Rapidinhas Raio Laser #07

Dizem que o quadrinho brasileiro nunca viveu momento tão bom. Pode ser que sim, pelo menos no quesito variedade. Afinal, tem de tudo um pouco. E, pasmem, encontrar muitas opções de gibis nacionais virou lugar comum, graças à disseminação de “livrarias Shopping Center” e mega lojas virtuais. Mas essa maior proliferação dos quadrinhos made in Brazil não ocorreu da noite pro dia. Medalhões da HQ nacional tiveram de comer muito arroz com feijão nas chamadas publicações independentes para conseguir seu lugar ao sol. E se a variedade dá as cartas nos gibis publicados por editoras de pequeno, médio e até grande porte, como Cia das Letras, essa diversidade representa apenas uma gota no oceano na cena de publicações indie. Basta dar uma volta em qualquer feira de HQ que se preze para perceber que a galera está lançando gibi de tudo quanto é tipo. E os gibis e zines analisados nesta nova edição do Rapidinhas não são exceção. Espere encontrar por aqui uma gama de narrativas sobre paixões não correspondidas, underground musical e pancadaria urbana gratuita, entre outras drogas. Como vaticinou James Kochalka em seu The Horrible Truth About Comics, o negócio é se expressar, e os manos e as minas arregaçaram as mangas e colocaram o lápis para trabalhar. Mais que isso: deixaram-se arrebatar pela liberdade que o formato DIY permite. O resultado foi – e continuará sendo – visceral.

Esta seleção do material independente que recebemos/compramos é uma excelente oportunidade de conhecer um pouco dos monstros que habitam o inconsciente coletivo de quadrinistas profissionais e amadores que escolheram a nona arte dar seu recado. As razões pelas quais fizeram isso são variadas. Sede de fama, desejo de exorcizar demônios pessoais, falta do que fazer e etc. Não importa. O que vale é que esses caras tiveram coragem de dar a cara a tapa. Sorte nossa.

Gostaria de dizer que a escolha do material resenhado aqui segue critérios altamente rigorosos, mas estaria mentindo. A verdade é que a equipe do Raio Laser mete a mão na pilha de publicações recebidas e separa aquilo que parece mais apetitoso. Às vezes rolam algumas indigestões, mas faz parte. Ok, podem criticar nossos métodos, mas eles são democráticos. Nesta semana e na próxima (tivemos de dividir esta por dois!), vamos nos debruçar sobre gibis da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiás, Fortaleza e Deus sabe onde. Tem coisa nova e coisa velha. Tem gibi gourmet e tem zine com página xerocada. Lemos todos com carinho. (MMA)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070.

por Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

Seres Urbanos: Antologia do Quadrinho Underground Cearense – Vários (SEBO, 2015, 100 p.): Essa aqui estávamos devendo há um tempo, mas valeu a espera. O Márcio Jr já havia dado um pitaco aqui. Para quem não sabe, “Seres Urbanos” é o nome de um coletivo de zineiros de Fortaleza dos anos 90. Foram oito anos de produções praticamente ininterruptas e esta antologia reúne material representativo de dezenas de zines, exposições, colunas em jornais e outras manifestações em que eles estiveram metidos. A publicação foi financiada pela Secretaria de Cultura do Governo do Ceará, que fez seu papel para preservar a atualidade desta incrível coleção sobre os hábitos, ansiedades, gostos (o zeitgeist, enfim) de uma cultura alternativa nos anos 90.

Esses sujeitos eram zineiros roots, sempre na correria para publicar um volume desproporcional de coisas que vendiam a preço de custo, distribuíam na entrada de shows, enviavam pelo correio, movimentavam a cena da cidade. A antologia ainda vem com um rico texto estilo “reportagem por entrevistas” nas páginas finais, direcionando influências e o momento histórico de cada autor e cada gênero abordado nos zines. O principal quadrinista a publicar era Weaver Lima, um cara ligado também à música alternativa de Fortaleza – bandas como Velouria e Second Come... alguém se lembra dessas porras? Até mesmo a nossa saudosa Low Dream está em grande estima nas páginas de Seres Urbanos - , com influência da Revista Animal, Love and Rockets, Angeli, etc. Além de ser um ilustrador carismático, Weaver era bom em escrever ótimas histórias de típicas festinhas e showzinhos de rock dos 90’s Brasil afora, com a tradicional caracterização blasé e decadentista da juventude underground da época (quando era chique fazer bandas alternativas que cantavam em inglês, tipo Pin Ups). Virou um prestigiado artista plástico.

Fora Weaver, a antologia apresenta um sortidão de gêneros zinescos que marcaram época (arte postal, colagens, charges, cartazes) e também da produção dos outros caras. Lupin, por exemplo, faz um estilo “hebdomadaire francês”, inserindo citações de poetas e filósofos em quadrinhos de deboche. O estilo realista, com diálogos e situações das ruas de Fortaleza, de Mychel TC, é uma das melhores contribuições. Leitura urbana brazuca infalível, pra Quintanilha nenhum botar defeito. Em geral esta produção não fica atrás do que era apresentado por outros estados, e dá amostra do que foi o trampo underground brasileiro entre os anos 80 e 90, especialmente nas febris manufaturas desses zines, que eram a internet da época, e que não deixam a desejar em relação ao que se faz hoje na web, tanto em qualidade quanto em quantidade. Uma parte enorme deste material se perdeu para sempre.

Seres Urbanos tem sabor udi-grudi, traz à tona os esnobes anos 90, discute com propriedade as agruras e angústias desta época, que não são tão diferentes das de hoje. Apesar do humor caústico, esses quadrinhos se pautavam na alienação da juventude, no vazio existencial, em preocupações como o caos urbano e o aquecimento global (na época, “efeito estufa”). Porém, não eram histéricos, os zines procuravam sentido em meio ao caos e não eram escorados em ativismo de fachada. O olhar desamparado e misterioso do personagem da capa coloca margem para a diferença entre uma cultura de “teenage angst” pré-internet e o zine-de-luxo-pra-designer que se faz hoje. Aproveito então a oportunidade para lembrar que em Brasília também temos nossa versão do “zine responsa com a cabeça enfiada na baixaria e rock and roll”: Tupanzine, o fanzine mais antigo em atividade no DF. (CIM)

O Ateneu, Crônica de SaudadesMazô (Independente, 2014, 23 p.): Em tom altamente pessoal, Mazô narra parte de suas memórias afetivas escolares, passadas no tradicionalíssimo Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Vencedor do prêmio de HQ independente Dente de ouro de 2016, o gibi convida o leitor a viajar pelo Ateneu particular de Mazô. Contendo colagens de fotos, bilhetes e outros objetos pessoais de sua vida escolar, a autora constrói espécie de diário público de sua vida privada. Mas não espere encontrar fofocas quentes ou detalhes sórdidos. Mazô faz uso de uma linguagem – narrativa e visual – que tanto mostra quanto esconde. Os detalhes estão lá, e apenas poucos enturmados irão compreender o real significado das imagens. Não que seja o caso de gibi feito apenas para aqueles da panelinha, mas sim para indicar que algumas lembranças só dizem respeito àqueles que as viveram.

O traço de Mazô é bastante experimental e ela brinca bastante com esboços. São ilustrações aparentemente simples, mas que se mostram rebuscadas, especialmente quando se analisa a riqueza das expressões faciais dos personagens. Sabe aquele esquema do “menos é mais”? É bem por aí. Afinal, artistas que se propõem a serem econômicos no desenho têm de se ater ao que realmente importa. Mantendo essa pegada parcimoniosa, Mazô capricha na composição de cores, que é feita primordialmente de bege escuro, preto e branco. Aliás, as imagens brancas são todas pintadas com um efeito que lembra giz de quadro negro, o que foi uma grande sacada.

Ao decidir revelar um pouco de seu passado estudantil, Mazô mostra que as experiências dos jovens são universais, por mais particulares que possam parecer. (MMA)

5/5 Working Class Heroes – Dalts, Go Carvalho e Magenta King (Bimbo Groovy, 2013, 70 p.): Lembra de Changeman, Flashman e assemelhados? Lembra aquele esquema de 5 jovens com uniformes parecidos, que se juntam para sentar o braço em monstros mais bizarros que perigosos? Então, esta é a pegada aqui. Só que, desta vez, os criadores resolveram levar a coisa a sério. Ou quase. Embora a intenção seja mostrar como seria a realidade de um grupo desse tipo no mundo real, os personagens principais usam uniformes que remetem a bichinhos fofinhos, como que para demonstrar o ridículo inerente a esse universo. No gibi, conhecemos um pouco da superequipe 5/5, grupo de heróis-celebridade que jurou proteger o mundo em troca de fama e contratos milionários. São três histórias que abordam diferentes aspectos da equipe.

Na primeira, “O Novato”, de Dalts, somos apresentados a um cidadão que consegue obter o traje de um dos 5/5. É uma história surpreendente, tanto pela qualidade do roteiro quanto pela arte. Dalts revela um talento impressionante, pelo grande domínio do ritmo da narrativa e pela plasticidade e estilo quase sujos que privilegiam cenas de ação vertiginosas.  Dalts parece gritar: “Ei, mercado americano, olhe para mim, já estou pronto”. E é realmente uma pena que ele ainda não tenha tomado os comics de assalto, já que é um quadrinista de responsa. Na segunda – e mais fraca história do gibi – “The Man Machine”, de Go Carvalho, conhecemos os funcionários de apoio da 5/5, numa história metida a engraçadinha, mas que só consegue fazer passar raiva. Finalmente, em “Os 5 Novatos”, Magenta King chega chutando bundas num conto em que 5 aspirantes a integrantes do 5/5 participam de um reality show que testa suas habilidades no campo de batalha. Magenta, assim como Dalts, tem uma arte de cair o queixo, e usa retícula, sombreamento e hachuras numa combinação original e desconcertante. Se Dalts lembra Travis Charest em começo de carreira, Magenta emula a visceralidade de Tom Raney.

O melhor elogio que posso dar a 5/5 é dizer que Dalts e Magenta souberam utilizar o formato independente para despirocar geral. Sem amarras ou censura, esses caras deixaram seus demônios correrem pelados na montanha e o resultado foi duca. Mesmo explorando gênero aparentemente esgotado como o dos supergrupos japoneses, os dois mostraram que, quando se tem lenha para queimar, até a centelha decadente dos seriados de grupo pode voltar a fumegar. (MMA)

Mata-me, ó Deus – Marcos Guerra, Marcos Garcia e Carlos Alberto (K-ótica, 2015, 36 p.): a boa capa de Mata-me, ó Deus promete uma HQ de alta potência onírico-lisérgica.  A promessa, infelizmente, não se cumpre. Estão lá as quase obrigatórias referências a Alejandro Jodorowsky, mas sem a atmosfera violenta e insólita típica do mago chileno. O roteiro é simples e auto-explicativo, sobrando pouca margem de manobra para o leitor participar mais ativamente da construção da narrativa – algo típico do gênero em questão. Restaria então à arte de Marcos Garcia (veterano do fanzinato nacional, responsável pelo antológico Acunha, publicado nos anos 1980) e Carlos Alberto promover as epifanias metafísicas desejadas. Não é o que acontece. Apesar dos desenhos bonitos (salta aos olhos a influência do seminal Watson Portela), a estrutura gráfica está muito mais próxima de um comic book pré-Image do que das BDs europeias.

Mata-me, ó Deus pode encontrar ressonância junto a públicos ligados ao consumo de plantas de poder. Todavia, para um leitor exclusivamente em busca de uma boa HQ, a magia não acontece. (E confesso ter ficado bastante impressionado com a depilação da personagem feminina, uma das poucas sobreviventes de um mundo devastado.) (MJR)

CeruleanCatharina Baltar (Independente, 2016, 80 p.): Fiquei “enamorado” desse quadrinho da Catharina Baltar (daqui de Brasília) nas duas últimas feiras Dente e resolvi tomar coragem e adquirir um volume da última vez. O que me atraiu: a excelente paleta de cores azul-lilás-turquesa (“cerulean”) pintada em aquarelas. Não importa muito que Cerulean seja um quadrinho indie tolinho, misturado com mangá shoujo, sobre uma sereia que fica encantada com um lifestyle millenial. Um mundo geek de redes sociais, board games e mangás. Não me importa que, das 80 páginas do livro, apenas 40 comportem a história (sendo o resto, extras). Importa mesmo é que, apesar de ter um tom adolescente, Cerulean consegue discutir a identidade e a solidão do jovem pós-moderno com alguma propriedade. Isso por si só a transforma em uma boa HQ juvenil. A sereia do título, afinal de contas, decide adotar o excêntrico mundo dos otakus e ser para sempre uma forasteira, algo que reflete um pouco a realidade dos otakus reais. Aos poucos, a despeito da antipatia inicial, fui me entregando ao propósito e à mentalidade deste quadrinho: como qualquer mangá comercial, ele tem algo de inventivo e excitante, e ao mesmo tempo algo de descartável. Se você tem dúvidas quanto à história, no entanto, pode ficar apenas com a arte extremamente carismática, com um tratamento de cores raro no quadrinho brasileiro contemporâneo. Sem dúvida uma aquisição significativa para o cenário de quadrinhos da capital. (CIM)

Encruzilhada – Marcelo d’Salete (Barba Negra, 2011, 120 p.): Este Encruzilhada é meu primeiro contato com o trabalho do quadrinista d’Salete. Sim, anos atrasado, e por isso mesmo quis começar com um trabalho fundacional da sua obra, algo que definiu seu estilo e imaginário. Paulistano, o autor se vale das contradições brutais da grande metrópole para expor, assim mesmo metendo o dedo na ferida, a desigualdade social e racial em diversos tipos de interações tipicamente brasileiras. Mas se engana quem pensa que isso vem assim, despejado ou descuidado, como se fosse um mero panfleto. Primeiro, o discurso possui muitas nuances e sutilezas, e o quadrinista se vale de diversos tipos de transições entre os quadros para construir mais que simplesmente uma história, mas também ambientação, odor, temperatura, aspecto. Em segundo lugar, como ele bem evidencia tirando sarro de Cidade de Deus, a violência está (muito) presente em suas histórias, mas não é o foco de sua análise. Não se trata de cosmética aqui. Sua análise social atinge aspectos psicológicos, econômicos e afetivos.

Além disso, d’Salete é também um esteta. Encruzilhada são contos curtos que vislumbram situações de ostensivo constrangimento à população negra. Um menor infrator é espancado pela polícia. Uma vida é tirada às custas de um celular que roda de mão em mão. Um DVD pirata é roubado e um homem preso por engano. A violência, porém, está nos detalhes perniciosos das relações. Neste ambiente, seu assassino pode ser seu primo, e o motivo um objeto de consumo descartável. D’Salete examina estas situações com elegante esquadrinhamento das cenas. São comuns citações ao cinema e a baluartes do capitalismo. O teor do discurso aparece muito em marcações discretas, grafites, paisagens urbanas.

O volume de informações, inclusive, é grande e por vezes as narrativas ficam embaçadas, confusas. D’Salete fragmenta os corpos, pensa planos e páginas oblíquas, efetivamente erige as cenas pelo avesso da narrativa tradicional.Encruzilhada é obra de mestre, que demonstra profundo entendimento do ato de extrair sentido das histórias, deixando arte, pensamento e discurso todos em evidência. Pequeno clássico recente da nossa historiografia quadrinística, ao lado de nomes como Rafael Coutinho e Marcello Quintanilha, que primam por abordagens parecidas. Li a tempo, ainda bem! O quadrinho foi relançado pela Veneta em 2016. (CIM)

Rapidíssimas (zines):    

Apnéia – Ina (Independente, 2017, 8 p.): Este é um lindo trabalho gráfico (delicado, poético, silencioso) que evidencia o potencial dos quadrinhos como pura sinestesia, como arte visual que mira os sentidos, que dissocia a narrativa de uma função meramente denotativa. Trata-se da quadrinização, em singular lápis azul, de um homem mergulhando com uma baleia. Leva-se um minuto para ler. Reverbera-se na cabeça por muito mais tempo. (CIM)

Compartilhe Comigo e Hey! Look Around! – Renata Rinaldi (Tinta de Raposa, 2016 e 2017, 10 p. e 12 p.) – Há algum tempo que devemos uma apreciação melhor do trabalho da brasiliense Renata Rinaldi, que vem pondo suas patas de raposa também em cenário nacional (Pagu Comics; concorreu ao HQMix, etc.). Estes dois zines são boa amostra do potencial do seu trabalho. As ilustrações, também em estilo shoujo, só melhoram: ela dosa bem influências de ocidente e oriente e, assim como a resenha de cima, faz narrativas mudas (que são puro quadrinhos). 

Compartilhe Comigo é muito bobinho, mas tem apelo para tweens e atrai pela bela capa laminada. Hey! Look Around!, por outro lado, já pode ser levada mais a sério. É uma linda (e bem escrita) fábula sobre desapego, amizade e espiritualidade. Isso tudo em dez páginas cheias de bons recursos em HQ, o que nos faz pensar que a Renata está preparando seu melhor trabalho. Chega logo! (CIM)