Especial editora Pipoca & Nanquim: 5 resenhas padrão RAIO

Semana passada publicamos uma entrevista reveladora com Alexandre Callari e Daniel Lopes do excelente PIPOCA & NANQUIM (canal e site), revelando tudo sobre o empreendimento da nova editora. Nossa relação com o Pipoca é antiga, começamos em períodos muito próximos (desde 2011, creio). Eu e o Pedro Brandt chegamos publicar alguns textos da Raio por lá. Nossos caminhos acabaram se separando (a Raio continua... bem... do tamanho de um tamanduá mirim, e o Pipoca é um dos maiores sites de quadrinhos do Brasil), mas nunca deixamos de admirar o empenho, erudição e paixão pelos quadrinhos desses caras. Confesso que às vezes vemos os vídeos do P&N na TV e realmente comendo pipoca, e admiramos profundamente a iniciativa da editora. Isso significa que vamos apenas pagar pau acriticamente para os lançamentos? Obviamente que não. Isso aqui é Raio Laser. Os quadrinhos do P&N são realmente muito criteriosos e responsa, mas nosso olhar procura ser clínico. Dito isso, seguem cinco resenhas RL para os cinco quadrinhos lançados pela editora do P&N até agora. (CIM)

por Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e Ciro I. Marcondes

Espadas e Bruxas - Esteban Maroto (Pipoca & Nanquim, 2017, 260 p.): Quando o assunto é “espada e feitiçaria” nas histórias em quadrinhos, é possível afirmar que o primeiro nome que vem à cabeça dos leitores – especialmente leitores brasileiros – é Conan. A popularidade alcançada pelo adorado bárbaro criado por Robert E. Howard por aqui – e não apenas – é tamanha que acaba por ofuscar outras iniciativas do gênero. E, especialmente na Europa, existe uma vastidão de HQs ambientadas nesse universo ou que, de uma maneira ou outra, compartilham de seus elementos – a exemplo dos clássicos belgas Thorgal

e Chninkel, dos mestres da BD Jean Van Hamme (roteiro) e Grzegorz Rosiński (arte), ou O Mercenário, do espanhol Vicente Segrelles. A revista Heavy Metal é outra publicação na qual “espada e feitiçaria” aparecem com frequência. E essas obras deixam claro que dentro desse subgênero cabe muita coisa, diferentes abordagens, temáticas e maneiras de contar histórias. E, nesse sentido, a leitura (ou releitura) das HQs do espanhol Esteban Maroto em Espadas e Bruxas, título inaugural da editora Pipoca & Nanquim, é bastante revelador.

Num dos textos presentes no álbum, assinado por Roy Thomas (roteirista fundamental para o sucesso de Conan), ele relembra da dificuldade de Maroto em se adaptar ao método Marvel de fazer quadrinhos, ou seja, o artista desenha a história a partir de um argumento e, posteriormente, os diálogos e textos são acrescentados. É de se imaginar que o espanhol também encarasse como um desafio o padrão de diagramação das páginas estabelecido pela Marvel, um contraste radical com os layouts imaginativos e fluidos característicos de seu trabalho.

Ainda que Conan, à sua própria maneira, faça parte do ambiente contracultural dos comics da década de 1970, narrativamente falando, suas histórias seguem formatos consagrados. E, pode-se dizer, visualmente são até um tanto quanto caretas em comparação às aventuras psicodélicas materializadas pela tinta de Esteban Maroto.

Se as histórias escritas por Robert E. Howard, Roy Thomas e companhia são elementos-chave, decisivas para a adesão de tantos leitores às HQs do bárbaro cimério, as ilustrações de Maroto são a senha para adentar não apenas em um ambiente onde convivem guerreiros, monstros, sortilégios mágicos e sensualíssimas donzelas em perigo, mas o caminho para se conectar com os recônditos da própria imaginação do leitor. Sua arte, de figuras esguias e insinuantes, desliza em cenários que parecem brotar do ar e desaparecer ao vento, em traços que evocam tanto os entalhes da gravura quanto os rococós art nouveau de Alphonse Mucha e os mistérios em preto e branco do expressionismo no cinema. O que Maroto oferece, propositalmente ou não, é uma viagem onírica, uma visita ao subconsciente, um afago à virilidade em seu estado bruto e juvenil. O que vale aqui é a fantasia enquanto se dá o momento da leitura. Tal qual um sonho.

Espadas e Bruxas compila as histórias dos personagens Wolff, Dax e Korsar, todos eles, bárbaros arquetípicos (e sem personalidade muito marcante) em busca de vingança, redenção ou o amor de uma bela mulher – o erotismo, elemento constante nessas HQs, é de deixar a imaginação fervilhando! Os antagonistas são forças vilanescas e sobrenaturais que só podem ser vencidas pela sagacidade ou pelo aço. Protagonistas à parte, a impressão é que estamos lendo as aventuras de um mesmo personagem. O que falta em originalidade ao roteiro (truncado em alguns momentos, especialmente nas primeiras histórias) é compensado em carisma. Afinal, o que temos ao longo das páginas é escapismo da melhor qualidade, um deleite visual para ler e reler.

Com capa dura, papel couché, textos contextualizando o autor e suas criações, Espadas e Bruxas faz jus ao talento do gigante Esteban Maroto. Com ele, a editora Pipoca & Nanquim chegou ao mercado em grande estilo. (PB)

Cannon – Wallace Wood (Pipoca & Nanquim, 2017, 274 p.): Wallace “Wally” Wood é um desses colossos que atravessaram eras nos quadrinhos. Com seu (mutável) estilo viril e cheio de movimento, ele parece presente em tudo que importa no que tange ao quadrinho americano: fez Spirit, Terry e os Piratas, Weird Science, MAD, Demolidor, entre mil outras coisas. Era um quase típico homem da “war generation”: lutou na grande guerra, era apaixonado por armas e mulheres. Matou-se com um tiro na cabeça em 1981.

Por estes e outros motivos, Wood é espécie de Hemingway dos quadrinhos: um cachorro louco à solta com sua arte vigorosa e implacável. Assim, o lançamento de Cannon – uma de suas HQs de guerra eróticas publicadas em jornais militares para os combatentes do Vietnã nos anos 70 – pelo Pipoca & Nanquim preenche uma das muitas lacunas no que concerne a Wally Wood no Brasil.

Cannon é um catatau de tiras executadas à infalível perfeição de Wood, e ao mesmo tempo um inventário de estereótipos da Guerra Fria e dos anos 70. O personagem-título é uma perfeita “máquina de matar” estilo “macho man” que trabalha como agente para o serviço secreto americano. Dentre as aventuras desse anti-herói estão coisas como sabotar um escroque e comuna governo latino-americano, desbaratar um grupo “terrorista” de hippies drogados (Cannon chega a mandar uma herô só pra “manter as aparências”) ou simplesmente dar umas porradas no marido corno de uma mulher que ele estava dando uns pega.

É tudo extremamente canastra, bem ao gosto exploitation dos 70’s, e não deixa de lembrar uma pornochanchada brazuca (mas com esteroides). De toda maneira, é inevitável pensar esta produção como um excelente modelo da mentalidade de seu tempo: rude, grosseira, ideologizada, polarizada. E ainda muito maneira porque tão autêntica.

Certo, canastrice. Uma HQ como Cannon serve a diversos propósitos: os soldados do Vietnã caíam no onanismo ao olhar as inegáveis curvas das mulheres de Wood (invariavelmente peladas); o fã de exploitation vai encontrar muita trasheira ideológica e sem-noçãozice embaladas num formato barato de quadrinhos (não aqui nessa edição luxuosa, é claro), mas super “cool”; quem gosta de quadrinho de guerra vai se deparar com um contexto interessante de representação da guerra fria, também ilustrado em arte narrativa de primeira; e o historiador/aficionado dos quadrinhos vai ter a oportunidade ver o lápis de Wood em um de seus auges.

Portanto, Cannon é um lançamento coringa, e quem gosta de HQs antigas (tiras especialmente) poderá adentrar num ritmo denso e dinâmico, dificilmente encontrável em tiras dos anos 30 e 40, por exemplo. Wood é famoso por ter predileção por angulações cinemáticas, e a qualidade pura de suas ilustrações é nada menos que espetacular. Poucos desenham explosões, tanques, aviões e até estilhaços com a personalidade e realismo que ele imprime aqui. Cada quadrinho seu parece feito com paixão e esmero. Cada um deles poderia ser emoldurado e fazer bonito.

É claro que alguns podem reclamar do conteúdo inegavelmente machista da HQ. Estamos falando de exploitation + exército americano + 70’s, e o machismo é meio que ingrediente inevitável desta fórmula. Porém, para além disso há aquela ambiguidade paradoxal de um momento em que ideias de progressismo e conservadorismo se alternavam com indistinção.

Como em um filme de Russ Meyer, as mulheres de Wood são violadas e humilhadas, mas ao mesmo tempo assumem as rédeas das tramas em diversas oportunidades, não são indefesas, rivalizam com os heróis “másculos”. A inspiração para estas vixens de metralhadora vem, logicamente, dos mestres e comparsas de Wood como Eisner em Spirit (e a fatale P’Gell) ou Milton Caniff em Steve Canyon (com a empoderada Miss Copper Calhoon). Companhias e influências que, claro, garantem a boa leitura desse gibi. (CIM)

Moby Dick – Chabouté (Pipoca & Nanquim, 2017, 250 p.): Adaptações em quadrinhos de obras originárias de outras mídias são, em geral, mais sem graça que picolé de chuchu. As inúmeras versões de filmes de super-heróis dos anos 80 e 90 – que, para início de conversa, já não eram grande coisa – estão aí para não me deixar mentir. Este tipo de subgênero (HQ de filme de herói) falhou tão fragorosamente que deixou de dar o ar de sua desgraça de uns tempos pra cá. Melhor sorte tiveram as adaptações de livros, que nos deram bons gibis como Cidade de Vidro (de David Mazzucchelli) e a série Parker (de Darwyn Cooke). 

Tais publicações mostraram as possibilidades de complementaridade entre as diferentes formas de expressão artística.  E isso nos leva ao caso em questão: Será que a Moby Dick do francês Chabouté, recém lançada pela editora Pipoca & Nanquim acrescenta algo à leitura do clássico do americano Herman Melville? E será que a pergunta anterior faz algum sentido?

Vale a pena comparar obras oriundas de mídias milenares – como a literatura – com aquelas provenientes dos irmãos temporãos – como os quadrinhos?

Acho que sim. Agora, para melhorar as condições de avaliação, vou comparar Chabouté não apenas com a obra-prima de Melville. Para que a coisa não fique muito desigual, também vou comparar gibi com gibi. Então o esquema vai ser o seguinte: cotejarei o Moby Dick de Chabouté com a obra original para, na sequência, analisar a HQ do francês em relação a outra adaptação. Escalei, para isso, ninguém menos que Bill Sienkiewicz (carinhosamente chamado de Bichoquébicho por alguns) e seu Moby Dick de 1990.

Para quem não sabe, o livro de Melville retrata a obsessão de um homem, o capitão Ahab, em sua sede de vingança contra o grande cachalote dos mares, Moby Dick, que lhe arrancara a perna esquerda em um encontro pretérito. Cego de ódio em sua caçada pelo animal, Ahab não se importa em colocar em risco o destino da tripulação do navio baleeiro Pequod, levada a reboque pela loucura de seu líder.

Não que obsessões sejam necessariamente ruins. Chabouté foi cabra macho ao topar adaptar o denso calhamaço de quinhentas páginas. O resultado foi um trabalho de fôlego, que revela determinação semelhante à do capitão do Pequod. Outra escolha arriscada, mas que deu certo, foi a de utilizar apenas o texto original nos balões e recordatórios. Embora por vezes arrastada, a narrativa consegue envolver o leitor na irreversível e fatídica viagem do grupo que embarcou – inconscientemente – no sonho/pesadelo de um único indivíduo.

Talvez por falta de espaço ou para aumentar o dinamismo do gibi, Chabouté praticamente passa em branco pelas partes descritivas do livro. Momento confessional aqui. Nunca me importei muito com baleias, mas depois de ler o romance original, me apaixonei pelo “bichinho”. E isso tem muito a ver com as partes em que Melville, estuda, com riqueza de detalhes, as diferenças entre tipos de baleia, métodos de corte da carne, aproveitamento da banha e do espermacete, condições de trabalho dos baleeiros e etc. Isso fez falta na HQ, que deixou de lado o teor enciclopédico da obra original. E, paradoxalmente, Chabouté dá uma escorregada ao investir numa pegada mais didática que artística em seu Moby Dick. Explico. Um problemas do gibi está em sua abordagem excessivamente fiel ao livro. Está tudo muito certinho e bonitinho. Faltou um pouco de transgressão aqui e acolá. Queria ver mais do DNA do francês ali, mas o sangue está ralinho.

Interessante que algumas das pilastras mestras do original não tenham sido inseridas, embora a HQ pretenda ser uma adaptação bastante respeitosa. Está ausente, por exemplo, o trecho inicial e memorável do livro, a clássica frase “Chame-me Ismael”. Lamentável, também, é a falta de menções ao Cachalote branco como o “Leviatã” dos mares, denominação repetida ad nauseam por Melville para projetar a imagem de poderio e terror incitados pelo personagem-título. E aqui chego ao ponto nevrálgico de minha análise: está ausente, no gibi, a sensação de grandiosidade épica tão disseminada no livro. Aí você poderá dizer: sim, mas são mídias diferentes e nem sempre é possível transmitir as mesmas emoções. Eu poderia até concordar contigo. Mas eis que aparece o Moby Dick de Bill Sienkiewicz para me convencer do contrário.

O gibi do americano tem um quinto das páginas (250) do Moby Dick de Chabouté. É menor, mas, incrivelmente, mais completo. Tem mais ousadia e liberdade, sendo, portanto, mais fiel ao estilo “faca nos dentes” de Melville. A HQ do francês é bem comportada, mas quadradinha. Já a publicação de Sienkiewicz é um prato cheio de formas retilíneas e anguladas, como de costume. É quadrado, mas desce redondo. O mergulho na obsessão de Ahab é mais palpável na construção das páginas e dos recordatórios lisérgicos de Sienkiewicz. Chabouté é muito linear. E obsessões não são lineares.

OK. Chabouté já levou bordoadas a torto e a direito nas comparações acima. Mas o gibi se segura independentemente das outras versões? Com certeza. Como obra única, o Moby Dick de Chabouté nada de braçada. É um grande gibi em vários sentidos. Extenso, imponente e bonito pra chuchu. A edição brasileira está muito bem cuidada e a capa dura preta fica uma beleza na estante.

Não acredito que adaptações devam ser idênticas à fonte inspiradora. Longe disso. Na minha modesta opinião, o negócio é manter-se fiel à essência do original. E esse é o grande pecado de Chabouté. Melville e Sienkiewicz focaram suas obsessões para parir publicações que exalam grandiosidade e pungência. Chabouté, por sua vez, foi mais burocrático e “by the book”. Uma pena. Ao final da leitura das obras dos americanos, senti-me em frangalhos, como que atingido por um vagalhão. Após ler a obra do francês, a sensação estava mais para mergulho em praia sem onda. É gostoso, mas não dá frio na barriga. (MMA)

O Moby Dick de "Bichoquébicho"

Beasts of Burden: Rituais Animais – Jill Thompson e Evan Dorkin (Pipoca & Nanquim, 2017, 186 p): Rituais macabros, satanismo, seitas, mortos-vivos. O luto da morte, almas presas entre dimensões, assassinatos brutais, evisceração, carnificina por toda parte. Estes elementos, que estão tão presentes em Beasts of Burden, podem destoar de uma primeira olhadela no luxuoso livro, que traz cândidas ilustrações da “cult” Jill Thompson (Os Perpétuos) e roteiros sagazes de Evan Dorkin, oriundo do mundo da animação. E é esta alquimia entre os elementos podreira (um horror nada ingênuo) e o aspecto inocente dos protagonistas (cães e gatos que se comunicam entre si), além das páginas pintadas com sutileza (que remetem a pintores como Matisse e Sorolla – e não é coincidência uma dose de “fauvismo” nestas aquarelas de animais) que fazem desta uma HQ bastante especial.

Burden é uma coleção de histórias estilo “clube de investigação”. Neste sentido, pende para o lado juvenil da coisa, indo da tradição que inclui os “Karas” (de Pedro Bandeira – alguém se lembra dessa tosqueira?), passando por Deu a Louca nos Monstros até coisas como Stranger Things. Nostalgia, terror, noites geladas no sofá vendo VHS. O “twist” ocorre quando Dorkin insere estes elementos propriamente escrotos e perturbadores, colocando as primeiras noções “fofas” em cheque.

Ou melhor, choque: anafilático, de preferência. Os autores conseguem extrair o medo com muito método. O grupo de cãezinhos “se envolvendo em altas confusões” é desenvolvido com consistência, rigor de caracterização e consegue nos comover quando o horror inevitavelmente chega, seja via cães mortos na estrada feitos zumbis, via sapos-demônios que engolem suas crias multiplicadas ou humanos satanistas com gatos-bruxos, golens e lobisomens que são seus parceiros. Ah! E há também os ratos fanáticos, “evangélicos”, assustadores também por razões outras que não apenas sua monstruosidade.

A delicadeza levemente psicodélica das pinturas de Thompson e o contraste com este teor sombrio fazem de Burden uma obra propriamente pós-moderna. Ou seja: encontro de rios que são influências de gêneros e épocas distintas, destilados num acabamento extremamente convidativo e profissional (tanto das histórias em si quanto da edição). Coqueluche pra ganhar Eisner, eu diria (coisa que, de fato, Burden ganhou em algumas ocasiões). Poderia reclamar de leve assepsia do material, como se fosse apenas planejado e pouco visceral em sua composição (apesar de sê-lo no grafismo).

Thompson também é muito boa como narradora dentro do quadro, mas um tanto engessada quando passa a trabalhar entre eles. Ou seja: pós-moderno na concepção, mas clássico demais na forma. Enfim, são detalhes de uma análise chata. Certamente não é um produto revolucionário ou que caiba numa antologia muito exigente de quadrinhos, mas enquanto isso que é (“produto”), ratifica a qualidade cinemática (uma adaptação seria bem-vinda – mas do tema e não da forma) e o jeito nostálgico com que lida com suas influências (Stephen King, Neil Gaiman, etc.). Quadrinho pra quem gosta de bicho (daí você faz a avaliação). (CIM)

Um Pequeno Assassinato

- Alan Moore e Oscar Zárate (Pipoca & Nanquim, 2017, 116 p.): Ser uma pessoa é uma ação trabalhosa e, muitas vezes, ambígua. Afortunados aqueles que vêem com clareza a linha definidora das suas personalidades e seguem, sem maiores problemas, o caminho que designaram. Para a maioria restante, o futuro é tão nebuloso quanto o passado e toda decisão é capaz de gerar uma crise de personalidade que beira o fatal. A graphic novel Um Pequeno Assassinato, lançamento mais recente da editora Pipoca & Nanquim, é uma marcha áspera, deslumbrante - e um tanto quanto enfadonha - pelas trilhas que o publicitário Timothy Hole se vê forçado a fazer.

Esta HQ é fruto da parceria entre Alan Moore e o quadrinista argentino residente em Londres Oscar Zárate. O trabalho deles em dupla já havia embarcado em terras brasileiras na antologia A Vida Secreta de Londres, organizada por Zárate e publicada pela Veneta em 2016. Escritor e desenhista trabalharam no conto "Eu Continuo Voltando", que fecha a edição. Mas o que temos nesta belíssima graphic novel - publicada com o já famoso esmero que o pessoal do Pipoca & Nanquim dedica a seu catálogo - é o primeiro fruto do encontro dos dois.

Na graphic conhecemos Timothy Hole, um publicitário britânico residente em Nova York que se encontra num desses momentos de decisão nebulosos da vida, quando tentar se esforçar para dar forma ao futuro acaba trazendo à tona julgamentos pessoais sobre ações tomadas no passado. No caso de Hole, seu recente sucesso na publicidade lhe rendeu a conta de um renomado refrigerante que intenciona entrar no recém aberto mercado russo.

A história se passa no final dos anos 80, e o dilema de Hole termina por servir como uma grande metáfora para a situação do ocidente na virada da década - um momento marcado pela morte de grandes utopias mundiais e pela presença cada vez mais encorpada de um liberalismo agressivo que encontra na ex-primeira ministra Margaret Thatcher seu símbolo mais proeminente. O peso desse contexto se faz sentir em toda a narrativa: nos recordatórios carregados de Moore, cheios de um cínico ranço yuppie que constrói um Timothy Hole estrategicamente despercebido de suas decisões duvidosas, e também no colorido sufocante e febril das tintas de Zárate.

Voltando a Hole, como resultado de sua paranoia em torno de como agir diante deste desafio profissional, o publicitário começa a perceber à sua volta a presença de um garoto, que o persegue em seu trajeto de Nova York a Londres e de Londres à sua cidade natal de Shefield (a cidade vermelha, como é conhecida por sua população tradicionalmente comunista). A paranoia asfixiante da história também se espalha pelo tempo, em uma narrativa fragmentada que remonta o percurso de Hole desde 1954 até 1989.

A identidade do garoto não chega a ser um mistério, muito pelo contrário. Um Pequeno Assassinato não é um thriller que gira em torno de seus mistérios. Trata-se de uma narrativa simbólica que, embora visualmente instigante, vai derrapar no platonismo de uma premissa enfadonha e um psicologismo piegas. É inegável que os autores tecem uma obra de peso, que assumiu corajosamente a pretensão de analisar a morte do século XX, porém esta mesma pretensão dá uma consistência lamacenta e carregada que parece se esforçar em dar uma significância por demais dramática para um dilema pessoal.

Sendo a graphic novel um dos primeiros trabalho de Moore após construir sua carreira com os super-heróis, e auxiliado por Zárate a produzir uma obra irrestritamente adulta, a impressão que fica é a de que o melodrama típico dos comics transformou uma narrativa mundana (em comparação com a fantasia desvairada dos super-heróis) em uma inflamada e pomposa saga. Se o contexto for deixado de lado, o embate de Hole com sua situação perde muito de sua força.

Apesar disso, não se pode dizer que Um Pequeno Assassinato é uma obra sem valor. A construção da narrativa e da ambientação é primorosa. Embora um tanto maniqueístas, as reflexões do personagem sobre suas ações reverberam com bastante naturalidade e podem oferecer exercício expiatório muito bem-vindo para muitos na mesma situação. A edição brasileira é um primor gráfico com uma atenção a detalhes na adaptação da arte e dos textos que salta aos olhos. Outro destaque deve ser dado ainda ao ambiente publicitário, emprego-símbolo da juventude yuppie dos anos 80. Zárate, como um ex-empregado no ramo da propaganda (um dado autobiográfico importante, já que o roteiro foi escrito a quatro mãos) formou uma sinergia muito rica e verossímil com o texto de Alan Moore.

Se por um lado o roteirista inglês expõe, em fragmentos de conversas casuais, o processo publicitário de “assassinar” a arte colocando-a a favor do dinheiro (transformar a cena da escadaria de Odessa em campanha para carros de bebê ou buscar em Lolita de Nabokov ideias para vender refrigerante), por outro vemos a expressiva arte de Zárate produzir uma verdadeira carta de amor ao estilo de cartazistas milaneses do início do sec. XX, especialmente o brilhante artista Leonetto Cappiello. Estes cartazes, as primeiras peças publicitárias produzidas em massa, marcavam o ponto de cisma em que arte e ofício se separam. A partir daí, arte e publicidade passam a conviver em uma tumultuada relação simbiótica na qual as histórias em quadrinhos vão ser apenas uma das suas muitas manifestações. Sem maniqueísmos e sem assassinatos. (LN)

A arte publicitária de Leonetto Cappiello

PIPOCA & NANQUIM SOLTA O VERBO!

PIPOCA & NANQUIM SOLTA O VERBO!

Contabilizando a quantidade de conteúdo – textos e, especialmente, vídeos – do site/canal Pipoca & Nanquim, é perceptível uma dedicação exemplar ao projeto. O nível da qualidade textual e o gosto diferenciado nas escolhas dos assuntos abordados está a anos luz da média da internet brasileira – uma raridade, pode-se dizer. O carismático trio formado por Alexandre Callari, Bruno Zago e Daniel Lopes, ainda por cima, estreou em 2017 a editora Pipoca & Nanquim. Uma conquista não apenas deles, mas dos leitores brasileiros interessados em quadrinhos que fujam do convencional.

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"Herói ou Ameaça?" O Homem-Aranha pela ótica do Clarim Diário

por Marco Antônio Collares

Todos nós sabemos o imenso sucesso do personagem Homem-Aranha da Marvel Comics e todos nós conhecemos alguns dos motivos desse sucesso perante o público como um todo. O que muitos dos fãs não percebem é o quanto esse sucesso relaciona-se a um dos mais renomados antagonistas do herói mascarado, o editor-chefe do jornal Clarim Diário, J.J. Jameson, que passa a maior parte de seu tempo tentando desmerecer o herói mascarado, evidenciando o que seria a verdadeira face do Homem-Aranha, não como o herói que procura afirmar em seus salvamentos do dia a dia, mas como um mero criminoso mascarado. Se o Abutre, o Dr. Octopus e o Duende Verde são ameaças físicas ao aracnídeo, o Clarim Diário é uma ameaça constante e simbólica, que exerce mais prejuízos à vida do herói aracnídeo do que todos os seus vilões reunidos. 

O Homem-Aranha da Marvel Comics de Stan Lee e Steve Ditko

A Marvel Comics é uma das maiores empresas estadunidenses do ramo de super-heróis, tanto em vendas como em popularidade. Em uma obra de referência sobre a trajetória da empresa, Marvel Comics: a História Secreta, o historiador-jornalista Sean Howe especifica alguns aspectos acerca dos objetivos da empresa nos anos 1960, momento em que a editora foi rearticulada pelo escritor, roteirista e editor, Stan Lee e pelo desenhista e criador, Jack Kirby, ambos sob a tutela de Martin Goodman, seu dono na época.

A partir desse momento, a Marvel Comics (outrora chamada de Timely Comics) se tornou uma espécie de "Casa das Ideias” (chamada de Marvel Bullpen por Stan Lee) de artistas, quadrinistas e novos talentos, inovando o gênero dos super-heróis nos EUA e no mundo. 

Até mesmo um “método Marvel” foi articulado no meio quadrinístico de super-heróis a partir de então. Tratar-se-ia de um método segundo o qual os desenhos seriam elaborados de improviso a partir de um roteiro geral superficial, sendo que somente ao final do processo de criação das imagens em sequência é que seriam alocados os balões de diálogos e os recordatórios, um fato que impulsionava a liberdade criativa das histórias em quadrinhos da editora.

O sucesso da editora não ocorreu somente em função dessa liberdade criativa, mas também porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas vinculadas ao contexto histórico, cultural, político e social de sua época e de seus próprios leitores, na medida em que tais artistas também eram leitores e fãs de quadrinhos de super-heróis, gerando uma forte identidade nos receptores de bens culturais em relação aos heróis adolescentes criados e veiculados pela editora. 

Os super-heróis Marvel se tornaram cada vez mais aproximados, em suas atitudes e ideias, das pessoas comuns e, como quaisquer pessoas, tais personagens tinham problemas semelhantes aos do homem comum nas grandes metrópoles dos EUA, o que era evidenciado nas mídias da época. O próprio Stan Lee, uma espécie de garoto propaganda da empresa, reiterava o diferencial da editora em relação à sua maior concorrente, a DC Comics, berço de personagens icônicos do porte de Superman e Batman.

Segundo Howe, a revista Voice da época chegou a se pronunciar em um artigo sobre a Marvel nos seguintes termos: “Os gibis Marvel são os primeiros da história que conseguem envolver um escapista pós-adolescente. Porque os gibis Marvel são os primeiros a suscitar, mesmo que metaforicamente, o Mundo Real”.

Foi nesse contexto específico, no qual a empresa buscava ampliar seu público leitor, passando a captar não somente o público infanto-juvenil padrão de quadrinhos de super-heróis, mas, igualmente, os jovens universitários, que o Homem-Aranha foi criado.

Peter Parker era - tal como escrevera Stan Lee na edição de sua primeira aparição - “o herói que podia ser você”. Suas narrativas trouxeram um sentido novo de realismo aos super-heróis, visto que se tratava de um adolescente nerd que sofria de bullying na escola, enquanto vivia com a tia idosa em um subúrbio da cidade de Nova York, um jovem tímido e retraído que, segundo os recordatórios de suas primeiras narrativas, representava “o cara mais caxias do colégio Midtown”.

Criado como uma espécie de arquétipo de seus próprios leitores, Peter Parker/Homem-Aranha estava muito distante dos atléticos super-heróis clássicos da DC e da própria Marvel, sendo um jovem magro, desengonçado e impopular no dia a dia, mas que, quando vergava a máscara e a fantasia de herói, se tornava descontraído e descolado, meio que uma dupla personificação dos leitores: o que eles seriam normalmente em seus cotidianos na escola e o que eles gostariam de ser.

A revista Amazing Fantasy número 15 trouxe a primeira aparição do herói aracnídeo, mais especificamente em junho de 1962, mostrando desde o início um jovem Peter Parker rejeitado pelos colegas, em um melodrama grandioso e intenso influenciado tanto pela personalidade intimista e minimalista do artista Steve Ditko como pela conhecida tagarelice do escritor e vendedor de ideias, Stan Lee.

De certa forma, essa ambivalência na personalidade do herói chamou a atenção de imediato dos leitores da editora, visto que o Homem-Aranha parecia ser o amálgama não somente dos anseios dos jovens, mas também da personalidade de seus dois criadores: o tímido Ditko enquanto Parker e o extrovertido Stan Lee sob a máscara de Homem-Aranha.

Em meio a essa ambivalência criativa, Peter Parker era constantemente tomado pela culpa em razão de não ter ajudado seu tio Ben quando o mesmo foi atacado (e assassinado) por um ladrão, tornando-se um vigilante mascarado que buscava ajudar a vizinhança (a cidade como um todo), ao mesmo tempo em que ganhava trocados para ajudar nas despesas de casa da tia viúva, quando da venda das fotos do Homem-Aranha na luta contra o crime. A capa da primeira edição em que o personagem foi representado colocou exatamente essa ambivalência nos balões e recordatórios, com um Homem-Aranha suspenso nos céus da cidade, afirmando não ser mais somente o tímido Peter Parker, mas também um incrível super-herói mascarado. 

O sucesso foi imediato e logo a redação da Marvel estava repleta de cartas de leitores que se identificavam com Peter Parker, não somente por sua personalidade instigante e ambivalente, mas igualmente por seu empreendimento de salvar pessoas ao mesmo tempo em que conseguia ganhos pessoais com tal fato. Foi nesse contexto que o Clarim Diário foi inserido como o cenário onde Peter Parker tentava vender as fotos de si mesmo como herói, tendo que conviver então com o universo jornalístico.

Nesse contexto, Parker teria de lidar com um de seus mais notórios “antagonistas”, o editor-chefe e dono do Clarim Diário, J.J. Jameson, um homem grosseiro e rabugento que comprava as fotos trazidas pelo jovem fotógrafo, mas que considerava o vigilante retratado uma verdadeira ameaça para a sociedade, intencionando evidenciar nas capas do jornal que o Homem-Aranha, apesar de espetacular, era mais um criminoso mascarado. 

Se Parker mostrava fotos de um salvamento ou de si mesmo combatendo o crime, lá estava J.J, tentando direcionar a notícia de modo a evidenciar que o verdadeiro criminoso por trás de todo o cenário retratado era o próprio Homem-Aranha, sendo esse um dos motes principais das narrativas do personagem, ou seja, o da relação entre a notícia de ações altruístas do Homem-Aranha e as interferências editoriais do dono do jornal que publicava e distorcia estas respectivas ações.

O Homem-Aranha segundo o Clarim Diário de J.J. Jameson

Na primeira página de uma das primeiras edições envolvendo uma notícia sobre o Homem-Aranha no Clarim Diário, logo após uma luta entre o herói mascarado com seu arqui-inimigo Duende Verde, aparece um risonho John Jonah Jameson comemorando o que seria a fuga “covarde” do herói aracnídeo. 

O editor-chefe do Clarim Diário procura demonstrar, com a notícia e com a chamada do editorial de página do jornal, que o Homem-Aranha é um verdadeiro covarde, o que seria por si somente uma construção do acontecimento, visto que na luta travada entre os dois antagonistas (na edição anterior), o Homem-Aranha afastou o vilão dos transeuntes, que vivenciaram a batalha como sua aparente fuga. Este é, portanto, um exemplo de interpretação do fato a partir da visão “distorcida” do editor-chefe do jornal, que nutre verdadeira aversão ao vigilante mascarado e que procura desmerecê-lo perante a opinião pública. 

De certa forma, a personalidade e a trajetória de Jameson explicam muito de seu desprezo pelo Homem-Aranha e mesmo por outros vigilantes mascarados. A explicação inicial diz respeito ao fato de sua esposa ter sido assassinada por um homem mascarado, levando-o a ter uma genuína aversão por todos aqueles que escondem a verdadeira identidade, considerando que só o faziam por motivos escusos. Existe, portanto um lado pretensamente verdadeiro no personagem, ainda que ambíguo para suas atitudes de intervenções editoriais acerca dos fatos envolvendo o Homem-Aranha.

O editor-chefe e dono do Clarim Diário possui também um orgulho genuíno de John, seu filho astronauta (e também o super-vilão Homem-Lobo), que para ele seria o "verdadeiro" herói americano, outro motivo que o leva a constantemente se opor à notoriedade dos vigilantes mascarados. Nesse ponto, existe outra ambiguidade em suas atitudes, na medida em que J.J. (como é conhecido) também procura vender jornais através da notoriedade desses mesmos mascarados, sendo o Homem-Aranha uma das figuras mais utilizadas nas capas de seu jornal (em razão, claro, dessa premissa ser parte integrante das narrativas em quadrinhos do personagem). As imagens abaixo mostram esse outro lado do editor-chefe do Clarim Diário, o lado empreendedor de um homem oportunista no que tange à utilização de fatos e fotos envolvendo o Homem-Aranha.

As imagens mostram Peter Parker vendendo fotos de si mesmo em ações como Homem-Aranha para J.J. Jameson, enquanto esse último desvela a mencionada ambivalência entre a aversão que sente pelo vigilante mascarado (chamado por ele de “ameaça pública”) e seus interesses econômicos, na medida em que as fotos do aracnídeo aumentam as vendas do jornal.

O Homem-Aranha é representado como a ameaça pública que J.J. Jameson quer evidenciar, sendo igualmente o personagem de capa que vende muitas tiragens do Clarim Diário, seja por suas ações fantásticas no combate ao crime, seja pela qualidade das imagens trazidas por Parker, visto que ele tira fotos dele mesmo em ação, como se estivesse na cena onde tudo transcorreu. 

Alguns exemplos interessantes de como J.J. Jameson intenciona destruir a imagem do Homem-Aranha mediante a opinião pública a partir de sua influência no jornal podem ser evidenciadas logo abaixo, em algumas imagens de narrativas em quadrinhos do Homem-Aranha da década de 1960, sob a pena do argumentista Stan Lee e do desenhista Steve Ditko.

No primeiro exemplo, J.J. aparece inicialmente satisfeito ante a possibilidade de o Homem-Aranha ser acusado por um assalto a banco, logo desiludido por um secretário, que lhe informa sobre o fato do herói ter aparecido no mencionado banco para combater uma gangue que atuava de forma criminosa no local, levando a face do editor do Clarim Diário a mudar completamente, da euforia para a completa desilusão. J.J não cria, portanto, as notícias, não inventa fatos que não ocorreram, o que explica essa mencionada desilusão, visto que ele realmente acredita ser o Homem-Aranha um criminoso.

Na segunda imagem, J.J está radiante diante do uniforme do Homem-Aranha, entregue por um anônimo após encontrá-lo jogado em uma lata de lixo. Na narrativa em questão, Peter Parker quase desistiu de sua vida de super-herói devido as notícias depreciativas do Clarim Diário sobre seu alter ego. Por fim, a última sequência, com um J.J evidenciando que seu principal objetivo é destruir a “ameaça” representada pelo Homem-Aranha, nem que seja “a última coisa que faça na vida”.

Diversas notícias e editoriais direcionados ou mesmo escritos por J.J. buscam destruir ou desmerecer a imagem do Homem-Aranha perante a opinião pública de Nova York, independentemente das ações altruístas do vigilante. De certa forma, a máquina de escrever de Jameson é sua arma pessoal para demonstrar que a cidade deveria se insurgir contra o vigilante mascarado, seja para prendê-lo, processá-lo ou simplesmente extirpar sua figura da sociedade novaiorquina. As duas imagens que se seguem evidenciam que o trabalho de J.J como jornalista é nitidamente laborioso e mais, que seu jornal reponde à voz da opinião pública, sendo a arma da população contra a ação ilegal de vigilantes mascarados do porte do Homem-Aranha.

Jameson mostra-se como um jornalista dedicado e quase absorvido pela sua missão de revelar a verdadeira face do Homem-Aranha, como que expressando uma voz honesta no combate ao vigilantismo. Peter Parker, por sua vez, é constantemente surpreendido pelas capas do Clarim Diário contra sua figura de herói mascarado, sempre se questionando acerca dos motivos que levam o editor-chefe do jornal a não acreditar em suas ações altruístas no combate ao crime.

Não é incomum também, em narrativas subsequentes, que argumentistas e desenhistas das tramas do Homem-Aranha tragam debates entre J.J e seu principal editor, Joe Robertson, que usualmente questiona o primeiro em relação a matérias e editoriais depreciativos relacionados ao vigilante aracnídeo. Nessas conversas, J.J se coloca usualmente preocupado com os fatos a serem noticiados, não reconhecendo em si um jornalista que distorce notícias, o que desvela uma atitude mais complexa do que a expressão do simples jornalismo marrom ou mesmo de meras intervenções editoriais com objetivos pessoais regados a “mau caratismo”.

Na imagem abaixo um exemplo interessante e representativo, desta vez sob a pena do desenhista John Romita. Na página elencada é representado um debate entre J.J e Joe Robertson referente à quase overdose por cocaína de Harry Osborn, filho do vilão Duende Verde e amigo de Peter Parker nas narrativas do Homem-Aranha dos anos 1970. 

Desde as primeiras narrativas em que apareceu, Joe Robertson foi representado como um contraponto a J.J. Jameson no Clarim Diário, servindo como válvula de escape para que as tramas do Homem-Aranha mostrem o dia a dia de um jornal sério e comprometido com fatos jornalísticos verídicos. O próprio Homem-Aranha se vale do editor do jornal para pedir informações sobre fatos envolvendo criminosos ou outros fatos do cotidiano da cidade, confiando em Robertson como aquele que sempre noticiará a verdade.

Em outra passagem, Robertson e J.J. Jameson debatem sobre a atuação do Homem Aranha e de outro personagem vigilante, o Justiceiro, diante de um sequestro, intencionando saber de Peter Parker o que suas fotos poderiam revelar sobre o envolvimento dos dois vigilantes de Nova York na solução do supracitado crime.

Novamente Robertson é o contraponto de um J.J ambivalente entre a verdade dos fatos e a intenção de responsabilizar o Homem-Aranha por tudo que pode dar errado no sequestro em questão. As intervenções editoriais de J.J referentes a fatos envolvendo os vigilantes mascarados passam notadamente pela tentativa de desvelar a verdade, mas também por suas conversas constantes com Robertson e claro, pelos sentimentos negativos em relação ao herói aracnídeo. 

Seria verossímil supormos que os argumentistas das histórias em quadrinhos do Homem-Aranha simplesmente escolhessem o mais cômodo acerca das intervenções de J.J em seu jornal, como se ele fosse um mero exemplo de alguém mal intencionado. Em alguns momentos e mesmo nas tramas iniciais de Stan Lee e Steve Ditko, essa era a visão usual representada nas narrativas, mas com o tempo, J.J começou a operar entre posturas cada vez mais ambivalentes e interessantes. 

Por um lado, ele se via costumeiramente preocupado com a veracidade dos fatos narrados, principalmente em suas muitas conversas com Joe Robertson. Por outro, ele se via na posição de dono de um jornal de grande tiragem, pensando nas vendas diárias, o que o levava a comprar fotos do Homem-Aranha para incrementar os lucros.

Por fim, J.J era representado com sua intenção puramente emocional de colocar fim à carreira do Homem-Aranha, ainda que sustentasse para si mesmo que se tratava de uma atitude correta e altruísta de bom jornalista que procurava desvelar a verdade dos fatos, visto que ele acreditava piamente ser o vigilante mascarado um mero criminoso bancando o herói.

No filme do Homem-Aranha de 2002, dirigido por Sam Raimi e estrelado por Tobey Maguire, J.J foi representado de forma extremamente cômica, quase que um arquétipo irônico dessa representação ambivalente do personagem dos quadrinhos. Mesmo assim, o mote do personagem na grande tela estava envolto pelo questionamento da verdadeira natureza do Homem-Aranha, tal como pode ser demonstrado na imagem logo abaixo, quando a figura do vigilante aracnídeo aparece acima do jargão clássico de Jameson: "Spider-Man: Hero or Menace"? 

Sem dúvida que as intervenções editoriais de J.J, no que concerne a fatos envolvendo o Homem-Aranha, não promovem a pura distorção dos fatos jornalísticos, mas talvez um questionamento honesto quanto à natureza do vigilantismo do personagem principal das narrativas. Isso diz algo sobre a atividade jornalística em si, pelo menos se cotejarmos as teorizações elencadas anteriormente acerca dessa atividade.

Mesmo assim, devemos evidenciar que estamos tratando aqui de representações alegóricas de argumentistas e desenhistas de HQs, e o que esses artistas achavam do universo jornalístico. Talvez as narrativas contivessem certos exageros artísticos propositais sobre condutas tipificadas e estereotipadas em um jornal. No caso das supracitadas narrativas, talvez tudo não passasse de uma intenção proposital de colocar Peter Parker/Homem-Aranha frente a um antagonista poderoso: as mídias e os periódicos impressos.

Especial Editora Mino #3: Kick out the Jams!

Desovando aqui mais quatro sensacionais quadrinhos lançados pela Mino! Let's kick some! (CIM)

por Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

BAR – O Miolo Frito (Mino, 2017, 176 p.): Para Jürgen Habermas, a esfera pública é a dimensão onde os grandes (e pequenos) temas de interesse público seriam aberta e democraticamente debatidos. Aos meus olhos embriagados, os bares sempre pareceram uma possibilidade plausível de locus para este conceito. E quanto mais pé sujo, mais habermasiano – até porque em bar metido a besta as pessoas não vão para discutir ou conversar, mas para dar pinta e aparecer.

Falo desses botecos de quinta categoria com alguma propriedade. Passei boa parte da minha infância dormindo em suas mesas, enquanto meus pais tomavam dúzias de geladas. Mal adentrei a adolescência e já tinha a dura tarefa de buscar meu velho na madrugada amiga. Chegava lá e a corrupção ganhava corpo: uma coxinha, um picolé, um refri, um torresmo. Meu pai, que adorava bater papo, estava sempre rodeado de amigos, falando levemente sobre todo e qualquer assunto. Tudo isso para dizer que reconheço em Bar uma respeitável autoridade sobre o tema.

O livrão é obra do Miolo Frito, coletivo formado por Breno Ferreira, Benson Chin, Thiago A. M. S. e Adriano Rampazzo – e neste Bar, puxaram mais uma cadeira para Shun Izumi caber na mesa. Fazem parte dessa novíssima geração do quadrinho brasileiro que povoa as feiras invocadas para leitores adultos – e não estamos falando aqui de eventos nerds, fique bem claro. Juntos, produzem uma revista que carrega o nome do grupo, com algumas edições lançadas. Têm um pé fincado no underground e outro no design. Na Miolo Frito, lançam mão de bacanices como capas serigrafadas, uso de tinta pantone e por aí vai. Tudo isso sem descambar para o universo do fanzine gourmet. Palmas para eles.

A abordagem presente na Miolo Frito dá as caras em Bar: capa dura, lombada com costura aparente, impressão em ciano sobre papel pólen. Esse acabamento luxuoso, contudo, seria maneirismo da pior espécie se a HQ propriamente dita fosse artificial. Não é o caso. Diz o release da edição que as histórias narradas possuem como inspiração um bar do bairro Bela Vista, São Paulo. Eu acredito. Apesar de não ser uma narrativa que busque um reflexo exato do dito mundo real, o que se vê ao longo de suas 176 páginas é uma verossímil tradução da fauna que habita um típico pé sujo: Baratas, ratos, clientes assíduos, humor chulo, dramas humanos, tretas, banheiros imundos, prostitutas, policiais sebosos, gordura na parede. Em diversos momentos, doses duplas de realismo fantástico encharcam as páginas do livro.

Tal e qual o cotidiano de um boteco vagabundo é formado pelo entrelaçar das micronarrativas que ali desembocam, Bar é a tapeçaria criada a partir de pequenas HQs que têm como palco o estabelecimento comercial administrado por um certo Pedrão. Interessante notar que cada HQ possui cadência, estilo e eficácia próprias. Algumas funcionam muito bem. Outras, nem tanto. Mas não é assim a vida em um bar?

Habermas ressurge: apesar da clara distinção de traços, os autores se recusam a assinar as histórias individualmente. Nesta esfera pública não interessa qualquer tipo de hierarquização entre seus agentes. Eles, inclusive, gozaram de liberdade para dar pitaco e meter pinga um no trabalho do outro. Em determinados momentos, os desenhos são mais negligentes que bebum na sarjeta. O resultado, todavia, porta uma interessante contradição: a HQ é heterogênea, ao mesmo tempo que coesa.

Bar não é uma obra-prima. Bares nunca são lugares para obras-primas. Por outro lado, é uma história em quadrinhos visceral, honesta e cheia de alma – coisa que você não encontra naquele botequim que tenta replicar a Lapa dentro de um shopping center de qualquer capital brasileira. Se estiver em busca de um quadrinho meticulosamente elaborado, leia por sua conta e risco. Entretanto, se assim como eu você já lascou o dente comendo torresmo, vai se identificar com o gibi.

Agora, me dá licença que eu preciso ir ali na esquina molhar a palavra. Ninguém é de ferro... (MJR)

Cão – Breno Ferreira (Mino, 2017): Fugindo da vertente humorística característica das tiras publicadas em Cabuloso Suco Gástrico, Breno Ferreira dedica-se a contar os causos do matador Diogo da Rocha Figueira, o Dioguinho, assassino de aluguel que barbarizou o sertão paulista no final do século 19. Baseando-se na história real de um sujeito que vivia para matar, Breno utiliza um estilo de desenho mais seco e visceral que reflete a opressão de uma época de brutalidade e violência, não exclusiva dos tempos modernos. Trata-se de traço rude e belo, quase xilográfico, que remete a clássicos antigos e recentes do quadrinho brasileiro, como Estórias Gerais, de Flávio Colin, e a Trilogia do Acidente, de Lourenço Mutarelli.

Outra escolha acertada de Breno foi a pesquisa afiada da linguagem dos sertanejos da terra da garoa. É quase uma viagem no tempo. O linguajar típico do interior paulistano é praticamente um personagem e transporta o leitor para dentro daquela realidade em que as armas de fogo ditavam as regras. Elogiável também foi a opção de retratar personagem e temas essencialmente brasileiros. Breno dá – assim – continuidade à salutar tendência de valorizar elementos nacionais, observada em quadrinhos tão interessantes e distintos como Tungstênio, de Marcello Quintanilha e Bando de Dois, de Danilo Beyruth. (MMA)

Uma Noite em L’Enfer - Davi Calil (Mino, 2016, 192 p.): A vida boêmia de grandes nomes das artes plásticas de meados do século 19/começo do século 20 inspirou quadrinhos interessantíssimos, como O Bordel das Musas, do iugoslavo Gradimir Smudja (também autor de Vincent & Van Gogh), e Salon, do americano Nick Bertozzi. Lançada em julho de 2016, Uma Noite em L’Enfer, do paulista Davi Calil, junta-se, por afinidade e méritos, a essa lista.

O autor serve-se de liberdade poética para, sob a égide de Noite na Taverna, do escritor Álvares de Azevedo, imaginar um encontro entre os pintores Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Toulouse-Lautrec, Gustav Klimt e Francisco de Goya numa mesa de bar – o cabaré parisiense L’Enfer, famoso por sua fachada (uma assustadora boca escancarada) e por conta da decoração que remete ao subterrâneo reino do Capiroto – onde, servidos de muito absinto, se engajam numa competição de contação de histórias macabras. O vencedor leva como prêmio um crânio que, supostamente, teria sido do poeta italiano Dante Alighieri. Todos recorrem a relatos biográficos (ou quase) de amor e morte, que passam por sexo, perversões, luxúria e traição. “Nós vivemos em um arco-íris de caos”, resume, numa participação especial, o pintor Paul Cézanne.

Davi Calil é – como revelam os protagonistas na obra em questão – um habilidoso narrador. Também profissional da animação, ele imprime um ritmo de desenho animado em sua HQ. Aliás, uma das produções das quais Calil participou é justamente Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas), exibida pelo Cartoon Network. A série, assim como, de certa forma, também Uma Noite em L’Enfer, passa pelo humor e pelo terror (no caso do desenho animado, para crianças, algo bem light).

Livre de qualquer compromisso com o público infantil, o autor mesmo assim dosou a mão na hora de imprimir terror na HQ. Calil busca um equilíbrio entre luz e sombras e, mesmo as histórias pedindo uma aproximação muito maior com as trevas – equações exemplarmente alcançadas, por exemplo, nas obras Pinóquio, de Winshluss, e Três Sombras, de Cyril Pedrosa –, tende mais para o lado da suavidade. 

Mas não se engane: Uma Noite em L’Enfer é um quadrinho divertido e instigante, desde o argumento (com direito a surpresinha no desfecho) até – e especialmente – as ilustrações. (PB)

Sshhhh! – Jason (Mino, 2017, 128 p.): Uma linguagem silenciosa (ou “muda”) tem o mesmo poder

 de expressão do que uma com diálogos, palavras e sons? Depois de passar mais de sete anos estudando cinema silencioso, acho que posso arriscar a dizer que esse tipo de expressão, com toda sua imensa gama de variações, não processa o conhecimento da mesma forma que aquele acompanhado por palavras. Não que uma linguagem supere a outra, mas estão em pontos diferentes da curva, sintonizam em diferentes frequências. A linguagem muda, bem menos logocêntrica, alcança instâncias recônditas do entendimento que as palavras, um tanto centrípetas, perdem em sua simbologia. Para um filósofo como Henri Bergson, a imagem é a própria matéria que constitui a realidade.

Quadrinhos só com imagens nos remetem a este“despertar” ontológico.

É mais ou menos a isso que estas dez histórias mudas do inigualável quadrinista norueguês Jason remetem. Com narrativas simples numa grade 2x3 e muita economia em determinados detalhes comuns em quadrinhos (palavras são detalhes para alguém como Jason), ele nos leva à jornada sentimental de um relacionamento, ao encontro com a morte, ao encontro com o diabo, à dilacerante dor de ser rejeitado, à “dor e delícia” de ser pai e filho, à sensação de se tornar invisível socialmente, à sensação de se tornar muito visível socialmente, ao vazio da riqueza sem propósito, a um sem-número de implicações existenciais. E isso ocorre porque elas se processam em silêncio, como se fosse aquele íntimo encontro consigo próprio, um mundo onde a real é apenas você pensando e olhando as coisas.

Estes quadrinhos funcionam como alegorias em seu sentido mais restrito, adorniano: são imagens em deslocamento que traçam parábolas. Jason enxuga sua representação ao essencial em dispositivos muito simples de contar histórias, mas rigorosamente originais e resgatando o máximo do que a pura visualidade pode oferecer. Referências de quem sabe o que está fazendo (Hergé, Spiegelman, Herriman) abundam, e esta obra não deixa de ser um prisma de erudição por sua linguagem minimalista que faz parecer fácil fazer quadrinhos. Tão longe, tão perto! Uma das coisas mais brilhantes no nosso mercado atualmente. (CIM)   

Rapidinhas Raio Laser #08

A "Rapidinhas" (antiga "Quicky") é uma das seções mais queridas da Raio Laser. Como procedemos para fazer este aparentemente aleatório apanhado de publicações, zines, graphic novels e o que mais vier (nacionais) ser transformado numa fornada fresquinha de resenhas ao gosto (ou nem tanto) do freguês? Bem, a ideia é frequentar muitas feiras de publicações, treinar o olho para coisas interessantes e, principalmente, comprar este material. É muito importante frisar que, para se conhecer com intimidade a cena indie nacional, é preciso se tornar consumidor dela. Às vezes forçamos a barra (esse "Menina Infinito" de 2008 tá prestes a prescrever aqui, mas caiu no nosso colo!), mas faz parte da iconoclastia da Raio. Dito isso, seguem também os links para as outras sete Rapidinhas (para rememorar) (CIM):

Raio Laser's Comics' Quicky #01

Raio Laser's Comics' Quicky #02

Raio Laser's Comics' Quicky #03

Rapidinhas Raio Laser #04

Rapidinhas Raio Laser #05

Rapidinhas Raio Laser #06

Rapidinhas Raio Laser #07

E nosso endereço, caso você queira enviar seu material e aparecer aqui:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Marcos Maciel de Almeida, Ciro I. Marcondes e Pedro Brandt

Menina Infinito – Fábio Lyra (Desiderata, 2008, 117 p.): Bebendo forte na bica (eu disse bica) de Daniel Clowes, Fábio Lyra produziu uma HQ memorável, construindo um universo particular em que habitam exemplares autênticos da fauna das grandes cidades. Centrado nas histórias de Mônica (não confundir com a dentuça) e sua turma, o gibi mostra, de forma bastante afiada, o cotidiano de jovens que alçaram temas como liberdade e música a um patamar prioritário em suas vidas. É aquele tipo de gente que se permite viver sem arroz, feijão e grana do aluguel, desde que sobre algum para gastar com bandas, vinis e agitos roqueiros. E no dia a dia dessa galera não falta, é claro, paquera e pegação. Essa habilidade em retratar – de modo bastante natural – diversos aspectos da juventude certamente não escapou ao olhar atento dos editores da Maurício de Sousa Produções. Não foi à toa, portanto, que Fábio foi escolhido para fazer uma história com a turma do Rolo, na revista MSP50.

Menina Infinito tem 3 histórias e 120 páginas de bons personagens, diálogos redondos e “causos” bizarramente reais. Tem também...ah, deixa pra lá. Nem sei porque estou dando esse cartaz para o Fábio Lyra. Esse espaço do Rapidinhas é destinado a publicações independentes, indisponíveis nas prateleiras das grandes lojas e livrarias virtuais. E este não é definitivamente o caso aqui, já que Menina Infinito foi lançada pela Editora Desiderata, posteriormente comprada pela Ediouro. E, além do mais, Fábio Lyra não precisa da minha promoção, afinal já está pronto para dominar o mundo.  PS: uma parte deste quadrinho teve uma outra leitura aqui na Raio Laser. (MMA)

Billy Jackson – Cau Gomez e Victor Mascarenhas (RV Cultura e Arte, 2013, 56 p.): Capaz de refletir sobre a cultura do consumo cultural e do star system americano, além de criar engajamento emocional com seu personagem principal, este Billy Jackson é um achado. O trabalho de ilustração desta HQ de Salvador (saiu em 2013 e é algo que resgatei do encalhe aqui), nas mãos do veterano Cau Gomez (em giz), é por si só deslumbrante: expressões, olhos, movimentos e caracterizações são lúgubres, assombradas, talvez inspiradas ainda no videoclipe de “Thriller”. Com a ajuda de Cau Gomez, fica mais fácil de se deixar impressionar pela história, tragicômica, de um menino negro, pobre e abandonado pela vida que encontra na personificação em tempo integral de Michael Jackson um tipo exagerado e delirante de sublimação das sucessivas humilhações de sua existência. Auxiliando toda essa mistura de expressionismo com neorrealismo está uma história consistente elaborada pelo escritor Victor Mascarenhas.

Billy Jackson procura entender os processos dos párias e dos outsiders em um mundo conflitivo que exclui e odeia a diferença. Como aqui a realidade é a perifa de Salvador, o humor rapidamente pende para o horror e a HQ junta bem a ambição artística com o alarde social. Porém, como tudo relacionado à indústria cultural, ficamos sem poder concluir se Michael foi a salvação ou a danação do protagonista. Billy Jackson ecoa os efeitos colaterais do capitalismo global na periferia do mundo (tipo Neymar ser um herói na China), em toda a sua ambiguidade. É um gibi de leitura rápida, em formato grande, que privilegia os arroubos da arte. Talvez o tema merecesse uma graphic mais volumosa e um pouco menos caricatural, mas foi uma tacada certeira de qualquer forma. (CIM)

Terry & Loo – O que contam os astros – Eduardo Calazans (Incoerente Coletivo, 2017, 64 p.): Coletânea de tirinhas produzidas por Eduardo Calazans, integrante do Incoerente Coletivo, grupo de jovens autores do Distrito Federal. Terry é a Terra, nosso planeta, e Loo é seu satélite, a Lua. Nas conversas entre os corpos celestes – que ganham feições bastante simpáticas no traço eficiente de Calazans – orbitam temas como relacionamentos, questões existenciais, ecologia, carreira profissional e, claro, astronomia – com citações de cultura pop aqui e ali. A intenção, como deixa claro o roteirista/desenhista no editorial, é “contar histórias que tocassem mais pessoas de uma forma mais ampla, mas reflexiva. E, acima de tudo, que meu primo de 7 anos pudesse ler e se interessar”. Algumas tirinhas não destoariam do que se publica em um jornal diário. Outras estão mais para o rodapé de livros escolares de ciência. Ainda que, no geral, as gags sejam um tanto previsíveis – e, sabemos, a surpresa ou como lidamos com o desfecho de algo previsivelmente previsível é determinante para o sucesso ou o fracasso de uma tirinha –, o material reunido aqui sugere que a produção de Terry & Loo está em evolução e demostra que, no conjunto, o autor tem fôlego para a realização contínua. Fica, no final das contas, aquela curiosidade de “o que virá depois?”. (PB)

É Doce Morrer no Mar – Animma de Mattos (Independente, 2016, 35 p.): É doce morrer no mar? Tenho minhas dúvidas, depois de quase ter afogado na praia alguns anos atrás. Se bem que, se fosse num gibi da Animma de Mattos, acho que o passamento seria mais agradável. Digo isso, porque o gibi dela, uma viagem onírica sobre a garota que se sente mais em casa no mar que em terra firme, transpira sutileza. Diferentemente de narrativas cartesianas, É doce morrer no mar é experiência sensorial, materializada pela leveza da aquarela monocromática – mas nunca monótona – do azul. Escolha editorial bastante apropriada, porque a autora soube brincar com os vários tons da cor da melancolia para fazer o leitor mergulhar na imensidão de matizes azulados presentes no oceano. Outro acerto foi o fluxo letárgico da narrativa, em ritmo hipnótico, como naqueles – infelizmente raros – dias que ficamos assistindo à maré bater preguiçosamente na praia.

A protagonista da história, dividida entre dois mundos, procura, sem muito sucesso, entender o vagalhão de emoções que ronda sua mente. E as inquietações da personagem parecem transpor as páginas do gibi, chegando a questionar os limites da linguagem escrita e falada. Esta limitação fica evidente diante das dificuldades da personagem no momento em que tenta transmitir sensações por meio de palavras que ainda não existem, e talvez nunca venham a existir. Embora merecesse tratamento gráfico mais caprichado, a HQ de Animma cativa pela delicadeza e surrealismo. (MMA)

Entardecer dos Mortos – Tiago Holsi (Céleblo Comics, 2015, 92 p.): Quem me apresentou aos quadrinhos do Tiago Holsi foi ninguém menos que a lenda viva do centro-oeste, Márcio Jr. O que não tenho certeza é se ele sabia que odeio narrativas de zumbi em geral. Provavelmente tudo que se tem para dizer a partir da mitologia zumbi foi dito em A Noite dos Mortos-Vivos. O resto é só reciclagem enfadonha. Mas vejam esse quadrinista goiano Tiago Holsi: ele escreve uma história de zumbis graciosa e otimista, como se este tema fosse apadrinhado pela Disney ou um filme dirigido por Stanley Donen. Tinha tudo para ser um produto derivativo e palha. Porém, Entardecer dos Mortos felizmente oferece mais que isso: é quadrinho de aventura e humor infanto-juvenil fazendo piadas mórbidas (mas bem light), bastante decente. Poderia ser um musical. E Tiago não está muito interessado em obedecer a quaisquer dogmas do gênero zumbi, o que conta a seu favor. Quer apenas usá-los como pessoas normais com detalhes “arrepiantes”, sempre dentro de uma ingenuidade que chega a tornar o quadrinho um pouco insosso. Lembra a “Turma do Arrepio”.

Porém, devo dizer que achei o protagonista Romeu Homero (dã) extremamente simpático e não me surpreenderia se Entardecer dos Mortos se tornasse uma animação estilo “Mágico de Oz encontra Tim Burton” nas mãos de algum mago das telas brasileiro. Tiago Holsi vai na esteira de outros quadrinistas brasileiros com traço afiado, mas de roteiros esquecíveis, como Gustavo Duarte e Guilherme de Sousa. Mas também ainda acho que Holsi guarda, encalacrado no seu inconsciente, um humor negro mais cabulosão que pode fazê-lo dar passos pra frente em sua evolução enquanto quadrinista. Entardecer é muito bem acabado, bem resolvido, tem potencial comercial e atinge várias idades. Não são poucos méritos (especialmente pra um produto de zumbi!), mas a gente sempre quer mais. (CIM)

Verônica – João B. Godoi (Independente, 2017, 18 p.): Quem nunca teve uma paixão virtual? Tecnicamente nunca tive, já que no meu tempo de solteiro não existia esse esquema de Tinder, Facebook e etc. Se bem que, confesso, tive algumas aventuras – em sua maioria grandes roubadas - via Disque-Amizade, espécie de chat room dos anos 80. Este serviço nada mais era que uma linha telefônica cruzada, para a qual as pessoas ligavam por motivos variados, mas principalmente zoação e pegação. Bem, seja por meio telefônico ou por fibra ótica, o fato é que essa ferramenta para conhecer pessoas sempre envolveu certo mistério e risco, especialmente porque nunca sabíamos – até hoje não sabemos com certeza – quem está do outro lado da linha. Este é o mote do gibi Verônica, de João B. Godoi.

A revista conta a história de Naldo – um estudante de letras louco para viver uma nova aventura – e seus grandes amigos, Pedro e Maya. Naldo tem uma paixão platônica por Maya, talvez mais por falta de opções que por nutrir um sentimento genuíno. Até que, num belo dia, Naldo conhece, via Tinder, Verônica, que rapidamente se torna sua namorada virtual. E o que poderia ser motivo de alegria vira transtorno quando a garota do título enrola Naldo para evitar o contato presencial. E aí reside o grande enigma. Quem é Verônica? É mulher? É homem? Ou apenas pegadinha?

O gibi de Godoi é bem caprichado. Dá para ver que ele não economizou esforços para lançar um produto bacana, dadas as limitações de um orçamento independente. O desenho tem pontos altos, nos corpos e cenários, e baixos, nos rostos e expressões faciais. Também há algumas falhas de revisão ortográfica, mas nada que comprometa. Talvez o grande senão do gibi seja o final bastante aberto. Gosto de desfechos que deixem margem para interpretação, mas senti falta de mais pistas para a resolução da identidade de Verônica. O negócio agora é torcer para que haja uma continuação, já que não saber o fim de uma história pode ser tão frustrante como ficar sem conhecer quem era aquela pessoa tão interessante do outro lado do telefone, seja ele conexão discada ou 4G. (MMA)

Rapidíssimas (zines): O Cão e a Mão do Coração – Ranulfo Medeiros e Juliano Henrique (Seres Soros, 2017, 16 p.): Há boa intenção aqui. Narrativa muda, com desdobramentos interessantes, sobre um cão que aparentemente absorve algo da personalidade das pessoas quando lambe suas feridas. Porém, os desenhos em computador, muito amadores, são um tanto desagradáveis, e o domínio da narrativa um tanto primário. Fica difícil de entender e de engolir. (CIM)

Bear Trap e FoxTrot – A.C. Foxten (Independente, 2014 e 2015, 18 p.): A quadrinista Alena Foxten voltou a Brasília após passar vários anos no Japão. Lá ela aprimorou sua técnica e intimidade com o mangá de terror e trouxe de volta dois zines interessantes no gênero. É engraçado que estilo do traço de Foxten é leve, amistoso e bem pensado narrativamente (Bear Trap é também muda), mas as histórias são assustadoras! Paradoxos do mangá, que aparece aqui com bastante autenticidade. As duas histórias são boas (uma bizarra lenda russa e outra sobre licantropia), e padecem do mesmo problema: traço ainda imperfeito, com domínio um tanto “frio” de movimentos e expressões. Em FoxTrot, os diálogos são didáticos demais. Mesmo assim, apesar de algo afetadas, são histórias implacáveis e com finais devastadores. Prova de que essa autora está aí para chegar em algum lugar. (CIM)

Rapidinhas Raio Laser #07

Dizem que o quadrinho brasileiro nunca viveu momento tão bom. Pode ser que sim, pelo menos no quesito variedade. Afinal, tem de tudo um pouco. E, pasmem, encontrar muitas opções de gibis nacionais virou lugar comum, graças à disseminação de “livrarias Shopping Center” e mega lojas virtuais. Mas essa maior proliferação dos quadrinhos made in Brazil não ocorreu da noite pro dia. Medalhões da HQ nacional tiveram de comer muito arroz com feijão nas chamadas publicações independentes para conseguir seu lugar ao sol. E se a variedade dá as cartas nos gibis publicados por editoras de pequeno, médio e até grande porte, como Cia das Letras, essa diversidade representa apenas uma gota no oceano na cena de publicações indie. Basta dar uma volta em qualquer feira de HQ que se preze para perceber que a galera está lançando gibi de tudo quanto é tipo. E os gibis e zines analisados nesta nova edição do Rapidinhas não são exceção. Espere encontrar por aqui uma gama de narrativas sobre paixões não correspondidas, underground musical e pancadaria urbana gratuita, entre outras drogas. Como vaticinou James Kochalka em seu The Horrible Truth About Comics, o negócio é se expressar, e os manos e as minas arregaçaram as mangas e colocaram o lápis para trabalhar. Mais que isso: deixaram-se arrebatar pela liberdade que o formato DIY permite. O resultado foi – e continuará sendo – visceral.

Esta seleção do material independente que recebemos/compramos é uma excelente oportunidade de conhecer um pouco dos monstros que habitam o inconsciente coletivo de quadrinistas profissionais e amadores que escolheram a nona arte dar seu recado. As razões pelas quais fizeram isso são variadas. Sede de fama, desejo de exorcizar demônios pessoais, falta do que fazer e etc. Não importa. O que vale é que esses caras tiveram coragem de dar a cara a tapa. Sorte nossa.

Gostaria de dizer que a escolha do material resenhado aqui segue critérios altamente rigorosos, mas estaria mentindo. A verdade é que a equipe do Raio Laser mete a mão na pilha de publicações recebidas e separa aquilo que parece mais apetitoso. Às vezes rolam algumas indigestões, mas faz parte. Ok, podem criticar nossos métodos, mas eles são democráticos. Nesta semana e na próxima (tivemos de dividir esta por dois!), vamos nos debruçar sobre gibis da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiás, Fortaleza e Deus sabe onde. Tem coisa nova e coisa velha. Tem gibi gourmet e tem zine com página xerocada. Lemos todos com carinho. (MMA)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070.

por Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

Seres Urbanos: Antologia do Quadrinho Underground Cearense – Vários (SEBO, 2015, 100 p.): Essa aqui estávamos devendo há um tempo, mas valeu a espera. O Márcio Jr já havia dado um pitaco aqui. Para quem não sabe, “Seres Urbanos” é o nome de um coletivo de zineiros de Fortaleza dos anos 90. Foram oito anos de produções praticamente ininterruptas e esta antologia reúne material representativo de dezenas de zines, exposições, colunas em jornais e outras manifestações em que eles estiveram metidos. A publicação foi financiada pela Secretaria de Cultura do Governo do Ceará, que fez seu papel para preservar a atualidade desta incrível coleção sobre os hábitos, ansiedades, gostos (o zeitgeist, enfim) de uma cultura alternativa nos anos 90.

Esses sujeitos eram zineiros roots, sempre na correria para publicar um volume desproporcional de coisas que vendiam a preço de custo, distribuíam na entrada de shows, enviavam pelo correio, movimentavam a cena da cidade. A antologia ainda vem com um rico texto estilo “reportagem por entrevistas” nas páginas finais, direcionando influências e o momento histórico de cada autor e cada gênero abordado nos zines. O principal quadrinista a publicar era Weaver Lima, um cara ligado também à música alternativa de Fortaleza – bandas como Velouria e Second Come... alguém se lembra dessas porras? Até mesmo a nossa saudosa Low Dream está em grande estima nas páginas de Seres Urbanos - , com influência da Revista Animal, Love and Rockets, Angeli, etc. Além de ser um ilustrador carismático, Weaver era bom em escrever ótimas histórias de típicas festinhas e showzinhos de rock dos 90’s Brasil afora, com a tradicional caracterização blasé e decadentista da juventude underground da época (quando era chique fazer bandas alternativas que cantavam em inglês, tipo Pin Ups). Virou um prestigiado artista plástico.

Fora Weaver, a antologia apresenta um sortidão de gêneros zinescos que marcaram época (arte postal, colagens, charges, cartazes) e também da produção dos outros caras. Lupin, por exemplo, faz um estilo “hebdomadaire francês”, inserindo citações de poetas e filósofos em quadrinhos de deboche. O estilo realista, com diálogos e situações das ruas de Fortaleza, de Mychel TC, é uma das melhores contribuições. Leitura urbana brazuca infalível, pra Quintanilha nenhum botar defeito. Em geral esta produção não fica atrás do que era apresentado por outros estados, e dá amostra do que foi o trampo underground brasileiro entre os anos 80 e 90, especialmente nas febris manufaturas desses zines, que eram a internet da época, e que não deixam a desejar em relação ao que se faz hoje na web, tanto em qualidade quanto em quantidade. Uma parte enorme deste material se perdeu para sempre.

Seres Urbanos tem sabor udi-grudi, traz à tona os esnobes anos 90, discute com propriedade as agruras e angústias desta época, que não são tão diferentes das de hoje. Apesar do humor caústico, esses quadrinhos se pautavam na alienação da juventude, no vazio existencial, em preocupações como o caos urbano e o aquecimento global (na época, “efeito estufa”). Porém, não eram histéricos, os zines procuravam sentido em meio ao caos e não eram escorados em ativismo de fachada. O olhar desamparado e misterioso do personagem da capa coloca margem para a diferença entre uma cultura de “teenage angst” pré-internet e o zine-de-luxo-pra-designer que se faz hoje. Aproveito então a oportunidade para lembrar que em Brasília também temos nossa versão do “zine responsa com a cabeça enfiada na baixaria e rock and roll”: Tupanzine, o fanzine mais antigo em atividade no DF. (CIM)

O Ateneu, Crônica de SaudadesMazô (Independente, 2014, 23 p.): Em tom altamente pessoal, Mazô narra parte de suas memórias afetivas escolares, passadas no tradicionalíssimo Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Vencedor do prêmio de HQ independente Dente de ouro de 2016, o gibi convida o leitor a viajar pelo Ateneu particular de Mazô. Contendo colagens de fotos, bilhetes e outros objetos pessoais de sua vida escolar, a autora constrói espécie de diário público de sua vida privada. Mas não espere encontrar fofocas quentes ou detalhes sórdidos. Mazô faz uso de uma linguagem – narrativa e visual – que tanto mostra quanto esconde. Os detalhes estão lá, e apenas poucos enturmados irão compreender o real significado das imagens. Não que seja o caso de gibi feito apenas para aqueles da panelinha, mas sim para indicar que algumas lembranças só dizem respeito àqueles que as viveram.

O traço de Mazô é bastante experimental e ela brinca bastante com esboços. São ilustrações aparentemente simples, mas que se mostram rebuscadas, especialmente quando se analisa a riqueza das expressões faciais dos personagens. Sabe aquele esquema do “menos é mais”? É bem por aí. Afinal, artistas que se propõem a serem econômicos no desenho têm de se ater ao que realmente importa. Mantendo essa pegada parcimoniosa, Mazô capricha na composição de cores, que é feita primordialmente de bege escuro, preto e branco. Aliás, as imagens brancas são todas pintadas com um efeito que lembra giz de quadro negro, o que foi uma grande sacada.

Ao decidir revelar um pouco de seu passado estudantil, Mazô mostra que as experiências dos jovens são universais, por mais particulares que possam parecer. (MMA)

5/5 Working Class Heroes – Dalts, Go Carvalho e Magenta King (Bimbo Groovy, 2013, 70 p.): Lembra de Changeman, Flashman e assemelhados? Lembra aquele esquema de 5 jovens com uniformes parecidos, que se juntam para sentar o braço em monstros mais bizarros que perigosos? Então, esta é a pegada aqui. Só que, desta vez, os criadores resolveram levar a coisa a sério. Ou quase. Embora a intenção seja mostrar como seria a realidade de um grupo desse tipo no mundo real, os personagens principais usam uniformes que remetem a bichinhos fofinhos, como que para demonstrar o ridículo inerente a esse universo. No gibi, conhecemos um pouco da superequipe 5/5, grupo de heróis-celebridade que jurou proteger o mundo em troca de fama e contratos milionários. São três histórias que abordam diferentes aspectos da equipe.

Na primeira, “O Novato”, de Dalts, somos apresentados a um cidadão que consegue obter o traje de um dos 5/5. É uma história surpreendente, tanto pela qualidade do roteiro quanto pela arte. Dalts revela um talento impressionante, pelo grande domínio do ritmo da narrativa e pela plasticidade e estilo quase sujos que privilegiam cenas de ação vertiginosas.  Dalts parece gritar: “Ei, mercado americano, olhe para mim, já estou pronto”. E é realmente uma pena que ele ainda não tenha tomado os comics de assalto, já que é um quadrinista de responsa. Na segunda – e mais fraca história do gibi – “The Man Machine”, de Go Carvalho, conhecemos os funcionários de apoio da 5/5, numa história metida a engraçadinha, mas que só consegue fazer passar raiva. Finalmente, em “Os 5 Novatos”, Magenta King chega chutando bundas num conto em que 5 aspirantes a integrantes do 5/5 participam de um reality show que testa suas habilidades no campo de batalha. Magenta, assim como Dalts, tem uma arte de cair o queixo, e usa retícula, sombreamento e hachuras numa combinação original e desconcertante. Se Dalts lembra Travis Charest em começo de carreira, Magenta emula a visceralidade de Tom Raney.

O melhor elogio que posso dar a 5/5 é dizer que Dalts e Magenta souberam utilizar o formato independente para despirocar geral. Sem amarras ou censura, esses caras deixaram seus demônios correrem pelados na montanha e o resultado foi duca. Mesmo explorando gênero aparentemente esgotado como o dos supergrupos japoneses, os dois mostraram que, quando se tem lenha para queimar, até a centelha decadente dos seriados de grupo pode voltar a fumegar. (MMA)

Mata-me, ó Deus – Marcos Guerra, Marcos Garcia e Carlos Alberto (K-ótica, 2015, 36 p.): a boa capa de Mata-me, ó Deus promete uma HQ de alta potência onírico-lisérgica.  A promessa, infelizmente, não se cumpre. Estão lá as quase obrigatórias referências a Alejandro Jodorowsky, mas sem a atmosfera violenta e insólita típica do mago chileno. O roteiro é simples e auto-explicativo, sobrando pouca margem de manobra para o leitor participar mais ativamente da construção da narrativa – algo típico do gênero em questão. Restaria então à arte de Marcos Garcia (veterano do fanzinato nacional, responsável pelo antológico Acunha, publicado nos anos 1980) e Carlos Alberto promover as epifanias metafísicas desejadas. Não é o que acontece. Apesar dos desenhos bonitos (salta aos olhos a influência do seminal Watson Portela), a estrutura gráfica está muito mais próxima de um comic book pré-Image do que das BDs europeias.

Mata-me, ó Deus pode encontrar ressonância junto a públicos ligados ao consumo de plantas de poder. Todavia, para um leitor exclusivamente em busca de uma boa HQ, a magia não acontece. (E confesso ter ficado bastante impressionado com a depilação da personagem feminina, uma das poucas sobreviventes de um mundo devastado.) (MJR)

CeruleanCatharina Baltar (Independente, 2016, 80 p.): Fiquei “enamorado” desse quadrinho da Catharina Baltar (daqui de Brasília) nas duas últimas feiras Dente e resolvi tomar coragem e adquirir um volume da última vez. O que me atraiu: a excelente paleta de cores azul-lilás-turquesa (“cerulean”) pintada em aquarelas. Não importa muito que Cerulean seja um quadrinho indie tolinho, misturado com mangá shoujo, sobre uma sereia que fica encantada com um lifestyle millenial. Um mundo geek de redes sociais, board games e mangás. Não me importa que, das 80 páginas do livro, apenas 40 comportem a história (sendo o resto, extras). Importa mesmo é que, apesar de ter um tom adolescente, Cerulean consegue discutir a identidade e a solidão do jovem pós-moderno com alguma propriedade. Isso por si só a transforma em uma boa HQ juvenil. A sereia do título, afinal de contas, decide adotar o excêntrico mundo dos otakus e ser para sempre uma forasteira, algo que reflete um pouco a realidade dos otakus reais. Aos poucos, a despeito da antipatia inicial, fui me entregando ao propósito e à mentalidade deste quadrinho: como qualquer mangá comercial, ele tem algo de inventivo e excitante, e ao mesmo tempo algo de descartável. Se você tem dúvidas quanto à história, no entanto, pode ficar apenas com a arte extremamente carismática, com um tratamento de cores raro no quadrinho brasileiro contemporâneo. Sem dúvida uma aquisição significativa para o cenário de quadrinhos da capital. (CIM)

Encruzilhada – Marcelo d’Salete (Barba Negra, 2011, 120 p.): Este Encruzilhada é meu primeiro contato com o trabalho do quadrinista d’Salete. Sim, anos atrasado, e por isso mesmo quis começar com um trabalho fundacional da sua obra, algo que definiu seu estilo e imaginário. Paulistano, o autor se vale das contradições brutais da grande metrópole para expor, assim mesmo metendo o dedo na ferida, a desigualdade social e racial em diversos tipos de interações tipicamente brasileiras. Mas se engana quem pensa que isso vem assim, despejado ou descuidado, como se fosse um mero panfleto. Primeiro, o discurso possui muitas nuances e sutilezas, e o quadrinista se vale de diversos tipos de transições entre os quadros para construir mais que simplesmente uma história, mas também ambientação, odor, temperatura, aspecto. Em segundo lugar, como ele bem evidencia tirando sarro de Cidade de Deus, a violência está (muito) presente em suas histórias, mas não é o foco de sua análise. Não se trata de cosmética aqui. Sua análise social atinge aspectos psicológicos, econômicos e afetivos.

Além disso, d’Salete é também um esteta. Encruzilhada são contos curtos que vislumbram situações de ostensivo constrangimento à população negra. Um menor infrator é espancado pela polícia. Uma vida é tirada às custas de um celular que roda de mão em mão. Um DVD pirata é roubado e um homem preso por engano. A violência, porém, está nos detalhes perniciosos das relações. Neste ambiente, seu assassino pode ser seu primo, e o motivo um objeto de consumo descartável. D’Salete examina estas situações com elegante esquadrinhamento das cenas. São comuns citações ao cinema e a baluartes do capitalismo. O teor do discurso aparece muito em marcações discretas, grafites, paisagens urbanas.

O volume de informações, inclusive, é grande e por vezes as narrativas ficam embaçadas, confusas. D’Salete fragmenta os corpos, pensa planos e páginas oblíquas, efetivamente erige as cenas pelo avesso da narrativa tradicional.Encruzilhada é obra de mestre, que demonstra profundo entendimento do ato de extrair sentido das histórias, deixando arte, pensamento e discurso todos em evidência. Pequeno clássico recente da nossa historiografia quadrinística, ao lado de nomes como Rafael Coutinho e Marcello Quintanilha, que primam por abordagens parecidas. Li a tempo, ainda bem! O quadrinho foi relançado pela Veneta em 2016. (CIM)

Rapidíssimas (zines):    

Apnéia – Ina (Independente, 2017, 8 p.): Este é um lindo trabalho gráfico (delicado, poético, silencioso) que evidencia o potencial dos quadrinhos como pura sinestesia, como arte visual que mira os sentidos, que dissocia a narrativa de uma função meramente denotativa. Trata-se da quadrinização, em singular lápis azul, de um homem mergulhando com uma baleia. Leva-se um minuto para ler. Reverbera-se na cabeça por muito mais tempo. (CIM)

Compartilhe Comigo e Hey! Look Around! – Renata Rinaldi (Tinta de Raposa, 2016 e 2017, 10 p. e 12 p.) – Há algum tempo que devemos uma apreciação melhor do trabalho da brasiliense Renata Rinaldi, que vem pondo suas patas de raposa também em cenário nacional (Pagu Comics; concorreu ao HQMix, etc.). Estes dois zines são boa amostra do potencial do seu trabalho. As ilustrações, também em estilo shoujo, só melhoram: ela dosa bem influências de ocidente e oriente e, assim como a resenha de cima, faz narrativas mudas (que são puro quadrinhos). 

Compartilhe Comigo é muito bobinho, mas tem apelo para tweens e atrai pela bela capa laminada. Hey! Look Around!, por outro lado, já pode ser levada mais a sério. É uma linda (e bem escrita) fábula sobre desapego, amizade e espiritualidade. Isso tudo em dez páginas cheias de bons recursos em HQ, o que nos faz pensar que a Renata está preparando seu melhor trabalho. Chega logo! (CIM)

Metendo a mão na lixeira: bons gibis de super-herói em pleno século 21

Supers... Gibi de super-herói é uma desgraça. Queima o filme de todo mundo. Queima o filme de quem faz porque é uma indústria atolada em fórmulas. Queima o filme de quem lê porque trata de um universo (absolutamente púbere e masculino) maniqueísta, primário e ridículo, onde 95% dos personagens não sabe a ordem das roupas a serem vestidas. Um universo de mentirinha. Coisa de criança – por mais que tentemos provar o contrário. Por fim, queima o filme das próprias histórias em quadrinhos enquanto linguagem elaborada e válida (em suma, enquanto veículo de criação artística). Gibi de super-herói é uma desgraça... mas é legal demais!

Gibi de super-herói é legal demais porque é criatividade no talo. A vida é mais difícil quando você tem que enfrentar o status quo, posições pré-concebidas e pré-estabelecidas. Nada é mais pré-concebido e pré-estabelecido que um gibi de super-herói – mesmo quando é pra lá de radical. Poucas coisas no mundo podem ser mais conservadoras. Mas alguns poucos criadores dão um jeito – não sei como – de enfiar um megaton de inventividade bizarra nessa camisa-de-força.

É uma pena sem tamanho percebermos que as últimas décadas assistiram a indústria dos comics abrir mão da essência deste gênero. Trocando em miúdos, vieram com o papo furado de fazer os super-heróis “mais adultos e realistas”. Se é para ser adulto e realista, pra que super-herói? O resultado são os gibis horrorosos, guiados por estratégias de marketing bisonhas, sempre colocando a tal indústria à beira da falência. Tem gente que engole a isca. Não o leitor Raio Laser.

Tapamos o nariz e mergulhamos no esgoto quadrinístico para trazer à tona algumas das HQs de marombados usando collant que ainda valem a pena em pleno século XXI. Não tenha dúvida: são exceções que confirmam a regra. É um trabalho sujo. Mas alguém tem que fazê-lo. (MJR)

por Márcio Jr., Lima Neto, Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

Gavião indie

Gavião Arqueiro – Minha Vida Como Uma Arma

(Matt Fraction, David Aja, Javier Punido – Marvel/Panini, 2015)

Talvez este quadrinho aqui seja uma trapaça. Esta coluna é para falar de bons gibis de super-heróis “contemporâneos” que tenham alguma conexão com a tradição neste gênero. Vejam bem: esta série foi lançada em 2012, na esteira do sucesso do filme dos Vingadores, mas o resultado foi toda uma desarticulação da linguagem e temas mais mainstream ligados aos super-heróis. O time dos pesos-pesados Matt Fraction e David Aja resolveu apostar em narrativas extremamente casuais (por exemplo salvar um cachorro) e um arrojo hiperdetalhista nas empaginações (estilo Miller e Mazzucchelli, chegando até a uma influência de Chris Ware) para tornar as histórias um tipo totalmente inovador de imersão em quadrinhos. Isso parece um quadrinho “tradicional e divertido” de super-herói? Claro que não, mas, diante da escassez de qualidade nessa terra de ninguém estéril e apodrecida, a posposta de Fraction e Aja apareceu com o frescor de um Bordeaux Saint-Estèphe da lendária safra de 2000. Ganhou Eisner e o escambau.

A coisa é muito simples: Fraction transforma Clint Barton, o Gavião, num cara comum, ressaltando o fato de que ele faz parte dos Vingadores, mas não tem nenhum super poder. De certa maneira, a natureza totalmente mundana de Barton torna sua índole também meio mundana. Ele vira tipo um personagem de sitcom. Come churrasco, se arrebenta, trepa. Os diálogos têm lá sua porção irritante: já repararam que os americanos entre 25-35 anos falam sempre 100% em chave de ironia? Basta pensar tudo ao contrário para entender o que querem dizer de verdade. Esta série do Gavião Arqueiro tem um pouco esta vibe. Diálogos rasteiros e “bem sacados” que na verdade são signo desta babaquice contemporânea.

Sim, Gavião Arqueiro faz parte deste descomunal esforço de pelo menos uns 20 anos pra cá em deixar os super-heróis “próximos da realidade”, o que os afastou de qualquer encanto que tivessem e até da sua própria razão de existir. Mais do que este apelo até fisicamente mais “real” – a série começa com Clint hospitalizado porque caiu quando saltava de um prédio para o outro, como super-heróis, de maneira inverossímil, geralmente fazem –, o que torna esta série interessante é mesmo a qualidade plástica de arte de Aja, somada aos devaneios narrativos propostos por Fraction.

É verdade que li apenas o primeiro encadernado da Panini (Minha vida como uma arma) A editora já lançou mais um, Pequenos acertos, que reúne as edições 6 a 11 da publicação gringa, e outro somente com a Gaviã Arqueira, sidekick mais recente do herói, em voo (sic) solo (Gaviã arqueira: vingadora da costa oeste). A série americana vai até o número 22 e encerrou em 2015.

Portanto, mas do que uma HQ particularmente interessante por seus temas e tratamentos no roteiro, Minha vida como uma arma é uma bela peça de design em quadrinhos. Especialmente, é claro, nas três primeiras histórias, ilustradas por Aja (as outras duas têm o lápis já não tão sofisticado de Javier Punido), que compra totalmente a pala de Fraction. Os requadros aqui alternam funções estéticas (microrrequadros; megarrequadros; metarrequeadros) e decorativas, como se organizar uma HQ fosse posicionar um jarro e um abajour, combinar com telas de pintores, fazer feng shui, etc. Aja ainda trabalha com paletas de cores em variações próximas (roxo, bege, pastel), criando temperaturas e aclimatações sensacionais para as histórias. No final das contas, este é um trabalho de arte bem pensado, bem conceituado, eximiamente bem executado, que nos coloca a par dos movimentos dos heróis, suas dores, sua humanidade latente. Não é supers “clássico”, é claro, mas, a este altura esquizofrenizante da pós-modernidade, quem realmente se importa? (CIM)

Velho Wolvie: honestidade e porradaria

Wolverine: O Velho Logan

(Mark Millar e Steve McNiven - Marvel/Salvat, 2014)

Mark Millar é, possivelmente, o melhor roteirista de sua geração. Não que possua a genialidade de Moore, Miller, Gaiman e quetais, mas com certeza está entre a nata do que o século XXI nos ofereceu até o momento – em termos de mainstream comic books, claro. Millar possui estilo, storytelling fluido e senso de humor. Não é pouco, ainda mais se comparado ao grosso da produção super-heroística contemporânea. Nas gigantes Marvel e DC, o nome do escocês sempre foi garantia de quadrinho decente. E quando está envolvido em projetos autorais (seu egocêntrico Millarworld), a coisa melhora.

Wolverine: O Velho Logan – a essa altura já alçado à categoria de cânone do mutante canadense, pautando inclusive um blockbuster cinematográfico – é uma bela amostra de seu trabalho.

A atual crise dos quadrinhos de super-herói é mais evidente que o golpe político em curso no Brasil. Algumas de suas raízes mais profundas podem ser encontradas nos anos 1990, quando estratégias de marketing substituíram a criatividade nos gibis norte-americanos. Especulação desenfreada, autores inflacionados e público envelhecido e acrítico foram a tônica do período, cristalizada no surgimento da Image Comics. Não foram tempos bonitos.

Capas metalizadas, cores (a)berrantes, splashpages em cima de splashpages – turbinadas por arte-

final matreira com infinitas hachuras-engana-nerd – anfetaminaram o mercado, numa paródia bizarra do sistema das artes. No lugar de tramas bem escritas, fiapos de roteiro e violência explícita vendida como conteúdo “adulto”. A bolha, logicamente, explodiu. E seus efeitos ainda podem ser sentidos hoje em dia, em todo gibi picareta pra leitor mocorongo colecionar. A contradição em O Velho Logan é justamente parecer um gibi da Image. Só que bom.

Futuro. Os vilões venceram. Os Estados Unidos estão destruídos e loteados. O Rei do Crime manda num pedaço, Dr. Destino em outro e por aí vai. Há 50 anos Wolverine não coloca as garrinhas de fora. Vive como fazendeiro com a esposa e dois filhos numa área dominada pelo Hulk e seus descendentes canibais. Está devendo o aluguel e isso é inadmissível para a prole esverdeada. Encara então atravessar a América como motorista de um Gavião Arqueiro cego, no intuito de entregar uma encomenda secreta do outro lado do país, buscando manter intacto seu pacto de não-violência – e garantir os trocados que manterão suas terras e sua família.

Este é o plot de O Velho Logan. Simples, mas honesto. O que interessa aqui é a maneira eficiente e perspicaz com que Millar desenvolve a narrativa. Mais do que em tramas e subtramas, o roteirista investe nos personagens, na ambientação pós-apocalíptica à la Mad Max, na pegada road movie, no humor negro e em violência. Muita violência.

Se nos gibis estricnados da Image a violência tinha fim em si mesma, tentando forjar um recheio acima do escopo infanto-juvenil, em Logan o que temos é uma violência estilizada, tal e qual um filme de Tarantino ou Sam Peckimpah. Para ser bem-sucedido na empreitada, Millar contou com o melhor dos escudeiros, o desenhista canadense Steve McNiven.

McNiven é aparentemente – e só aparentemente – um descendente gráfico da Image. Seu desenho possui arte-final detalhadíssima, representando cada pelo do braço, fio de cabelo do cocuruto e costura das calças – bem ao gosto realista dos dias atuais. Todavia, faz isso com elegância europeia e sem jamais abdicar do ritmo narrativo e da linguagem quadrinística propriamente dita. Os desenhos são cabulosos, mas estão, antes de mais nada, a serviço da ação. A inventividade com que representa a violência, a genuinidade das expressões dos personagens, bem como a clareza com que oferece cada cena, colocam o desenhista num patamar muito superior à maioria de seus pares. Mesmo a cor, deliberadamente photshopada, joga a favor da imagem, sem jamais competir com o traço a nanquim. Coisa rara.

Com extensa e bem-sucedida lista de serviços prestados à Marvel, Mark Millar usa como poucos o rico panteão da editora. A justificativa apresentada para Wolverine ter se retirado da ativa por meio século é surpreendente. Assim como também o é o modo com que o baixinho faz seu acerto de contas com o Hulk – mostrando ser possível apresentar novas e interessantes perspectivas para um dos antagonismos mais históricos e legais dos comics. O final da HQ traz ainda uma outra referência, desta vez fora da seara dos supers: o Lobo Solitário de Kazuo Koike e Goseki Kojima. Cool.

Wolverine: O Velho Logan é claramente uma HQ ambientada fora da “cronologia oficial” do Universo Marvel. Aquele papo de realidade alternativa, mundo paralelo ou coisa do tipo. Em uma indústria que produz reboots semestrais de seus personagens e que não tem o menor respeito pela tradição, só mesmo um imbecil para acreditar em “cronologia oficial”. Portanto, não tenha dúvidas: o Wolverine de Millar e McNiven é uma das versões definitivas do herói. E das mais divertidas. (MJR)

Overdose legionária

Legion of Three Worlds

(Geoff Johns e George Pérez – DC Comics, 2008)

Não gosto muito do Super-Homem. Detesto sua versão adolescente, o Superboy. Desprezo a Legião dos Super-Heróis. Por quê? Questão de lógica. Se nunca curti muito o azulão, tinha ainda menos razões para apreciar sua versão aborrecente. E a Legião, o que tem a ver com isso? Simples. O que é a Legião senão um bando de Superboy wannabes? Sério. Olha para os personagens. Mon-el, Ultra-Rapaz e por aí vai. São todos cópias assumidas do Superboy. Outra coisa que incomoda são os poderes dos integrantes da equipe. Ninguém conseguiu pensar em nada melhor que encolher, ficar invisível, emitir raios elétricos e pegar fogo? Isso enche o saco. Principalmente se pensarmos nos nomes dos heróis, decorrência direta desses poderes sem sal. Moça-Relâmpago, Solar, Rapaz Polar, Night Girl e etc. Chaaato... E isso que nem mencionei o cidadão que foi batizado como Matter-Eater Lad – Digestor, no Brasil. Triste, mas verdadeiro. Bem, se os heróis já são assim, imagina os vilões. Os fundadores da Legião são Relâmpago, Cósmico e Satúrnia. Adivinha quem são seus arqui-inimigos? Lorde Relâmpago, Rei Cósmico e Rainha Saturno. Santa criatividade, Batman. Ah, já ia esquecendo. Também tem um bandido chamado Earth-man. Get the point?

Mas afinal, do que se trata o tal Legião de Três Mundos? É uma história que tem como protagonistas o Superboy e não uma, mas três versões da Legião do Super-heróis: aquela surgida depois de Crise Infinita, a de 1994 e a de 2004. Mas por que cargas d'água eu – um Legion hater – teria escolhido este gibi para a coluna “Gibis de super-heróis que valem a pena”? Será que estou ficando doido? Not so fast, Kid Flash. Adoro LTM porque, ao longo de suas 5 edições, o gibi mostra o Superboy original matando Legionários de todas as formas possíveis e imagináveis. Simples assim.

Quer dizer que o Superboy agora é vilão? Sim. Mas quando foi que aquele garoto que ia mudar o mundo começou a frequentar as festas da Legião dos Super-Vilões? Resumo rápido. O Superboy, na sequência dos eventos de Crise nas Infinitas Terras, ficou exilado numa dimensão paralela com outros personagens, dentre eles o Super-Homem da Terra 2. Aos poucos, ele começou a cultivar um ressentimento contra a Terra do Universo DC pós-Crise, já que sua preciosa realidade original tinha sido erradicada. Amargurado com seu destino, Superboy fica putaço e resolve sair do limbo. Sua missão? Ferrar com a vida dos outros, afinal sua vida já estava ferrada. Assim surgiu o novo enfant terrible das HQs, agora rebatizado de Superboy Primordial. Após uma série de traquinagens, como vimos durante sua participação em Crise Infinita e na guerra dos Lanternas Verdes, o moleque superpoderoso vai parar no século 31, louco para destruir todo Legionário que encontra pelo caminho. Desejo-lhe sorte em sua jornada, Superboy. Tamo junto, parceiro.

Legião de Três Mundos foi escrita por Geoff Johns e desenhada pelo monstro sagrado George Pérez. Este último continua mandando muito bem, especialmente no que faz melhor: porradarias cósmicas envolvendo trocentos heróis e vilões. E esse gibi é um prato cheio disso. Perez adora mostrar as diversas versões dos personagens. Quer ver as três Garotas Fantasma? Ok. Quer apreciar os diferentes trajes do Karate Kid? Vai fundo, amigo. E sim, Pérez vai desenhar todos os personagens que já se dignaram a usar o anel da Legião, principalmente aqueles mais obscuros. Falando em heróis de segunda linha, não posso esquecer a glamorosa participação do Lanterna Verde Sodam Yat, criado por Alan Moore. Procure saber mais sobre esse nome. É uma piada pronta do barbudo britânico.

Uma coisa bacana de Geoff Johns é o sentimento de pertencimento ao Universo DC que ele costuma imprimir em suas sagas. Não tem essa de cada supergrupo ficar isolado em seus microcosmos. Por isso, em LTM abundam referências tanto aos Lanternas Verdes quanto aos Titãs. E quem conhece o escritor já sacou qual é a dele. Surpresas mil, ressurgimento badass de personagens esquecidos, mortes e ressurreições. Ele faz isso muito bem, embora recorra a isso o tempo todo. São tantas idas e vindas que você já abre a página seguinte pensando: "Ok, qual a reviravolta que vou encontrar agora?". É divertido, mas repetitivo. E por falar em reaparições, já vou avisando logo: o horrendo Connor "Superboy Cospobre" Kent está de volta. LTM é legal, porque é pura zoeira. Presta homenagem ao riquíssimo legado do Universo DC sem ser pedante. É um gibi que está a fim de entreter. Se você estiver interessado em reflexões e papo cabeça, fuja. O papo aqui é reto, mas não se leva a sério. Se gosta da Legião dos Super-Heróis, vai se emocionar. Senão é fã, vai se deleitar. Palavra de escoteiro. (MMA)

Legado dos besouros

Blue Beetle

(John Rogers e Rafael Alburquerque, 2006-2009 – DC Comics)

Não é nada fácil definir qual a qualidade dos quadrinhos de super-heróis da DC comics. Se, por um lado, ela é dona dos personagens mais icônicos e longevos do gênero, por outro vemos que estes personagens também são os mais engessados por essa história. E aqui eu evoco a antiga diferença entre História e estória. Resumindo, personagens como Super-Homem, Batman e Mulher Maravilha são vítimas de suas posições como carros-chefe na editora, suas histórias são deixadas de lado e suas estórias acabam sofrendo por falta de conflito e mudança. Mas o bom decenauta sabe muito bem que as boas histórias da DC não estão nos seus ícones, mas na extensa lista de personagens secundários que, diferente da trindade acima citada, dão liberdade para seus autores desenvolverem suas estórias como bem quiserem. Como resultado, temos fases aclamadas de personagens como o Flash, Starman, Sociedade da Justiça, Legião dos Super-Heróis e outros tantos que bebem dos quase 80 anos de história da editora e que construíram uma tessitura cronológica concisa e orgânica que existe desde a Segunda Guerra Mundial e que pode ser definida por uma palavra que já teve mais sentido dentro da DC: legado.

Um dos últimos títulos a trabalhar esta noção mais concisa de legado da DC comics, mantendo viva uma tradição que foi levantada por vários autores, mas que encontrou nas mãos de Roy Thomas seu maior expoente e defensor, foi o título Blue Beetle (Besouro Azul), do escritor John Rogers e do artista brasileiro Rafael Alburquerque, publicado entre Maio de 2006 e Fevereiro de 2009. Personagens secundários como esse, mesmo sendo desenhados por um dos artistas brasileiros mais renomados na atualidade, são raramente publicados no Brasil. Por aqui, a fase do estudante de origem latina, Jamie Reyes, como hospedeiro do escaravelho alienígena que lhe dá os poderes de Besouro Azul, só deu o ar das graças em suas histórias ao lado dos Titãs e nos inúmeros crossovers e crises que terminaram por soterrar o mercado americano. Mas esta fase guarda verdadeiras pepitas para o leitor que aprecia a História do universo DC, além de corrigir um erro da editora ao integrar a história dos personagens da Charlton Comics - a casa original do Besouro Azul e também dos personagens Questão, Pacificador, Trovejante entre outros - à cronologia mais atual da editora.

A série foi toda  republicada nos EUA em edições encadernadas, mas é em dois volumes específicos, Reach For The Stars e Endgame, que encontramos o ponto alto da série. Jamie Reyes é o típico personagem que foi desenvolvido para trazer representatividade latina para o rol de títulos da DC, com direito até a uma edição totalmente escrita em espanhol. Porém, misturado a este esforço de representação está o tipo de ação super-heróica que carrega em seu DNA um tanto de Homem-Aranha misturado ao sci-fi de um Lanterna Verde dos anos 60; e uma boa dose de nostalgia e legado. Tudo isso embalado na belíssima arte de Albuquerque ainda sem o peso dark de sua passagem pela Vertigo.

Nas duas encadernadas, Jamie confronta a origem de seu escaravelho – um artefato de uma raça de conquistadores que é espalhado pelo universo para iniciar o processo dominação e que foi usado de forma dormente pelo primeiro Besouro Azul, Dan Garret, ainda em 1939. Ao se rebelar contra a função do aparelho, precisa usar os restos de tecnologia do finado Ted Kord (o segundo Besouro Azul, conhecido por sua participação na Liga da Justiça de Keith Giffen e J.M. De Matteis) para escapar de uma nave invasora e retomar seu escaravelho corrompido, que só responde aos comandos de Reyes e se torna inútil para a invasão. Participa ainda da estória, como um personagem-chave para o desenvolvimento de Reyes como herói, um velho e traumatizado Pacificador. Ao final do arco, temos uma aparição do Lanterna Verde Guy Gardner e da equipe original da “Liguinha” de Giffen e DeMatteis que é de trazer lágrimas aos mais saudosistas.

John Rogers é roteirista e produtor de TV (criador de séries como Leverage e Librarians, esta ainda no ar) e segue a tradição da DC em trazer autores de outras mídias para dar visões mais frescas para personagens sem uso e que se apoia fortemente na tradição da editora. Assim aconteceu com James Robinson, cuja influência de seu Starman é visível em Blue Beetle, e com o atual chefão da editora Geoff Johns (que também sabia trabalhar com a História dos personagens, mas que terminou por perder a mão). (LN)