Billy Soco – Um tributo à infância

por Pedro Brandt

Tendo praticamente a mesma idade de Gabriel Góes, vi, vivi e consumi – intensamente – muitas das mesmas paixões dele. Não foram poucas as vezes, por exemplo, que conversamos sobre bonecos – action figures, se você preferir. Até hoje, quando nos encontramos, ele me cobra uma visita ao meu acervo de figuras de ação – que, nos últimos anos, vem sendo, pouco a pouco, misteriosamente dilapidado. Estariam os seres de plástico fugindo da caixa?

Acredito que o melhor período para os bonecos de ação durou a década de oitenta até meados da de noventa. Depois disso, os bonecos – os de brincar, não os de enfeitar – nunca mais foram tão legais. Estaria eu deixando a nostalgia (sempre ela!) pesar nessa afirmação? Talvez. Mas quem foi criança na época se lembra: He-Man, Comandos em Ação, Thundercats, Super Powers, Rambo, Tartarugas Ninja... O design dos bonecos, a qualidade do material usado, a aplicação de cores e o acabamento, as possibilidades de articulações, os assessórios... E os desenhos animados desses personagens eram hit na televisão, as coleções de brinquedos eram publicizadas nos intervalos comerciais, nas páginas dos gibis, em álbuns de figurinhas e outros incontáveis produtos. Estavam nas vitrines da Mesbla, das Americanas, da Bibabô...  Enfim, esse universo estava por todo lado e fazia a cabeça da molecada numa época ingênua e feliz. Deixou boas recordações para mim. E, tenha certeza, deixou boas recordações para o Gabriel – como atesta Soco, seu mais novo trabalho. Publicado pela editora Beleléu, Soco pode ser encarado como um tributo à infância relido sob uma ótica (acidentalmente ou não) pós-moderna. O personagem-título, Billy Soco, é um super-herói genérico – intrépido, superforte e insípido – desses que surgem durante uma aula entediante nas últimas folhas de um caderno do primeiro grau. E, para este Soco, isso basta. Góes, certamente, não quer reinventar o gênero super-herói. Não quer nem mesmo contar uma boa história do tipo.

Soco sugere um trabalho quase terapêutico, de extrair inspiração, sem pudores ou maiores questionamentos, das mais profundas ranhuras entranhadas na memória, das cicatrizes de felicidade esquecidas ali (nem sempre facilmente acessáveis passados os anos). Por que, na infância, esses bonecos – e seus desenhos animados, revistas em quadrinhos, anúncios de produtos, artes de embalagens – nos fascinam tanto? Soco não quer explicar nada disso. Quer, penso eu, ser apenas um reflexo de memórias e sensações puras.

Soco é um quadrinho de um esteta, para ser consumido com os olhos, tal qual a criança que devora, pupilas brilhando, as imagens vindas da televisão e o mostruário da loja de brinquedos. É um quadrinho que você faria quando criança, desavergonhadamente, feito quase aos 40: heróis e vilões trocando porrada, monstros gigantes, homens da caverna, viagens no tempo, entre dimensões, tudo um monte de bobagem. Mas um deleite visual! É ruim e bom ao mesmo tempo. Ou melhor, é (apenas) bom mesmo! Afinal, Góes, ele mesmo, virou um monstrão do desenho. 

Metade das páginas de Soco é em preto e branco e a outra metade em diferentes tons de vermelho e rosa. A ilustrações se dividem em dois tipos, as intencionalmente toscas e as intencionalmente elaboradas. As toscas, vale ressaltar, são apenas pseudo-toscas, rabiscadas e selvagens seriam definições mais apropriadas. Macaco velho, Góes não consegue mais ser naïf-tosco. 

As refinadas são a síntese do Góes-ismo: têm algo de Kirby, um tanto de indie comics (e aqui cabe um monte de coisa), e outro tanto de design contemporâneo, que bebe da arte urbana e da publicidade das últimas décadas. E é essa teia de informações que faz de Soco e, por conseguinte, do trabalho de Gabriel Góes, tão atraente. 

Ele acena, sem saudosismo ou cinismo, para aquelas memórias adormecidas, nunca esquecidas. É a coleção de bonecos guardada no armário da casa dos pais. A cicatriz no joelho, resultado do tombo de bike. O que fomos e o que gostaríamos de ter sido. O quadrinho imaginado e nunca feito na época da escola. O Billy Soco interno de cada um.

Soco

De Gabriel Góes. 64 páginas. Editora Beleléu. Preço: R$ 35 (à venda aqui)

De Caligari a Zorglub

por Ciro I. Marcondes

1: A tentação de Kracauer

Em 1947 o filósofo Siegfried Kracauer, ligado à famosa escola de Frankfurt, lançou um bombástico livro que se tornou um clássico da chamada “teoria crítica” aplicada ao cinema.

De Caligari a Hitler – Uma História Psicológica do Cinema Alemão se baseava nos princípios de análise cultural frankfurtiana (privilegiando eventos de cultura “popular” e “de massas”, inaugurando um olhar filosófico sobre estes temas) para traçar uma curiosa linha do tempo entre os fabulosos filmes do chamado “expressionismo alemão” e a ascensão e adesão do povo alemão a Adolf Hitler e ao terceiro Reich. 

Kracauer gostava de pensar o cinema a partir de seus elementos técnicos, e considerava (conforme podemos ler em sua outra obra fundamental, Theory of Film, de 1960) o mundo matemático da abstração (e, logo, consumido pela técnica) com nocivo ao nosso contato “direto” com a realidade (seja lá o que isso queira dizer). Em 1960, ele dava continuidade, portanto, por meio do pensamento sobre a comunicação, à velha ideia da “alienação” marxista. A única redenção seria uma re-ligação com o mundo das coisas reais, uma redenção por meio das imagens “naturais” produzidas pelo cinema. Este meio de comunicação teria esse poder de nos envolver novamente com um metafórico “retorno à terra”. Uma espécie de encontro com nossa natureza mais primeva e essencial. A contribuição de Kracauer se tornou uma das mais distintas teorias realistas do cinema.

Sig

Porém, a técnica foi pensada de maneira diferente no livro de 1947. As ideias de Kracauer para a ascensão de Hitler, consideradas hoje como teoria “traumática” (porque produzidas logo após a segunda guerra – e ele era judeu), têm sim um direcionamento claro, um tipo de ficção sobre si mesmas, são teleológicas, miram um certo resultado. Mas não deixam de ser fascinantes. O filósofo analisou inúmeros filmes da chamada “República de Weimar”, entre O Gabinete do Dr. Caligari (1919) e até o final dos anos 20, para traçar um paralelo entre o efeito hipnótico dos inúmeros déspotas ilustrados pelo expressionismo e a aceitação do povo alemão para as ideias nazistas.

O cinema expressionista, como bem se sabe, é um sinistro gênero do cinema silencioso que invoca o imaginário do romantismo alemão (bruxas, demônios, vampiros, pessoas degeneradas, loucura, etc.) com tintas mais desesperadas a carregadas. Ficaram famosos diretores de fotografia como Karl Freund e Carl Hoffmann, que encontravam soluções técnicas fantásticas para os cenários sofisticados, de luz altamente contrastada, que iluminava também a requintada e apavorante direção de arte. O trabalho de diretores “modestos” como Murnau, Fritz Lang e Paul Leni também ajudou o gênero a se tornar um dos mais influentes do cinema silencioso (oi Tim Burton?). A série Dr. Mabuse, de Fritz Lang, mostrava um magnata do crime que se utilizava de estranhas tecnologias para transmitir seu império de terror mesmerizante. O próprio Drácula em Nosferatu tem também poderes hipnóticos parasitários, estabelecendo ligações perigosas.

Caligari era um hipnólogo profissional, de tendências tirânicas e assassinas. Em Metropolis, a forte quebra com um intenso processo de alienação do trabalho num futuro distópico, capitaneada pela personagem de Brigitte Helm, encontra seu maior desafio quando ela tem de enfrentar um autômato de si mesma (o robô), em processos que também envolvem este tipo de manipulação das massas.

Os Nibelungos, suposto filme favorito de Hitler, entoava (brilhantemente, diga-se), mitos da “raça ariana”. 

Caligari, Mabuse, Nosferatu: o tirano que controla por meio da tecnologia/hipnose Hitler também foi um exímio usuário dos meios de comunicação e da propaganda para sedimentar suas ideias na bovina e desesperada população (oi Goebbels). Kracauer jogou a culpa nos meios, ao mesmo tempo em que falava sobre um recrudescimento da tentação xenófoba e autoritária que a Alemanha já havia visto na primeira guerra e no séc. XIX. Era o início da teoria da comunicação, e percebia-se claramente que os meios detinham um certo efeito (não-previsível) sobre as massas.

O filme "O Triunfo da Vontade", de Leni Riefenstahl, um dos marcos da propaganda nazista

Essa ideia de um poder despótico que se vale de tecnologias de comunicação, doutrinação e lobotomização das massas virou um precedente muito utilizado na cultura pop. De O Mágico de Oz até coisas rasteiras como a série de alienígenas V, a noção clássica (e obsoleta) de Lasswell de que os meios que transmitem de um emissor para vários receptores funciona como uma seringa hipodérmica (que distribui o conteúdo de maneira homogênea para as “cabecinhas” que representam a população) encontrou ressonância em todo tipo de manifestação. 

Uma delas acabou aportando no 15º álbum do mais famoso grumete dos quadrinhos belgas, ainda em 1961. Se você não sabe quem é Spirou, talvez seja a hora de voltar pras aulas de história dos quadrinhos

2: Z de Zorglub

Z de Zorglub acaba de ser lançado no Brasil pela editora SESI-SP, acompanhando um trabalho fundamental de resgate deste que é um dos personagens mais importantes das BDs (ou quadrinho franco-belga). A editora tem lançado álbuns tanto da fase clássica do personagem (principalmente produzida pelo gênio André Franquin) quanto ótimas releituras modernas de Spirou (e seus insubstituíveis coadjuvantes, como Fantasio, Marsupilami e o Professor Champignac). A linhagem das produções em cima deste personagem é muito longa. Ela começa ainda em 1938, quando sai o primeiro número do Journal de Spirou, ocasião em que o grumete estreia no lápis do pioneiro Rob-Vel.

Spirou pode lembrar Tintim à primeira vista, pois são dois jovens “mocinhos” clássicos e bem-intencionados em aventuras pelo mundo. As diferenças, porém, são mais interessantes. Spirou está dentro do estilo groz-nez, que elevou Asterix aos píncaros da glória em termos de BD, e todos os grandes autores que o escreveram (Rob-Vel, Jijé, Franquin, Tome, Émile Bravo, etc.) colocaram neste personagem, e especialmente no excêntrico fotógrafo Fantasio (seu “BFF”), um pouco mais de pimenta, um pouco mais de absurdez do que podemos ver nas criações de Hergé. Spirou se encontra, na longa trajetória de seus álbuns, com gorilas, dinossauros, piratas, cogumelos alucinógenos, coisas diversas e malucas na medida exata. 

Champignac "tirando" Zorglub

Este álbum Z de Zorglub não é diferente. E o fator “Kracauer” apenas o torna mais interessante como produto de sua época, ao mesmo tempo em que elabora uma paródia poderosa das origens da tirana e da vilania dos vilões. O mote é extremamente simples: Zorglub é um vilão megalomaníaco, no estilo de desenhos como Megamente, Os Incríveis e Meu Malvado Favorito. Ele quer controle total do mundo e os heróis (Spirou e Fantasio) se metem em seu caminho. Como nestes filmes, esse vilão possui uma contrapartida humana. Desde o início da história, Zorglub é retratado (vejam bem, estamos falando de 1961, quando “desconstrução” não caía nem na boca do Derrida) como um almofadinha elitista e cafona, com ego ridiculamente inflado e ostentando clichês de “gênio do mal” (óbvio, ele fala de si mesmo na terceira pessoa). Porém isso seria apenas uma máscara para um sujeito pequeno e inseguro. 

Este álbum foi escrito por Franquin e Greg, mas ilustrado por Jidéhem (que claramente busca unidade no estilo do mestre criador do Gaston Lagaffe). O detalhismo groz-nez para coisas como roupas, móveis, carros e armas é de chorar. Poucas coisas superam o design de uma BD dos anos 60. E o mesmo ocorre com o visu de Zorglub: barbinha à Rubens Ewald Filho, calvície e sobrancelhas grossas, alinhado num terno justo e uma capa estofada com pelos de animais. Um perfeito e patético tirano.

Ao contrário da ideia de Kracauer e dos filmes do expressionismo, que levavam muito a sério (talvez com certa razão) o controle que a tecnologia possibilitava a estes tiranos inocularem comandos de controle na população, Franquin entende estas possibilidades em chave de paródia. Zorglub domina todo tipo de tecnologia e possui uma espécie de raio de controle à distância, que transforma as pessoas em escravos sem mente, os chamados “zorglomens”. Eles devem depois passar por uma lavagem cerebral estilo “Laranja Mecânica”. 

Fábrica de "zorglomens"

A tecnologia é um elemento essencial e predominante em Z de Zorglub. Ela está alinhada ao estilo da HQ, que prima pela excelência no desenho de basicamente qualquer coisa que seja ilustrada ali: todos os veículos do vilão, assim como roupas, carros, cores e o arrojo dos quadros parecem saídos diretamente das portas da Bauhaus. Este formalismo está aliado à ideia de técnica nessa história, que contrapõe a visão maníaca e desumanizada de Zorglub (ele sim escravo da tecnologia) com a versão mais “naturalista” de ciência do seu rival Champignac, que se utiliza de elementos orgânicos (cogumelos – hmm...) para constituir sua produção. Ao mesmo tempo, o aspecto estéril meio “Disney” (leiam o que Baudrillard tem a dizer sobre este parque em Simulacros e Simulação) da “Zorglândia” (territórios dominados por Zorglub) entra em conflito com a própria Paris (e interior da França) tão lindamente ilustrados nas páginas da HQ. 

A tecnologia de comunicação e os déspotas

Zorglub é claramente um tecnocrata. Tanto que elabora sua própria maneira de falar, a “zorglíngua”. De certa maneira, Franquin já trabalha aqui um discurso de ridicularização deste arquétipo proposto por Kracauer ao colocar, no final, Zorglub como uma espécie de criança infeliz que não aguenta suportar o sucesso de Champignac. O vilão revela que toda a sua megalomaníaca ambição se dá devido a motivos meramente mesquinhos: conquistar o mundo era um pagamento por ter sido vítima de bullying. Nada que Chaplin já não tivesse previsto em O Grande Ditador (1940), mas adicionado do gênio e das sacadas amalucadas de um dos gigantes da HQ francesa. 

Hoje, como sabemos, a comunicação não é unilateral e não existe “seringa hipodérmica” para domar o acesso selvagem e a distribuição caótica de informação em mil vias transversais possíveis de interação. Ainda não sabemos se o “tirano” do mundo é a humanidade ou a perversidade maquínica desta complexa rede de sistemas que ignora o valor do indivíduo. Zorglub e Kracauer são passado. Os processos comunicacionais estão sempre dois passos à nossa frente e mal podemos pensar modelos de previsibilidade em relação a eles. Ainda bem que ainda resta o trabalho de artistas como Franquin e Jidéhem para nos conseguir fazer rir disso tudo.

Sleeper: infiltrado no coração das trevas

por Marcos Maciel de Almeida

A dupla Ed Brubaker e Sean Philips é um exemplo das combinações que dão muito certo, tipo Lennon e McCartney, Leone e Morricone e pastel com caldo de cana. E olha que a chance de êxito dessa combinação não era exatamente uma certeza. Tudo bem que o Brubaker já era conhecido dos fãs de gibis de temática urbana com forte pegada policialesca, como Gotham Central e Batman, mas seu parceiro no crime Sean Philips tinha construído sua fama tendo seu nome mais associado aos gêneros de terror e aventura, após fases memoráveis em gibis como Hellblazer e Wildcats

Mas a união de esforços dos dois autores, dedicada a contar histórias de suspense com ambientação noir envolvendo as castas mais baixas e mais altas do submundo, derrubou qualquer desconfiança. 5 gibis depois (Criminal, Incognito, Fatale, Sleeper e Fade Out, não necessariamente nessa ordem), com inegável sucesso de público e crítica, além de diversas indicações para o Eisner (que lhes rendeu dois prêmios de melhor série com Criminal e Fade Out), Brubaker e Philips perceberam que a química entre os dois funcionava que era uma beleza. Ou talvez nem fosse química. Acho que a palavra correta poderia ser alquimia, já que tudo que os caras tocam parece virar ouro. E bem, das pepitas que a dupla já garimpou, resolvi dar uma analisada nesta aqui: Sleeper, de 2003.

Para quem não sabe, "sleeper" é o termo que designa um espião que fica dormente em uma organização até o momento em que lhe ordenam interromper suas atividades de espionagem, seja por motivos de segurança pessoal, seja para dar início ao plano de ataque contra o inimigo. E o Sleeper deste gibi refere-se a Holden Carver, ex-pupilo de John Lynch, uma espécie de Nick Fury criado pelo Jim Lee. E sim, meus amigos, como já deu para perceber, embora o gibi tenha a maior cara de revista da Image, o fato é que ela faz parte do selo Wildstorm e, por conseguinte, do Universo DC. Mas bem, isso não é problema, visto que nenhum dos personagens puro sangue da Divina Concorrência aparece para colocar água no nosso chopp. Então, como eu ia dizendo, o Carver, que ganhou a habilidade de armazenar e distribuir dor física graças a um artefato alienígena (sim, isso foi meio boçal, mas fazer o que?) foi escolhido para infiltrar uma organização terrorista que emprega bandidos superpoderosos. O problema é que a tal organização é chefiada por um dos vilões mais casca grossa já inventados nos quadrinhos: Tao.

Talvez você não esteja ligando o nome à pessoa, mas o Tao foi um personagem criado pelo Alan Moore, durante sua passagem pelos Wildcats. Bem, se você não leu, recomendo que o faça assim que possível, porque se trata de material de primeira linha, com desenhos do irrepreensível – e infelizmente sumidaço – Travis Charest. Tao, acrônimo de Tactically Augmented Organism, é um ser criado em laboratório como parte de experimento envolvendo a criação de seres artificiais. Sua atuação terrorista, caracterizada por ataques de intensa selvageria e ousadia, chamam a atenção do chefe da IO (International Operations), John Lynch, que resolve destruir a organização de Tao por dentro, por meio da infiltração de Carver. Mas bem, porque o tal Tao é casca grossa? Ele tem superpoderes? Não, mas possui a mente criminosa mais fria e calculista do universo Wildstorm, além de uma forte capacidade de manipulação. Sem querer dar spoilers, esse cara foi capaz de escapar tranquilamente de um prédio cheio de Wildcats, deixando na saudade medalhões como o Superman (ops!), digo, Mr. Majestic. Mal comparando, pode-se dizer que seria uma espécie de Reed Richards malvado, com tendências ao sadismo.

Tao, maldade encarnada

Bem, a pegada do gibi é de pura pressão psicológica, relatando a trajetória de Holden Carver em sua tentativa de ganhar terreno na organização comandada por Tao. Mas, como se não bastasse o clima tenso de ter que enganar a mente mais brilhante e mortal do planeta, que não cansa de fungar em seu cangote, Carver tem ainda de lidar com o fato de que Lynch, a única pessoa que sabe de sua condição de espião, está em coma. Trocando em miúdos, nosso herói está fudido e mal pago, porque os mocinhos querem seu couro e os vilões não perdoarão sua eventual traição. Um dos grandes momentos do gibi é o jogo de gato e rato entre Carver e Tao, que adora usar de ambiguidade e ironia com o subordinado, como que para dar indiretas de que já sabia quem era o espião em seu grupo. 

O cast é um capítulo à parte, contendo personagens tão bizarros que deixariam David Lynch orgulhoso. Para Brubaker, o cerne do gibi é a relação de Carver com Miss Misery, a sensual comandante de Tao. Lembra que o Hulk ficava mais forte à medida que ficava furioso? Então, Miss Misery fica mais poderosa sempre que agride ou tortura alguém. Só que esse esquema também funciona ao contrário. O afeto e o carinho recebidos trarão dor e mal estar para ela. Esse é o tamanho da enrascada em que Carver se meteu. A mulher que ele deseja fica doente quando se apaixona e só fica bem quando ele se ferra. Outro personagem interessante é o segundo em comando de Tao, Peter Grimm. O carequinha, capaz de deixar o cérebro de qualquer um num loop eterno de pesadelos, não foi com a cara de Carver e está querendo sacaneá-lo assim que possível. 

Holden Carver desempenha o arquétipo tradicional dos gibis e filmes noir. Durão, mas de bom coração. Machão, mas sempre alerta para impedir que injustiças sejam cometidas. Incontornáveis, para ele, são seus princípios de lealdade para com seus amigos e entes queridos. E, quando percebe que sua presença tornou-se um perigo para eles, segue aquela cartilha do herói que ensina que o melhor a fazer é se afastar. E esse é o grande sacrifício de Carver. Em busca do bem maior, abandona sua vida e sua esposa, para ir lamber as botas do capeta. Perdido numa realidade em que os amigos são os inimigos, e isolado de sua verdade enquanto pessoa, Carver é um náufrago no oceano da própria mente. 

Trio Parada Dura: Tao e seus asseclas

Um dos grandes méritos de Sleeper é sua despretensão. O gibi não quer ser o novo grande hit, mas simplesmente contar uma história bacana, com começo, meio e fim. E os autores tem pleno êxito nessa proposta. Se você está querendo vasculhar os becos mais escuros e sórdidos do universo Wildstorm, seu gibi é esse aqui. 

Escritores de talento são aqueles que, além de saberem contar uma boa história, têm a manha de escolher os melhores brinquedinhos para fazê-la funcionar. E Brubaker fez exatamente isso. Pegou um personagem desconhecido (Carver), utilizou organizações já estabelecidas como a IO e colocou na mistura uma das melhores criações de Alan Moore durante sua passagem pelos Wildcats (Tao). E o resultado deu caldo. É isso aí. Não durma no ponto. Leia Sleeper.  

Sleeper durou duas "temporadas", cada uma com doze edições, e foi publicado pela DC/Wildstorm na gringa. O material ainda está inédito no Brasil. E isso sim é um crime tão perverso que nem Tao conseguiu conceber.

Holden Carver, sleeper agent

Asterix poderia ser a melhor HQ da história? O que os novos álbuns dizem sobre isso.

Asterix poderia ser a melhor HQ da história? O que os novos álbuns dizem sobre isso.

Eu costumava defender que Asterix é a melhor história em quadrinhos de todos os tempos. Hoje, acho que este tipo de categorização não faz o menor sentido, por razões bastante óbvias. Mas, a título de curiosidade, o que eu argumentava?

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Cavaleiro da Lua: o herói lunático ainda luta por um lugar ao sol

 Por Marcos Maciel de Almeida

Werewolf by night # 32 (1975): Primeira aparição do Cavaleiro da Lua

Quem lê quadrinhos há algum tempo certamente já ouviu a clássica pergunta: “Qual é seu personagem favorito?” Costumo responder que o personagem não é o mais importante, mas sim o talento do escritor que vai contar as histórias do dito cujo. Por isso, acredito que leitores inveterados como eu tenham mais fidelidade a autores que a personagens. Digo isso porque mesmo personagens aparentemente sem sal podem se tornar interessantes, quando colocados sob a lupa de um escritor sagaz. Estão aí o Starman de James Robinson e o Homem-Animal do Grant Morrison que não me deixam mentir. A recíproca também é verdadeira. Personagens consagrados não são sinônimo automático de boas histórias. Ainda assim, existem personagens que nos cativam de forma instantânea e incondicional, seja por seu apelo visual, seja pelo tipo de narrativa que costumam inspirar. Por ambos motivos, o Cavaleiro da Lua sempre foi um de meus heróis prediletos. O uniforme maneiro, que lhe conferia uma charmosa aura de mistério, e a temática, envolvendo o submundo bizarro da Marvel, viraram paixão à primeira leitura. Pena que o personagem nunca teve muita longevidade nos títulos que envergaram seu nome, desde sua criação em 1975.

Cavaleiro da Lua, o herói quatro em um. O Cavaleiro da Lua deve ser um dos personagens do segundo escalão das HQs com recorde na quantidade de edições número 1 lançadas nos Estados Unidos. Só de séries mensais já teve sete, a maioria cancelada prematuramente. O personagem, infelizmente, não costuma ser sucesso de vendas. Sua série mais recente, que teve como argumentista o queridinho do mercado norteamericano, Jeff Lemire, também foi... consegue adivinhar? Cancelada. Melhor sina mereceria o herói encapuzado, apontado por alguns como o Batman da Marvel. Comparação justa? Vejamos. O Cavaleiro também é um combatente do crime desprovido de poderes. Assim como o Morcegão, conta com um arsenal de apetrechos tecnológicos. Seu auxiliar e funcionário, o Francês, é uma espécie de Alfred que mete mais a mão na massa. Mas as semelhanças param por aí. Por incrível que pareça, o Batman – muitas vezes retratado como um maníaco obsessivo não muito diferente de seus inimigos – pode ser considerado um poço de sanidade perto do Cavaleiro da Lua. Enquanto o Cavaleiro (das Trevas) tem uma vida dupla o outro Cavaleiro (da Lua) compartilha sua vida com mais três identidades: o playboy milionário Steven Grant, o taxista Jake Lockley e o mercenário Marc Spector. E os problemas psicológicos de nosso herói não se resumem a isso. Fazendo uma análise de sua trajetória, pode-se ver que a grande luta do Cavaleiro da Lua caracteriza-se pelo esforço de manutenção de um mínimo de sanidade. E isso não é de hoje.

Desde a fase clássica de Doug Moench, criador do personagem, e Bill Sienkiewicz, já era patente que ele tinha alguns parafusos a menos, fato evidenciado não apenas pela sua divisão em quatro personalidades. Numa minissérie – lindamente desenhada por Tommy Lee Edwards e inédita no Brasil – de 1998, Moench começa a carregar ainda mais nas tintas da esquizofrenia do mascarado. Numa história de alucinação que deixaria Philip K. Dick orgulhoso, o Cavaleiro da Lua é lançado numa realidade de sonho, ilusão e delírio. Outros autores que também exploraram temática semelhante foram Brian Michael Bendis e Alex Maleev, responsáveis pelas doze edições publicadas nos EUA a partir de 2011. Nessa série, o Cavaleiro da Lua sofre nova crise de identidade e passa a acreditar que... Deixa para lá. Não quero dar spoilers. 

Cavaleiro da Lua de Bendis e Maleev

Ironicamente, a fase em que o Cavaleiro volta a apresentar algum sinal de propósito e lucidez ocorre nas seis edições assinadas pelo doidão Warren Ellis que cria, em 2014, novos conceitos, bastante interessantes, para o personagem. Agora ele tem um novo uniforme e um comissário Gordon para chamar de seu. Além disso, passa a se denominar “o viajante noturno”, que seria uma espécie de protetor das almas perdidas na madrugada, vítimas das ameaças de nosso e de outros planos de existência. A fase de Ellis é pura porralouquice. Mostra o Cavaleiro dando porrada em punks fantasmas, descendo até os recônditos do esgoto de Nova York,  e invadindo os sonhos alheios. Aliás, a história do pugilato com punks ectoplásmicos é o suprassumo do que o Cavaleiro da Lua deveria ser: um personagem dividido entre várias personalidades, mas que só encontra a paz quando está às voltas com os becos mais sombrios e sobrenaturais do Universo Marvel. 

Ele seria, portanto, o verdadeiro detetive do impossível, com o perdão da usurpação do epíteto de Martin Mystère. Não que o Cavaleiro deva se restringir a isso. Muito pelo contrário. Ellis sabe disso e utiliza seus vastos recursos narrativos para encerrar sua fase com chave de ouro. Numa história que remete aos grandes momentos de Spirit, intitulada “Espectro”, o Cavaleiro da Lua torna-se mero coadjuvante num conto que revela o efêmero surgimento do novo Espectro Negro, personagem cuja brutalidade só é superada pela própria estupidez. Ah, já ia esquecendo: a fase de Ellis é toda desenhada por Declan Shalvey, que manda bem pra cacete. 

Cavaleiro da Lua: no mundo dos sonhos ou dos pesadelos?”

Bem, tudo que é bom dura pouco e Ellis vazou rapidinho, dando lugar a Brian Wood. E aqui gostaria de abrir um parêntese. É complicado para um personagem evoluir com a frequente mudança de equipes criativas. E para o paciente em questão, o estrago pode ser ainda maior, afinal de contas o Cavaleiro da Lua já não bate muito bem e precisa de um pouco de estabilidade, coitado. Pena que os editores recentes do vigilante nunca sacaram isso e insistiram no troca-troca. A fase de Wood – bastante irregular - durou seis números e, na sequência, o título foi assumido por Cullen Bunn. Também não darei muita moral para a fase deste escritor, que não foi exatamente um primor. Com a honrosa exceção de seu trabalho no conto “Anjos”, ele não conseguiu avançar muito com o personagem. Embora esta história não vá muito além de narrar uma cena de pancadaria urbana entre o Cavaleiro da Lua e bandidos voadores, é importante para mostrar a riqueza de situações em que o herói pode ser aproveitado.

Pancadaria aérea é o que há

A lua do Cavaleiro, que nessa época estava minguante, volta a brilhar mais forte quando uma dupla de responsa assume a revista: o já citado Jeff Lemire e o talentoso desenhista Greg Smallwood. O resultado foi excelente e comprovou minha teoria lá do começo. Está aqui mais uma demonstração de que são os escritores que fazem o personagem e não o contrário. Os bons autores são capazes, dentre outros feitos, de nos fazer enxergar coisas que estavam bem debaixo dos nossos olhos. Exemplo: o que temos de fazer com pessoas loucas e potencialmente perigosas? Internar num hospício. E esse foi o destino de nosso herói, que lá pôde encontrar seu elenco de apoio original: Marlene, Francês e Crawley, há muito ausentes do gibi. E sim, a luta do vigilante pela sanidade continua árdua, especialmente agora que tentam convencê-lo de que o Cavaleiro da Lua nunca existiu. Outro fator que dificulta sua recuperação é o fato de que ele passa a enxergar uma realidade em que Nova York, agora habitada por divindades e criaturas lendárias, se fundiu com o Egito Antigo. Somente foram lançados os primeiros cinco números da fase de Lemire no Brasil, mas o autor já disse a que veio. Espero que dessa vez a coisa engate e...putz, tinha esquecido: a revista foi... (agora você vai acertar) cancelada, depois de 14 edições. 

Quem quiser dar uma conferida no material acima pode procurar as revistas abaixo, lançadas no Brasil pela Panini:

Cavaleiro da Lua – Recomeço – Vols 1 e 2, 2015. (Fase do Brian Michael Bendis)

Cavaleiro da Lua – Vols 1-4, 2015-2017. (Fase do Ellis, Brian Wood, Cullen Bunn e Lemire. Um gibi para cada escritor). 

O Cavaleiro da Lua não parece ter sorte nos quadrinhos e muito menos em seu histórico de publicações. É uma pena, pois o personagem tem muito potencial, como ficou evidenciado quando teve escritores decentes, como Ellis e Lemire. 

Ah, infelizmente, o Cavaleiro da Lua não pode ser considerado o Batman da Marvel, embora existam semelhanças inegáveis entre ambos. Afirmo isso por uma simples razão. O Cavaleiro da Lua passou bem longe da sombra do sucesso do morcego. Se ele tivesse tido, ao menos, 1% do reconhecimento de seu primo rico, a coisa seria diferente. Mas isso seria uma outra realidade. E só nela o Cavaleiro poderia dizer que nasceu virado para a lua. 

O Cavaleiro da Lua de Stephen Platt. Esta imagem está aqui simplesmente porque é muito foda

A máscara e a tolice fundamental da HQ (e do filme) de super-herói

por Lima Neto

Muitas vezes, quando escuto algum comentário em uma roda de amigos sobre como seria bom se o ser humano tivesse super poderes, eu costumo responder com o mesmo comentário impaciente: “Ia ser a extinção”. Diante do silêncio que se segue, eu emendo: “Temos um exemplo fácil. Nós usamos todos os dias uma armadura de metal que aumenta nossa velocidade a níveis inacreditáveis; que nos permite nos proteger de alguns elementos; enxergar no escuro e outras vantagens que podemos classificar como super poder, pelo menos dentro do parâmetro de um Homem de Ferro. Mas junto com esse poder, temos também o dado trágico de 6 mortes por hora causados pelo trânsito, somente no Brasil em 2016”. Ok, os dados foram pesquisados para este artigo e computados pelo DATASUS em levantamento realizado este ano. 

Carros e super-poderes

Mas não estou aqui pra falar sobre trânsito, mas sim sobre essa relação nebulosa entre a ficção “super-heroística” e a realidade. Com a onipresença dos super-heróis nos cinemas, essa relação se tornou mais difusa ainda. Quem lê gibi há muito tempo sabe que, nos quadrinhos de indústria, sempre há uma tendência de aproximação ou afastamento do real. Essa relação chega mesmo a moldar uma identidade para as editoras. O drama mais cotidiano das identidades civis dos personagens da Marvel encontram uma resposta do público que é diferente da relação de “deuses na Terra” que costuma a dar o tom da editora DC. Mas em determinados períodos o realismo fica mais patente em ambas editoras, como é claro nos anos 80 e o boom dos quadrinhos de temática adulta. 

Esse flerte criativo ganha tons mais sombrios quando se insere o cinema nessa conta. E a DC saiu perdendo nesse quesito, trocando o fascínio mítico de seus personagens por um realismo dark superficial e sem alma. Super-herói é fantasia.

É sonho de poder e ação.  Como todo sonho, pode servir de complemento ou duplo pro real, mas quando se aproxima demais da realidade, a fantasia começa a rachar e o que tem por baixo pode ser bem desagradável. Se o imaginário do automóvel parecer muito mundano, podemos partir de um item de significado arquetípico no mundo, que na cultura pop em geral vai ser alimento de infinitas narrativas, mas que vai assumir um papel definidor nas narrativas industriais: a máscara.

Sem querer academizar, mas apenas ancorando um pouco, concordarmos com o pesquisador Thierry Groensteen e sua descrição da trajetória de mudança dos temas dos gibis durante o final do sec. XIX e decorrer do séc. XX. Se formos para 7 de Fevereiro de 1936 e presenciarmos o lançamento do Fantasma, o primeiro herói mascarado dos quadrinhos, encontraremos uma HQ que se tornou um marco de popularidade e que inaugurou uma categoria dentro do gênero das “histórias de viagem” – o primeiro dos três gêneros fundadores identificados por Groensteen, sendo “fantasia” e “tolice” os outros dois. O tema do deslocamento para lugares longe do alcance dos olhos era a principal fantasia descrita por proto-quadrinistas como Rodolphe Töpffer. 

A frustração de não alcançar o destino, somada à descrição visual livre que o desenho permite, transportou o tema naturalmente para o sonho. Sonho que tem sua selvageria anárquica abrandada na noção de fantasia, que vira terreno para o desenvolvimento da ficção-científica a partir dessa mistura entre viagem e fantástico. A tolice vai ser herança da caricatura e da charge e vai ser complemento quase paralelo aos gêneros de fantasia e viagem. Vai ser juntando o herói viajante, que até os anos 30 era um fora da lei, com a moralidade do herói das tramas policiais e um visual chamativo que pega emprestado das pinturas de guerra tanto quanto dos ambientes excêntricos da vida urbana das metrópoles do séc. XX. Neste ambiente encontraremos o Espírito-Que-Anda e sua máscara.

Depois do Fantasma vieram vários. E antes dele vários mascarados já existiam nas mais diversas formas narrativas e cumprindo os mais variados papéis. Mas no final do séc. XIX e início do séc. XX, a máscara tinha um papel bem claro: impedir a identificação de um criminoso pelos meios legais oficiais, meios estes que contavam com uma ferramenta que revolucionou o processo investigativo: a fotografia. No herói e, posteriormente, no super-herói, a máscara tem uma função que remete à sua origem de “perturbador da lei” como presente na narrativa de viagem, verdadeiro “anti-herói” como defende Groensteen: o criminoso. Esse arquétipo do criminoso é a contraparte do arquétipo do detetive policial, que encontra no Dupin de Poe seu personagem de estreia. O criminoso vai ser aquele que conhece e usa as falhas do complexo sistema urbano nascente com as metrópoles para viver. Na narrativa de viagem, essa mobilidade (ou moralidade) alternativa vai garantir a transição de vilão para o anti-herói que enfrenta o desconhecido com uma artimanha não-civilizada. Anti-herói porque na máscara do Fantasma também está presente a moralidade afiada do detetive que quer proteger o status quo e reestabelecer a ordem.

É essa origem anti-heróica, dos Zorros e Sombras, Lokis e Dionísios, que identifica a máscara como um ato criminoso, não passível de redenção - nem se for o caso de proteger os entes queridos, principal justificativa para os mascarados nos gibis. Protege-se a identidade para não pagar o preço, não sofrer a retaliação, de assumir a responsabilidade pelo erro cometido. O Fantasma jura vingar a família massacrada em um ataque pirata. Protege sua identidade para escapar da responsabilidade moral, e principalmente jurídica, de agir em vingança. No caso dos super-heróis, a identidade disfarçada é uma contravenção que facilita o trabalho evitando que as vidas dos parentes, amigos e amantes se tornem alvo de algum criminoso que quer cobrar respostas pelo responsável por frustrar seus planos (cuidadosamente engendrados a partir de um código moral pessoal muito mais antagônico ao status quo, pelo menos mais antagônico que usar uma máscara, diria um super-herói). Resumindo, um jeito nobre e heroico de abrir mão de uma responsabilidade.

Mas a máscara do herói só vai perder sua ambiguidade quando nos aproximamos da realidade. Ou melhor, ao nos aproximarmos da realidade social como experimentada em boa parte do séc. XX – uma narrativa moral técnico-cientificista marcada pela análise, o corte que isola as partes buscando compreender o todo. Foi um estatístico da polícia francesa, chamado Alphonse Bertillon, que notoriamente desenvolveu a primeira sistematização da análise fotográfica forense. Betillon dividiu a representação do corpo criminoso em partes que eram comparadas entre si e divididas em categorias, gerando um arquivo de identificação de criminosos que não se baseava mais no indivíduo, mas em um traço identificador. É nessa lógica que a máscara entra em cena. A ideia de que cobrir um traço identificador é o suficiente para sumir com o indivíduo procurado. Antes dessa sistematização, a fotografia forense se limitava ao registro individual de cada criminoso no momento do flagrante, gerando toda espécie de careta por parte do afrontador como estratégia de impedir a identificação. Podemos identificar o Coringa e seu sorriso distorcido como um elo perdido entre os momentos citados da foto policial. É o traço particular que é também distorção imagética congelada, que ao mesmo tempo identifica e foge a identificação. A máscara que revela.

O herói, então, vai ser identificado pelo seu crime menor. Essa identificação pelo erro vai permitir transitar pelo sistema moral e decidir, dentre todos os envolvidos em uma narrativa, qual tem o pior crime e como aplicá-lo à justiça. É essa onisciência que justifica o erro cometido pelo mascarado e que pode ser considerado, de fato, um super-poder. Uma ação fantástica e divina que não pode ser replicada pelos mortais. O Fantasma, em suas histórias, sempre age certo. A versão nascente dos super-heróis traz esse “poder” moral amarrado a um misto de conto policial e a narrativa de viagem (na forma como era mais consumida nos anos 30, a ficção científica). Essa certeza do certo é ao mesmo tempo o núcleo infantil, tolo, do super-herói desse período. Quando falo de núcleo infantil, de infantilidade, não falo de maneira pejorativa. Mas me refiro à infância como potência anárquica, fora-da-lei. Aquela infância abissal e constituinte da identidade adulta. É a tolice como confronto à razão. O Tolo místico que não deixa nem um abismo interferir em seu transitar. É movimento puro, trânsito livre pelas frestas do mundo civilizado, mas paradoxalmente atrelado a alguma forma de justiça e manutenção da lei.

Como o super poder da armadura do Homem de Ferro, esta habilidade de saber o que é certo não consegue trazer alento algum ao ser humano, caso existisse no mundo real. A própria concepção de uma comparação dessas resvala no humor ridículo da tolice, o gênero inicial que é reflexo invertido do herói narrativo. “Ridículo um homem usar uma cueca por cima das calças”, essa é a pitada de ridículo que equilibra o ato de se esquivar da responsabilidade do ato justiceiro. É o humor cinematográfico que, quando bem colocado, reforça a presença do herói na história que está sendo mostrada, por mais irreais que sejam as imagens mostradas. A tolice fundamental retira o super herói da dimensão analítica do real ao lembrar de sua origem vestigial como sátira. Retire a tolice, e o peso da realidade esmaga o que sobrar. Um exemplo do que aconteceria se um super-herói que sabe o que é certo existisse no mundo real é o fenômeno das milícias denominadas “Liga da Justiça”. 

Entre 2006 e 2016, dois grupos “paramilitares” denominados “Liga da Justiça” atuaram em estados distintos: Rio de Janeiro e Mato Grosso. A ligação entre os grupos? Apenas a certeza de estar fazendo o certo, e de que o resultado justifica o crime de chacina. O mais notório deles, que atuou entre 2006 e 2010, agia na cidade do Rio de Janeiro e vizinhanças, liderados por Adelmar do Santos e Ricardo Teixeira, respectivamente chamados de Batman e Robin. Esse vigilantismo reacionário e suas implicações morais e sociais foram um tema carro-chefe dos quadrinhos dos anos 80, especialmente no trabalho de Frank Miller, que dava forma particular a um sentimento geral de insegurança no período. Insegurança ao mesmo tempo fantástica (com o pesadelo atômico) e policial (com metrópoles abarrotadas e à beira de um colapso social). 

Como os heróis citados, ambas as milícias atuavam com um elemento em comum: a máscara. Difícil imaginar, antes da popularidade dos filmes de super-heróis, que estes personagens serviriam de inspiração para ações tão reais.  Hoje em dia a internet e as mídias sociais são o meio de divulgação de cada vez mais narrativas reais de ações extremas geradas pela certeza equivocada do que é certo. Entretanto, a máscara vem ficando em segundo lugar, como pode ser ver nas produções de Hollywood que não conseguem se livrar do vício no “star system”, ou sendo substituída pelo baile mascarado mundial que é a internet. Não cabe a este texto elaborar esta questão.

Para usar, então, o poder de estar certo, é preciso arcar com as consequências (o personagem Justiceiro é um exemplo dessa atitude), ou esquivar-se da responsabilidade usando o artifício da máscara (ação que só obtém êxito quando ciente da tolice envolvida). Sem a tolice, sem o lúdico e o e o faz-de-conta juvenil que é fundador do gênero, a bênção da onisciência vira arrogância insensível na história de super-herói. O realismo pode, sim, gerar boas histórias do gênero. Existem vários gibis que conseguem esse êxito. Mas o sucesso dessas HQs se dá graças à herança já secular da “contação de histórias” em quadrinhos. Algo que dificilmente o cinema de super-herói, como meio essencialmente ligado a um mercado quase infinitesimalmente mais caro que o de HQs, vai ter o luxo de desenvolver. E muito provavelmente nem vai precisar desenvolver.

Carros e super-poderes (2)

Forming: eram os deuses alienígenas?

por Marcos Maciel de Almeida

Já sabia, há tempos, da existência da Editora A Bolha, do Rio de Janeiro. Nunca tinha, entretanto, adquirido nada que eles haviam publicado. Tudo mudou quando compareci à terceira edição da Dente, feira de publicações independentes, em Brasília. Estava lá um stand da editora cheio de belezinhas prontas para serem degustadas. Eram muitas opções, mas a grana estava curta. Decidido a não deixar a banquinha de mãos vazias, mas perdido em meio a tantas HQs bacanas e desconhecidas, resolvi pedir ajuda a quem manja do assunto. E ninguém melhor para isso que a própria fundadora d'A Bolha, Rachel Gontijo, também presente na feira. Ela me indicou Forming vol 1. O legal foi que já estava de olho no gibi, uma edição capa dura classuda, com cores que berravam psicodelia. Obrigado, Raquel. Você juntou a fome e a vontade de comer.

Alguns momentos antes, ao participar de um debate acerca do mercado de HQ independente no Brasil, Rachel havia falado sobre algumas de suas motivações para criar e continuar trabalhando com A Bolha. Um dos objetivos da editora é mostrar que existem muitos outros autores interessantes na cena quadrinística nacional e internacional, que não chegam ao grande público em razão das condições predatórias do mercado de publicações brasileiro. Dificuldades como obtenção de crédito financeiro, margens extorsivas dos distribuidores (leia-se Amazon) e a própria estrutura do mercado editoral brasileiro - que anda de mãos dadas com as chamadas "livrarias-shopping centers" – impedem o florescimento de uma cena que crie espaço para as variadas formas de expressão artística, especialmente as autorais, dentro e fora do universo dos quadrinhos. A Bolha vai na contramão de tudo isso. Busca, portanto, garantir a existência de áreas de convivência pacífica para todos: sejam grandes, pequenos, azuis, amarelos ou verde-verdinho-marrons.  O esforço de Rachel tem valido muito a pena. Desde sua criação, A Bolha já publicou quadrinhos de diversas vertentes, disponibilizando HQs estranhas, inconformistas, vibrantes, mas – sobretudo – necessárias. São mais de trinta petardos.

Forming é um deles.

Criado por Jesse Moyniham, um dos artistas responsáveis pelos storyboards da tresloucada animação Hora da Aventura, Forming é a delirante saga de uma sociedade humanoide oriunda do cruzamento de alienígenas com humanos. O problema é que o patriarca extraterrestre, Mithras, revelou-se um mala sem alça e o restante da família resolveu escorraçá-lo da face da Terra. A narrativa enfoca vários momentos importantes para a formação dos personagens, como os quebra-paus familiares do presente e a chegada dos visitantes das estrelas em priscas eras. Em clima despretensioso, Moyniham vai tecendo uma complexa genealogia de personagens às voltas com destinos ora bizarros, ora prosaicos. Tem de tudo aqui. Viagem no tempo, seres mitológicos, personagens bíblicos, organizações alienígenas com funcionários relapsos, incesto e pancadaria. É aquele gibi que você vai lendo torcendo para não acabar, dando rápidas olhadelas no número de páginas restantes e suando frio quando percebe que o fim está próximo. 

Mithras

Forming é um universo instigante e conta com um elenco surpreendente. Adão e Eva, soldados hermafroditas, gnomos, divindades galáticas e guerreiros de sovaco raspado da quarta dimensão participam de uma epopeia histórica com ares de novela mexicana. E o drama adquire proporções cósmicas quando deuses demasiadamente humanos passam a interagir em pé de igualdade com seus adoradores. Criadores e criaturas passam, então, a dançar uma valsa sórdida que poderá trazer – e trará – consequências desastrosas para todos os envolvidos.  Usando e abusando de grades de 9 quadros, o autor desvela uma aquarela de cores que deixaria Albert Hoffman, criador do LSD, com um sorriso nos lábios.

Um dos grandes temas que perpassa o gibi é o relacionamento humano com a religião. De forma sutil, mas constante, o autor suscita diversos questionamentos de cunho espiritual, como por exemplo o fato de que as entidades destinatárias da adoração humana podem não ser flor que se cheire. Outra questão levantada é a adoração religiosa cega e automática, livre de reflexões, que oprime qualquer tipo de manifestação que aponte novas direções e ideias.

Diagramação com 9 quadros. A mais comum em Forming

Pancadaria divina

Navegando pelas páginas de Forming pude compreender mais claramente a ideia por trás d'A Bolha. Na junção de formatos aparentemente incongruentes, como o independente e o luxuoso, a editora quebra os tabus que tanto restringem a diversidade das produções em uma forma de arte que é – essencialmente – transgressora. A mensagem aqui é que tem pra todos. Pode ter gibi indie com capa dura. Pode ter com papel bom. Pode ser colorido. E se não for assim, ninguém tem nada a ver com isso. 

Forming vol.2 deve ser lançado até o segundo semestre de 2018. Aguardo ansiosamente. Enquanto isso, vou dar uma vasculhada nos outros títulos d'A Bolha Editora. Prevejo novas sessões de entretenimento de alta qualidade. 

Teaser para Forming volume 2.