Forming: eram os deuses alienígenas?

por Marcos Maciel de Almeida

Já sabia, há tempos, da existência da Editora A Bolha, do Rio de Janeiro. Nunca tinha, entretanto, adquirido nada que eles haviam publicado. Tudo mudou quando compareci à terceira edição da Dente, feira de publicações independentes, em Brasília. Estava lá um stand da editora cheio de belezinhas prontas para serem degustadas. Eram muitas opções, mas a grana estava curta. Decidido a não deixar a banquinha de mãos vazias, mas perdido em meio a tantas HQs bacanas e desconhecidas, resolvi pedir ajuda a quem manja do assunto. E ninguém melhor para isso que a própria fundadora d'A Bolha, Rachel Gontijo, também presente na feira. Ela me indicou Forming vol 1. O legal foi que já estava de olho no gibi, uma edição capa dura classuda, com cores que berravam psicodelia. Obrigado, Raquel. Você juntou a fome e a vontade de comer.

Alguns momentos antes, ao participar de um debate acerca do mercado de HQ independente no Brasil, Rachel havia falado sobre algumas de suas motivações para criar e continuar trabalhando com A Bolha. Um dos objetivos da editora é mostrar que existem muitos outros autores interessantes na cena quadrinística nacional e internacional, que não chegam ao grande público em razão das condições predatórias do mercado de publicações brasileiro. Dificuldades como obtenção de crédito financeiro, margens extorsivas dos distribuidores (leia-se Amazon) e a própria estrutura do mercado editoral brasileiro - que anda de mãos dadas com as chamadas "livrarias-shopping centers" – impedem o florescimento de uma cena que crie espaço para as variadas formas de expressão artística, especialmente as autorais, dentro e fora do universo dos quadrinhos. A Bolha vai na contramão de tudo isso. Busca, portanto, garantir a existência de áreas de convivência pacífica para todos: sejam grandes, pequenos, azuis, amarelos ou verde-verdinho-marrons.  O esforço de Rachel tem valido muito a pena. Desde sua criação, A Bolha já publicou quadrinhos de diversas vertentes, disponibilizando HQs estranhas, inconformistas, vibrantes, mas – sobretudo – necessárias. São mais de trinta petardos.

Forming é um deles.

Criado por Jesse Moyniham, um dos artistas responsáveis pelos storyboards da tresloucada animação Hora da Aventura, Forming é a delirante saga de uma sociedade humanoide oriunda do cruzamento de alienígenas com humanos. O problema é que o patriarca extraterrestre, Mithras, revelou-se um mala sem alça e o restante da família resolveu escorraçá-lo da face da Terra. A narrativa enfoca vários momentos importantes para a formação dos personagens, como os quebra-paus familiares do presente e a chegada dos visitantes das estrelas em priscas eras. Em clima despretensioso, Moyniham vai tecendo uma complexa genealogia de personagens às voltas com destinos ora bizarros, ora prosaicos. Tem de tudo aqui. Viagem no tempo, seres mitológicos, personagens bíblicos, organizações alienígenas com funcionários relapsos, incesto e pancadaria. É aquele gibi que você vai lendo torcendo para não acabar, dando rápidas olhadelas no número de páginas restantes e suando frio quando percebe que o fim está próximo. 

Mithras

Forming é um universo instigante e conta com um elenco surpreendente. Adão e Eva, soldados hermafroditas, gnomos, divindades galáticas e guerreiros de sovaco raspado da quarta dimensão participam de uma epopeia histórica com ares de novela mexicana. E o drama adquire proporções cósmicas quando deuses demasiadamente humanos passam a interagir em pé de igualdade com seus adoradores. Criadores e criaturas passam, então, a dançar uma valsa sórdida que poderá trazer – e trará – consequências desastrosas para todos os envolvidos.  Usando e abusando de grades de 9 quadros, o autor desvela uma aquarela de cores que deixaria Albert Hoffman, criador do LSD, com um sorriso nos lábios.

Um dos grandes temas que perpassa o gibi é o relacionamento humano com a religião. De forma sutil, mas constante, o autor suscita diversos questionamentos de cunho espiritual, como por exemplo o fato de que as entidades destinatárias da adoração humana podem não ser flor que se cheire. Outra questão levantada é a adoração religiosa cega e automática, livre de reflexões, que oprime qualquer tipo de manifestação que aponte novas direções e ideias.

Diagramação com 9 quadros. A mais comum em Forming

Pancadaria divina

Navegando pelas páginas de Forming pude compreender mais claramente a ideia por trás d'A Bolha. Na junção de formatos aparentemente incongruentes, como o independente e o luxuoso, a editora quebra os tabus que tanto restringem a diversidade das produções em uma forma de arte que é – essencialmente – transgressora. A mensagem aqui é que tem pra todos. Pode ter gibi indie com capa dura. Pode ter com papel bom. Pode ser colorido. E se não for assim, ninguém tem nada a ver com isso. 

Forming vol.2 deve ser lançado até o segundo semestre de 2018. Aguardo ansiosamente. Enquanto isso, vou dar uma vasculhada nos outros títulos d'A Bolha Editora. Prevejo novas sessões de entretenimento de alta qualidade. 

Teaser para Forming volume 2. 

Serviço de utilidade pública: Novidades d’A Bolha


por Pedro Brandt 

Nós, da Raio Laser, somos fãs da editora Rachel Gontijo. Ano passado, ela lançou A Bolha Editora, especializada em quadrinhos pouco convencionais e bizarros. Este fim de semana, Rachel, que é brasiliense mas mora no Rio de Janeiro, estará mais uma vez em Brasília para divulgar material d’A Bolha. Ela chega na cidade com duas novidades: Ice fuckers, do francês Frédéric Fleury, e O babaca, do americano Gary Panter. Recomendo uma googleada para conferir o trabalhos dos dois artistas.

Pessoalmente, gosto mais do Panter, dono de um estilo mais explosivo e selvagem (como o nome dele sugere) e criativo do que o Fleury, com seu traço underground tosco (“escola” que tem formado alunos demais, eu diria). De qualquer jeito, quero conferir os dois lançamentos para melhor avaliá-los. 


O agito está marcado para às 15h, deste sábado (28 de julho) na Laje (708 Sul, bloco A, casa 47). Presença confirmada de quase toda a galera que produz quadrinhos em Brasília. E, claro, da equipe Raio Laser. Nos vemos lá!


A Bolha Editora: relação visceral





















 por Pedro Brandt

Insatisfeita com o que considera mesmice, falta de ousadia do mercado editorial brasileiro, Rachel Gontijo Araújo resolveu publicar ela mesma os livros de que gosta. Para a empreitada, não poderia ter escolhido nome mais apropriado. A Bolha Editora começou a atuar este ano e já nos primeiros títulos deixou clara sua proposta.

Vá para o diabo, do argentino Federico Lamas, por exemplo, apenas parece um caderninho do tipo moleskine repleto de ilustrações. Mas visto com o auxílio de um visor que acompanha a publicação (chamado de visão infernal), os desenhos revelam segredos (escabrosos e divertidos), e mostram o que, a olho nu, o leitor não consegue perceber.


A celebração, do moçambicano Rui Tenereiro, Powr mastrs vol.1, de Christopher “CF” Forgues e 0-800-Ratos, de Matthew Thurber, ambos americanos, são histórias em quadrinhos com artes e tramas pouco convencionais. Seu corpo figurado, de Douglas A. Martin (com tradução do escritor gaúcho Daniel Galera) é o primeiro lançamento da coleção Just a Bubble (dedicada à prosa) e apresenta uma análise dos trabalhos dos pintores Balthus e Francis Bacon, e do poeta Hart Crane. Até o final do mês, mais dois livros da coleção serão lançados (em coedição com a editora Autêntica).

Rachel conta que, por enquanto, o retorno que A Bolha vem recebendo chega mais na forma de reconhecimento pela iniciativa do que em número de vendas. Ainda assim, a receita geradas pelos livros tem lhe dado condições de pagar algumas das contas da editora e acreditar em seu futuro. A Bolha, afirma a editora, é um projeto de vida.

Antes de começar A Bolha, esta brasiliense de 33 anos estava nos Estados Unidos, terminando um mestrado no Instituto de Arte de Chicago e dando aulas na Universidade de Columbia. “Escrevendo e passando frio”, ela lembra sobre estes anos que foram fundamentais para sua formação e na decisão de montar a editora. Antes disso, na Universidade de Brasília, ela fez mestrado em filosofia (curso que estudou na França) e, na cidade, trabalhou como editora assistente na Unesco. De volta ao Brasil, Rachel escolheu o Rio de Janeiro para morar. Lá, montou a sede d’A Bolha, no terraço do prédio onde funcionava a fábrica de chocolates Bhering. É onde vende os livros de sua editora e diversas outras publicações nacionais e importadas, todas de artistas com afinidades com a proposta da Bolha.

Linguagem como corpo

A Bolha, nas palavras de Rachel, busca trabalhos de investigação estética quase marginais, malcomportadas. A escolha deles, ela diz, é estritamente pessoal. “Não existe curadoria que não seja pessoal e, se existe, não me interessa. Eu gosto do trabalho e publico. Pode até parecer ingênuo, mas não acredito em nenhum outro tipo de escolha editorial. Acho que esse negócio do ‘gostar’ nas artes tem menos porquês do que geralmente se imagina. É visceral. Tem que ser, se não, qual a graça?”, explicita Rachel. “Eu gosto de artistas e de escritores que arriscam a própria linguagem como corpo. Eu acredito muito no que a Hilda Hilst dizia, que ‘a carne é que sente’. Eu gosto de artistas que não têm medo da própria carne”.

E por falar em Hilst, em 2012, A Bolha publicará nos Estados Unidos (em parceria com a Nightboat Books, de Nova York), A obscena senhora D, célebre romance da escritora paulistana. “O segundo titulo de Hilda, Cartas de um sedutor, ainda está sendo traduzido e só deve ser lançado em 2013. E Fluxo-floema, em 2014”, adianta Rachel.



A Bolha Editora

Lançamentos: 0-800-Ratos, de Matthew Thurber, 24 páginas, R$ 12; A celebração, de Rui Tenereiro, 108 páginas, R$ 39; Powr mastrs vol.1, de Christopher “CF” Forgues, 120 páginas, R$ 36; Seu corpo figurado, de Douglas A. Martin, 148 páginas, R$ 34 e Vá para o diabo, de Federico Lamas, 52 páginas, R$ 35. Informações: www.abolhaeditora.com.br.





Entrevista com Rachel Gontijo

Você é brasiliense. Como a cidade te influenciou no gosto pelas artes?
Sim, eu nasci em Belo Horizonte, mas sou brasiliense. Demorei muito tempo para me sentir confortável suficiente na minha relação com Brasília para poder afirmar isso. Não tem como um lugar onde se vive tanto tempo não influenciar de alguma forma. Mas para ser sincera, acho que Brasília me influenciou pelas próprias limitacões — da cidade e das minhas limitações em relação à cidade. Aqui se vive numa espécie de estética da imposição e/ou imposição estética. E são justamente esses movimentos de imposição que não me interessam nas artes, e que tento combater diariamente, tanto no meu trabalho de editora como na minha própria escrita.

Como tem sido o contato com as editoras estrangeiras? E o que é mais difícil nessas negociações?
Meu contato é quase que só diretamente com autores. Eles apostam em mim e eu neles. Foi assim em todos os casos. Tanto com Nathanel, Douglas A. Martin, Gail Scott, Bhanu Kapil, como com Federico Lamas, Rui Tenreiro, Marc Bell, Heather Benjamim, Christopher Forgues e Matthew Thurber. O que faz todo processo ser muito mais prazeroso. É realmente uma parceria. Mesmo no caso da Picturebox, liderada pelo grande Dan Nadel (editor do Thurber e Christopher “CF” Forgues), a relação acaba sendo direta com os autores. Mais difícil e desinteressante é a negociação com agentes. É um diálogo, na grande maioria das vezes, baseado em números, seco. Então tento evitar.

Você vai lançar livros da Hilda Hilst nos Estados Unidos. Come você percebe o interesse de literatura latinoamericana por lá?
Eu não acho que tenho conhecimento suficiente para falar sobre o interesse na literatura latinoamericana como um todo (na América do Norte). Confesso que tenho uma certa dificuldade com esse termo, “latinoamericano”, até pelo próprio entendimento norteamericano do que vem a ser América Latina e o latinoamericano, o que acaba quase por se transformar numa categorização. O que posso dizer é que muito pouco se conhece da literatura brasileira por lá. Não tenho medo nenhum em afirmar que a literatura brasileira, infelizmente, é inexistente na América do Norte. A verdade é que, tirando alguns poucos, sempre mencionados autores brasileiros, somos quase que invisíveis no norte. Mas acredito sim que hoje se tem mais espaço para se mudar essa realidade, para que o norteamericano se deixe ser mais curioso em relação a outras linguagens. E não acredito em melhor abre-alas que Hilda Hilst para forçar ainda mais essa abertura.

Como foi o seu contato com essa produção mais alternativa de quadrinhos?
Eu comecei a prestar mais atenção — pelo menos com mais consciência — em quadrinhos quando estava indo embora de Chicago (2009) e me preparava para fazer uma viagem de trem com a artista Stephanie Suaer, de Chicago para Sacramento, Califórnia. A viagem duraria dois dias. E me lembro que nós passamos na Quimby’s e eu comprei uma série de livros, incluindo A drifting life (do Yoshihiro Tatsumi). Até então minha interação mais direta com narrativas se dava, pelo menos de maneira mais linear, pela escrita. Não acho que li um só quadrinho nessa viagem, mas logo depois quando voltei ao Brasil devorei um atrás do outro e continuei a pesquisar, ler, ler e pesquisar, e fiquei impressionada com as possibilidades de linguagem que a narrativa visual traz. Logo depois, durante uma residência artística em Nova York, comecei a pesquisar mais a fundo e fui encontrando uma série de trabalhos extraordinários. Eu sempre gostei muito de pesquisar, cavucar. Me ajuda a prestar menos atenção à insônia.

E os interessados em entrar para o catálogo da Bolha, como fazem?
No momento, como sou só eu tocando o projeto, e temos uma série de outros livros já programados para publicação, não estou podendo aceitar originais para avaliação. Mas espero em breve poder começar a receber originais, dar a devida atenção a novas possibilidades de publicação. E quem sabe contar também com apoio de outras editoras (leia-se: coedições).


Quem você gostaria de ver publicado pela Bolha (brasileiro e estrangeiro)?
Leando Mello, Mark Beyer, Virgilio Neto, Seth, Maura Lopes Cançado, Suzanne Jacob, John Keene, Claude Cahun. Mais Bhanu Kapil, mais Nathanel, mais Douglas A. Martin. A lista é grande e continua crescendo.

O leitor brasileiro é careta? Ou desinformado? Ou, pior ainda, desinteressado?
Eu acho que algumas editoras brasileiras é que são caretas e não têm o devido respeito, não dão o devido crédito ao leitor brasileiro.

Você já publicou alguma coisa sua? O quê?
Sim, tenho algumas partes de um manuscrito (primary anatomy) ainda em progresso em alguns jornais literários norteamericanos e algumas outras partes desse mesmo manuscrito que serão publicadas em 2012 na Mandorla (setembro) e na Evening Will Come (fevereiro). Espero poder finalizar esse manuscrito até o começo do ano que vem, mas ter tempo para me permitir escrever tem sido difícil.