Contatos imediatos: entrevista com Lourenço Mutarelli






















por Pedro Brandt

No começo da carreira, nos anos 1980, Lourenço Mutarelli teve dificuldades para publicar seus primeiros trabalhos. Nenhum editor queria suas histórias em quadrinhos. A ironia é que, pouco depois, ele se tornaria um dos mais respeitados autores brasileiros de quadrinhos. Tanto que, quando Mutarelli anunciou que deixaria de produzir HQs para se focar em seus livros (e em trabalhos para cinema e teatro), muita gente lamentou a aposentadoria precoce do paulistano. Por isso mesmo, existia uma certa expectativa a respeito de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, trabalho anunciado como sua volta aos quadrinhos.

Na verdade, o título ainda não é o tão aguardado retorno de Mutarelli ao formato. “Quando eu comecei a fazer os estudos em quadrinhos, vi que a história não ia ter fôlego para isso. Então eu fiz essa contraproposta para a editora (Companhia das Letras), de fazer uma história ilustrada. E eles aceitaram numa boa”, ele conta. Mais do que narrar um contato imediato de terceiro grau (em termos ufológicos, o encontro com extraterrestres), Lourenço Mutarelli, 47 anos, faz de seu novo trabalho uma reflexão sobre a memória e o passar do tempo.
No começo do livro, o narrador — anônimo — avisa que não foi testemunha do que será relatado nas páginas a seguir. Os pais do personagem passaram seus últimos dias juntos em uma vida tranquila e doméstica. Ela gostava de assistir novelas. Ele, de comprar máquinas de escrever e de costura para desmontá-las e depois montá-las. O homem também colecionava fotografias antigas compradas em uma feira perto de casa. A rotina do casal seria abalada pela morte súbita da senhora. Com a perda da mulher, o velho homem entrou em depressão.

Para ajudar o irmão em luto, o tio do narrador convida o viúvo para pescar em uma cidade do interior. Durante a pescaria, os dois avistam uma estranha luz no céu e a perseguem. Pouco depois, o pai do narrador some noite adentro. Quando reaparece, tem histórias surpreendentes para contar.
 
Interação

A leitura apenas do texto de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente é rápida e pode passar uma impressão precipitada da obra, como se ela fosse uma história muito simples, banal. A posterior leitura das ilustrações, mais do que complementar o que está sendo narrado com palavras, funciona no sentido de causar sensações. Diversas imagens são apresentadas mais de uma vez, mas com alguma coisa diferente. Assim como uma foto desbotada, uma lembrança antiga ou as imagens criadas na mente quando se ouve uma história (ou ainda, quando elas surgem na cabeça fruto de algum delírio), as ilustrações de Mutarelli no livro são — além de um deleite visual — um convite à sugestão.

Assim como na leitura de uma história em quadrinhos, a participação ativa do leitor em Quando meu pai se encontrou com o ET… se faz necessária para preencher algumas lacunas e silêncios que Mutarelli espalha pelo livro. E é com o auxílio desse artifício — a liberdade para interagir com o que se lê — que a obra transcende as páginas.

Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente
De Lourenço Mutarelli. 112 páginas. Quadrinhos na Cia. (Companhia das Letras). R$ 44,50.

ENTREVISTA: LOURENÇO MUTARELLI
 
Como é o seu processo para conceber as histórias que cria?
Quando eu começo a pensar na história, eu parto geralmente de algum argumento pequeno. Não é nem um argumento, é uma ideia que eu sinta que possa desenvolver. Quando é em quadrinhos, eu sempre começo a fazer uma pesquisa de imagens, tentar pensar como eu vou ambientar a história, e começo a fazer uns estudos. E a partir desses estudos, pensando no que é a história, eu tento encontrar uma técnica, uma forma de contar essa história.

Quanto tempo você levou para concluir o Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente?
Levou um ano. Eu terminei ele em maio, junho do ano passado.

Qual a técnica usada nesse trabalho?
Eu usei basicamente tinta acrílica sobre papel. Às vezes tem até algum filete em nanquim, mas aí é pincel, mais uma técnica de pintura. Eu achava a cor interessante nessa história, dar uma amortecida nas cores, o acrílico é uma cor muito intensa. Eu comecei a fazer alguns estudos cromáticos, uns estudos de cor e vi que era o caminho que eu queria seguir.

As técnicas são uma novidade pra você?
Sem dúvida. Eu tinha trabalhado em pouco coisa com tinta acrílica, nos trabalhos de faculdade. E nunca mais tinha mexido com acrílica. Como eu tenho um projeto que eu mais gosto, que eu venho fazendo, que são meus cadernos de… não são nem uns estudos, são meu laboratório, coisas que eu brinco… 

Sketchbooks? 
É, são sketchbooks. Eu não sei se são sketchbooks, eles são mais ou menos o que eles são ali. Eu tiro muita ideia dele. A minha intenção é gerar coisas ali, com cor. E eu tinha comprado há um tempo atrás alguns tubos de acrílica e estava usando nesse cadernos. Mas de uma forma bem… não é nada demorado, não tem que ter acabamento, é uma coisa muito rápida nesses cadernos. E aí, para esse projeto, para o processo desse trabalho, é algo muito mais elaborado, mais trabalhoso. E eu achei que o desafio também me estimularia a encarar esse trabalho.

É o seu primeiro trabalho colorido?
Nos anos 1990, começo de 2000 — 2000, eu acho — tinha o Cyber Comix, um site. Uma das exigências deles é que as histórias fossem coloridas. Então eu fiz uma série de histórias coloridas pra eles, que depois eu reuni num álbum, que é Mundo pet, uma coletânea dessas histórias. Aquela é a minha única publicação colorida.

Essa história tem algo de biográfica?
Como a narração é em primeira pessoa dá a impressão de ser uma história autobiográfica. Ela tinha uma frase no começo que deixava claro que não era, mas eu acabei suprimindo isso, para deixar essa dúvida. Ela não tem nada de autobiográfica — a não ser o uso da imagem de alguns amigos, como o Mário Bortolotto e o Paulo de Tarso, que eu usei como referência para uns personagens, e umas fotos da minha infância que eu misturei nas fotos que o velho colecionava. E o velho, o pai, tem a cara do escritor William Burroughs. Eu desenhei muito o Burroughs e um dia percebi que sempre misturo o rosto dele no do meu pai. E eles não tem nada a ver! A única semelhança é o lábio muito estreito, quase não tem o lábio superior.

E os seus pais estão vivos?
Só a minha mãe. Meu pai faleceu tem 10 anos — igual na história (risos). Eu falo que não tem nada biográfico, mas meu pai morreu há 10 anos. Mas não foi num asilo, não viu ET…

Acho que a frase que melhor resume isso é uma frase do Arquivo X
“A verdade está lá fora”. Eu adorava Arquivo X, é uma série que eu acompanhei muito nos anos 1990.

A frase que tem no poster do escritório deles é ainda melhor: “Eu quero acreditar”.
Ah, sim, é verdade! “I want to believe”. A gente passou o fim de ano num sítio, na casa de campo de um amigo, onde a gente sempre passa, e eu passei a olhar muito para o céu. Eu sempre olhei muito pro céu porque sempre me fascinou as tonalidades. Como eu levanto cedo, geralmente eu vejo o sol nascendo, é uma coisa que sempre me fascinou. Mas nunca estava procurando nada ou tinha esperança (de ver alguma coisa). E nesse final de ano, o meu filho me perguntou “você está procurando ET” e eu disse que adoraria ver (risos).

Você gosta de histórias de ETs?
É uma coisa que me fascinava quando eu tinha uns 14, 15 anos. E que ficou meio apagada, nunca tive mais interesse. E há algum tempo atrás, o Marçal Aquino — para quem eu dedico o livro — me contou uma piada que era sobre ET. Era uma piada bem boba, mas que tinha a frase “leve-me ao seu líder”, a frase clássica dos ETs. E isso ficou na minha cabeça. A partir daí, eu comecei a pensar na história, a fazer uma pesquisa maior sobre o assunto, a acompanhar um monte de séries de tevê a cabo, pesquisar imagens no YouTube… Eu adoraria ver alguma coisa. Nunca vi nada, não sei se acredito ou não, mas acho fascinante entrar num mundo que não fazia parte das coisas que eu questionava ou pensava.

Você ouviu falar do ET Bilu?
Eu estava dando uma oficina ano passado no Sesc, e uns meninos me contaram. Eu até anotei isso na minha agenda, para procurar, mas nunca fui atrás.

Já está trabalhando em um novo projeto?
Vou voltar para o meu projeto dos Amores Expressos.

Como está essa história?
Eu fiz um livro, mas a Companhia das Letras não gostou e pediu uma série de alterações. Eu alterei, mas depois… como ele estava previsto para o ano que vem, e eu vi que eles não gostaram muito… daí, andei pensando e vou reescrever. A história vai ser no mesmo cenário, mas com outros personagens. Vou manter só um capítulo do outro livro que eu escrevi.

E o filme do Dobro de cinco, por que não teve continuidade?
Fizemos um teaser, a princípio, para uma tv a cabo. Era para ser uma minissérie em alguns capítulos. Mas essa emissora, quando viu o teaser e teve contato com os livros, achou muito bizarro e desistiu. Eles tentaram com uma outra também não aconteceu. Aí veio a ideia de virar um longa, mas seria um projeto muito caro, então está engavetado.

Uma pena, porque esse teaser ficou bem legal
Até chorei quando vi, foi muito emocionante. A direção do Denison, o Grampá cuidou de toda parte visual, a maquiagem… Mas é uma coisa quase inviável, a maquiagem do Cacá Carvalho dura quatro horas e meia e acabou, ela é jogada fora.


Você acompanha alguma coisa de quadrinhos hoje em dia?
Não tenho acompanhado quase nada, e já faz muito tempo. Às vezes me mostram alguma coisa, mas muito pouco, não tenho acompanhado nada.

O que você gosta de fazer para passar o tempo?
Ouvir música e jogar paciência no computador.

Você ainda gosto dos compositores de vanguarda erudita?
Sim, tem umas duas décadas que eu venho mais focado nessa música. Glass, John Cage, György Ligeti, Arvo Part… tenho ouvido um cara que é bem obscuro, Harry Part, que é maravilhoso.

Você tem um traço bem pessoal, é até difícil perceber as suas influências…
A minha relação com as minhas influências nos quadrinhos nunca foi de tentar imitar esses caras. Tem caras que eram referências, por exemplo, Hal Foster, no Príncipe Valente, ou Hergé no Tintim… eles têm um trabalho tão bem resolvido no estilo deles… o Tardi ou Munhoz, que pra mim é o melhor. São caras que eu nunca tentei imitar. No começo do meu trabalho, quando eu não conseguia publicar, eu tentei fazer humor, e aí quando eu tentei fazer humor, eu me influenciei mais pelo underground americano. Mas foi uma fase inicial e depois eu voltei para o que eu já era. Eu costumo dizer que o estilo é a tua limitação, é o jeito que eu sei fazer. Eu tento experimentar sempre nesse meu processo, mas é por aí, eu gosto disso. Acho que eu sempre tive mais influências literárias e de artes plásticas.

Mudar de traço é se desafiar?
É uma busca mesmo. Mesmo nas histórias antigas, tem uma variação de uma para a outra. Em cada história, eu tentava encontrar um traço que eu acreditasse que ajudava a contar a história ou ambientar melhor essa atmosfera. Eu acho muito desagradável chegar numa coisa que deu certo e ficar insistindo nisso, é muito fácil você ficar numa coisa que deu certo.

E quando você volta, efetivamente, para os quadrinhos?
Eu fiz algumas coisas em 2007, comecei um projeto novo totalmente experimental e em quadrinhos mesmo. Em algum momento eu devo voltar, mas queria encontrar uma forma nova, que fosse experimental, que me desafiasse a encontrar alguma coisa diferente do que eu fiz nesse anos todos.

Moon e Bá em Brasília

Fábio Moon e Gabriel Bá participam hoje (terça-feira, 31 de janeiro), a partir das 19h30, de um bate-papo no teatro Eva Herz, localizado da Livraria Cultura do Iguatemi Shopping (Brasília) - o acesso é livre. Na pauta, o sucesso de Daytripper, os caminhos do quadrinho nacional e os próximos trabalhos dos irmãos. Na entrevista a seguir, os gêmeos paulistanos adiantam um pouco da conversa que vai rolar à noite. (PB)
* Crédito da foto: JR Duran




Daytripper repercutiu muito bem, nacional e internacionalmente. Qual dos reconhecimentos recebidos pela obra deixou vocês mais felizes? Por que?
Gabriel: Todo reconhecimento do Daytripper nos deixa felizes, de formas diferentes. Nos Estados Unidos, foi nosso maior projeto autoral e serviu para nos consolidar como autores, não só como desenhistas. Aqui no Brasil, foi nosso primeiro trabalho que conseguiu reunir o reconhecimento que temos no exterior, os prêmios que a obra ganhou, a visibilidade que temos na mídia e o fato do próprio livro estar sendo lançado e disponível no país inteiro. Estamos muito felizes com tudo.

E qual o reflexo dessa boa repercussão na carreira de vocês?
Gabriel: Hoje somos mais reconhecidos como autores, não só desenhistas, e as editoras estão mais abertas para nossos projetos — não só para usar nossos desenhos nas histórias dos outros. Vários convites para convenções e eventos de quadrinhos ao redor do mundo são resultado desta repercussão e temos tentado balancear as viagens com o trabalho, pois é importante divulgar e promover os livros, mas é preciso continuar produzindo material novo.

Vocês conseguem perceber o surgimento de novos leitores para o trabalho de vocês?
Fábio: Estamos sempre buscando novos leitores. Quadrinhos não são só pra “nerds” ou “crianças”. Queremos expandir o mercado de quadrinhos e mostrar a pessoas que não costumam ler HQs que elas podem encontrar ali histórias incríveis. Acredito que o Daytripper esteja fazendo um pouco isso, mas precisamos continuar produzindo este tipo de quadrinhos pra conseguir realmente formar este público “novo”.

Um assunto recentemente muito discutido por quem faz e lê quadrinhos foram as propostas de lei para cotas de produção nacional nas editoras brasileiras. Vocês acompanharam essa história? O que pensam a respeito dessas propostas?
Gabriel: Acho que pode ajudar na formação de público se bem utilizado nas escolas e faculdades (como propõe o artigo 5º da lei). Mas não acredito que resolverá a vida dos autores e criará problemas para editoras, principalmente as pequenas. Nunca se publicou tanta HQ como hoje em dia, em variedade de gêneros e títulos, tanto estrangeiros quanto nacionais.

O que vocês leram de interessante de quadrinho nacional em 2011 e recomendariam para as pessoas?
Gabriel: Um projeto muito bacana de 2011 foi uma página de quadrinhos no IG, de onde surgiram três trabalhos excelentes: O beijo adolescente, de Rafael Coutinho; Roberto, do Edu Medeiros; e Tune 8, do Rafael Albuquerque. Tanto o Beijo adolescente quanto o Tune 8 foram compilados e publicados em papel. Outra HQ legal foi Achados e perdidos, do Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, pois é uma boa história infanto-juvenil, gênero pouco trabalhado no quadrinho nacional.
Fábio: E quem continua firme e forte numa ilustre carreira nos quadrinhos é o Gustavo Duarte, que depois das premiadas (2009) e Taxi (2010), lançou Birds, mais uma HQ sem falas, contando tudo com seus elegantes desenhos.

Quais os planos de vocês para 2012? Quando poderemos ler o próximo trabalho de vocês?
Fábio: Este ano vamos lançar um álbum da série Cidades Ilustradas, da Casa 21, sobre São Luís do Maranhão. Além disso, também deve sair por aqui o Casanova, série que fazemos nos Estados Unidos com o escritor Matt Fraction. Estamos trabalhando na adaptação para os quadrinhos do livro Dois irmãos, do Milton Hatoum, mas vai demorar ainda pra ficar pronto.

HQ em um quadro: a indizível morte de Assad, por Ozamu Tezuka





















Sidarta presencia a morte violenta do asceta Assad, que entrega o corpo para ser devorado pelos lobos (Ozamu Tezuka, 1972): a série Buda, publicada por Ozamu Tezuka ao longo dos anos 1970, é tão magnanimamente constituída em todas as suas estruturas de quadrinhos que não valeria a pena escrever um texto longo sobre ela. Caberia um sobre cada um dos 14 insuperáveis volumes. Ou seja, um livro (hmm... pensar a respeito). Portanto, para não deixar em branco este que é um dos meus quadrinhos favoritos e certamente um dos melhores de todos os tempos (seria uma espécie de Em busca do tempo perdido das HQs), resolvi comentar um único momento, dentre literalmente dezenas e dezenas de ações sublimes na história, para prestar tributo. A título de curiosidade, Buda é a obra mais ambiciosa deste gênio das HQs, e aquela em que o deus do mangá mais se dedicou de corpo e alma, elaborando todos seus elementos estilísticos (humor, drama, ação, personagens-atores, metalinguagem, narrativas cruzadas, etc.) num profundo grau de resolução filosófica e existencial, sem jamais perder a pegada de aventura e a leveza de seu humor. Além disso, é um dos momentos em que seu grafismo espacial chega à máxima exponencialidade, com páginas inteiras de paisagens impressionistas e percepções narrativas espalhadas num único quadro, em nada deixando a dever a um Patinir ou a um Debret.

Estes três quadros estão no sétimo volume da saga, quando Sidarta inicia sua jornada espiritual ao buscar um caminho tortuoso de ascese hindu na floresta de Uruvella, onde homens passam os dias sendo comidos por formigas, queimados pelo sol e furados por pregos, além de outros tipos de autoflagelo. Após questionar estes pricípios e ser rejeitado pelos ascetas, Sidarta vê-se só em sua jornada, acompanhado apenas pelo pequeno Assad, um monge melequento que, em primeira instância, não passa de um estorvo inútil e que, depois de passar por uma transcendental experiência de quase-morte, recebe o dom de previsão exata do futuro. Desde o princípio, Assad prevê o exato dia de sua própria morte, seis anos no futuro, devorado por bestas selvagens. A brutalidade da previsão e a serenidade do pequeno monge impressionam o jovem príncipe, que faz tudo para protegê-lo. A preocupação do leitor acompanha a de Sidarta, já que Assad é o tipo de personagem que angaria simpatia progressivamente e, como suas previsões nunca falham, a cada volume alimenta-se a expectativa sobre sua morte vaticinada.

A beleza da história desse personagem se equipara à força que com ela impressiona o futuro Buda. Cada um dos reis, soldados ou camponeses que vão se consultar com Assad recebem de volta uma resposta plácida, técnica e frustrante: seus futuros nunca serão o que esperam, e geralmente resultam em mágoa, frustração ou insuficiência, que precisam ser comunicados com ascetismo pelo pequeno monge. Admira-nos, portanto, o olhar incompassivo e resignado com que Assad realiza sua leitura do mundo, anunciando a importância do desapego budista em níveis absolutamente extremos. Na véspera de sua própria morte, Assad comporta-se de maneira idêntica aos outros dias de sua vida, consciente da inutilidade de cultivar paixões contra aquilo que está além de sua capacidade de resolução. Sidarta amarra-o numa árvore para impedir que as bestas selvagens o ataquem, mas um castor, na calada da noite, rói as cordas e Assad vai parar perto de uma ninhada faminta de lobos, que chora, sem alimento. Resolutamente, sem paixões ou afetos, Assad oferece seu próprio corpo para os pais dos lobos, que o dilaceram diante dos olhos de Sidarta que, atrasado, nada pode fazer. O desprendimento total em relação a qualquer tipo de posse, apego ou adesão acha um apogeu neste generoso ato de martírio ("não me pertence nem minha própria vida") onde Assad entende, como um dever inquestionável, que a vida daqueles lobos necessita mais dele do que ele próprio. Foi este o verdadeiro prego cravado no coração daquele que se tornará o Buda. (CIM)

Este post é dedicado à KK, que dividiu comigo, por um ano todo, a entusiasmente experiência de ler a série completa do Buda.













Um zumbi no carnaval






















por Pedro Brandt

Yuri escolheu o dia errado para morrer. De saco cheio do carnaval do Rio de Janeiro (“não sei sambar, nunca tive temperamento tropical”, ele diz), esse publicitário pulou de um prédio no domingo. Ressucitou na segunda, ainda com a festa tomando conta da cidade. “Você diria que eu ganhei um milagre. A chance de consertar meus erros. Mas eu não mudei. Porque sou o mesmo de antes. Burro, feio e chato. Sem missão divina, sem dinheiro e atrasado para o trabalho”. De volta ao mundo dos vivos, Yuri percebe que a única coisa em comum entre ele e o Rio é que ambos estão apodrecendo — Yuri saiu do túmulo como um zumbi.
Como azar pouco é bobagem, bastou apenas um dia para que ele perder o emprego para um estagiário e a mulher para um ricardão qualquer. Mas nem tudo está perdido para o protagonista da história em quadrinhos Yuri: quarta-feira de cinzas. Com a ajuda de Andrei, um ladrão de carros (gordo, gay, oportunista, inconsequente e, acima de tudo, carismático), ele decide ir à forra antes de morrer de vez. Até a última página, Yuri desafiará o rei momo, cabrochas, foliões, blocos de rua e uma turba descontrolada que acredita ser ele um santo milagroso.


Primeira HQ autoral do diretor de animação e ilustrador carioca Daniel Og, Yuri: quarta-feira de cinzas consegue uma façanha ainda pouco frequente entre os novos criadores de quadrinhos nacionais: seus personagens têm personalidade vívida, que salta das páginas. O protagonista é alguém que tem tudo, mas se deixa vencer pelo tédio. Andrei não tem nada a não ser seu próprio senso de sobrevivência. Juntos, mesmo brigando o tempo todo, a dupla parece se completar.

Sem forçar a barra, o autor também é bem-sucedido em fazer comentários sociais e levar brasilidade para a história. E tudo isso com muito humor. Og radiografa parte do Rio mostrando tanto a alegria contagiante do carioca, quanto o lado mundo cão da cidade, onde maladro é malandro, mané é mané e todos querem passar a perna uns nos outros. E ainda que o carnaval seja pano de fundo para a trama, o autor não se agarra aos clichês que geralmente estão presentes nos roteiros passados na cidade maravilhosa.

Ao conceito da história e à construção dos personagens, soma-se uma arte em preto e branco carregada de personalidade e estilo, ainda que simples, quase minimalista (como bem comenta Allan Siber no texto de introdução). Yuri: quarta-feira de cinzas foi lançada no final de dezembro. Por isso mesmo, merece figurar em qualquer lista de melhores HQ nacionais de 2012.

Yuri: quarta-feira de cinzas
De Daniel Og. 272 páginas. Conrad Editora. R$ 36.


Entrevista com Daniel Og:

Você considera o Yuri o seu alter ego de alguma forma? Você viveu alguma das histórias narradas na HQ?
Um pouco, mas não. O Yuri começa a história em um ponto que eu vivi. Tinha saído de um “bom emprego”, estava duro... Estava desesperançoso de chegar nas conquistas que quando menino tinha me imposto! Hahaha! Mas aí justamente por estar nessa situação (eu não pensei nisso na época, só me dei conta agora, na verdade) tive a liberdade de mudar e fazer meu quadrinho como eu queria, sem me importar com opinião de ninguém. Aproveitei essa chance de renascimento bem melhor que o Yuri. De uma certa forma, a vida que Yuri deixa pra trás é a minha. Mas a partir do momento que o Yuri encontra o Andrei, a história e o personagem já não têm mais nada a ver comigo. Mesmo assim, usei muitas referências da minha vida. Muitos amigos como base para criar os personagens... Enfim, tem muito de mim na história, mas não é nada autobiográfico! Nunca fui chifrado daquele jeito, por exemplo!

A HQ tem uma identidade local muito forte. Como você trabalha roteiro e personagens?
O que eu acho que falta nos quadrinhos brasileiros é uma perspectiva diferente. Culturalmente, o Brasil produz pouca coisa com identidade nacional e divertida. Geralmente, divertido é sinônimo de cinema de ação. Japonês, americano, coreano, que seja, mas o entretenimento brasileiro é muito realista! Chato, eu diria! Então, a referência fica ou fazer uma coisa com cara de Brasil e pesada — sofrida, doída — ou fazer uma coisa com cara de europeu ou americano e sem identidade, sem referências realmente próprias. Acaba que a falta de trabalhos lúdicos com identidade própria — e divertidos — faz com que surjam menos trabalhos que sigam nessa linha também. Foi uma intenção que fosse um quadrinho divertido antes de tudo! Ainda que fosse um quadrinho burro, ainda que fosse um quadrinho tosco, tinha que ser divertido.

Yuri é uma HQ de fôlego, com 272 páginas. Quanto tempo você demorou para realizá-la?
Na prática, eu levei cinco anos. Mas a história apareceu na minha cabeça há uns oito. Levei algum tempo até ter coragem de sentar e escrever. Considero que realmente comecei o projeto depois do primeiro roteiro escrito. Que depois eu acabei jogando fora quase inteiro!

Qual o maior desafio da produção deste trabalho?
Tempo. Nada além disso. Paciência. Na verdade, o maior desafio talvez tenha sido juntar coragem e me forçar a levar o projeto do início ao fim. Porque, técnica e criativamente, foi fácil de fazer. Era um quadrinho que eu queria muito fazer. E por não ter uma carreira conhecida, não havia nenhuma expectativa. Eu podia ir melhorando a técnica à medida que fazia... podia errar. O duro mesmo foi me convencer de que havia chegado a hora de começar e, levando o tempo que levasse, que eu ia chegar até o fim uma hora, que ia valer a pena. Mas mais uma vez, meus resquícios de punk rock me ajudaram. Eu não me importava muito se ia ficar bom ou não. Só queria ver meu bichinho pronto.

Quem você considera as suas principais referências nos quadrinhos? Quais os seus autores favoritos?
Conheço até pouco de quadrinho pra falar a verdade! Hahaha! Não achava isso até conhecer alguns outros autores e apreciadores de quadrinhos. Por que o povo conhece tudo! Então sou humilde com meus conhecimentos. Mas adoro quadrinho! Meu pai sempre teve muita Mad e Peanuts em inglês em casa, aqueles livrinhos de bolso... eu e minha irmã destruíamos a coleção dele literalmente. Minhas referências são os clássicos (Charlie Brown, Winsor McCay, Hugo Pratt, Manara, Asterix…), quadrinhos de humor (Quino, Laerte, Allan Sieber, Angeli, Fernando Gonzales), mangá, que eu gosto muito (Dr. Slump, Preto & Branco, Naruto, Vagabond, Battle Royale…), alguma coisa de quadrinho de herói também, que eu lia muito quando moleque. O Mike Mignola, inclusive, foi muito plagiado em vários sentidos… o timing dele é um negócio misterioso. Estudo muito ele.

Já está preparando sua próxima HQ?
Estou! Já vinha preparando a história há um tempo, enquanto desenhava o Yuri. Mas não tem muito a ver com o Yuri. Não repito muito as coisas. Gosto de experimentar com tudo que eu faço. Mesmo com animação e cinema, eu raramente fiquei muito tempo em uma mesma área. Apesar de meu ganha pão ser animação, é uma animação experimental... são projetos variados sempre no jeito de executar e nos roteiros. E eu quero dar um tempo. Um ano talvez. Nesse meio tempo quero fazer umas histórias curtas para revistas independentes que quiserem um colaborador e lançar um livro fechado com essas historias. Já tenho algumas feitas até.

O que são BDs? Um segundo corte - parte 2: Ulysses

por

Ciro I. Marcondes

Para quem está perdido no nosso guia idiossincrático da estética e cultura das HQs francobelgas, pode ler a introdução ao segundo corte e o primeiro texto (

Andarilho dos limbos

)

aqui

, além dos textos do primeiro corte (

aqui

). Li

Ulysses

numa reedição americana,

Heavy Metal Classics

, de 2006, que reúne os dois volumes da obra. É uma leitura leve, deliciosa e estimulante.

Polifemo

2: Ulysses (Georges Pichard e Jacques Lob)

Zeus e os deuses do Olimpo: Legião dos Super-Heróis?

Concorda-se hoje que dia que a

Odisseia

seja uma coletânea de mitos das tribos gregas arcaicas reunidas em textos tradicionais cuja disseminação se dava, primeiro, apenas oralmente, e que depois foram organizadas por dois ou três aedos

que acabaram sendo convencionalmente reunidos sobre a alcunha “Homero”

, no Séc. 8 a.C. À

Odisseia

junta-se a outra epopeia clássica, a

Ilíada

, além de outros textos épicos que se perderam, muitos deles ainda na época da antiguidade. Estes textos sobreviventes fazem parte de nossa fundamentação filosófica, histórica e religiosa, e deveriam ser lidos cuidadosamente por qualquer cidadão que se interesse minimamente por cultura ou história. Estas estruturas míticas, que englobam a criação de arquétipos definidores, preceitos morais e toda uma substância linguística herdada pelo ocidente, se manifestam em grande escala em nossos conceitos filosóficos, literários, psicanalíticos, sociológicos e políticos. Obviamente, a

Odisseia

é um dos textos mais apropriados, parodiados, reprocessados e adaptados da nossa história.

Enquanto outras mídias procuraram sempre reinventar o sentido da tenebrosa viagem de retorno de Ulisses

(ou Odisseu, para os gregos) após vencer a guerra de Tróia, os quadrinhos realizaram apenas leituras tímidas, quase todas adaptações infantis.

A arte safadinha de Pichard

O que torna essa versão realizada pela incrível dupla Pichard/Lob diferente de tudo que foi feito em relação ao peso histórico deste texto é sua alucinante adequação ao

esprit d'époque

no qual os autores estavam mergulhados. O já falecido Georges Pichard foi um dos mais talentosos e inquietos mestres do erotismo francês, e a maior parte da sua obra em quadrinhos foi dedicada ao aperfeiçoamento desta arte, tão cultivada pelos gênios setentistas da

Métal Hurlant

. Pichard detém um traço ao mesmo tempo expressivo e delicado, de alta personalização e identificação. Seus cenários e figurinos são floreados de elegante

art-nouveau

, inundando as páginas com cores suaves e curvas sinuosas, deixando seus personagens com forte carga sensual, inequivocadamente sensual, impterivelmente sensual. Suas mulheres, com olhos grandes e vibrantes, sardas salientes e curvas difíceis de se ignorar, chegam quase a exalar perfume róseo saído de dentro das páginas da HQ. Toda essa imersão em um ideal grego de beleza fez com que ele encontrasse, na

Odisseia

, um foco muitas vezes ignorado nas transposições habituais da obra, que é essa urgente sensualidade e a presença constante de volúpia e desejo nas ações que norteiam os heróis.

As sereias

Por outro lado, o tradicional roteirista de Pichard, Jacques Lob (também falecido), encontra uma segunda maneira (à parte a sensualidade) de manifestar este estilo setentista a uma história tão distante no tempo. Sem perder completamente o embasamento no original de Homero (a época e os personagens se mantêm) e influenciado por uma leitura bem-humorada, sacana e

cool

dos padrões e personalidades dos deuses gregos – que mistura Stanley Kubrick,

Erick von Daniken

,

Stan Lee

e um tanto de outras coisas –  Lob vê na trajetória do rei de Ítaca uma grande afinidade com o estilo sci-fi descolado da

Métal Hurlant

. Assim, transforma os deuses não em criaturas mágicas, mas em sujeitos avançados tecnologicamente e de mentalidade moderna, com visual

chic

e arrojado, comportamentos liberais e pós-modernos; figuras hedonistas, cínicas, junkies, devassas, dândis.

Netuno

Esta combinação robusta de talento e

timing

para se perceber como contar um clássico à luz de sua própria época (a HQ foi publicada originalmente em dois volumes, em 1974 e 75) faz do

Ulysses

de Pichard e Lob uma obra leve e deliciosamente rica, cercada de conceitos ousados para o design de personagens e para invenções retrofuturistas. Espertamente, Lob também limita a adaptação a apenas quatro cantos da

Odisseia

, tornando a jornada de retorno do herói grego menos cansativa (quem leu Homero sabe o quanto) que o original. Assim, a adaptação resume-se aos episódios com o ciclope Polifemo (aqui vertido num robô de Netuno), à perseguição empreedida pelo deus dos ventos Éolo (um sujeito gordo que voa numa poltrona metálica estilo Charles Xavier – em forma de bunda), à estadia de Ulisses e seus marinheiros na ilha da feiticeira Circe (aqui, além de feiticeira, uma diva lisérgica, experimentadora de radicais modalidades sexuais e psicotrópicas) e ao do chamado das sereias em alto mar.

Atena: belezinha

Cada um destes episódios é contado com encanto próprio, em quadros grandes e dinâmicos, quase como numa HQ de Jack Kirby ou John Buscema, mas ao mesmo tempo privilegiando ângulos pouco convencionais dos personagens, transbordando volúpia, olhares desejosos, pequenas sacanagens. O que também salta aos olhos é a criação de um conceito visual muito próprio e bem-sucedido para cada um dos deuses. Zeus, por exemplo, veste uma espécie de colant que poderia pertencer à Legião dos Super-Heróis, com olhos compenetrados e barba escura, jovial. A deusa Atena, aliada de Ulisses, mistura sua forte presença com irresistível ingenuidade, o que a tornam a personagem mais sensual da HQ, usando um enlouquecedor “tomara-que-caia” às avessas (!). O deus Netuno é uma criatura reptiliana, paranoica e mau-humorada, com ares de cientista, sempre coberto totalmente por um escafandro grosseirão. Já Hermes, o mensageiro do Olimpo, parece um astronauta da era de ouro, não deixando de se lembrar os super-heróis (Flash e Mercúrio) inspirados nele próprio.

Trips

Para finalizar, vale um comentário sobre o episódio de Circe, que achei o mais interessante e perturbador. No texto homérico, Circe é uma semideusa frívola e voluntariosa que vive cercada de ninfas em uma ilha, aonde Ulisses e os marinheiros vão parar após um naufrágio. Lá, ela os seduz e os transforma em escravos (e porcos!) usando poderes mágicos, seduzindo o rei grego e provocando nele o ímpeto para realizar sua primeira traição a Penélope, a rainha que o aguarda há 10 anos em Ítaca. Pichard e Lob se aproveitam do óbvio potencial erótico e moral deste episódio para trazer cenas fortes de erotismo e repulsa (os marinheiros pensando que são porcos, comendo a própria merda, por exemplo). Circe e as ninfas são vertidas em devassas de índole libertária e quase sádica, valorizando um jogo S&M, lembrando muito os quadrinhos de Crepax. É excepcional a entrada de Ulisses no quarto dos prazeres de Circe (aqui, uma morena, sempre seminua, de olhar gótico e lábios carnudos), uma instalação meio

Mary Shelley

com

Russ Meyer

dedicada à experimentação com todo tipo de entorpecentes. Convencido a se drogar indefinidamente e alojado em outro

momentum

do tempo e do espaço, Ulisses fica no quarto pelo período de um ano, em intermináveis

trips

e orgias com Circe, até que desperta, resolve fugir e encontra seus marinheiros prontos para partir sem seu rei. O que se segue é um brutal

cold turkey

para o rei de Ítaca, em cenas macabras e psicopáticas que revelam o grau da abstinência que desaba sobre o herói.

Cold turkey

A graça deste episódio é que, por assustador que seja – Pichard desenha os quadros à maneira dos “

Fillmore Posters

” de Rick Griffin –, ele faz essa conexão bem sacada e maliciosa entre os ideais absolutamente não-puritanos dos gregos antigos e a ascensão da uma contracultura nos anos 60/70, da qual a

Métal Hurlant

acabou se tornando parte importante. Dispensando a obrigação de fazer

uma leitura muito densa e simbólica da obra de Homero

,

Ulysses

retrata o lado leviano e sarcástico, de ironia cruel, escondido sob as tradições de

pathos

e tragédia associadas aos gregos antigos. Esta operação, divertida e primorosa, de transformação do clássico em

cool

, fará com que a obra de Pichard e Loeb seja sempre revisitada, já que seus temas históricos e seus futurismos não têm lugar preciso na nossa realidade. Nem sempre é tão simples quanto parece criar um mito moderno a partir de um mito clássico, e essa obra tem o mérito de sintetizar, deliciosamente, duas épocas em uma só força narrativa .

Circe: encaras?

Uma mulher sem medo e as contradições de Frank Miller

por Pedro Brandt

Já foi mais fácil gostar de Frank Miller. Primeiramente porque seus quadrinhos já foram muito melhores. E, segundo, porque sua pessoa pública, ao menos no passado, parecia mais simpática. E mais coerente. Para alguém que se disse desiludido com Hollywood depois da experiência traumática que foi escrever o roteiro de Robocop II, Miller não parece ter se importado com princípios quando fez sua horrenda adaptação cinematográfica do Spirit – personagem de seu velho amigo Will Eisner que, morto em 2005, não teve o desgosto de ver sua criação massacrada na tela de cinema.

Recentemente, o americano escreveu em seu blog sobre o movimento Occupy. O teor do texto é tão reacionário que cabe a pergunta se Miller realmente pensa aquilo tudo ou se suas palavras apenas expressam a frustração do artista com as críticas negativas recebidas por seu mais novo trabalho, Holy terror.

O no mínimo controverso Holy Terror

O rancor do discurso de Miller parece ir de encontro a muitas coisas pelas quais ele já lutou e defendeu. Existe uma pouco lembrada HQ dele lançada pela Dark Horse em 1997 chamada Tales to Offend, uma provocação ao Comics Code Authority, o famoso selo que regulava o conteúdo que poderia ser publicado em um quadrinho americano mainstream. Em Tales, FM apresenta uma história do universo de Sin City (Daddy’s little girl, publicada no Brasil em 2001 em uma one show, da editora Pandora) e duas histórias do anti-herói Lance Blastoof, um mercador da morte que viaja pela galáxia fazendo negócios escusos, nunca se preocupando com quaisquer consequências. O engraçado é que no último quadro da última história, Blastoff diz ao leitor “Nunca deixe o Sr. Oportunidade passar por vocês, crianças!”

O mais legal disso tudo é que o texto de Frank Miller sobre o Occupy acabou repercutindo bastante, fazendo com que outros profissionais dos quadrinhos se manifestassem sobre o assunto – o que acabou gerando a circulação desse tema entre o público leitor de quadrinhos.

A roteirista Ann Nocenti, por exemplo, escreveu um texto no qual expressa sua opinião sobre o Occupy. Uma visão, aliás, totalmente oposta à de Miller. O texto pode ser lido no site Bleeding Coole é, na verdade, apenas um trecho de uma entrevista maior (ainda não publicada na íntegra) na qual ela fala de vários assuntos, entre eles o Occupy e seu futuro trabalho na revista Green Arrow (Arqueiro Verde).

Parte do discurso de Ann segue abaixo:

Ann Nocenti

“Muitas pessoas têm problemas para entender o movimento Occupy porque ele é algo muito novo. É descentralizado. Não é um movimento de ‘protesto’. É amorfo, como a Internet. É, de certa forma, um estilo de vida. É apoiado por trabalhadores sindicalizados, policiais simpáticos à causa, idosos, ricos, pobres, a direita, a esquerda... e, cada vez mais, até pelo ‘1%’. Ele cruza todas as linhas de classe, raça, gênero e política. É claro que as rádios de direita estão cheia desses descrições do Occupy – ‘crianças mimadas, bufões, ralé’, etc. – porque as pessoas temem o que não entendem".

Para Ann, o Occupy não significa estar vendado, mas tomar o controle da própria vida: “Que algo está errado com este país é inegável. Que os alunos se graduem em direito com uma enorme dívida e ainda assim não possam conseguir um emprego é simplesmente errado. Que bons planos de saúde só possam ser comprados pelos ricos é simplesmente errado. Que despejar dinheiro em guerras que não podemos ‘ganhar’ é simplesmente errado. Passei um tempo no país da al-Qaeda. Dólares abastecem tudo; acabam até financiamento quartéis do Talibã. Winston Churchill disse há muito tempo que ‘olhos ocidentais nunca vão entender os caminhos da cultura tribal’. A Guerra às Drogas (*o programa do governo americano War on Drugs), a última e inútil ‘guerra’ que levou nosso país à falência, foi recentemente declarada um fracasso absoluto.

“É muito fácil e preguiçoso demais apenas criticar o que o movimento Occupy está fazendo. É muito mais difícil apoiar e tentar entender que este é um símbolo de uma natural mudança radical em nossa sociedade”.

Mulher sem medo

Talvez os leitores estejam se perguntando “quem diabos é Ann Nocenti?”. Não lembro de nenhum trabalho dela recente (até porque, segundo o próprio Bleeding Cool, ela passou os últimos anos mais próxima de projetos sociais do que dos quadrinhos), mas algumas das HQ escritas pela americana têm lugar cativo na minha memória afetiva.

Uma delas, inclusive, faz de certa forma um link com esse assunto do Occupy. É a edição de número 252 da revista Daredevil, publicada nos Estados Unidos em 1987 e no Brasil em 1989, dentro da edição 82 de Superaventuras Marvel. Detalhe curioso: o gibi em questão tem 66 páginas e duas histórias, ambas com roteiro de Nocenti, a do Demolidor e uma protagonizada por Longshot, personagem criado por ela (e idealizado visualmente por Arthur Adams). Imagino que isso tenha sido uma coincidência. Mas gosto de pensar que foi uma espécie de homenagem da equipe de quadrinhos da Editora Abril ao trabalho de Ann Nocenti – que naquela época fazia um baita sucesso com o Homem Sem Medo ao lado do desenhista John Romita Jr. (e não esqueçamos do veterano Al Williamson, responsável pela arte final).

Outra curiosidade: a edição original, americana, fazia parte de uma saga chamada Queda dos mutantes, que, em 1989, ainda não tinha chegado ao Brasil. Por isso, as referências à saga (como uma breve aparição do Arcanjo) não aparecem em Superaventuras Marvel 82.

A ilustração da capa – com o Demolidor em plena ação, no alto de uma pilha de corpos desfalecidos (uma referência às famosas pinups de Frank Frazetta) - e as chamadas “Blecaute em Nova Iorque!” e “Caos nas ruas!” dão uma indicação do que é a história. Intitulada Ataque, a trama apresenta Matt Murdock (advogado cego, alterego do Demolidor) guiando uma comunidade carente da Cozinha do Inferno (o bairro onde ele cresceu) até um hospital em uma noite sem luz em Nova York. Já com o uniforme do Demolidor, o herói e a Viúva Negra partem para as ruas para tentar controlar o tumulto e, especialmente, os arruaceiros mais perigosos.

Ao medo das pessoas do escuro somam-se outros temores. Em tempos de Guerra Fria, um bombardeio nuclear talvez fosse o maior deles. Como seria o mundo em meio aos destroços, sem lei e ordem? Balaço, integrante da galeria de inimigos do Demolidor, sabe que seria a situação ideal para causar o caos e fazer valer a lei da violência. “Em breve a cidade estará a nossos pés”, acredita o vilão.

Tal qual Will Eisner nas histórias do Spirit, Nocenti preenche a sua com personagens coadjuvantes que ajudam a contextualizar o cenário e, claro, contar outros dramas além daqueles dos heróis. Caim, por exemplo, é um adolescente confuso, dividido entre seguir os passos de Matt Murdock ou uma vida marginal. Enquanto isso, um presidiário anônimo (sem ligação com o restante da história) escapa da delegacia mas revê suas posições quando encontra um bebê abandonado em uma lata de lixo.

Sejam eles coadjuvantes ou protagonistas, os personagens são embebidos de humanidade pela roteirista. Até o Demolidor chega a perder a paciência e passar uma descompostura em Caim.  No fundo de uma história cheia de ação, tensão, drama e paranoia, Ann Nocenti encontra espaço para mostrar o lado mais iluminado do ser humano, aquele que, em meio às adversidades, busca um objetivo maior, coletivo e solidário.

"Approved by the Comics Code Authority"

HQ em um quadro: Cebolinha ensina "the way of the macho", por Maurício de Sousa ©





















Cebola dá o fora na Mônica com a típica evasiva masculina (Maurício de Sousa ©, 2011): Dia desses estava no supermercado e, na fila do caixa, me deparei, já atrasado, com a famosa "HQ mais vendida nas américas em 2011". Peguei aquele gibi lacrado, com um desenho do "Cebola" e da Mônica dando um beijo não tão molhado assim (tão de lábios fechados, pô!) sob afrodisíaco luar, e vi o preço: R$ 6,90. Parecia razoável por "Turma da Mônica Jovem - em estilo mangá", já que o acabamento é cuidadoso e tem 130 páginas. Pensei que, pra dar uma detonada, é preciso ler o material, mas nem vale a pena (detonar). De fato, a qualidade como HQ (mesmo pra tweens) é duvidosa e tive muita dificuldade em ler até o final (quem me conhece sabe que sou tolerante), mas o projeto editorial é bem pensado, a mercantilização do negócio segue a tendência correta e, em certos momentos, há que se dar o braço a torcer. 

Porém, estes dois quadros aí de cima, fora de qualquer planejamento, corrompem a programática de previsibilidade capitalista do Maurição. Afinal, vamos pensar juntos: "Turma da Mônica Jovem - em estilo mangá" deve ser uma das coisas mais supostamente politicamente corretas no mercado editorial. Você abre uma página e já lê: "Uma nova aluna do Colégio do Limoeiro mostra que problemas com o peso podem não estar na balança, mas na cabeça..." - ora, pela silhueta da personagem, ela deve estar tendo problemas na cabeça sim, mas com a cabeça de baixo do namorado. Mesmo assim, tem essa coisa inclusiva de classe média culpada, procurando abrir portas pra uma juventude saudável e companheira, que vem nos assombrando desde a estreia de "Malhação". Apesar de uma "token" gordinha, todo o resto é um bando de gente bonita (quando vi o "Tonhão da rua de baixo" versão teen, fiquei de cara), tipo "geração Z, classe A-B". Não tem um flácido, um feioso, uma magrela, um zarolho... e não vi nem cheiro de um negro, um gay ou um maconheiro. O Cascão tem toda pinta de maloqueiro, mas mesmo assim é um recalcado e domesticado, e as garotas gostam dele mesmo fedido. O cadeirante da turma (token) também parece um modelinho teen, Bieber-like

Então, por quê este Cebolinha - ops, Cebola - mandando um "eu não menti, eu omiti" parece uma falha nesse sistema? Ora, eu acho que o roteirista em questão não se deu conta de que essa é uma bravata masculina que nos acompanha desde nefastos e machistas tempos arcaicos, significando que atos reprováveis do ponto de vista feminino tornam-se menos reprováveis quando, ao invés de revertê-los em inverdades, simplesmente os omitimos. Sair pra uma cervejada, pular a cerca, não discutir uma nova proposta de trabalho, ir no cinema sozinho, flertar pela internet, voltar a fumar escondido, etc, tudo se torna justificável por meio deste imenso guarda-chuva evasivo que é o "eu não menti, eu omiti". Essa é a verdadeira razão para caras sacanas e caladões parecerem tão atraentes no imaginário feminino: eles não podem dizer nenhuma de suas verdades escrotas, então omitem tudo. Depois disso, Mônica, ainda vai querer continuar com esse babaca? A história desse chiste editorial já dá a deixa: vai se dar mal. Tem que ver isso aê. (CIM)