UGRA FEST 2017: Pequeno diário de uma grande epopeia

por Márcio Jr.

Foi-se o tempo que andar de avião estava tranquilo e favorável. Agora, toda vez que precisamos nos deslocar algumas centenas de quilômetros, a velha pesquisa de mercado obrigatoriamente entra em cena, buscando opções minimamente viáveis. Foi o que fizemos eu e Márcia Deretti – minha companheira de trampo e de vida – para participarmos da UGRA FEST 2017. Um livro novo fumegando debaixo do braço e a vontade de rever uma montanha de amigos forneceram o álibi perfeito para a viagem. Resolvemos, inclusive, chegar dois dias antes. É essa jornada que divido agora com você, prezado leitor Raio Laser.

O vôo de ida saía de Goiânia quinta-feira, 06 de julho, às 05:57 da madruga. Questão de preço, óbvio. Depois de passar dias finalizando o livro a ser lançado, além de reunir materiais pra banquinha e afins, consigo fechar as malas por volta de 02:30h. Coloco o despertador para apitar às 04:00h e... é lógico que programei tudo errado! Por sorte, a Márcia acordou às 04:20 e saímos os dois correndo como loucos rumo ao aeroporto. Agradeço publicamente ao SpeedRacer que pilotava nosso Uber.

Douglas e Daniela Utescher; e o Márcio!

Na fila do embarque, damos sequência ao calvário. As novas regras de bagagem me obrigam a fazer um remanejamento entre malas. Estávamos dentro do peso permitido, mas agora existem restrições de volume. Tira uma cueca daqui, passa uns livros pra lá e tá feito o negócio. Uma das malas que iria despachar agora tem que ser levada em mãos.

Com o tempo sempre apertado, vamos para o embarque. Quando a mala passa pelo detector, a funcionária me diz que há ali dentro objetos parecidos com CDs, uma tesoura e algo orgânico não identificado. Ela pede para revistar a bagagem. Os CDs, na verdade, eram os vinis do Mechanics que eu levava para a feira. Entrego para ela a tesoura – que, apesar de pontiaguda, estava dentro do tamanho permitido. Já o tal “orgânico”... Me lembro que a única coisa orgânica que havia colocado naquela mala – que deveria ter sido despachada, lembrem-se bem – eram uns certos cigarrinhos de artista. Sou um artista. Estava a caminho de uma feira de artistas. Me parecia absolutamente razoável portar meus próprios cigarrinhos de artista.

Revira a mala daqui, futrica acolá e eu, anos de Actor’s Studio nas costas, impassível. Num dado momento, fecha a mala. Penso que estou livre. A fulana diz então que irá passar novamente a bagagem pelo detector. Como bom ateu, entreguei pra Deus. Ela olhou pelo equipamento e me mandou essa: “Tem malas que têm algumas coisas orgânicas mesmo, que a gente não consegue identificar. Boa viagem.”

Adrenalina a mil, entro no avião e encontro minha poltrona. De repente, pelos autofalantes da aeronave, ouço o comissário solicitar: “Gostaríamos que se identificasse o Senhor Marc... elo”.Nova descarga de adrenalina. A essa altura do campeonato, barba branca, dois filhos no lombo, passar por esse tipo de emoção barata não é mais tão divertido quanto no passado.

Chegamos ao Tukkkanistão. Nos hospedamos no hotel São Paulo Inn, Largo Santa Ifigênia, centrão. Hotel charmoso, porém decadente. Fachada lindona das antigas, quarto meio baleado. Do jeito que eu gosto, mais do que mereço. Fazem nosso check-in antes do almoço. A sorte começa a mudar.

Rolê básico pela região, almoço de lei no Sujinho. De noite, encontramos o grande Lauro Larsen, que acaba de editar, pela Mino, a pérola Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias – aguardem resenha muito em breve aqui no Raio Laser. Numa churrascaria nas imediações do hotel, tomamos umas tantas longnecks e uma cachacinha para espantar o frio, enquanto papeamos sobre mercado editorial brasileiro de HQs, quadrinistas nacionais das antigas, além de avançarmos num projeto para um futuro próximo. Lauro é o cara.

Dia seguinte, peno no purgatório – Rua 25 de março – para chegar ao paraíso – Mercado Municipal. Pastel de bacalhau, sanduíche de mortadela e chope me fazem acreditar que a vida pode ser uma poesia sem fim. E aí não resta alternativa a não ser ir ao cinema conferir o novo filme do gigante dos quadrinhos (entre outras tantas searas) Alejandro Jodorowsky. Muita felicidade ver Jodorowsky em ação, esbanjando vigor aos 88 anos de idade, num filme que poucos teriam colhões e/ou talento para dirigir. Coisa fina. Encerramos a noite na Bella Paulista. Deixo um rim como parte do pagamento por uma salada, um omelete e quatro chopes.

Manhã de sábado, dia 08 de julho. Ouriçados, mala estufada de livros, gibis e quetais, tomamos o caminho da UgraFest 2017. O Sesc Belenzinho, local onde ocorre o evento, é longe do centro. Mas a estrutura do lugar compensa a distância. Gigantesco e maravilhosamente bem-cuidado, recebe o festival de forma pra lá de apropriada.

Procuramos nossa mesa e, felicidade, estamos ao lado do grande chapa (e quadrinista) DW Ribatski. Nesse primeiro instante já era perceptível o cuidado com que o casal Ugra, Douglas e Daniela Utescher, organizaram todo o evento. Os mais de 100 expositores estavam dispostos não de forma aleatória, mas por afinidade. A UgraFest é um evento que se pauta pela diversidade dentro da produção gráfica independente, o que faz com que os mais diversos tipos de propostas estivessem ali representados. Publicações bagaceiras, alternativas, experimentais, sofisticadas, indie, punk, roqueiras, mainstream e o que mais fosse possível – com exceção feita à produção meramente comercial – tiveram guarida nesta edição. E dispor autores e publicações de forma inteligente criou uma cartografia belíssima da produção independente brasileira.

Ribatski logo participaria de um dos primeiros debates do evento. Durante o período, tomamos conta de sua banca.Os debates e palestras foram outro dos diversos pontos fortes da UgraFest 2017. Temas e convidados escolhidos por quem entende do riscado geraram uma discussão absolutamente relevante para o momento que o mercado editorial brasileiro atravessa. Infelizmente, por causa da feira em si, não pude participar de nenhum destes bate-papos, apesar da vontade imensa. Então, como eu sei que foram bons mesmo? Ora, quem foi, comentou. E não sou burro de duvidar da categoria de gente como Laerte Coutinho, Rafa Campos Rocha, Fabio Zimbres, Luiz Gê e Ramon Vitral.

Crazy people: Ribatski, Márcia e Márcio

O público compareceu em peso ao evento, garantindo vendas ao menos razoáveis por ali. Não tenho números, mas estava bonito de se ver, ainda em que nenhum momento as coisas tenham ficado inviáveis pelo excesso de gente. Ou seja, se você é fã de filas (e, consequentemente, super-heróis), provavelmente ficaria decepcionado com a UgraFest. Ali, autores estavam o tempo todo disponíveis, felizes e abertos ao contato direto com seu público. Acho esse papo furado pra cacete, mas não vi nenhum momento de estrelismo durante todo o evento.

Estrela da festa, Marcatti, esbanjando a simpatia que lhe é peculiar, estava felizão com a exposição que montaram em homenagem aos 40 anos de uma carreira que inaugura e é síntese da produção independente brasileira. 40 artistas criaram versões únicas para o Mickey Mouse (ou Fritz, the cat, como queiram) de Marcatti: Frauzio.

Final do primeiro dia, arranco coragem do fundo da alma e atravessamos a cidade rumo à Laje – projeto/espaço cultural pilotado por DW Ribatski em Sampa. Aparece por ali a fina flor dos quadrinhos independentes brasileiros: Zimbres, Pedro Franz, Gerlach, Tiago Elcerdo, Pablo Carranza, Chiquinha e outros tantos. Cerveja rolando forte e um tal Karaokê. Márcia encara Patti Smith, mas o must da noite foi ver Zimbres atacando de bossa nova. Fomos embora antes dele mandar um Nirvana. Melhor assim.

Domingão. Uma leve ressaca faz com que nos atrasemos um pouco para a feira. Nada demais. O dia segue frenético. Lendário, Ota segue com transmissões ao vivo de seu celular podreira, enquanto vende a Garota Bipolar nº 2. Gerlach rouba a cena com Nóia, Uma História de Vingança em parceria com a galera da Escória Comix – que também lança o clássico instantâneo Úlcera Vortex Vol.II. Mas nem só de bagaceirices vive o homem. A Ugra também abarcou o pessoal dos zines gourmet. Belas edições e tiragens limitadíssimas. Impressões risográficas e ideias fervilhando. Muito legal também foi ver editoras como Zarabatana, Veneta, Marsupial, Draco e Mino travando contato direto com o público. Classe.

WAZ, Ota e Marcatti: não é pouca merda!

Pense na CCXP. A UgraFest não tem nada a ver com isso. Em um esforço meio grosseiro, poderíamos situar o evento do casal Utescher entre o experimentalismo da Feira Plana e a “HQ relevante nacional” do FIQ. Não que a feira esteja restrita apenas aos quadrinhos, mas este é, com certeza, seu carro-chefe. Quadrinhos para quem não lê apenas quadrinhos, por assim dizer. E neste sentido a Ugra joga papel fundamental no panorama brasileiro: o de tratar as HQs como uma linguagem madura, sofisticada e não restrita a um leitor incapaz de vivenciar experiências que transcendam o universo Super-Herói/MSP. (Um leitor verdadeiramente adulto, em última instância.)

O público que passou pelo evento está anos-luz de distância daquilo que chamamos de nerd.

Final de feira, correria total. Últimas vendas, trocas, contatos. Voltamos ao hotel com a expectativa de ainda sairmos para comer e beber algo. Ledo engano. Peço uma pizza, taco fogo num daqueles cigarrinhos da mala e fico um tempão na sacada do quarto, observando o Centro de São Paulo, sua arquitetura, o movimento que acontece durante a noite. Bela viagem.

Algumas das "coisas de artista" que estavam na mala do Márcio

O que ficou da UgraFest 2017? Uma onda positiva nos ares do mercado independente nacional. A mesma crise que me fez comprar um vôo de madrugada é responsável pelos golpes que editores e autores estão enfrentando no Brasil de agora. Vi a esmagadora maioria dos participantes saírem dali renovados, baterias recarregadas, não só pelas vendas – que muitas vezes não justificam o investimento financeiro de autores que vêm de outros Estados – mas principalmente por participarem deste momento incrivelmente rico que vive a produção independente. Existe uma rede de criatividade e ousadia espalhada por essa tranqueira de país. Existem trabalhos incríveis sendo concretizados. Existe gente do mais alto calibre discutindo e problematizando tudo isso. Em tempos horrorosamente negros como estes, Douglas, Daniela e a UgraFest dão a fita: um dos caminhos da resistência está na arte que transgride e não se acomoda.  E no prazer em produzi-la.

PRAÇA DO VINIL CONVIDA RAIO LASER!

Mais um evento da RAIO LASER! Neste sábado dia 15/07.

Curta o evento aqui.

Vejam o que os parceiros da MARCONDES AND CO escreveram:

"O Praça do Vinil, em edição especialíssima, convida um dos maiores sites de quadrinhos do Brasil, a Raio Laser (http://www.raiolaser.net/ ), para fazer a curadoria na feira deste 15 de julho.

E dessa vez, junto com a tradicional feira de vinil, teremos a maior reunião de sebos de HQs do Distrito Federal.

O evento será oportunidade inédita para colecionadores de quadrinhos buscarem raridades, pois trará diferentes bancas para venda e troca. Lojas e editoras, como Kingdom Comics e Dente, além de sebos e acervos particulares de todo Distrito Federal estarão à disposição do visitante.

Não esquecendo, claro, do Vinil, como sempre a estrela da festa, com as melhores coleções de Brasília, como Marcondes & Company, Filial do Rock e Givaldo Discos e outros. Mais de 5 mil bolachões à venda. A Marcondes levará também sua livraria de clássicos da contracultura!.

O evento contará com DJ especial focado em cultura pop, roquenrol, hip hop, jazz, blues, reggae, trilhas de filmes e músicas do universo das Histórias em Quadrinhos!"

Quando: 15 de julho, das 10h às 19h

Onde: Venâncio Shopping. Praça de Alimentação.

Brasília-DF

Entrada gratuita

Arte do sensacional

Pedro D'Apremont

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Dreadstar: o desbunde cósmico de Jim Starlin

por Marcos Maciel de Almeida

Comecei a ler as aventuras de Vanth Dreadstar na finada revista Epic Marvel, publicada pela Abril em 1985. Gostava bastante do mix do gibi, que tinha ainda "Legião Alien" e "Irmandade do Aço", mas quem realmente mexia com meu coraçãozinho era Vanth e companhia. Era uma história com um senso de direção impressionante, como se tudo já estivesse (e estava) milimetricamente mapeado. Os personagens eram bem construídos e os desenhos eram fantásticos. Havia drama e ação na medida certa, tanto na escala de grandiosidade – como uma boa saga cósmica pede –, quanto na avaliação do elemento humano em situações-limite. 

Mas o que eu não sabia era que já tinha pegado o bonde andando. Havia todo um passado bastante interessante do personagem, que merecia ser apreciado. Na verdade, as aventuras de Vanth que eu estava lendo eram como que uma “segunda vida” do personagem. Em sua primeira encarnação, Dreadstar tinha participado, em sua galáxia natal, do conflito entre os orsiranos e os zygoteanos, numa batalha que cobrou o preço máximo dos envolvidos. Essa história da origem de Vanth havia sido publicada na revista norte-americana Epic Illustrated, que surgia como opção viável para criadores interessados em lançar material independente. Starlin já tinha algo em mente quando surgiu a chance de entrar na revista e agarrou a oportunidade com unhas e dentes. 

Hoje é fácil associar o nome de Starlin às sagas cósmicas, mas foi somente com Dreadstar que a estrela do autor atingiu seu zênite. Embora tivesse gozado de relativa liberdade criativa quando estava por trás do Capitão Marvel e de Warlock, foi somente em Dreadstar que ele pôde realmente fazer o que lhe desse na telha, afinal os personagens eram inteiramente seus. Nas palavras do autor: “Mais de vinte anos atrás, quando estava terminando minha fase em Warlock, comecei a brincar com a ideia de fazer um tipo de conto de fadas com um final apocalíptico. O problema era que não havia lugar para publicá-lo sem ceder todos os direitos. Isso teria sido algo decepcionante. Você pode imaginar o Dreadstar aparecendo nas realidades do Homem-Aranha ou do Superman? Não funcionaria.” Tal dificuldade desapareceu com o lançamento da revista - dedicada a antologias fantásticas - Epic Illustrated, que saiu em 1979 pela Marvel.  

Segundo o arranjo definido entre a editora e os quadrinistas, os autores seriam os únicos donos do material. E Dreadstar fez parte da empreitada desde o número 1. Lançada no Brasil por duas editoras diferentes, primeiro a Devir em 2011 (Odisseia da Metamorfose) e pela Mythos em 2017 (Dreadstar: O Princípio), as primeiras aventuras do guerreiro das estrelas mostraram nosso herói pego a reboque num combate que não teria vencedores. E o detalhe mais fascinante aqui é que tudo se passava em nossa própria galáxia. Veterano da Guerra do Vietnã, Starlin fez, em Odisseia da Metamorfose, seu libelo contra todos os tipos de guerra, especialmente o conflito atômico. Lançada em pleno período de reaquecimento das tensões entre União Soviética e Estados Unidos, também conhecido como II Guerra Fria (1979-1985), Starlin mostrou que o medo da sociedade mundial de que tudo fosse pelos ares era bastante palpável. 

Antes de mais nada, é preciso dizer que Starlin decidiu que chegaria chutando bundas na estreia de Dreadstar. A partir da quarta história, por exemplo, o autor passa a fazer arte pintada (e colorida!). Avesso a zonas de conforto, Starlin resolveu arriscar e se deu muito bem. A Odisseia da Metamorfose é pura lisergia. Se seu traço habitual já era dado a nos brindar com cenas de loucura e alucinação, a inserção de cores aumentou ainda mais a viagem psicodélica dos leitores. Lembra que eu disse que Starlin tinha liberdade criativa? Bem, não vou dar spoilers, mas o final da minissérie é de cair o queixo e nos deixa pensando: ele teve realmente coragem de fazer isso? 

Sabendo que tinha um diamante nas mãos, Starlin logo percebeu que Vanth Dreadstar não poderia ficar na geladeira por muito tempo e que logo voltaria. Eis que, em 1982, é lançada a graphic novel batizada apenas de Dreadstar, que seria sucedida por uma série bimestral homônima dentro do selo Epic Comics – linha de quadrinhos autorais, direcionadas a um público mais maduro – da Marvel. Neste renascer de Dreadstar, temos o despertar, um milhão de anos depois, de Vanth em um nova galáxia, também fragilizada por um conflito secular entre forças opostas: a Monarquia e a Instrumentalidade.

Contando com a fé cega de seus seguidores e com a utilização da religião como forma de opressão das massas, a Instrumentalidade domina, com mão de ferro, metade da Galáxia Empírica. Seu líder, não por acaso chamado de Lorde Papal, é considerado o representante sagrado dos Doze Deuses, criaturas extradimensionais divinas que se julgam no direito de reger os caminhos de incontáveis seres e planetas. Conforme descrito por Starlin, “a Instrumentalidade é uma poderosa ordem político-místico-religiosa que governa sua metade da galáxia com ameaças de danação, decretos divinos, inquisições indiscriminadas e guerreiros sagrados”. Seus grandes rivais, a Monarquia, são a força que domina o restante da galáxia, contando com grande poderio militar financiado por uma dinastia milenar. Starlin continua: “A Monarquia advém de uma dinastia de doze séculos. Fundada e mantida pela família real dos Dyologos e seus exércitos”. 

Bem, Dreadstar cairá de paraquedas no meio desse conflito, que já dura duzentos anos e foi originado por um motivo do qual poucos lembram ou se importam. Na verdade, o que está por trás dos combates é o fato de que é melhor para as potências continuarem lutando, já que a economia de guerra tornou-se bastante lucrativa e o processo de paz poderia acarretar perdas financeiras importantes para ambos governos. Trocando em miúdos, Starlin faz um paralelo com o período de Guerra Fria que era assustadoramente real. 

Alistado nas fileiras da Monarquia para direcionar a máquina de guerra a seu favor, Vanth vai subindo de patente e pula fora do exército real no momento em que está pronto para se tornar a terceira força do conflito galáctico. Para tanto, reúne uma equipe formidável e bastante coesa. O núcleo duro de aliados de Vanth conta com o feiticeiro Sygyzy Darklock, o versátil homem gato Oedi, a telepata Willow e o contrabandista Skeevo. Incomparável, aqui, foi a habilidade de Starlin em criar personagens complexos e bastante reais, e com origens bastante interessantes. Sygyzy, por exemplo, ganhou um gibi inteiro para chamar de seu. Não coincidentemente chamada de “O Preço”, a edição especial narra o terrível sacrifício do ex-bispo da Instrumentalidade para lutar em prol do futuro da galáxia. 

Visualmente bem sacados e com uma interação bem azeitada, feita para Chris Claremont nenhum botar defeito, os parceiros de Vanth ajudam seu líder a virar o jogo no – até então – conflito bilateral. As constantes intervenções e vitórias de Vanth, entretanto, chamam a atenção do nefasto Lorde Papal que, sendo bem sincero, é um Thanos repaginado. Se o arquirrival de Warlock tinha fixação pela morte, o nêmesis de Dreadstar só anseia poder. Starlin, então, constrói uma trama que atualiza sua crítica a sistemas totalitários e regimes autocráticos, sejam laicos ou religiosos. A loucura e megalomania de Magus – versão futurista e maligna de Adam Warlock – está claramente refletida na insaciável sede de controle de Papal. Também não é mera coincidência a semelhança física entre Starlin e Dreadstar. O alterego do autor é seu avatar na luta contra todas as formas de tirania. 

O problema é que as frequentes vitórias de Vanth deixam seu rival cada vez mais transtornado. Resultado: cenário perfeito para que Starlin lance mão de temas recorrentes em sua obra: morte, fúria, e delírio. Em dado momento - até hoje chocante – a escalada vertiginosa do ódio de Papal faz com que ele chegue ao cúmulo de destruir – com armas atômicas – uma metrópole inteira, numa tentativa de eliminar Vanth e Sygyzy. Abaixo vemos exemplos da técnica, tipicamente starliniana, de repetir diagramações e mostrar as similaridades e contrastes entre os protagonistas. No primeiro temos o desabafo de Vanth após o ataque nuclear exagerado e sanguinário de Papal. No segundo temos a reação do chefe da Instrumentalidade ao sobreviver à traição de um oficial que tinha filhos na cidade-palco da devastação nuclear.

Livre da interferência do Comics Code, sem a obrigação de veicular anúncios na revista e com sucesso de crítica, parecia que Starlin finalmente se aquietaria e ficaria com o burro na sombra na Marvel, certo? Ledo engano! O incansável criador aproveitou que os personagens eram seus e picou a mula para a First Comics depois da edição 26 da série regular. Malandro que é, Starlin pulou fora bem no auge da trama, no momento exato em que ia revelar quem era o traidor da equipe. O título ainda teria mais 38 edições pela First, mas sejamos francos, o filé mignon só vai até o número 30, quando ele conclui a saga principal. Nem mesmo Peter David e Angel Medina, que assumiriam a revista após a saída de Starlin, foram capazes de fazer a estrela de Vanth voltar a brilhar. Em 1994, Dreadstar ganharia uma nova minissérie em seis partes, pelo selo Bravura, da Malibu Comics. A revista tinha o slogan: “Dreadstar está de volta, e ela está furiosa!”. Sim, é isso mesmo que você leu. Bem, na verdade não era o Dreadstar original, mas sim sua filha, numa história ruim de chorar. 

Lorde Papal: minha religião é o poder

Leitura obrigatória para fãs de ficção científica e de bons quadrinhos, Dreadstar teve uma trajetória errática de publicações. A posse dos direitos nem sempre pode ser considerada uma benção, especialmente quando isso faz com que os personagens pulem de editora em editora.

Dreadstar é um exemplo pródigo disso. No quesito troca de editoras o guerreiro das estrelas está mais para mochileiro das galáxias, em razão de sua peregrinação por “trocentas” casas publicadoras. Para quem se interessar, montei aqui a ordem de leitura da série, tanto no Brasil quanto no exterior:

Lista 1. Publicações de Dreadstar nos EUA:

1) Epic Illustrated # 1-9 (Marvel, 1979). Aqui está a Metamorphosis Odyssey, posteriormente relançada em encadernados por editoras como SLG Publishing e Dynamite.

2) Dreadstar Annual: The Price (Marvel, 1983)

3) Dreadstar Graphic Novel (Marvel, 1982)

4) Epic Illustrated # 15 (Marvel, 1982) 

5) Dreadstar # 1-26 (Marvel/Epic, 1982). Posteriomente relançada em encadernados por editoras como DF Edition (1 ao 12),  SLG (1 ao 6) e Dynamite ( 1 ao 12) .

6) Dreadstar # 27-64 (First Comics, 1986). Inédito no Brasil.

7) Dreadstar # 1-6 (Malibu Comics, 1994). Inédito no Brasil. 

Lista 2. Publicações de Dreadstar no Brasil:

1) Dreadstar: Odisseia da Metamorfose (Devir, 2011) 

2) Dreadstar: O Preço (Globo, 1992)

3) Graphic Globo # 1: Dreadstar (Globo, 1988)

4) Epic Marvel # 1-6 (Abril, 1985)

5) Dreadstar, O Guerreiro das Estrelas # 1-10 (Globo, 1990)

OBS 1: O gibi Dreadstar: O Princípio (Mythos, 2017) coleciona os itens 1, 2, 3, e 4 da lista 1. 

OBS 2: O gibi Dreadstar (Mythos, 2016) coleciona as primeiras 12 edições da série de Dreadstar lançada pela Marvel/Epic nos EUA em 1982.

É isso, garotada. Quem quiser mergulhar de cabeça numa saga cósmica de responsa já sabe onde procurar. Abraço! 

Sygyzy Darklock

Emancipação feminina, patriotismo americano e práticas sadomasoquistas: as primeiras aventuras da Mulher Maravilha

É com plena satisfação que a Raio Laser anuncia mais uma espetacular colaboradora! Trata-se da professora e pesquisadora em história em quadrinhos e fotografia Havane Melo. Aproveitando o ensejo do filme, Havane produziu pra gente este completíssimo texto sobre a Mulher-Maravilha de Era de Ouro. Uma ótima maneira de entrar chutando portas aqui nesse território. Valeu Havane! (CIM)

por Havane Melo

As primeiras histórias da Mulher Maravilha, a Princesa Diana da Ilha Paraíso, datam da década de 1940 e são assinadas por Charles Moulton. Para começar já na polêmica, esse nome, na verdade, é um pseudônimo que mistura os sobrenomes do Dr. William Moulton Marston, psicanalista que escreveu artigos em defesa dos quadrinhos quando a sociedade americana começava a atacá-los e considerado o criador da personagem, e de M. C. Gaines, editor da All-American Comics Group, aliada formal da DC Comics. Anos depois (pasmem!), a esposa oficial de Martson, Elisabeth Holloway, declarou que teve participação direta na criação, inclusive definindo o sexo da personagem. 

Para desenvolver o visual e as feições da heroína baseados nas instruções de Moulton, foi contratado o desenhista Harry G. Peter. Esse artista foi o responsável por inserir as cores e símbolos americanos no uniforme da personagem, porém, também não levou crédito, nem quando Holloway assumiu publicamente a participação nas histórias.Posteriormente, essas informações foram amplamente divulgadas e, em muitos materiais atuais, como a coletânea organizada por Roy Thomas, constam os nomes dos desenhistas e roteiristas de cada história. 

As aventuras do período inicial apresentam a origem da Mulher Maravilha e sua saída da Ilha Paraíso para a América. Para entender melhor essa fase, temos que considerar o contexto político, social e intelectual americano, ou seja, a conjuntura da década de 1940 e seu reflexo direto na comunicação da época.

Politicamente, o mundo caminhava rumo à Segunda Guerra e o cenário americano incentivava o patriotismo e a valorização das forças armadas. Não é por acaso que a Mulher Maravilha usa uniforme nas cores da bandeira americana. A primeira versão foi a mais descarada de todas e continha, além das estrelas brancas sobre fundo azul, a águia careca dourada estampada no peito. Dito isso, não vai ser nenhuma surpresa se eu te contar que a Maravilha se apaixona à primeira vista por um piloto do serviço de inteligência americana, Capitão Steve Trevor, o primeiro homem a aparecer na Ilha Paraíso, exclusivamente habitada por amazonas. Trevor serve como elo entre o mundo do patriarcado (o equivalente à sociedade como a conhecemos) e a princesa Diana. É para ajudá-lo a concluir sua missão de manter a liberdade e a democracia e para auxiliar as mulheres ao redor do mundo que Diana deixa a ilha para viver na América. 

Sob o aspecto social, a guerra tinha a capacidade de realocar a força de trabalho masculina para os campos de batalha, o que favorecia o direcionamento das mulheres: das tarefas essencialmente domésticas, para o mercado de trabalho. Apresentar uma heroína capaz de resolver difíceis problemas sozinha não era apenas lazer, era propaganda. Além disso, os quadrinhos de Sheena, a rainha da selva, estavam rendendo bons negócios naquele período. E embora Charles Moulton assinasse sozinho as histórias da Mulher Maravilha, a verdade é que suas duas companheiras (sim, duas!) participavam ativamente da construção da personagem.  

Há boatos de que os braceletes de Diana foram inspirados nas pulseiras de Olive Byrne, a companheira não oficial de Moulton, e de que o trio era adepto de prática sadomasoquistas. E por que isso é importante? Porque está tudo embutido nas primeiras histórias. Para mais informações sobre o assunto, veja esse texto aqui ou dê uma olhada no livro The Secret History of  Wonder Woman, de Jill Lepore. Mas fique sabendo que a Mulher Maravilha não tinha a pretensão de ficar sozinha e, assim que saiu da Ilha Paraíso, tratou de fazer novas amizades femininas, aliando-se a Etta Candy e às garotas da Irmandade Beeta Lambda. Durante anos essas personagens, geralmente sem nomes, apareciam em praticamente todas as histórias, auxiliando a Mulher Maravilha a resolver diversas situações.

A irmandade Beeta Lamba, algumas cenas que remetem a práticas S&M e mensagens subliminares

O terceiro pilar dessa história leva em conta a roteirização das HQs daquele período. Gente, faz mais de 50 anos que essas histórias foram escritas! Naquela época, autores e público ainda estavam desenvolvendo diversas possibilidades de utilizar essa linguagem e, eventualmente, o desenho é redundante com o texto. Para a sorte do leitor contemporâneo, o conteúdo é divertido, cheio de aventuras e, eventualmente, cabe até um suspense. Isso sem falar que a MM está longe de ser uma donzela em perigo. É ótimo vê-la carregando Steve Trevor nos braços e salvando outros tantos homens.

Nas primeiras histórias, é comum ver a Mulher Maravilha carregando homens nos braços após salva-los de situações de perigo iminente

Ao longo dos seus 75 anos, a MM foi retratada de diversas formas, de acordo com o grupo (roteirista, desenhista e editor) que a assinava. Isso fez com que ela tivesse não apenas uniformes e origens variáveis, mas diversos perfis psicológicos foram desenvolvidos. A Maravilha de Moulton é erotizada, mas não é vulgar. Os desenhos de Gaines não favoreciam jogos de anatomia para satisfazer o imaginário masculino, como a de Yanik Paquette (Mulher Maravilha – Terra Um, de Grant Morrison), por exemplo. A erotização dessa fase chega a ter um tom cômico e sua relação com outras mulheres é de irmandade, mesmo quando em lado opostos da batalha. 

Mulher Maravilha: amigas e inimigas. Não passa nada!

Nas histórias modernas da MM, que privilegiam a origem mitológica da personagem em detrimento das ideias patriotas dos tempos de guerra, foi desenvolvida a “adorável submissão à vontade das amazonas”. Um conceito que privilegia os interesses da coletividade das amazonas em detrimento de seus possíveis desejos e valores pessoais. Mesmo nas histórias originais, a união entre mulheres tem lugar marcado nas lutas de Diana, vide a frequente aparição das garotas da Beeta Lambda. Provavelmente por interferência da vida privada de Moulton. Elisabeth Holloway era advogada e a principal provedora da família numa época em que apenas 2% desses profissionais era composto por mulheres. Já Olive Byrne – sobrinha de Margaret Sanger, importante feminista da década de 20 responsável pela primeira clínica de planejamento de natalidade nos Estados Unidos – embora tivesse trabalhado com Moulton em Harvard, permaneceu em casa cuidando dos filhos da família, duas crianças geradas por cada uma das esposas. 

Esse conjunto de HQs são um marco social, tanto pelo conteúdo das narrativas quanto pelo contexto no qual essas histórias foram criadas. É possível que a Maravilha seja uma das personagens femininas mais fortes da cultura pop, especialmente nessa época de império cinematográfico de grandes editoras, DC e Marvel Comics. Por isso, é importante perceber que a formatação atual da personagem foi criada em consonância com o atual público feminino das HQs e do cinema de super-herói. Por muito anos, nossas expectativas como leitoras não foram levadas em consideração. Esse cenário mudou, o número de leitoras e artistas de HQs finalmente tem sido observado e sua atuação, inclusive como consumidoras ativas de produtos e merchandising, incorporada às práticas de mercado. Isso é ótimo. Dá visibilidade para o feminismo, aponta para a derrocada da sociedade patriarcal tradicional que nem os próprios homens aguentam mais (ops, tô generalizando, ok?), mas não deve ser idealizado como um ícone. É um sinal dos tempos, sem dúvidas, mas está intimamente ligado ao poder de consumo feminino (Não esqueçam disso, migas!). 

Dá para ter uma ideia do uso comercial da personagem nesse vídeo, que mostra um tour pelo Museu da Mulher Maravilha, administrado por Christie Marston, neta de Moulton.

Em 2015, Roy Thomas compilou mais de 20 histórias dos primeiros anos da Mulher Maravilha (1941-1945) em um encadernado de ótima qualidade, com capa dura, papel especial, cores ajustadas, boa impressão e a identificação de roteiristas e desenhistas de cada história, de acordo com o Online Grand Comics Database.Com base nos primeiros anos que levaram à Segunda Guerra Mundial, Thomas também compilou as primeiras histórias do Batman e do Super Homem, compondo a coleção The War Years, sobre a trindade de heróis da DC. Esse texto foi escrito logo após o contato com tal material. Se você é fã de um desses heróis, não deixe de conferir os livros e conhecer os primórdios de suas caracterizações, conforme elaboradas pelos autores originais.

Coleção The War Years, de Roy Thomas. Pois é, o Batman sorria nessa época!

TABLOIDE: quadrinho clássico e potência na medida exata

por Ciro I. Marcondes

Em certo momento de Tabloide, a esbaforida e casca-grossa jornalista Samantha Castello, metida numa encrenca de vida ou morte, solta, no recordatório e em meio a um turbilhão de ações, um “sinto vontade de mijar”. Isso não interfere diretamente na trama. Apenas compõe o universo psíquico da personagem. Apenas ajuda a compreendermos a complexidade com que ela é elaborada em ínfimos detalhes. Afinal, em que quadrinho temos consciência da vontade de mijar de um personagem? E que personagem pensa “preciso mijar” numa situação de vida ou morte?

O autor deste romance gráfico – talvez fosse adequado chamar aqui de “álbum”, tamanho é o parentesco e a influência da HQ europeia – L. M. Melite, é desses que compõem uma história com este tipo de minúcia para que, não se enganem, a história seja a minúcia. Lendo estas páginas de Tabloide percebemos que Melite representa hoje, no quadrinho brasileiro, aquilo de que talvez nem sentíssemos falta. Porém, quando nos deparamos com isso é que vemos o tamanho do rombo: trata-se, é claro, da figura do roteirista de quadrinhos.

Roteirista mesmo, que planeja seus personagens até eles se tornarem efetivamente humanos. Que preenche os vácuos na história até você estar com a mente completamente tomada por uma névoa de ideias, ganchos, plots. Que não se abstém de usar recursos clássicos de quadrinhos (como recordatórios em primeira pessoa, coisa do quadrinho argentino, do quadrinho italiano), mesmo fazendo um quadrinho moderno. Que não foge da raia quando o assunto é a difícil arte de contar uma boa história com bons personagens.

Eu já notara este diferencial de Melite – o de já surgir como um quadrinista completo – ao ler Dupin, um romance gráfico de investigação policial psicologizada na mente infantil e no sobrenatural, um dos grandes quadrinhos brasileiros da década. Agora, com este novo lançamento, ele se mantém dentro das mesmas premissas e, ainda que a originalidade tenha sido largada para trás (e é isso que o quadrinista mais apegado ao clássico faz: abdica de suposta originalidade em prol do apuro meticuloso na constituição da história), consegue rearranjar os elementos de Dupin em um produto todo novo. Ninguém reclama, por exemplo, que John Ford tenha feito filmes meio parecidos, por exemplo, como “Paixão dos Fortes” e “Sangue de Heróis”.

Mudar apenas 10%

“Tabloide” é o nome do jornal editado por Samantha Castello. Um panfleto sensacionalista daqueles de espremer sangue. Desde o começo, quando a vemos, gorda e maciça, treinando boxe e descarregando uma atitude voluntariosa (e ao mesmo tempo ressentida) em editores e críticos, percebemos se tratar ela de uma personagem cheia de nuances, tiques, cacoetes de linguagem, traumas. Enfim, alguém calejado pelas circunstâncias duras da vida e que sobrevive aos trancos e barrancos às custas de vícios e pessimismo. Ela narra a história e ficamos conhecendo músicas que aprecia ou odeia, que chiclete bizarro consome, que sabor de pizza de vitrine de padaria come, que gosta de tirar onda de falar um latim tosco. Ficamos sabendo quando tem vontade de mijar.

A história de Melite em si é bastante interessante e engaja o leitor: uma travesti é encontrada morta, num vestido de noiva, nas margens de uma represa em São Paulo. O que se segue é o modelo de um bom romance noir: investigação, jornalistas e policiais “figura”, mergulho num tipo de submundo do crime, ação e crise existencial.

Ora, se, em Dupin, Melite se inspirou em Edgar Allan Poe para criar uma motivação macabra e excêntrica em seus personagens, aqui a base é ainda o policial, mas de matriz mais pulp ainda. Diria Raymond Chandler: pelo olho fotográfico em mapear a cidade de São Paulo (magnificamente bem inserida como cenário que faz toda diferença para que a história faça sentido); pela preocupação com que a trama não seja o único recurso da HQ, mas também o esquadrinhamento de hábitos e posturas dos personagens; e, obviamente, pela narração cínica, decadentista, grosseira como uma faca no estômago, de Samantha nos recordatórios.

Mudar de autor um policial de referência para outro pode parecer uma bobagem para a “genialidade” do quadrinista pós-moderno que “inventa” algo novo a cada produto. Para alguém de pretensão mais clássica como Melite, no entanto, mudar apenas 10% é o maior mérito que ele pode ter. Trabalhar apenas a nuance pode ser mais arte que repensar o todo a cada obra nova.

E não é apenas na literatura pulp que Tabloide se destaca. Como eu já disse, o álbum é uma história fechada (até melhor encerrada do que Dupin), pensado em uma estrutura de roteiro autônoma, sem muitas lacunas, que compõe várias camadas de entendimento dos personagens e das mazelas de São Paulo. Tangencialmente, Melite aborda sexualidade, trabalho escravo, ditadura, solidão, etc., mas a essência está no prazer de narrar, na beleza do texto. Parece aquela satisfação que sentimos quando lemos um bom fumetti bonelliano, ou um álbum bem resolvido do Tintim. Samantha, aliás, não deixa de parecer espécie de Tintim cuja vida deu errado, se fudeu e virou um investigador chauvinista, bruto e cínico, num Brasil que não nos dá orgulho de absolutamente nada. Que seja uma protagonista feminina com esse perfil, desbloqueando tanto clichês, é ainda mais um dos méritos desta HQ.

O tabloide, aliás, como se sabe, é a origem dos quadrinhos. Hearst e Pulitzer os publicaram nas primeiras décadas do século XX, produzindo uma competitividade saudável pela qualidade das tiras em meio a jornalismo de quinta e histeria de massa. Melite não está alheio a isso. Seu quadrinho é cheio de referências e easter eggs interessantes, que não são esfregados na cara do leitor e, fundamental, são incorporadas à organicidade da história. Uma das coisas que mais impressiona, aliás, é a capacidade de mesclar erudição (mesmo que seja de boteco) com o aspecto fuleiro de repartições e delegacias. O quadrinho fala inclusive de cheiros, gostos, uma certa fisiologia e sinestesia pobre que nos transporta diretamente para a cidade de São Paulo.

Em meio a essa erudição de cachaceiro, que faz emergir, de um Tietê de bosta, citações como “os olhos são a pior parte da morte” e “a verdade é um cão morto a céu aberto”, brilha a arte simples (inclusive de empaginação bastante regular, sem muita variação e pretensões formais), colorida por computador à maneira de um quadrinho dos anos 60, de Melite. Gestos e pontos-de-vista interessantes em meio à ação são privilegiados e, kirbyanamente, ele ilustra bons socos e porradas.

A porrada final, no entanto, é a desta São Paulo desgastada, desgraçada, mutilada e humilhada, que tem muito da inspiração no mundo fétido de Lourenço Mutarelli, mas se atualiza com esta proposta nova, porém com acertada deferência ao passado. Porrada e potência, duas palavras que substanciam bem estes quadrinhos de L.M. Melite. Agora vou sair de fininho porque estou com vontade de mijar. 

Especial Editora Mino #2: A Missão

O negócio é o seguinte: a Editora MINO segue aprontando, lançando material de primeira com o acabamento que HQs de respeito merecem. A gente segue trabalhando aqui, procurando ler e desvendar os mistérios destas publicações. Assim, quem ganha é o nosso leitor, com mais seis resenhas que desbravam as fronteiras das mais interessantes publicações nacionais (e além). Mesmo esquema do nosso primeiro especial. Outras editoras, se liguem! (CIM)

Caso queira enviar seu material para ser resenhado na Raio Laser, o endereço é o seguinte:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070 

por Ciro I. Marcondes, Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Lima Neto

O Soldador Subaquático – Jeff Lemire (Mino, 2016, 228 págs.): O canadense Jeff Lemire é um quadrinista de fronteira. Transita com desenvoltura entre o mainstream (leia-se Marvel/DC) e o quadrinho autoral. No Brasil, é tão conhecido por Sweet Tooth, sensível HQ da Vertigo, quanto por seus trabalhos com medalhões super-heroísticos – vide Old Man Logan, Homem-Animal, Superboy, X-Men e até o bombadão Thanos (desenhado pelo brazuca Deodato Filho, ops... Mike Deodato Jr.).

O Soldador Subaquático, graphic novel lançada pela Mino, encampa com veemência essa faceta mais autoral de Lemire. E cai como uma luva no belo catálogo da editora. Jack vive em uma remota cidadezinha próxima a uma plataforma marítima de extração de petróleo. Ali, trabalha como soldador subaquático, profissão de altíssimo risco. Sua esposa está às vésperas de dar à luz seu primeiro filho. O pai, alcóolatra – e também mergulhador – faleceu há muitos anos, em um acidente obscuro. A relação com a mãe, atravessada por esta tragédia do passado, é complexa – para dizer o mínimo. Este é o cenário no qual se desenvolve a narrativa, conduzida com brilhantismo por Jeff Lemire. Em sua introdução, Damon Lindelof (cocriador da série Lost e produtor executivo envolvido com os recentes Jornadas nas Estrelas e Prometheus) trata O Soldador Subaquático como uma versão contemporânea do clássico seriado Além da Imaginação. Comparação pobre. A HQ é um profundo tratado sobre relações familiares, memória e os dilemas de se tornar pai/deixar de ser filho – temas caros a Lemire e que já haviam sido tratados, sob outra perspectiva, em Sweet Tooth. Na estante, O Soldador Subaquático ficaria muito bem ao lado de Umbigo sem Fundo, de Dash Shaw. Mas Dash Shaw não escreve super-heróis – o que faz com que o livro do canadense forneça outros pontos de vista sobre as fronteiras existentes entre os diferentes gêneros de histórias em quadrinhos.

Formalmente, o que Jeff Lemire exibe em O Soldador Subaquático é um preciso domínio da linguagem quadrinística. A história avança e recua conforme suas intenções narrativas. Há uma ausência completa de redundância. Os personagens são carregados de alma e profundidade. O mais intrigante é que o autor consegue isso lançando mão de um desenho muito simples, de poucos recursos, urgente, quase taquigráfico. 

Não há subterfúgios no traço de Lemire. O álbum sequer conta com as vistosas cores presentes em Sweet Tooth. No máximo a aguada, também urgente, pouco elaborada. O artista não parece nada preocupado em escamotear suas deficiências técnicas (anatomia, perspectiva e quetais). Ao contrário, parece eviscerá-las. Em O Soldador Subaquático, Jeff Lemire encara os desafios de se apresentar nu. Ao olhar do leitor médio de super-heróis, provavelmente lhe falte algum botox e litros de silicone. 

Isso talvez explique porque, na Marvel/DC, Jeff Lemire esteja confinado ao papel exclusivo de roteirista. É como se estivesse estabelecido que seu desenho não é “profissional” o suficiente para a indústria de super-heróis. Daí que, apesar de ser um quadrinista de fronteira, que transita entre o autoral e o mainstream, Lemire – por forças alheias à qualidade do seu trabalho – não consegue diluir estes limites. No autoral, é um autor. Na indústria, é o funcionário do mês. Sua posição é sintomática da atual incapacidade dos quadrinhos de super-heróis conduzirem seus leitores a novas experiências com outros tipos de quadrinhos, como por exemplo a BD europeia, o mangá japonês e o quadrinho sul-americano. 

A Mino prometeu para o início do segundo semestre a publicação de The Complete Essex County, outro tijolaço autoral de Lemire. Maravilha. Até lá, seria interessante que seus leitores do universo Marvel/DC se dessem a oportunidade de conhecer O Soldador Subaquático. Em última instância, não é que o desenho de Jeff Lemire seja amador para o mainstream. Mas sim que este mesmo mainstream talvez não tenha um público com o olhar um pouco mais amplo para acessar o que de melhor o quadrinista tem a oferecer. (MJR)

Você é um Babaca, Bernardo – Alexandre S. Lourenço (Mino, 2016, 132 p.): Fosse um filme (coisa que dificilmente seria), poderíamos dizer que Você é um Babaca, Bernardo está obcecado com a continuidade. Afinal, a despeito de toda a complexidade formal imaginada para este estranho quadrinho, é o seu apego à micronarrativa – como pequenas bolhas de som que encontramos quando ouvimos Daft Punk ou Spoon em fones de ouvido –, e aos detalhes quase imperceptíveis espraiados no curioso passar do tempo; é nestes pontos que a HQ se sustenta. Interessa-nos mais, aqui, como narrativa, qual quadro está pregado na parede ou qual roupa o personagem veste no dia de chuva, do que o modesto romance que se apega ao plot principal. Não que isso importe muito. Às vezes a experiência da arte é mesmo vasculhar a engrenagem e a engenharia da beleza. Ninguém liga muito, hoje em dia, para o discurso revolucionário de Eisenstein, mas todos admiram sua maneira de erigi-lo.

Alexandre Lourenço foi caçado na Internet (a partir de seu site “Robô Esmaga – Quadrinhos Miúdos” – sugestivo, não?) pela Mino, e Você é um Babaca, Bernardo de certa forma se tornou um hit no nosso meio, ganhando prêmios e figurando em listas. Peguei o livrinho com imensa curiosidade, o trabalho é minucioso e delicado, mas certamente não é essa cocada toda. Com influência clara dos papas do quadrinho experimental norte-americano (Chris Ware e Richard McGuire), além de uma pontinha de Rafael Sica (sem sua poesia), esta HQ prima por um experimentalismo bem calculado. 

Em primeiro lugar, há duas ordens de leitura na primeira parte (podemos ler sequencialmente ou um quadrinho por página, acompanhando os dias monótonos do personagem). Como nos quadrinhos de Ware, o procedimento todo é curioso, intelectualmente concebido, um experimento. Também como nos quadrinhos de Ware, esta forma intrincada e microscópica de se fazer e ler HQs deságua sempre na temática do tédio, da repetição mecânica, da solidão moderna. Me pergunto por que toda micronarrativa experimental em quadrinhos precisa ter personagens tão enfadonhos quanto Bernardo e Gabriela, os protagonistas do morno romance aqui representado.

Não que fazer um romance gráfico com excesso de traços formalistas não tenha lá seu charme. Lourenço se utiliza de diversos outros recursos interessantes, como garranchos e cores representando mensagens de texto, o uso pontual e preciso dos close-ups, além de certos momentos mais livres (desgarrados do sistema proposto no começo – o que indica que, em certo momento, o autor jogou o planejamento às traças) em que praticamente em cada página temos um arranjo de leitura diferente. 

É quadrinho em laboratório, que procura produzir reflexão sobre modos modernos de solidão e amor, mas que insiste em chamar atenção para sua fábrica formal a cada instante, não deixando o sentido efetivamente se libertar. Lourenço, em certos momentos, até mesmo resiste a fazer uma arte propriamente sequencial (o nome mais acadêmico dos quadrinhos) para produzir uma arte de imagens em simultaneidade. Como se saísse de um “eixo sintático x” (da narração) e fosse para um do “eixo paradigmático y” (da mostração e da acumulação poética). 

Lourenço é um talento, sem dúvida, e Você é um Babaca, Bernardo é inventivo e bem engendrado. Vai agradar aos geeks do experimental matemático e aos fãs do Chris Ware que começaram a ler quadrinhos em 2009, mas, para mim, de certa forma, quando a cabeça do personagem se esvai naquelas cenas surrealistas, escapa pelo buraco no pescoço também a alma deste quadrinho. (CIM

The Shaolin Cowboy – Geof Darrow (Mino, 2016): Geof Darrow é um artista do tipo maníaco obsessivo, que adora criar cenas incrivelmente detalhadas. Sabe aquela coisa de desenhar a perna peluda da mosca em cima do cocô do cavalo do bandido? É mais ou menos por aí... E o novo lançamento da Mino, Shaolin Cowboy, é uma prole fidedigna do estilo Geof Darrow de fazer gibis. Aliás, é mais do que isso. Pode-se dizer que Shaolin Cowboy é o gêmeo separado no nascimento de seu irmão mais velho, Hard Boiled, escrito por Frank Miller e lançado em 1990. Vinte e seis anos depois o caçulinha chegou no Brasil chutando bundas, mas isso é assunto para daqui a pouco. Falemos, por enquanto, do primogênito.

Hard Boiled é o suprassumo do gibi bagaceira, numa história que combina doses cavalares de violência, sucata, lixo e destruição. O detalhismo presente no traço de Darrow era – e continua sendo – enlouquecedor e levou a nona arte a um novo patamar. Quem ainda duvidava que quadrinhos também eram coisa de gente grande deve ter ficado sem argumento diante das cenas de apocalipse urbano meticulosamente ilustradas por Darrow. Arrisco dizer que ele é um dos precursores do hiper-realismo nos gibis. Eis um artista capaz de criar imagens tão perfeitas que são quase mais reais que a própria realidade. Apesar disso, o clima da revista é aquele típico de vídeo games vida loka, estilo GTA, especialmente pela gostosa sensação de estar breaking the law, ainda que de mentirinha. Outra coisa que lembra jogos de ação é o ritmo acelerado. Em Hard Boiled tudo é tão apressado e intenso que os personagens, objetos e páginas parecem estar gritando o tempo todo.

Hard Boiled

E este talvez seja o grande contraste com Shaolin Cowboy, pelo menos em parte. Se a ação em Hard Boiled é urbana, com requintes de confinamento, a trama de Shaolin Cowboy, não menos sufocante, ocorre em espaços abertos, num deserto habitado por jacarés, tartarugas e gatos. Metal e vidro dão lugar a carne e sangue, também em quantidades generosas. Se, no gibi anterior, Miller imaginou uma metrópole barulhenta e densamente habitada, Darrow, agora alçado à condição de roteirista/desenhista, optou por uma narrativa que tem por testemunha o silêncio dos personagens e das locações.

Mas, afinal, do que se trata o gibi? Bem, é a aventura de um cowboy shaolin no deserto tentando salvar a pele durante um ataque zumbi. E é interessante notar as escolhas do Darrow roteirista para contar esta história. As primeiras duas páginas contêm uma recapitulação do que havia ocorrido antes do início da revista, num texto enorme com letra pequena. Já a HQ em si tem inúmeras páginas sem diálogos, compensadas, em contrapartida, por violência e pancadaria quase hipnóticas. A opção pela marcação do fluxo da narrativa fica, portanto, evidenciada, já que o autor começa com um ataque verborrágico que logo é substituído por um storytelling que funciona como um voto de silêncio, no melhor estilo zen budista. 

Também como em Hard Boiled, Shaolin tem como prerrogativa a estética do exagero. Tudo é grandioso e colossal. Mutilações, decapitações e mortes dão as caras em escala industrial e são mostradas com precisão sádica. Muito contribui para isso a arma utilizada pelo protagonista – uma vara de bambu com uma motosserra em cada extremidade – para detonar os pobres dos mortos-vivos. E Darrow parece ter prazer especial em triturar os “walkers”, já que passa a maior parte do gibi eliminando-os de tudo quanto é forma possível. Lembra que eu falei que Darrow é maníaco? Então, quando ele resolve dar voz a suas obsessões, sai de baixo... Prepare-se para encarar páginas e mais páginas de um holocausto zumbi, ou melhor, um holocausto de zumbis, que funciona como uma espécie de exorcismo para o autor. É um verdadeiro desbunde de tripas e miolos voando para tudo quanto é lado. Se Miller pôde fazer terapia semelhante em Hard Boiled, com inúmeras cenas de carros destruídos, metal retorcido e caos generalizado, Darrow também não quis ficar atrás e promoveu uma festa gore de responsa. 

E confesso que não poderia culpá-lo por ter feito o que fez. Atire a primeira pedra quem nunca quis sair dando porrada – sem mais nem menos – numa multidão zumbi. E o shaolin cowboy, grande responsável pela matança (?) dos cadáveres ambulantes, faz seu “trabalho” de forma abnegada e disciplinada, com a mesma tranquilidade que teria se estivesse na fila para comprar pão, afinal os problemas terrenos são meros obstáculos no caminho da iluminação. 

No fim das contas só posso elogiar a Mino pela escolha do título e pela belíssima edição em capa dura. Os loucos fãs do maníaco Darrow agradecem. (MMA)

Hermínia – Diego Sanchez (Mino, 2015): Certos relacionamentos são bastante autodestrutivos, mas talvez sejam a única saída para almas perdidas como as de Hermínia e Arcádio. Essa é – ou parece ser – a premissa da HQ de Diego Sanchez. Digo "parece ser" porque a vibe onírica é uma constante no decorrer das páginas. O tom de incerteza sobre o que seria real ou ilusório está presente tanto no roteiro quanto nos desenhos, que têm uma pegada – intencional – de rascunho, como que para retratar a dimensão que enxergamos quando sonhamos, ou seja, aquela percebida sob um ponto de vista construído por esboços e, não raro, fora de foco.

Isso não quer dizer que o traço seja simplório, muito pelo contrário. Sanchez conseguiu encontrar o equilíbrio entre a fugacidade onírica, no desenho dos personagens, e a realidade quotidiana, na fotografia do quadrinho. Assim, as imagens das ruas e das casas – detalhadamente registradas – são a âncora que garantem a permanência do casal no plano dos despertos. Outro fator de desorientação – novamente premeditado – é o fato de a história ser contada fora da ordem cronológica, com diversos saltos para frente e para trás. E o efeito disso é a sensação de estar preso em um momento único, no qual todas as ações têm a sua importância e parecem transcorrer simultaneamente. Mas é uma pena que o autor não tenha achado outra solução para a inserção dos flashbacks e dos flashforwards que não fosse a utilização de páginas magenta chapadas espremidas entre os capítulos. O problema da utilização desse recurso foi a excessiva quebra de ritmo da narrativa, por demais brusca em determinados momentos. 

A história de amor entre Hermínia e Arcádio, permeada por excessos de paixão e prazer, é caracterizada pela necessidade frequente de reafirmação do romance, requisito que é levado às últimas consequências. A chaga de Arcádio é sua obrigação de ter que provar a todo instante sua devoção a Hermínia que, por sua vez, se sente atraída pela aura de mistério do parceiro. E sobre este último, marcado para sempre com uma grande cicatriz sobre o nariz, há uma curiosidade, revelada de forma sutil. A ferida, na verdade, foi resultado de uma brincadeira inventada por seu irmão mais velho, que se tornaria tatuador. Pode-se dizer, assim, que o primogênito já era uma pessoa predestinada a deixar marcas na pele dos outros.

Gostei muito do capricho na produção do gibi, especialmente a gramatura das páginas e a ilustração da capa (dura).  Apesar disso, creio que houve certa incoerência entre o luxo da edição e o tom despojado que a história se propõe a ter. Outra coisa que incomodou é o que costumo chamar de "síndrome do cinema brasileiro", ou seja, a constante prática de preencher o vazio com uma suposta profundidade. Explico. Muitas vezes os autores são obrigados a ocupar espaços na trama para aumentar o volume de suas obras, como se tamanho e duração de determinado produto resultassem, automaticamente, em maior credibilidade. 

E isso pode gerar mais problemas que soluções. É o que acontece com Hermínia. Sanchez podia ter enxugado o número de páginas, deixando a trama com menos pontos de interrogação, no melhor estilo "menos é mais". Optou, entretanto, por esticar a história e inserir mensagens e cenas de difícil interpretação, especialmente no final da trama. Ok, talvez o desfecho não tenha que ser necessariamente cartesiano, com tudo detalhadamente explicado, mas confesso que fiquei com a impressão de que o autor ficou diante de uma encruzilhada para conseguir encerrar a história. E a solução encontrada foi carregar na dose de mistério e simbologia, fato que conferiu hermetismo indesejado ao gibi. (MMA

Fungos – James Kochalka (Mino, 2016): Terrece Mckenna - o xamã psicodélico da geração rave – teorizou, após uma experiência particularmente forte com o cogumelo psilocibina, que alguns tipos de fungos são um mecanismo de comunicação cósmica lançado no espaço por uma raça primordial e que seu consumo permitia a comunicação com os deuses. Em seu melancólico livroA Transmigração de Timoty Archer, Phillip K. Dick mostra que a verdade por trás da experimentação da presença do espírito santo nas sociedades cristãs primitivas era obra de um fungo que nasce nas cavernas áridas da região de Jerusalém. Para muitos estudiosos, os seres vivos do reino fungi têm um papel seminal no desenvolvimento do ser humano na terra. Estes não são os fungos que encontraremos no gibi Fungos do norte-americano James Kochalka. O incensado autor, que estreia no Brasil nesta bem cuidada edição da Mino, é conhecido nos EUA por uma variedade de trabalhos, dos mais sensíveis aos mais humorísticos. 

Embora os personagens de Fungos não sejam os cogumelos de Mckenna, estas divertidas criaturas passam boa parte do seu tempo se preocupando com a comunicação. Seja tentando entender as intenções de Deus, ou fingindo ser os desenvolvedores do Facebook, os fungos de Kochalka parecem ter se entediado com a natureza à sua volta e a reinterpretam como versões da vida tecnológica do nosso dia a dia. O resultado são continhos leves e prazerosos que ironicamente nos fazer rir de nós mesmos, como se os fungos fossem crianças encenando o mundo dos adultos. Fungos é um quadrinho despretensioso como aquele mofo de quintal, mas a simplicidade narrativa burilada por anos de produção de Kochalka faz de cada continho um jogo de conceitos divertido de se ler. 

Importante citar que boa parte do prazer dessa leitura vem da versão bem esmerada da tradutora Dandara Palankof que deu vida aos diálogos adaptando as falas com um humor característico da contemporaneidade digital, mas sem esbarrar em chavões que poderiam tornar o texto datado e piegas. (LN)

Mar – Diego Sanchez (Mino, 2016, 44 pg.): Diego Sanchez Más Saint Martin é o mais prolífico autor da Editora Mino. Vira e mexe, o cara (agora também um tatuador originalíssimo) tá com trabalho novo na praça. Mar é seu gibi mais recente e, por assim dizer, o mais ligeiro. 

A primeira coisa a impressionar é o design da publicação, que imediatamente remete ao experimentalíssimo gráfico da Nobrow Press – ou a fanzines mais artesanais e invocados, vibe Feira Plana. A história em si tem leitura rápida e traz todos os ingredientes característicos do autor: narrativa aberta e polissêmica, atmosfera onírica, pegada indie-intimista, layouts de página inusitados (com pausas, silêncios e espaços vazios). O desenho, em particular, se apresenta mais sujo que o usual, oxidado, como que vítima da maresia que compõe o cenário da HQ.

Morto e Martin estão sozinhos em um navio, à deriva – sensação esta que se impõe sobre a obra. Em dado momento, o alter-ego do quadrinista afirma: “Minhas histórias são caracóis. Encolhidos e patéticos.”

Para quem já conhece e admira o trabalho de Sanchez, pode vir sem medo. Mas como primeiro contato, Hermínia e Perpetuum Mobile oferecem entradas mais consistentes. (MJR)

RAIO LASER APRESENTA: 3º CURSO "HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL"

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As histórias em quadrinhos são fascinantes por suas cores vibrantes, por seu imaginário sem limites e sua força na cultura pop, certo? Ora, fazendo o curso HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS – TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL, você vai descobrir que o mundo das HQs é muito mais vasto e interessante do que isso. Ministrado por dois professores completamente aficcionados (do site RAIO LASER e da coluna ZIP – QUADRINHOS E CULTURA POP, do site METRÓPOLES) e interessados em fatores culturais, sociais, históricos e estéticos desta mídia, este curso é uma oportunidade única de mergulhar com profundidade nos quadrinhos. Serão ensinados sua origem na antiguidade, as tiras cômicas do começo do século, quadrinhos franceses, japoneses, italianos, ingleses, argentinos e brasileiros. Além, é claro, da tradição norte-americana com seus famosos super-heróis. É a sua chance de compreender como os quadrinhos se manifestam como arte, como cultura e contra-cultura, como influenciam na sociedade e como evoluíram em geografias distintas através do tempo.

06 encontros / 18 horas-aula

Período: 08 a 19 de maio de 2017 – segundas, quartas e sextas, de 19h às 22h

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O processo de inscrição e pagamento é totalmente realizado no nosso site. Defina a quantidade de matrículas que deseja realizar e clique no botão “comprar”. Caso você prefira, poderá matricular-se diretamente no Espaço Cult, na 215 sul (Brasília).

Você pode pode parcelar no cartão de crédito em até 03 vezes sem juros ou em até 12 vezes fixas, com juros cobrados diretamente pelo PagSeguro, ou pagar à vista com boleto bancário ou transferência bancária (Banco do Brasil, Bradesco, HSBC ou Itaú).

CRONOGRAMA:

Aula 01 (08/05): O surgimento dos quadrinhos + primeiros quadrinhos: ainda no século XIX, os quadrinhos despontaram como mídia influente, industrializada, de conteúdo anárquico e politicamente incorreto. Krazy Kat; Little Nemo; Mutt and Jeff; O menino amarelo. Os funnies e a popularidade das family strips.

Aula 02 (10/05): Era de ouro americana + o quadrinho de horror (período clássico): a era clássica dos quadrinhos e a ascensão do heroísmo (Flash Gordon, Tarzan, Príncipe Valente, Dick Tracy). A criação do comic book e dos super-heróis (Superman; Batman). Will Eisner e Spirit. A popularidade da EC Comics e dos quadrinhos de horror, guerra e ficção científica. O código de censura e o fim da era de ouro.

Aula 03 (12/05): A cultura da BD e o quadrinho francobelga: os quadrinhos de tradição francófona em duas frentes. A rivalidade entre as revistas Spirou e Tintin e o quadrinho de humor (gros nez e linha clara). Jerry Spring, Lucky Luke, Spirou, Tintim, Asterix, Gaston Lagaffe. O quadrinho adulto francobelga a partir de revistas como Pilote e Métal Hurlant, entre outras. Autores: Dionet, Moebius, Druillet, Lob, Bilal, Jodorowsky, Tardi, Hermann, etc.

Aula 04 (15/05): O quadrinho italiano (fumetti) + o quadrinho japonês (mangá): introdução à cultura de HQ pulp das bancas italianas com faroeste (Tex, Ken Parker, Mágico Vento), aventura e horror (Martin Mystère, Dylan Dog, J. Kendall). O quadrinho autoral italiano: Hugo Pratt, Crepax, Manara, Serpieri, Liberatori. A cultura de quadrinhos japonesa em seus âmbitos histórico, social, industrial. Mangás e gekigás. Autores: Osamu Tezuka, Hayao Miiazaki, Katsuhiro Otomo, Suehiro Maruo, Yoshihiro Tatsumi, Jirô Taniguchi.

Aula 05 (17/05): O super-herói das eras de prata e bronze + O quadrinho nacional: o retorno à cultura de super-heróis a partir da ascensão da Marvel nos anos 1960. Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, John Buscema, etc. O dilema do herói na era do Vietnã e no flower power. O amadurecimento dos super-heróis no final dos anos 80 e o surgimento do anti-herói: John Byrne, Frank Miller, Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison. A trajetória do quadrinho brasileiro, desde os primórdios (Angelo Agostini a Tico-tico) até nomes históricos como Mauricio de Sousa, Ziraldo, Henfil, Angeli, Laerte, Glauco, Mozart Couto, Watson Portela, Shimamoto, Colin, Mutarelli, chegando à contemporaneidade.

Aula 06 (19/05): Os quadrinhos underground (comix) e o quadrinho autoral contemporâneo: a cultura de subversão do quadrinho independente americano dos anos 60. De Zap Comix a American Splendor e Raw (Crumb, Shelton, Spain, Pekar, Spiegleman, etc). O amadurecimento dos quadrinhos autorais a partir dos anos 80. Love and rockets, Maus e a revolução indie. Autores contemporâneos: Joe Sacco, Alison Bechdel, Daniel Clowes, Charles Burns, Marjane Satrapi, Chris Ware, etc.

PROFESSORES:

Ciro I. Marcondes é professor, crítico e pesquisador de Histórias em Quadrinhos e Cinema. Foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, do curso de Cinema do IESB e de Audiovisual no Unicesp. Atualmente ministra aulas no curso de Comunicação do UniProjeção. É Doutor em Comunicação e Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília, com passagem pela Sorbonne. É o editor do site www.raiolaser.net, especializado em crítica de Histórias em Quadrinhos, e mantém semanalmente, no portal Metrópoles, a coluna Zip – Quadrinhos e Cultura Pop. Já ministrou cursos como “História do Cinema”, “Crítica de cinema e análise fílmica”, “Hitchcock e a ilusão do cinema”, “Cinema e filosofia”, para o Espaço Cult, Centro Cultural Banco do Brasil e Espaço Varanda.

Pedro Brandt é jornalista formado pela Universidade Católica de Brasília (2006). Passou pelas editorias de cultura dos jornais Tribuna do Brasil (2005-2007), Jornal de Brasília (2007-2008) e Correio Braziliense (2008-2012), para as quais escreveu sobre diversos assuntos, com destaque para música e histórias em quadrinhos. Produziu e apresentou durante cinco anos (2006-2011), junto com Fernando Rosa, o programa Senhor F, na Rádio Cultura FM de Brasília, com enfoque diferenciado em clássicos, obscuridades e novidades do rock. Também trabalha como assessor de imprensa e coordenador de comunicação de projetos culturais, produtor de shows de rock e idealizador do selo Discos Além (lançamentos em vinil e CD). É articulista e editor do site especializado em quadrinhos Raio Laser (www.raiolaser.net).