com fortes experiências pessoais.
Meiko é uma garota de 23 anos que mora com o namorado dos tempos de faculdade e se vê presa num trabalho enfadonho e frustrante. Ela já não depende dos pais, mas entrou no limbo em que o emprego temporário virou ocupação, e o futuro é uma incógnita que em nada lembra as aspirações da adolescência. O próprio companheiro da protagonista, Taneda, abriu mão do sonho de viver de música para ganhar o mínimo em uma posição de designer freelancer.


A menina decide então pedir demissão da empresa em que trabalha, mesmo sem contar com um plano B. A decisão de Meiko de largar o emprego estável sem nenhum plano imediato pode soar para o leitor uma atitude impensada e precipitada, mas é necessário lembrar que a história se passa no Japão, onde esse ato é ainda mais grave, praticamente um suicídio social. Mais importante do que ganhar dinheiro, a cultura asiática valoriza aqueles que contribuem com a sociedade. O país sofre hoje com toda uma geração de jovens que representam um fardo para a nação ao cederem à pressão psicológica e desistirem de participar da máquina industrial do arquipélago (eles são conhecidos como neets, not in education, employment, or training, ou como hikikomoris, os que nem mesmo têm coragem de deixar o apartamento).

A rotina de Meiko então é subtraída de sua vida, e em pouco tempo ela percebe que o fio de segurança de seu antigo emprego era o que a impedia de encarar a realidade: ela não sabe o que quer da vida, só tem certeza do que não quer. As tardes perdidas na rua ou em frente ao videogame também não ajudam, o tempo passa sem que uma solução se apresente. Logo fica óbvio que o futuro não vai se apresentar à protagonista em uma bandeja de prata, e as brigas com família e amigos são inevitáveis.

Os companheiros da jovem, aliás, constroem uma narrativa à parte, onde fica claro que todos sofrem com conflitos semelhantes. Quem herdou o negócio da família, quem continua na faculdade, quem recebeu uma promoção: todos vivem constantes questionamentos sobre seus objetivos e se perguntam constantemente sobre a própria felicidade. Sufocados pela mediocridade, eles procuram ressuscitar os sonhos do passado em busca daquela mesma sensação da juventude de que tudo é possível.

Mesmo quem não se identifica com a trama pode desfrutar de uma narrativa cotidiana bem contada, muito comum aos grandes títulos de graphic novels que lotam as prateleiras das livrarias nos últimos anos. Com a diferença de que o lugar comum da trama é justamente o que a torna especial. Em dois volumes de pouco mais de 200 páginas cada, Solanin fala numa linguagem despretensiosa, que conta uma história comum à maioria dos jovens. Sem grandes pretensões, alcança com sutileza a memória emotiva do leitor, causando uma experiência de reflexão valiosa.

Solanin

De Inio Asano. 216 páginas. 
Coleção L&PM Pocket. Duas edições. Preço: R$ 16.











Algumas palavras... antes de Before Watchmen



Sim, ficamos um mês de férias, sem avisar. Deem um desconto. O povo aqui tem vida. Mas tem mais coisa pra mostrar em Raio Laser. Preguiçosamente, depois dos nossos orgulhosos dois dias de Omelete, retornamos. E quem puxa o bonde é o colaborador Lima Neto, dono da Kingdom Comics, figura onipotente das HQs em Brasília, etc, etc ("bocejo") que traz texto reflexivo, com enorme potencial de polêmicas, sobre a famigerada "Before Watchmen" (eu, na minha humilde desatenção, digo que parece maneiro). Gostaria de salientar que tenho orgulho de ter Lima como colega no PPG-COM da UnB. Valeu Limão! (CIM)
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por Lima Neto

“Os quadrinhos são os filhos bastardos da imprensa com o mercado” disse Art Spiegelman certa vez (Art Spiegelman, caso você tenha entrado neste site por engano à procura de promoções em tratamento estético a laser, é um dos principais quadrinistas a chamar a atenção do grande público para a arte das HQ´s, e seu potencial é para abordar temas mais sérios e espinhosos como campos de concentração e antissemitismo, caso de sua obra-prima Maus). E como mercado e HQ´s mainstream são meus assuntospreferidos para tratar aqui, evoco a fala de Spiegelman e acrescento que estes filhos, em sua encarnação mais mercadológica – os comics norte-americanos – além da sua infeliz condição de bastardos, estão passando hoje por um momento de exploração intensiva e abusiva por parte dos grandes conglomerados do entretenimento, acrescentando a uma relação incestuosa (como coloca Alan Moore) um nível só visto antes na aurora da indústria dos comics.


E, já que falamos aqui do escritor Alan Moore, recentemente a DC Comics anunciou uma série de especiais entitulados Before Watchmen, onde um eclético grupo de escritores e artistas exploram o passado do universo criado pelo polêmico mago inglês e pelo artista Dave Gibbons. Preciosismos à parte, a lista é de impressionar: Darwin Cooke, Amanda Corner, Adam Hughes, Jae Lee, Joe e Adam Kubert, Brian Azarello, além do controverso escritor J. Michael Straczinsky. Há ainda um nome curioso que está há bastante tempo sem produzir e que tem sua carreira entrelaçada à de Moore por motivos não menos curiosos: Lein Wein.  Wein é um notório antipatizante de Moore e criador do personagem Monstro do Pântano, que foi a porta de entrada do mago nos comics. Lein era editor da DC quando quis alterar o final da minissérie por considerar ser uma idéia não muito original. Tendo razão ou não, a tensão no final da série marcou a relação de Moore com a DC e os trabalhos futuros. Ironicamente, agora Wein vai ter a chance de mostrar sua visão da série em Before Watchmen.

Nem preciso dizer que este projeto incendiou os fóruns e a imprensa especializada, e que isso irritou bastante Alan Moore, que já havia se posicionado contra qualquer utilização da história em projetos caça-níqueis posteriores. E que, enquanto o editor Paul Levitz capitaneava a editora, este acordo de cavalheiros se manteve inalterado até a Time Warner decidir que deveria assumir as rédeas administrativas daquela pequena editora que possuíam e que mal rendia lucros com suas vendas (lógico, falo isso dentro da ótica agigantada de um monstro corporativo do porte da Warner), mas que tinha propriedades criativas que lhe rendiam bilhões de dólares nas portas dos cinemas e nas lojas de brinquedos.

Há aproximadamente um ano, o quadrinista Darwin Cooke, a mente e mãos por trás de obras como o libelo da era de prata DC Nova Fronteira e suas muito bem recebidas Graphic Novels Richard Stark´s Parker: The Hunter e Parker: The Outfit – que adaptam os livros da novela policial de Donald Westlake – , disse ter sido abordado pela nova direção da editora de Super-Homem  para trabalhar em um projeto com os personagens de Watchmen. Cooke afirmou nutrir um respeito imenso pela obra e que considerava ofensiva uma tentativa de retornar a este universo sem que seus criadores originais estivessem envolvidos ou que houvesse ao menos uma autorização por parte de Moore. No entanto, ao anunciarem Before Watchmen para o público, seu nome figurava como uma das maiores estrelas envolvidas no projeto, encabeçando títulos que, imaginados pela sua visão particular, exalam o perfume apetitoso que suas obras liberam : Minutemen – o equivalente à Sociedade da Justiça do universo de Dr. Manhattan e sua trupe de heróis disfuncionais; e o título Silk Spectre – narrando as aventuras da heroína mascarada da era de ouro e que será ilustrada pela artista Amanda Corner. 

Além destes títulos ainda temos Brian Azarello em colaboração com seu parceiro de trabalho Lee Bermejo em uma série de Rorchach e, tendo J. G. Jones com colaborador, uma série do Comediante.  O já citado Lein Wein fará dois títulos, uma série de Ozimandias com a soturna arte de Jae Lee; e uma revista misteriosa chamada Crimson Corsair desenhada por John Higgins. J. Michael Strazinsky estará por trás dos roteiros de uma série do Doutor Manhattan, ilustrado com a bela arte de Adam Hughes e também da série de Nite Owl, que conta com o lápis de Andy Kubert e o nanquim de seu pai, o mestre Joe Kubert (que cairia melhor, talvez, no título do Comediante).


Obviamente, junto a esse projeto já estão programados estátuas e figuras de ação produzidas pela DC Direct, ramo da DC comics que cuida dos produtos colecionáveis. Aliás, este mês também a DC Direct mudou de nome, e agora atende por DC Collectibles.  A troca do nome atende às mudanças que a nova direção impôs, afinal, colecionismo doentio é uma das modas propagadas pela principal vitrine da DC: o seriado Big Bang Theory. Mudar o nome é uma ótima estratégia para guiar o público da série para o setor da empresa que transforma o hobby em moda e estilo de vida.


Retornando aos gibis, pensar no produto que estas mentes podem conceber é algo que realmente dá água na boca. E não me sinto nem um pouco culpado em reconhecer isto. Pelo menos não tanto quanto me sentiria em ler um fanfic de boa qualidade que envolvesse os personagens de Watchmen. Alias, a palavra que mais se encaixaria para descrever este projeto seria exatamente esta: Fanfic. Lógico que os fãs envolvidos na produção desta ficção são profissionais de grosso calibre, fato que não desmerece qualquer mérito estético-narrativo que essas obras possam vir a ter. Mas o que me impede de nomear Before Watchmen como Fanfic é um único e importantíssimo fator: Não se paga, ou se lucra, por fanfics. O objetivo de um Fanfic é sempre o de extravasar as histórias que ainda continuam sendo escritas nas cabeças dos fãs anos depois de eles terem lido determinadas obras. O que empesteia todo esse empreendimento, manchando boas índoles profissionais e desrespeitando criaturas e criadores é a insistência dos executivos da Warner em disfarçar exploração descarada de bens intelectuais que se perderam em acordos jurídicos assinados em uma época que era impossível prever o que tais obras se tornariam (Batalha DC XShuster/Siegel, alguém? Alguém?) com um discurso de “homenagens” a importância dessas obras ou criadores. Ano passado, outra “homenagem” de mau gosto enfureceu a família do falecido Dwayne McDuffie. A editora anunciou uma edição especial de seu personagem Static Shock,  conhecido no Brasil como “Super Choque” em que por U$ 5,95 você podia relembrar a obra de McDuffie sem que nenhum centavo das vendas desta revista fossem repassados a família. Os parentes do autor, lógico, obrigaram a editora a cancelar a edição.

Na contramão disso tudo, autores independentes têm encontrado na net um terreno fértil para publicarem seu trabalho. Tão fértil, que é preciso muitas horas livres para garimpar as perolas potenciais deste novo meio. Meio este que também é responsável pelo grosso do prejuízo que os conglomerados midiáticos monstruosos vêm sofrendo com a distribuição gratuita de filmes e scans de gibis. Se isso é bom ou ruim é outra complexa discussão, mas que, graças ao escritor Mark Waid, seu novo blog de opinião e seu novo cargo como coordenador do selo Marvel Infinity de quadrinhos desenvolvidos direto para tablets e iphones, tentaremos pincelar no nosso próximo texto. Concluo imaginando, em um futuro bem próximo, um Alan Moore bonachão liberando na net as páginas de Before Watchmen para todos que quiserem matar a curiosidade de ler estas homenagens à sua obra. E cobrando o preço justo que uma obra não autorizada deve ter.