HQ em um quadro: Zarla, a guerreira impiedosa, de aspecto a aspecto, por Guilhem e Janssens






















O movimento ameaçador da garotinha (Jean-louis Janssens e Guilhem Bec, 2007): Zarla, guerrière impitoyable é uma BD bastante genérica publicada pela Dupuis, a mais tradicional editora belga de HQs, em 2007. Seu enredo consiste numa tentativa da editora de misturar o mundo tão específico das HQs de fantasia medieval com a tradição, própria da Dupuis, de criar personagens bastante humanos e cativantes, que se misturam a meios tradicionais da ficção fantástica. O que ela faz na narrativa detetivesca em Spirou e Fantasio, ou com o folk lore em Schtroumpfs, são exemplos. Zarla é uma garotinha, filha de caçadores (hoje mortos) de dragões, criada por um velho bruxo e uma sevente giganta. Ela herda também a arma principal dos caçadores de dragões - um cão demoníaco e enfeitiçado, chamado Hydromel, que a acompanha como um bicho preguiçoso, mas que se transforma num guerreiro assustador quando Zarla se encontra em perigo (salvando-a sem que ela perceba).  

Zarla é uma HQ muito simpática, com traço encantador (Guilhem) e doses corretas de humor e aventura. É um produto infantil. Mas, à parte a sugestão de um produto de qualidade nesta categoria, eu gostaria de salientar como, de uma hora pra outra, os quadrinhos simplesmente abrem tudo que podem, num vortex vertiginoso, do modo como é descrito naquele belo poema de Drummond "A máquina do mundo", ou aquele assombroso conto de Borges, "O Aleph": um sistema todo se abre diante de nós, num momento, num átimo, numa condensação onírica - e depois se fecha, levando-nos a esquecer aquela epifania, relegando-nos novamente à burocrática passagem do tempo, a separar as coisas umas das outras, a tentar decodificá-la a partir de tedioso sistema classificatório.

Quando, num acesso de movimentação espacial entrecortado por pouquíssima passagem de tempo - aquilo que McLoud chama "transição de aspecto-para-aspecto" - , Zarla parece apenas a indefesa garotinha que pressupõe a série, e implora ao inimigo que não a faça mal, e então, num rompante, perfeitamente inscrito na sarjeta entre um quadro e outro, a menininha loira desatina sua farsa e diz "e tome isso!", empunhando uma pequena e frágil espadinha, quando isso acontece, nós nos convencemos, neste movimento sugerido, de todo o conceito da série. Se há algo de essencial, digamos, no próprio briefing que deve ter dado origem a esta série, isso deve ser a oposição entre a candidez inocente da menininha, acreditando que todos fogem dela, e não do cão-demônio, e a postura irascível e amedrontadora que ela assume, ao se portar com absoluta certeza de ser uma guerreira completa. Se é uma dicotomia, se é uma oposição paradoxal, se uma infeliz ironia, isso tudo se submete ao poder imagético da alegoria. A alegoria que tão bem se repousa na imagem. Imagem que tão bem se debruça nos quadrinhos. Quadrinhos que são capazes de sintetizar, num movimento tão sutil, o cosmos conceitual todo do produto a que dão suporte. Nesta simples sarjeta rastreada de uma HQ absolutamente ordinária, não apenas a série se abriu toda, sem possibilidade de ser convencida do contrário, como também o sistema representacional das HQs, tão distante das palavras e letras da literatura, em tudo racionais, explicativas, que se alongam tanto, e condensam tão pouco. Difícil não pensar num Aleph esotérico: Zarla empunhando a espada me levou à Mona Lisa, às pinturas góticas, às cavernas de Lascaux, aos sonhos de toda humanidade. (CIM)

Street Fighter Mirim: meu primeiro mangá

Street Fighter Mirim: meu primeiro mangá

Quer dizer que, depois da “polêmica” do texto anterior, você voltou à Raio Laser cheio de esperança de ler outra iluminada crítica do Ciro Marcondes?! Pois você se deu mal! As linhas a seguir falam de lembranças afetivas, de um mangá semi-pirata e de videogame. Se você também leu esse gibi lá nos idos de 1993, deixe seu depoimento na caixa de comentários.

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Raio Laser's Comics' Quicky #01






















por Ciro I. Marcondes

Escrevi aqui sobre alguns dos quadrinhos nacionais que me chegaram em mãos recentemente. Tem mais coisa por vir, mas a ideia é fazer uma tentativa de mapear (sem obrigação de regularidade, sem obrigação de cobrir tudo, sem seguir lançamentos e sem deadline) uma fração da imensa quantidade de coisas que se tem produzido em HQs em nosso país, seja em publicações luxuosas, coisas independentes, zines ou online. Nesta primeira versão da nova seção, privilegiei alguns artistas daqui de Brasília, não apenas pra ser um pouco bairrista, mas também porque a cidade está se tornando um celeiro interessante de quadrinistas. Quem quiser nos enviar suas produções, basta nos escrever em “contato”, ok?

BátimaAndré Valente (Samba, 2011): Haveria com certeza algum jeito de interpretar sociologicamente essa pérola-express que é o gibizinho (lembram dos gibizinhos da Turma da Mônica? Esse é um Mini-samba) Bátima. Afinal, é sobre um cara classe-C que trabalha o cão (estaria vestido “simbolicamente” de Batman pra mostrar o “herói da vida real” que é) num McDonalds e manda cartas pra mãe fingindo ser um redator da Globo. Porém, conhecendo o autismo artístico (não se enganem. Isso é uma qualidade rara) de André Valente, prefiro ver esta pequena história pelo prisma de sua verve non-sense. Prefiro vê-la (não sei bem explicar por quê) como salto sem volta na sensorialidade psicótica de um sujeito ainda mais miserável, enlouquecido pela cultura pop e pela solidão. Um sujeito sem arestas egoicas que escreve cartas para uma mãe inexistente, sobre um emprego inexistente, processando o derretimento de seu aparelho psíquico. E tudo teria começado quando ele foi batizado “Bátima” (como alguns são batizado “Mai Conjecso” ou “Cridence”) após seu nascimento.


Não fui euAndré Valente (2011): Se André Valente é um quadrinista que possui certo autismo artístico, é porque em suas histórias eventualmente há um elemento que nos escapa, um ponto cego onde apenas habita o artista, e nunca o leitor. Isso seria decepcionante se ele não preenchesse todo o resto com referências e solidez cultural que escapam à maioria dos quadrinistas brasileiros, fazendo-nos ter que investigar entrelinhas em quadrinhos simples, mas engenhosamente despojados, com senso de humor que mistura “O Pasquim” com “Além da imaginação”, bastante refinado. Esta aparentemente modesta coletânea “Não fui eu”, que se inicia com Sol e Lua àMéliès, traz uma ótima amostra do equilíbrio quadrinístico e do desequilíbrio mental de Valente, com destaque para os lindos painéis do primeiro capítulo da novela gráfica “Coelho”, e para a surrealista “Uma espinha”, que poderia ser a história longa que o Laerte nos deve há muitos anos.

Peixe fora d’águaDiego Sanchez e Laura Lannes (Org., 2011): Esta publicação independente reune mais de 20 artistas diferentes e com certeza é uma iniciativa louvável e bem-feita. O problema é que, sustentando essa postura “do it yourself” que vem junto com a pecha de “peixe fora d’água”, quase todos os quadrinhos, sketches e poemas dão essa impressão de mal-acabado, de orgulho de ser tosco, de sumir no non-sense por falta de ideias ou medo delas. A quantidade de metalinguagem inócua e piadas internas acaba comprometendo o trabalho todo. Há uma variedade interessante de estilos e técnicas gráficas, mas a maioria do material sofre com essa síndrome de não querer produzir nada relevante, de um niilismo inútil. Quadrinhos com baixa autoestima. Não é à toa que a melhor série do livro é “Them wishing wells”, de Guilherme Lírio e Vidi Descaves, bem sacada, feita com desenhos de palitinhos. Logicamente, vale destacar “Certa manhã acordei de um sonho agitado”, em que a quadrinista Laura Lannes (talentosa) acorda no corpo do pintor Francis Bacon, além de uma paródia inteligente de Batman feita por Diego Gerlach. Mas, francamente, quem ainda está afim de ler mais uma paródia do Batman?

Garoto Mickey – Yuri Moraes (Dobro quadrinhos, 2011): Quando dou aula de roteiro cinematográfico, acho que a lição mais valiosa que passo é a seguinte: “se você não tem nenhuma ideia para criar um roteito, não faça um roteiro sobre como você não tem nenhuma ideia para criar um roteiro”. Acho que essa simples lição limaria metade dos artistas contemporâneos, e esse seria um mundo melhor. Garoto Mickey não é uma novela gráfica ruim, que fique claro. Yuri Moraes tem claro domínio e consciência narrativa, além de um traço expressivo e simpático. A história é dividida em duas partes muito claras: primeiro, uma espécie de revisão autobiográfica que tem força especial nas agruras melancólicas da infância, quando ele fazia uma HQ porradeira da qual todos gostavam, substituída pelo eterno carma do quadrinho autoral. A relação com o amigo um tanto obtuso e imbecil, abandonada na idade adulta, acaba sendo um ponto de verdade na HQ, além de insights de linguagem e algumas ironias bem marcadas. Mas parece que tudo se perde e a procura por uma psicologia de si mesmo ganha absurda autoindulgência, com o autor querendo antecipar as próprias críticas que as pessoas fariam à HQ, numa obsessão em prever e tapar seus próprios defeitos, o que se transmite, evidentemente, para os defeitos da HQ. A segunda parte, quando essa autojornada cínica se converte numa história de ação absurda e até piegas (com o autor fazendo questão de deixar claro que está fazendo algo piegas – como não?), é que a coisa se esfarela completamente e as virtudes da HQ se perdem. Não o talento de Yuri Moraes, é claro. Mas afirmar-se como loser numa HQ não torna ninguém menos loser, que fique claro.

Valente para sempreVitor Cafaggi (Pandemônio, 2011): Na contramão de uma tendência muito experimentalista de boa parte dos quadrinhos brasileiros contemporâneos, Valente vence pela simplicidade. Na forma de uma tira tradicional, num traço simples em preto-e-branco (mas confiante e cheio de expressões), o talento de Vitor Cafaggi para representar ideias parece orgânico e fácil, como se simplesmente tivesse estado a vida toda ao lado dele. E assim é a vida do cachorro Valente, seus amigos, amores e desamores: simples, natural, intenso, vivo. Publicada pela Pandemônio, na antiga forma retangular e monocromática com que antigos gibis de Garfield e Mafalda saíam, esta coletânea (de tiras ainda saindo na Internet) é um presente ideal para corações românticos. Uma HQ que, ao optar por navegar, confiante, pelas águas dos clássicos, dirige-se rumo ao triunfo.

Duo.toneVitor Cafaggi (2011): É estranho que a minha reação a Duo.tone, após ter lido Valente, tenha sido de ligeira frustração, já que esta é uma publicação de fôlego um pouco maior, coloridinha e mais longa, com certeza de maior ambição. A revistinha (legal chamar assim, porque de fato é isso que essa HQ é), de leitura fácil e despojada em linguagem simples (mas bem dosada em sequências silenciosas, serializações, metarrequadros, diálogos naturais e outros recursos) é certamente adorável, e tem potencial encantador para o público infantil. Mas confesso que, ao contrário do Valente, onde a gente se envolve e se emociona, aqui tanta fofura e ternura infantil causam um tanto de desconforto, uma certa ingrisia que vai se desatinando em mau-humor. Uma coisa assim, leite de pêra e ovomaltino. Eu aprecio histórias de growing pains, mas a primeira delas, do menino loirinho, é muita dor pra pouca desgraça, o que me fez preferir a segunda, toda silenciosa, do garoto japonês cool e intrépido, em que Cafaggi arrisca mais na sua habilidade narrativa, e faz uma homenagem menos piegas ao contato que um quadrinista tem, na infância, com o mundo dos super-heróis.

Mix tapeLu Cafaggi (2011): Estes outros quatro mini-gibis trazem essa proposta lírica de emular quatro fitinhas K-7, abordando os temas do som a da música de uma maneira completamente contrária ao que se poderia esperar de tal empreitada (ou seja: ideias tímidas se afogando num mar citações e referências). Ao contrário, fã de fitinhas K-7 como sou (passei a adolescência gravando-as pras minhas garotas favoritas), respirei com alívio ao ver que o trabalho de Lu Cafaggi compõe um delicado tributo à própria memória, à sinestesia de nossos passados, sendo um deles (o melhor) uma pequena sinfonia (muda – e isso me afeta!) de sons preferidos; o segundo a memória de uma pessoa guardada no som de um piano; a terceira (mais fraca) um diálogo imaginário com a cantora Patti Smith; e a última a experiência onírica de uma doce super-heroína. O aspecto fosco, de um violeta apastelado, monocromático, faz a experiência de ler quase táctil. Uma HQ especial, à altura do trabalho que Lu Cafaggi, Mariamma Fonseca e Samanta Coan realizam no blog Ladys Comics.

Kowalski #2Gabriel Góes (Org., Samba, 2011): Esta revista é um spin-off do grupo Samba, daqui de Brasília, que já constitui uma geração completa de quadrinistas talentosos e realiza um dos trabalhos mais interessantes das HQs nacionais atualmente. Participam dela, além de Gabriel Góes, editor e criador do personagem-título, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita (os outros caras da Samba) e convidados de peso. Aos poucos, na medida em que as publicações do grupo vão aparecendo, uma estética em princípio caótica e desajeitada vai se organizando. Fruto do casamento herético dos quadrinhos com as artes plásticas, a geração Samba desenvolve uma relação muito visual com os quadrinhos, com a narrativa muitas vezes servindo como serialização para impressões imagéticas, profanas, coisa de pesadelo mesmo. Para tornar isso uma práxis refinada, os caras bebem de tudo: cinema, fotonovela, pin-ups. A capa de Eduardo Belga, surreal e obscena, dá uma amostra das ambições do grupo. Esta número 2 dá continuidade e aprimora as ideias da número 1, com alguns feitos mais narrativos, como a paródia “Cidadão Z”, de André Valente, que horroriza com a figura controversa de Ziraldo, fazendo-o beber de seu próprio veneno e estilo (do mesmo jeito, mas mais irônico, que Valente havia feito com Maurício na número 1); e uma das primeiras histórias de maior consistência (hmm..) “filosófica” do grupo, “Quando éramos cavalos”, de Góes e Mesquita, que conta o mundo horrendo e impressionista (cheio de personagens fofinhos de outros gibis) de um sujeito que presencia um suicídio.


Mas eu ainda acho que o grande destaque é a série do próprio personagem que dá título à revista, algo que parece um produto puro, bruto, saído da mente... diferente de Gabriel Góes. Kowalski e seus amigos são cartoons junkies, que assaltam para fumar crack ou cheirar pó, e Góes serializa essas histórias num traço infantil e perturbador, com quadros minúsculos e tortos, sendo a própria viagem do leitor montar estes efeitos rítmicos. “Kowalski” é sim um tipo de monstruosidade crua e imoral, parecendo uma versão nada idealista do clássico Freak Brothers, do genial Gilbert Sheldon, mas Góes aos poucos acrescenta mais sacadas e refinamentos a essa série, mesmo que ainda não seja possível (se é que um dia será) entender o que esse universo quer dizer. Vale destacar também a série “A casa das mulheres-pássaro”, de Gehre, um prostíbulo de action-figures (os antigos “bonequinhos”) e a série de impressões visuais, circulares, de Gehre e Mesquita, sobre seres em decomposição. Eu tiraria duas tentativas de séries narrativas: a fotonovela (sei que dá trabalho, mas não tá engrenando) e “A estrada do diabo”, que, apesar de graficamente interessante (mas muito derivado de Clowes e Lynch), é menos impactante do que parece querer ser.

Sim – Gabriel Góes (Projeto 1000, 0005, Barba Negra/Cachalote, 2011): Góes é um ilustrador de mão cheia, e uma de suas maiores virtudes é mudar de estilo sem perder sua marca pessoal. Seja no traço torto e macabro de Kowalski, seja numa história em 3-D, num cartaz de festival de rock, ou numa história de livro-jogo, sua personalidade, ainda que coerentemente adaptada aos diferentes gêneros, está sempre visível, sempre imediatamente identificável. Sua habilidade como narrador e quadrinista ainda é um ponto a emergir completamente, e esta Sim é prova de que sua versatilidade onírica e seu imaginário claustrofóbico vêm ganhando camadas e camadas de densidade.  Como de praxe nesta grande iniciativa da editora Barba Negra e seu Selo Cachalote, esta é uma HQ sem palavras. Góes, metamorfoseado numa criatura antropomórfica e primitiva (cabeça de lobo e um tacape na mão), atravessa paisagens psicodélicas e alucinatórias, como se avançando em camadas mais profundas ou desdobramentos de dimensões de si mesmo, cruzando com figuras míticas, arquetípicas. Esta HQ, que se experimenta numa leitura rápida, pode ser pensada toda num sentido jungiano, um tipo de representação mítica e lisérgica, mas vou deixar essa análise pra lá. O que vale mesmo é a robustez do traço e dos grandes requadros panorâmicos de Góes, imagens inalcançáveis e errantes.

Desvio – Daniel Gisé (Projeto 1000, 0003, Barba Negra/Cachalote 2011): Desvio, do mesmo projeto que Sim, curiosamente parte de uma premissa semelhante, mesmo que o resultado seja muito diferente. O fato de, quando obrigados a construírem uma série sequencial sem palavras, quadrinistas tendam a representar o mundo dos sonhos e delírios, geralmente encaixando mundos dentro de mundos, deve dizer algo muito importante sobre a linguagem visual muda. Sem a correção das palavras, as imagens têm o poder de correr soltas, transportarem-se de um mundo para o outro, num livre fluir de formas e cores. Desvio é mais causal do que Sim, e Gisé modela uma estranha história envolvendo dois recém-casados, uma psicótica, um lenhador gay e outras coisas, num traço clássico, fino, lembrando uma HQ dos anos 50 (onde se imagina ser também a época da história). A virtude está em, no meio de ações que subitamente se tornam imaginação e sonhos, o encadeamento sem palavras da HQ ainda manter os pés no chão, numa organização de alta compreensibilidade, criando uma aura de enigma não muito fácil de ser alcançada, mesmo que o final não ofereça respostas.  QHQ

Chico e Rita: do Cubop ao Oscar




Chico e Rita, de Fernando Trueba e Javier Mariscal, está sendo lançada em duas formas artísticas ao mesmo tempo: uma HQ de 200 páginas e uma animação que já concorre ao Oscar, em sua categoria, neste ano de 2012. Se a animação é sem dúvida maravilhosa, a HQ não fica atrás e ressalta a arte de Javier Mariscal de modo mais artesanal e aurático.

Esse lado mais “cru” do desenho de Mariscal na HQ harmoniza bem com a atmosfera da história: em uma Havana pré-revolução (1959), dois músicos, um pianista e uma cantora, iniciam uma relação simultaneamente amorosa e profissional. Sonham com a fama em Nova York, onde o jazz de figuras como Charlie Parker e Thelonious Monk chegava ao auge, e a música cubana (o “cubop”) ganhava espaço.

Chico e Rita é uma história de amor, sonhos e música. A representação da ensolarada Havana e de uma Nova York fria e escura é precisa, bem como a dos personagens que as habitam, muito bem construídos. Os diálogos aproveitam o forte espanhol dos cubanos, e a coloração da HQ ressalta “com mucho gusto” a belíssima tonalidade de sua pele.


Em tempo, há um lado político nas obras que merece ser mencionado. Está presente tanto na HQ quanto na animação: mas, como em toda boa obra de arte, sem maniqueísmos. De um lado, a Cuba pós-revolução irá desestimular o jazz americano quando Chico retorna a Cuba; por outro, Rita, já consagrada nos EUA, não pode hospedar-se nos hotéis onde se apresenta. O mesmo preconceito que sofreram músicos geniais (e também negros) como Duke Ellington.

Contradições históricas dos dois países, e que não reduzem as obras (nem a HQ e nem a animação) quando abordadas por Fernando Trueba e Javier Mariscal: deixam-nas mais interessantes.


Fantasmas de Lucille


























Uma nova colaboradora desponta na Raio Laser! Trata-se de Roberta Machado, jornalista e colega do nosso querido Pedro no Correio Braziliense. Roberta tem um texto de perfil analítico e literário. Nada melhor para quem quer romper certas fronteiras, levando os quadrinhos... além. (CIM)

por Roberta Machado

Embora seja uma ficção, a natureza dos dramas narrados em Lucille mais se assemelha à série de histórias biográficas que impulsionaram a venda das graphic novels nas livrarias nos últimos anos. A vida da adolescente que dá título à obra poderia ser de qualquer garota. Assim como muitas anônimas, a estudante francesa sofre entre a rejeição que tem por si mesma e a desaprovação que imagina ter dos outros. A situação da protagonista agrava-se devido à anorexia suicida causada por um trauma de infância.

Sob o traço econômico e fluido de Ludovic Debeurme, Lucille é uma garota de baixa autoestima, que ora tenta parecer normal para obter a aprovação dos outros, ora se esconde sob um grande par de óculos e uma postura derrotista. Em vez de se enturmar com os colegas, ela opta por ignorar os apelos da mãe e usar a timidez como desculpa para escapar num mundo de fantasia. Ela vê nas amigas e na boneca Linda o estereótipo de beleza e felicidade que almeja por meio da fome.


Mas é graças ao distúrbio alimentar que Lucille conhece Arthur, garoto ainda mais perturbado que ela. Entre o alcoolismo do pai e a indiferença da mãe, o adolescente se vê obrigado a sustentar a família, apesar da imaturidade. Para ele, a magreza exagerada de Lucille é bela, e diferente de toda a instabilidade de sua vida de garoto pobre e desajustado. Assim como a protagonista tenta controlar seus problemas pulando refeições, a confusão na vida de Arthur resultou num transtorno obsessivo compulsivo. Os dois encontram conforto nas loucuras do outro.

Os cenários são suprimidos na maioria das páginas, e as linhas dos quadros que geralmente limitam as ações das graphic novels não estão presentes na história. O estilo aponta o verdadeiro objetivo de Debeurme: onde estão os personagens, o que estão fazendo, nada disso importa. A narrativa é sobre o que eles sentem e pensam. O leitor é levado a uma viagem ao subconsciente desses dois jovens, traumatizados ainda na flor da idade. Mesmo quem não se identifica com os problemas vividos pelos protagonistas nessa viagem de autoconhecimento pode tirar da história alguma reflexão sobre os próprios conflitos.

Na jornada dos dois adolescentes, o interessante é observar as mudanças sutis que eles sofrem. Lucille deixa a inocência para se tornar uma mulher bonita, pois é assim que Arthur a vê. Já o garoto transborda confiança e supera o medo da responsabilidade ao assumir naturalmente o papel protetor da amada, mesmo que agindo muitas vezes de forma impensada. Debeurme disse em entrevistas que as transformações pelas quais os personagens passam foram espontâneas: ele desenhou a história sem planejá-la, descobrindo aos poucos os rumos da trama.

Lucille é um livro que alterna o drama, entre momentos de tensão como brigas e assassinatos, com reflexão, que mostra os dilemas psicológicos dos adolescentes. A exposição dos pensamentos mais profundos dos personagens, no entanto, são mais capazes de tirar o fôlego que as cenas em que a ação de fato se desenrola. Sem necessidade de ganchos previsíveis para manter o interesse do leitor, o ritmo do romance francês flui  de forma natural, o que torna fácil devorar as mais de 500 páginas de uma só vez.

Ludovic Debeurme conquistou diversos prêmios com ajuda de Lucille. Entre eles, o destaque no Festival de Angoulème, festa icônica dos quadrinhos que acontece todos os anos na França. O sucesso internacional da obra — que o levou pela primeira vez às livrarias norte-americanas — garantiu a produção de uma sequência, lançada na França em agosto. A nova história, batizada de Renée, exibe traço muito mais rebuscado que sua antecessora, e trabalha a psique dos personagens de forma ainda mais onírica e perturbadora.

Lucille
De Ludovic Debeurme. 544 páginas. Editora Leya. R$ 54,90.

Este texto foi publicado originalmente no Correio Braziliense, no dia 06/02/12.

VIAGEM AO PAÍS DOS QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes
fotos por Gustavo Marcondes e Marcos Inácio Marcondes

Uma coisa que poucos sabem sobre a Bélgica (um país do tamanho do Estado de Alagoas) é que, além de ser uma terra famosa pelos chocolates, cervejas, diamantes e quadrinhos, ela é também o país com as garotas mais lindas do mundo. Sim, pode parecer surpreendente, afinal, ninguém nunca mencionou isso, mas isso é, aparentemente, o maior segredo dos belgas, guardado ao ar livre. Afinal, é difícil não se sentir encantado ao ser servido, com extrema cordialidade e simpatia, em qualquer lugar (no museu, nos cafés, no McDonald´s, ou simplesmente ao perguntar alguma informação a uma ruivinha andando de bicicleta), por uma criatura doce e feérica, de olhos verdes e cabelo naturalmente alaranjado. Você começa a sentir que entrou em um país de contos de fadas.

É por isso que não me surpreende que o belga Pierre Culliford (aka Peyo) tenha começado seu império nos quadrinhos, na animação e na cultura pop com um gibi sobre uma terra medieval encantada (Johann e Pirluit) que progressivamente se transformou num gibi sobre duendes azuis, os Schtroumpfs (aka Smurfs, dã). Estas informações também me lembram do quanto os belgas, apesar de serem uma cultura desconhecida e considerada derivativa, situada na Europa central, diferem dos europeus “canônicos” num aspecto essencial pra um turista: são simpáticos, poliglotas, gentis, parecem adorar sua presença, demonstram interesse em te conhecer.

Este pequeno panorama, que inclui charme, simpatia, credulidade e modéstia serve para entendermos o porquê de a Bélgica possuir uma cultura tão diversa e internalizada em seu diminuto território, e o porquê de eles serem tão aficcionados por uma cultura sólida e tradicional de quadrinhos, com várias obras-primas não traduzidas sequer para o inglês, sendo sua gigante influência sobre a HQ europeia referenciada sempre de forma tão tímida.

Um pouco de arquitetura dos Flandres

Tive a sorte de passar uma pequena temporada na Bélgica e tentar equacionar esses fatores todos que a tornam um destino tão peculiar às pessoas pacatas, ao devoto incontéstil de uma vida introspectiva, e a quem verdadeiramente ama as histórias em quadrinhos, claro. A Bélgica fica na região dos flandres, que se estende até a Holanda e que se distingue por uma arquitetura de cores quentes e rurais, de tijolinhos vermelhos, e que se moderniza numa art nouveau envidraçada e rococó, com florais de bronze, coisa fina e leve, irretocável. Apesar de a parte mais internacional e vigorosa da cultura de quadrinhos belga pertencer à influência francesa, parece mais enraizada essa secular ascendência flamenga. A Bélgica é um país bilíngue, mas é somente na capital, Bruxelas, que isso é realmente praticado na região dos flandres. Em todo o resto dos flandres, fala-se holandês (ou a língua flamenga, uma variação muito próxima do holandês) e eles preferem que você se comunique com eles em inglês, porque há o cultivo de uma certa rivalidade (voltarei a isso adiante) com a região de matriz francesa.

É por isso, por exemplo, que os belgas fazem a melhor cerveja do mundo (é verdade mesmo. Experimentei umas 30 marcas diferentes, de dupla ou tripla fermentação, ou estilo abadia, ou cervejas trapistas, ou cervejas de 12% de concentração alcoólica; enfim, uma visão do paraíso cervejeiro), uma coisa tão associada à Europa central, quando os franceses gostam mesmo é de beber vinho. E é essa proximidade tão grande com a cultura holandesa (eles têm até um próprio bairro da luz vermelha), com quem compartilham esse passado comum, que os faz serem também tão maconheiros! Em Bruxelas, eles meio que apertam seus baseados dentro dos cafés (vale até um Giraffas local qualquer), fumam na rua, na porta de entrada dos shows, e realmente não pareciam nem ligeiramente preocupados com qualquer intervenção policial.

Pintura flamenga e quadrinhos

Brueghel, o Velho: A queda dos anjos rebeldes, no Museu de Belas Artes de Bruxelas

Uma das possíveis origens para o entusiasmo dos belgas com os quadrinhos é a forte tradição flamenga (não, nada a ver com o time vagabundo regido a mão de ferro pela popularidade carnavalesca do Ronaldinho Gaúcho) nas artes visuais, e isso é certamente algo que belgas e holandeses têm muito que se orgulhar. Afinal, essa arte historicamente ocupa um epicentro de transformação entre a pintura gótico-medieval e o Renascimento italiano. Figuras como Brueghel, o velho, Jan Van Eyck, Rogier Van Der Weyden e, é claro, o estupor horrorizante de Bosch (quem não ficou pasmo ao observar os detalhes do Jardim das delícias?) foram responsáveis não apenas por desenvolver a tinta a óleo com que os italianos (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, enfim, todos que você ficou sabendo através das Tartarugas Ninja) revolucionaram a cultura ocidental, mas também por abordar pioneiramente a pintura da paisagem, os hábitos da vida do campesinato, e por introduzir, de maneira bem consciente, a ideia de que o feio e o grotesco poderiam ser um forte tipo de expressão com que a as artes poderiam se identificar. Escrevi, entre outras coisas, uma análise do quadro O triunfo da morte, de Brueghel, neste livro aqui, na página 294, caso haja interesse.

Guadglíneos?

Pra quem não sabe, a cultura de quadrinhos belga é tão antiga quanto os quadrinhos modernos em si, e as escolas desenvolvidas entre os anos 20-50 pelas revistas mix Tintim e Spirou não só geraram a influente escola francesa, como praticamente toda a cultura europeia de quadrinhos. Influência pouca não é bobagem, e não é à toa que uma cidade como Bruxelas tem estátuas de seus personagens espalhados pelas ruas, assim como paredes inteiras dos prédios pintadas com cenas de seus gibis. Além disso, os cafés das cidades belgas possuem pilhas de gibis para você pegar e ler distraidamente enquanto toma um chocolate quente ou uma cerveja.

Na época dos pintores flamengos, era comum que a cultura gótico-medieval já abordasse a narrativa visual seriada, e um pintor como Van Der Weyden é reconhecidamente um dos mestres da pintura em retábulos, em que cenas diferentes da paixão de Cristo ou outros motivos bíblicos eram pintados em diferentes quadros, alguns que se abriam como um livro, e que podiam ser entendidos como uma sequência interligada. Assim como os quadrinhos, os belgas amam sua tradição em pintura medieval, e em cada cidadezinha de 10 mil habitantes podem-se encontrar museus e obras destes mestres pioneiros. Isso sem falar na continuidade barroca e pós-renascentista trazida pelo antuérpio Peter Paul Rubens, um dos pintores mais influentes de todos os tempos.

Centre Belge da la Bande Dessinée

Art Nouveau

É por isso que, além de museus de arte flamenga e de instrumentos musicais (muito maneiros), há também um Centre Belge de la Bande Dessinée, ou o Museu Belga das Histórias em Quadrinhos, em Bruxelas. Logo na entrada do museu – um prédio envidraçado projetado pelo mestre da art nouveau Victor Horta – uma estátua de Gaston Lagaffe, o pai de todos os picaretas belgas, criado pelo genial André Franquin, nos lembra que aquele é um lugar amigável para o fã de quadrinhos. Já no hall de entrada, antes mesmo de pagar, nos deparamos com uma série de estátuas legais de personagens tradicionais da BD francobelga: os Schtroumpfs, várias coisas de Tintim (o foguete lunar, os personagens vestidos de astronautas, um busto em bronze), Lucky Luke, etc, além do carro vermelho vintage de Spirou todo pichado e desenhado pela nata histórica destes quadrinhos: Morris, Goscinny, Uderzo, Peyo, etc. Depois disso, o museu se divide em uma didática sessão sobre como as BDs são confeccionadas tradicionalmente, com rico material original, desde a concepção, os roteiros, o letreiramento, a coloração, a impressão, o marketing, enfim, todas as etapas da industrialização dos quadrinhos. Há dois salões de exposições temporárias (em um dos quais estava instalado um interessante panorama das HQs romenas) e, é claro, o andar principal, onde, entre escadarias e vãos de leveza art nouveau, podemos acompanhar, cronologicamente, entre estátuas, réplicas, brinquedos e instalações muito divertidas, toda a trajetória da BD belga (somente belga; nenhum artista francês é relacionado ali).

Neste andar principal, três tipos de subdivisão interessam. Em primeiro lugar, uma vasta e interativa sala toda dedicada ao personagem Tintim e ao seu criador, Hergé, com, além de ilustrações originais e modelos em escala humana, instrumentos de trabalho e painéis informativos ilustrados sobre o refinamento artístico, narrativo e humanístico do personagem, deslindando sua grande importância para a cultura das BDs. Com o lançamento do filme de Spielberg, os belgas, é claro, estavam em alvoroço, e o Tintim estava em toda parte.

Passando por esta sala de abertura, começamos a entender a concepção de curadoria do museu. A divisão das salas é mais ou menos cronológica e separada por autores (o primeiro deles é o pioneiro Jijé, criador do Spirou nos anos 30, tão importante, digamos, que também tinha um museu só pra ele em Bruxelas), mas estas salas (na verdade, elas funcionam como grandes divisórias de um labirinto de quadrinhos) são divididas em duas grandes estruturas pelo andar, separada por uma charmosa banca de jornal no modelo dos anos 40: de um lado, toda a história do semanário Spirou, com centenas de capas clássicas, e a trajetória ano a ano de seus editores. Do outro, a trajetória do jornal ou revista Tintim (ambas são revistas de variedades em quadrinhos e publicavam dezenas de personagens e autores diferentes), com as capas dispostas da mesma maneira.

Saindo, então, das salas que contam as histórias das revistas que, cultivando saudável rivalidade, permitiram o desenvolvimento da HQ belga, fica mais fácil e claro entender as salas dos próprios autores, dezenas deles, com várias páginas originais de cada, rascunhos, objetos pessoais, além de textos bastante ricos informando-nos a trajetória editorial do autor, suas influências, o método de criação, a concepção de seus personagens, sua popularidade, etc. Vale mencionar que as salas dos autores são personalizadas de acordo com suas criações. A sala de Franquin, por exemplo, é disposta como se fosse o escritório zoneado de Gaston Lagaffe, além de um corredor escuro que homenageia sua obra-prima tardia, as Idées noires. A de Morris se parece com um saloon que homenageia Lucky Luke, e assim por diante.

Acabei demorando-me um bocado de tempo nestas salas, procurando conhecer os muitos autores ali dos quais eu nunca ouvira falar, e foi uma pesquisa muito fértil. Foi possível entrar em contato, por exemplo, com Raymond Macherot e seu Sibylline, uma popular HQ de animais falantes, na melhor tradição Disney ou Pogo, que constrói inteligente comentário social a respeito da Europa nos anos 50-70. A sala de Macherot era decorada com modelos das árvores onde seus personagens vivem, com diminutas famílias arranjadas dentro dos troncos. Pude também dar uma olhada melhor no autor Maurice Tillieux e sua BD detetivesca Gil Jourdan. Por sorte, pude comprar versões compiladas, extremamente bem editadas, de todas as BDs que me interessaram. Coisas dos anos 40, 50 e 60, reeditadas em obras completas, mostrando o profundo respeito que os belgas devotam à sua tradição quadrinística.

Vale também mencionar a sala de Peyo. Além de originais e coisas de praxe, encontramos um mini-museu só dos Schtroumpfs, com modelos dos “edifícios” e construções dos Schtroumpfs.... em escala Schtroumpf. Há também uma grande tela de tinta a óleo com toda a vila dos Schtroumpfs pintada pelo próprio Peyo. Outras coisas de interesse estão na grande sala dedicada à BD Boule e Bill, de Jean Roba, uma história infantil muito simpática e popular, calvinesca, sobre um garotinho e seu cachorro, além de muitos outros personagens que já foram publicados até em português, como Alix (Jacques Martin), ou Le chat (Phillipe Gerluck).

Módulo Lunar (modelo) do Smurf Astronauta

Módulo Lunar de Tintim

Por fim, uma curiosidade substancial é a maneira como os autores que se originam da cultura dos flandres (e, portanto, são publicados em holandês) possuem um tratamento diferenciado no museu. Segundo o que o curador de um pequeno museu de música informou ao meu irmão na cidade da Antuérpia, basicamente a maioria dos belgas nos flandres se identifica com essa cultura, e a capital só fala francês graças a uma imposição de Napoleão após ter conquistado o país. A cultura francesa (obviamente também orgulhosa) na Bélgica, situada na região da Valônia, é bem mais pobre a marginalizada do que os ricos belgas de origem flamenga. Talvez isso explique por quê, no museu, os influentes autores flamengos ostentem os textos de curadoria em holandês acima dos textos em francês, ao contrário de todo o resto. Os principais nomes desses quadrinhos – Willy Vandersteen, chamado “verdadeiro criador da linha clara” e sua imensamente popular BD familiar Bob e Bobette; e Marc Sleen, criador de As aventuras de Nero – ocupavam espaço de grande destaque no salão central do museu. Depois, ao tentar comprar a HQ Nero e não encontrar nenhuma edição em francês (e carregando somente uma tradução em inglês nas mãos), perguntei pra velhinha que atendia na loja: “Nero em francês está em falta”? No que ela respondeu: “Não, isso nunca foi publicado em francês”. Oh, I guess I struck a nerve.

BD World

Acho que tudo que me esforcei para escrever com clareza acima dá uma ideia da complexidade cultural de um país com 30 mil km² e apenas 10 milhões de habitantes. Especialmente para os fãs de quadrinhos, é um tour que vale a pena. Tanto quanto chocolaterias (esqueci de dar algum destaque a isso, porque, ao contrário de 99% da população mundial, não gosto muito de chocolate), há um universo de lojas de quadrinhos na Bélgica, especialmente em Bruxelas. Cheguei a visitar umas 4 ou 5, afinal, o tempo era curto e tinha muita cerveja pra beber. Faço questão de destacar a BD World, uma loja labiríntica, com milhares de quadrinhos, atendida por duas preciosidades a quem eu não recusaria um pedido instantâneo de casamento; a Multi-BD, cujos atendentes são tão atenciosos que escrevem suas próprias mini-resenhas e colam junto às capas dos quadrinhos, classificando-as como “premiadas”, “favoritas da casa”, etc; e a própria loja instalada no museu, a Slumberland, franquia de uma megastore de quadrinhos que tem outras 5 ou 6 lojas espalhadas por Bélgica e França. A Slumberland é quase como uma Fnac só de quadrinhos, e praticamente somente quadrinhos francobelgas. Os comics americanos, aliás, parecem bastante desprezados pelo país. Pouco se vê deles pela Bélgica. Vou me abster apenas de falar no bizarro hábito de comer batatas fritas com maionese como se fosse cachorro-quente, e de dar mais detalhamento sobre a qualidade da mulher belga, primeiro para não entediar nossas leitoras, e segundo porque esta é uma qualidade que deixo à imaginação, e àqueles que se aventurarem para uma visita in loco.

Bruges, na Bélgica: você senta-se no café, pede um chocolate quente e pega um gibi pra ler.

Agradecimentos ao meu irmão Guga (verdadeira fanático por pintura flamenga, prestou ótima assessoria), meu irmão Quilk (que tirou a maioria das fotos) e ao colega Pedro Brandt (que morou na Bélgica e me informou alguns detalhes essenciais sobre o país).

HQ em um quadro: a ciência do sono induzido, por Pablo de Santis e Juan Sáenz Valiente





O hipnotizador Arenas desmistifica seu ofício através de um argumento científico (Pablo de Santis, Juan Sáenz Valiente, 2007): É comum que se associe culturas midiáticas visuais a um tipo específico de hipnose. No cinema, isso foi alvo de teorias cheias de complexidade (ver Münsterberg ou Morin). O mundo visual traduzido em enquadramentos ordenados e organizados em dispositivos de causa e efeito, em algum grau, parece nos submergir em distintos estados de transe ("projeção-identificação", nas palavras de Morin). Quando o famoso escritor argentino Pablo de Santis (histórico roteirista da Fierro), ao trabalhar com o virtuoso ilustrador Juan Sáenz Valiente, traz o tema do hipnotizador a esta magnífica história publicada em capítulos pela nova versão da Fierro, isso pode ou não ter sua carga de metalinguagem. Gosto de achar que sim, e as reviravoltas na história soturna de um mestre argentino desta antiga arte, que desvela o passado das pessoas através do sono, mas não consegue dormir, parece um indicativo interessante de seu dilema enquanto artista que alterna as funções de escritor e de roteirista de HQs (da qual ele estava afastado havia anos). O escritor domina a arte de induzir o sono imaginativo construído na mente de leitor. Ao quadrinista cabe o trabalho de sonhar pelo mesmo.

O hipnotizador foi republicado em bela edição da Reservoir Books na forma de novela gráfica em 2010. Seria uma bela pedida de tradução para o português. Numa narrativa sombria e cheia de desgastes úteis, tipo noir da antiga Buenos Aires, os autores vão desenhando um trama insólita e kafkiana, entre o sonho, o transe e o pesadelo, prestadora de tributo a tipos geniais como Borges ou Poe. As ilustrações e a amostra caricatural na galeria de personagens, cheia de gente pérfida, arrasada, trágica, não deve nada a um Dobro de cinco, de Mutarelli, ou a um Daytripper, em termos de engenhosidade. Cabe lançar um olhar delongado aos nossos nobres vizinhos. Valiente é dono de uma arte líquida, aquarelada, onde predominam púrpuras e pastéis de um passado obscuro, de capital latinoamericana. Neste quadro simples, apenas um numa página com nove, Arenas põe os pingos nos "i"s de seu obscuro ofício: "A hipnose, senhores, não é magia. É uma poderosa forma de sugestão. É a ciência do sono induzido". Tampouco parece magia a arte de narrar e elaborar uma história em quadrinhos. Parece, na verdade, uma ciência do sono voluntário (CIM).