Considerações sobre a mídia "História em Quadrinhos"

A já clássica definição de McCloud Nos últimos tempos tenho me dedicado a leituras especializadas e à participação em cursos teóricos sobre a mídia "Histórias em Quadrinhos" (Comic Books) e, a partir dessa bagagem cultural, quero efetuar algumas breves considerações sobre o tema.

As obras teóricas Narrativas Gráficas, do genial quadrinista Will Eisner, e Desvendando os Quadrinhos, do estudioso Scott McCloud, são fundamentais para uma definição segura do que seja essa forma de arte e de comunicação. Eisner trata as HQs como verdadeiras "artes sequenciais", ou seja, enquanto "imagens dispostas em sequência, de modo a transmitir ideias e comunicar uma história".

McCloud tece uma definição mais específica, tratando as HQs como "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações ou produzir uma reposta no espectador/leitor". Em outras palavras, as HQs seriam como que "recipientes midiáticos" que podem conter diversas idéias, imagens, temas, conteúdos, estilos e técnicas narrativas e artísticas, o que desde já desconstrói a opinião corrente de que possuem relação direta com temas específicos de caráter infanto-juvenil do porte de super-heróis ou de "animaizinhos" falantes engraçados. 

Apesar de muitas HQs possuírem tais conteúdos temáticos, elas não se resumem a isso e mesmo quando narram aventuras de super-heróis ou de animaizinhos falantes, tais como Watchmen, de Alan Moore, ou o Pato Donald, de Carl Barks, bem, tais HQs são impressionantes por vários motivos, sejam psicológicos, filosóficos, existenciais, históricos, sociológicos, dentre outros.

Na verdade, me parece que as opiniões depreciativas do público em geral sobre a mídia Histórias em Quadrinhos possuem diferentes motivos, a começar pela ignorância da maioria das pessoas sobre o que realmente seria tal veículo de comunicação e de manifestação artística (e emprego a palavra ignorância aqui em sua etimologia, como sendo o ato de opinar sobre algo sem o devido conhecimento de causa).

Juntando-se a isso temos a tradição de certos posicionamentos preconceituosos de educadores e "especialistas em juventude e adolescência" que, no decorrer das seis primeiras décadas do século XX, consideraram as HQs como sendo "vulgares, estúpidas, moralmente condenáveis e/ou como a expressão do baixo senso intelectual daqueles que não gostavam de livros". Muitos desses ditos intelectuais afirmavam em alto e bom tom que os leitores de HQs seriam jovens incapazes cognitivamente, sendo todos eles facilmente "manipuláveis diante de imagens de cores berrantes, rostos disformes e esgares contorcidos de ódio e terror, uma forma de manifestação que careceria de senso estilístico e gramatical".

Tais opiniões pejorativas e preconceituosas direcionadas às HQs aparecem no estudo de Thierry Groensteen sobre especialistas em juventude e delinquência nas décadas de 1950 e 1960. Muitas dessas opiniões sendo sintetizadas na impactante e absurda obra Seduction of the Innocent, do psiquiatra Fredric Wertham, de 1954. 

O autor desta obra, inserido no contexto do macarthismo (movimento político de perseguição a atividades consideradas subversivas que se baseava nos trabalhos de investigação do senado americano) estaria preocupado com a delinquência juvenil e com as influências nefastas de certos bens culturais midiáticos na moral tradicional estadunidense da época, o que levou a indústria das HQs à defensiva, condicionando a criação do tão difamado e contraditório Comics Code Autority.

Mesmo assim, a visão simplista sobre a mídia História em Quadrinhos não se resume a um contexto de paranoia coletiva ou mesmo de falta de senso “intelectual” sobre qualquer juventude transviada. É possível colocar na conta também de muitos especialistas das ditas humanidades que até a década de 1960 tinham posições bem demarcadas em torno da existência de uma cultura de elite em completa oposição a uma cultura popular, essa última sendo normalmente vinculada ao que se costumava denominar como "cultura de massas".

Escola de Frankfurt, Estudos Culturais

Para resumir essa dicotomia, é como se os artefatos culturais voltados para o homem comum, do povo, fossem naturalmente de baixa qualidade, quando não constituídos para a total alienação dos receptores de bens culturais, com fins ideológicos ou mesmo econômicos, dentro do processo de mercantilização e massificação da cultura do século XX. 

Alguns expoentes da famosa Escola de Frankfurt e também alguns pensadores marxistas expressaram posições que dicotomizaram a cultura como um todo, preocupando-se com os processos de alienação e dominação ideológica das massas via produção e difusão de bens culturais voltados para tais setores subalternos da sociedade (um viés importante, mas que acabou gerando tal visão hermética e unilateral das mídias em geral e dos quadrinhos em particular). 

Indiretamente ou não, as HQs, consumidas por milhares de jovens a partir da década de 1930, acabaram sendo depreciadas, sendo vistas como expressão da alienação das massas, como produtos massificados da ideologia dominante ou como bens culturais produzidos para fins exclusivos de lucro e acúmulo de riqueza de uma pujante e inovadora indústria cultural (é comum a utilização do termo mainstream, que designa certos artefatos culturais produzidos a partir de uma linha de produção de tipo industrial).

Ora, posso traçar aqui dois tipos de leituras teóricas distintas sobre os produtos massificados da dita indústria cultural mainstream, incluindo os quadrinhos, e isso, a partir das explanações do filósofo Douglas Kellner sobre o que ele tão bem denomina de “Cultura da Mídia”. 

Por um lado temos as leituras teórico-conceituais de alguns expoentes da Escola de Frankfurt (principalmente Theodor Adorno), que consideraram os produtos da indústria cultural (termo cunhado pelos pensadores dessa supracitada escola filosófico-teórica) como expressões da dominação de classe e/ou da alienação das massas. Por outro lado, temos os chamados Estudos Culturais Britânicos, que procuraram compreender a dialética intrínseca existente nesses produtos massificados, suas formas de alienação e ao mesmo tempo os posicionamentos críticos intrínsecos nos mesmos, ou seja, a expressão dos conflitos culturais e políticos existentes em nossa sociedade. 

Depreendo a partir disso que a visão preconceituosa da Escola de Frankfurt sobre os bens culturais da dita indústria cultural condicionou muitas das visões depreciativas no que tange aos quadrinhos, ainda que existam posições distintas que observam os produtos culturais voltados para as massas como sendo expressões igualmente críticas, subversivas e até inovadoras.

Canclini

Para ajudar no entendimento dessa dicotomia, seria possível traçar outras opiniões sobre bens culturais, agora a partir de dois importantes estudiosos da cultura: o primeiro, Edgar Morin, que relaciona a cultura de massas à indústria cultural para fins exclusivos de lucros rápidos em detrimento da cultura popular genuína e o segundo, Nestor Garcia Canclini, que considera existir uma hibridização entre a cultura de massas e a cultura popular, sendo a primeira consumida em razão de ecoar visões de mundo em amplos setores da sociedade contemporânea, porque mesclada ao popular, “ela se faz entender pelos receptores de bens culturais, podendo auxiliar, inclusive na formação crítica e da cidadania dos mesmos”, uma visão que se distancia da opinião corrente de que tudo o que é voltado para o povo significa alienação.

O caso da Marvel Comics

Para explicar como se daria a leitura de Canclini, seria imperativo trazer aqui um caso bastante peculiar relacionado à  famosa Marvel Comics, uma das grandes empresas de quadrinhos de super-heróis dos séculos XX e XXI. Exemplifico esse caso a partir das considerações extraídas da obra Marvel Comics, a História Secreta, de Sean Howe. Quando foi rearticulada em 1961 pelo escritor, roteirista e editor Stan Lee e pelo desenhista e criador Jacky Kirby, a Marvel se tornou uma espécie de "Casa das Idéias" de novos artistas, inovando o gênero dos super-heróis nos EUA e no mundo. Isso ocorreu porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas bastante antenadas com o contexto de seus leitores, gerando identidade nos mesmos em relação a super-heróis adolescentes ou mesmo homens e mulheres cheios de defeitos e contradições psicológicas, como se fossem meras pessoas comuns.

Quarteto Fantástico de Kirby: defeitos e contradições psicológicas

Com o tempo, porém, o espírito criativo foi entrando em conflito com o espírito corporativo da empresa, ocorrendo uma expansão gradual da linha de super-heróis Marvel e dos lucros das empresas que gerenciavam a linha editorial do gênero (só para constar, ao longo das três primeiras décadas de reformulação, a Marvel passou por três corporações diferentes). 

Starlin: comics não-alienados

Nos anos 1970 e 1980, certa independência dos artistas e editores-artistas geraram narrativas bastante engajadas, críticas e inovadoras (as narrativas cósmicas de Jim Starlin, por exemplo, fugiam a qualquer espírito corporativo que tivesse preocupações exclusivas com os lucros imediatos ou com qualquer alienação) ao mesmo tempo em que foram sendo controladas pelo corpo editorial, mais tarde centralizado nas mãos do virtuoso roteirista Jim Shooter.

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, as coisas mudaram radicalmente, visto que os próprios artistas, agora verdadeiras celebridades do meio, começaram a não se preocupar mais tanto com a qualidade das narrativas de super-heróis, mas sim com desenhos multicromáticos e detalhistas, além de ações impactantes que gerassem nos leitores o fascínio pelas HQs, incrementando assim a mercantilização por parte de colecionadores e/ou especuladores do gênero, em meio ao crescimento do público mais adulto e consolidação das lojas de revistas especializadas (o chamado mercado direto de vendas). 

Artistas como Todd McFarlane e Rob Liefeld não precisavam de ordens de cima para se desvencilhar daquele espírito crítico e dinâmico da Casa das Ideias dos anos 1960, 1970 e início dos 1980. Eles simplesmente foram se inserindo no esquema dos especuladores de HQs cromáticas, com capas e artes detalhadas ao extremo e histórias cheias de ação gratuita e vazias, quase que pasteurizadas. Ainda assim, bons arcos podiam aparecer na Marvel e nada era maquiavelicamente pensado para alienar ou mesmo para gerar convulsões sociais entre os jovens leitores.

Os lucros sempre fizeram parte da equação empresarial, desde os anos 1960 (até antes disso, nos tempos da Timely Comics) e não afetaram diretamente as boas idéias dos artistas da empresa nas primeiras décadas de reformulação Marvel, ainda que por causa dos descontentamentos por direitos autorais, muitos desses artistas tenham se desentendido com a Marvel ao longo dos anos (incluindo o maior dos criadores do universo Marvel, Jack Kirby).

Spawn, de McFarlane: em tudo, excessos

Estudos sobre quadrinhos no Brasil

Agora, seria importante mencionar também que existem no Brasil diversos especialistas em HQs, todos eles referências para qualquer estudioso que pretenda seguir por essa seara, muitos dos quais respeitados em suas respectivas áreas de conhecimento, o que demonstra uma mudança gradual acerca do olhar voltado para essa mídia. 

Alvarão de Moya, na Primeira Exposição

Internacional de Histórias em Quadrinhos

Nomes como de Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Zilda Augusto Anselmo, Waldomiro Vergueiro, Sérgio Augusto e Moacy Cirne devem ser listados nas bibliografias de qualquer trabalho acadêmico sobre a mídia, sendo que todos esses autores possuem trabalhos complexos e interessantes que são facilmente encontrados na internet. 

Em um artigo recente, Vergueiro específica os tipos de estudos acadêmicos existentes sobre quadrinhos na USP e sua classificação pode auxiliar quaisquer novos pesquisadores sobre o assunto. Em primeiro lugar existem aqueles estudos que tratam da linguagem das HQs, a forma como são constituídos, com seu tempo espacializado, sua elipse narrativa, as formas de enquadramento e de perspectivas, as representações de sons, chamadas de onomatopeias, as linhas cinéticas que dão movimento às imagens e até mesmo o estudo da "sarjeta", que seria aquele espaço vazio entre os quadros e que serve à elipse narrativa, onde os leitores interagem com o escritor para dar continuidade e significados às sequências dispostas.

Em segundo lugar podemos elencar a análise de conteúdos, ou seja, os significados presentes nas HQs, bem como os processos de codificação das mensagens das mesmas. Em terceiro lugar, temos as análises históricas das HQs, quando foram produzidas, publicadas e distribuídas e as relações com os seus respectivos contextos históricos, o que seria a análise das conjunturas, do levantamento das publicações e da recuperação da memória das narrativas, seja dos artistas ou de seus editores. Em quarto lugar são elencadas as análises das sociedades e culturas subjacentes às produções de HQs, que seria uma abordagem relacionada a temas comuns presentes nas mesmas e em nossa sociedade e cultura, tais como violência urbana, guerra, racismo, sexismo, feminismo, xenofobia, etc. 

Seguindo aqui as premissas do historiador Paul Veyne, “todo estudo histórico é igualmente sociológico, significando que as perspectivas histórica e sociológica se interpenetram”. Outras formas de leituras seriam a análise técnica e estética das HQs, as formas de aplicações práticas em marketing, bem como as análises de recepção, ou seja, como as histórias foram lidas e quais as reações do público leitor ante as narrativas das mesmas (essa tarefa é facilitada hoje em dia devido à internet e blogs especializados, aonde os leitores efetuam comentários sobre o que foi publicado em termos de narrativas gráficas). Isso sem falar nos estudos sobre a economia das HQs, as tendências de mercado, os tipos de público para cada gênero, suas segmentações.

Coloco aqui mais um tipo de estudos que me interesso sobremaneira, os estudos sobre os "usos do passado", ou seja, estudos sobre o contexto histórico de produção e difusão de algum arco ou história que tenha um passado histórico qualquer como tema (por exemplo, a famosa obra Asterix, de René Goscinny e Albert Uderzo, que trata da conquista das Gálias por Júlio César no século I A.C.), o que sugere uma análise sobre a forma como é representado esse passado no mundo contemporâneo.

O caso de Alan Moore

Para finalizar, gostaria de tecer alguns comentários sobre Alan Moore, que criou narrativas de extrema qualidade do porte de Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, Do Inferno, Promethea, e tantas outras.  Após observar atentamente seus comentários no documentário The Mindscape of Alan Moore percebo que sua obra Promethea é a expressão mais genuína daquilo que ele define como arte e magia. O que me impressiona em Moore, além de sua enorme erudição, é o fato de vincular arte com magia, como se uma manifestação artística fosse a elevação do homem para outro nível de consciência, como se o artista, inspirado por forças mágicas, pudesse, com seus artefatos culturais, moldar e transformar o nível de consciência dos indivíduos de modo que esses transformem a realidade à sua volta, adquirindo uma consciência igualmente mística ao tocar o mundo sobrenatural com tal consciência.

Promethea: ocultismo, kabhala, esoterismo - some crazy shit!

Para muitos críticos das opiniões de Moore (e devo dizer aqui, críticos que não entendem o conteúdo das palavras do roteirista inglês), isso parece a expressão da mais pura insanidade embebida em drogas, mas Moore reinterpreta, por meio de seus conhecimentos e releituras sobre Ocultismo, Kabhala e Esoterismo, o que pensavam os antigos poetas aedos gregos, que concebiam sua poesia como a inspiração das musas e das forças primordiais, como se fossem tocados pela luz da verdade. 

Como bem reitera o estudioso antiquista Marcel Detienne ao tratar do pensamento mítico entre os gregos antigos, a aletheia significaria para eles a verdade, a luz que ilumina o homem com a inspiração das musas, que tira os entraves da ignorância e da escuridão, representadas pela lethe. Para os aedos, ou seja, para os poetas gregos dos tempos homéricos, a arte servia para a inspiração e a elevação do pensamento humano, das consciências. 

Se Moore tem alguma leitura teórica sobre tudo isso, é difícil afirmar (eu realmente acredito que sim), mas com certeza seu conhecimento empírico, embebido pela literatura, pela filosofia e pela mitologia (a partir das premissas de Joseph Campbel, presumo) fez com que ele se veja como um poeta aedo dos quadrinhos, o que estaria próximo das artes da magia. 

O fato de ele se ver como um mago leva muitas pessoas a taxarem-no de insano ou excêntrico, mas a magia para ele seria a arte que inspira e toca a consciência do seu público leitor e isso, para os grandes filósofos gregos (como Aristóteles, por exemplo) seria o dever da poesia, de inspirar e colocar as grandes questões existenciais em pauta. Só para finalizar essas breves considerações: Moore chega a afirmar que mitologia é uma forma de linguagem complexa (e quanto mais deuses existentes em um corpus mitológico, mais complexa), uma ideia encontrada em pensadores como Roland Barthes e Juanito de Souza Brandão. 

Se ele leu os dois pensadores, realmente não sei afirmar, mas ele expressa ideias bastante ricas e complexas e isso mostra que sua obra não é apenas um punhado de tinta e letrinhas psicodélicas sobre o papel. Se pararmos para pensar em tudo isso, podemos afirmar então que os quadrinhos possuem um alto grau de abstração e sabedoria de vida, tal como seriam os mitos para Moore e Campbell, claro, desde que bem escritos, elaborados e articulados.

O que depreendo de todas essas considerações estabelecidas no presente texto é que, antes de julgarmos as Histórias em Quadrinhos como uma forma de arte ou de comunicação eminentemente popular de massas (em seu sentido depreciativo) e alienante, que conheçamos antes seus autores, produtores, desenhistas e leitores e que percebamos a complexidade dessa mídia, ou seja, que vejamos as suas especificidades e riquezas. 

A mídia, histórias em quadrinhos pode conter diversos tipos de narrativas, podendo ser narrativas infantis, adultas, adolescentes ou até mesmo mescladas, contraditórias e misturadas, com toques variados. Podem ser até mesmo ensinamentos filosóficos para a elevação da consciência humana. Vejamos os quadrinhos como devem ser vistos, ou seja, como uma forma de comunicação e de manifestação artística, logicamente que apropriada pela industrial cultural mainstream para a geração imediata de vultosos lucros, ainda que possuindo diversos elementos interessantes, críticos e até subversivos. 

Quadrinhos na folia: 10 uniformes nota 10!

Olá leitores da Raio!

É Carnaval! Muitos dos nossos leitores passam o feriado lendo as pilhas de gibis acumuladas nos últimos meses, mas outros tantos vão cair na farra de Momo e deixar o espírito carnavalesco tomar conta. Para esses, a Raio fez uma listinha de alguns personagens dos quadrinhos cujos uniformes parecem ter sido criados sob o efeito delirante da folia! (LN)

10 – Beyonder

Para começar apoteoticamente, temos o ser mais poderoso do universo Marvel, a personificação da criação e deus confuso conhecido por Beyonder!

Durante a minissérie Guerras Secretas II, este ser todo poderoso com rosto de David Hasselhoff passa a adotar este garboso e brilhante uniforme. Uma criação dos geniais John Buscema e Tom Palmer. Todo o luxo de uma fantasia confeccionada com o mais reluzente metal alienígena. Uma fantasia tão à frente de seu tempo que já adiantava a tendência noventista de bolsos sem utilidade e ombreiras totalmente cenográficas. Neste belo exemplar de exagero estilístico de deixar nosso querido Clovis Bornay orgulhoso, a nova roupa do Beyonder chega zunindo com suas turbinas em décimo lugar.

9 – Penumbra (Shadow Lass)

Em nono lugar temos a presença de um design vindo direto do futuro. Criada por Jim Shooter e Curt Swan, Tasmia Mallor – a Penumbra da Legião dos Super-heróis, é o sonho de qualquer bateria de escola de samba. Um corpo escultural, uma pele de raro azul e um uniforme que mistura o negro e o dourado em peças mínimas prontas para fazer as arquibancadas se levantarem em aplauso! Sua fantasia, uma roupa cerimonial de campeã hereditária do planeta Talok VIII, foi pensada de forma a valorizar sua tonalidade azulada seguindo a tradição de heroínas como Lady Fantasma (menos é mais). Não é muito difícil de imaginar uma Luiza Brunet em seus melhores anos desfilando em uma fantasia como esta, o corpo pitado de azul e muito samba no pé.

8 – King Mob

Saindo do luxo dos bailes e sambódromos, nossa próxima fantasia é perfeita para um bloco de rua. Trata-se da roupa de combate do assassino anarquista King Mob, líder dos Invisíveis. O uniforme, uma mistura entre a obsessão de Grant Morrisson  com máscara de mergulho  e o fetiche de couro das raves europeias, é o exemplo de uma fantasia  criada a partir de elementos do dia a dia,  construindo um visual que é muito pomposo para ser levado a sério. Diversão garantida, com direito a marquinha de baton no melhor estilo dos grupos de pagode descartáveis que divertem de tão ruins. Jogue uma bermuda de vinil no lugar da calça e troque a jaqueta por um coletinho de couro e temos uma fantasia com garantia de agradar e assustar os foliões como um excêntrico BateBola sexy.

7 – Rei Relógio

Em sétimo lugar temos William Tockman, o Rei Relógio. Assim como King Mob, a fantasia do Rei Relógio é perfeita para quem quer  se esconder na folia. Seu visual, entretanto, é um deleite para qualquer carnavalesco, um modelito bizarro e ridículo que alegraria qualquer ala carnavalesca que aposte na temática das horas e dos relógios. Tockman era um vilão sem poderes e obcecado pelo tempo e pelos relógios, e uma ala com esta temática garantiria uma ótima pontuação no quesito "pontualidade" para qualquer escola de samba.

6 –  Vartox

Também sabemos que é recomendado o uso de poucas roupas no verão escaldante do nosso Brasil e sabemos também que a exposição de corpos nus no Carnaval não deve ser exclusividade das mulheres. Se você concorda com essas afirmações, então o uniforme do herói  Vartox é perfeito para você. Outra criação de roupas mínimas do mestre Kurt Swan, a fantasia e o personagem de Vartox é uma influência direta da roupa (também carnavalesca) de Sean Connery no filme psicossexual Zardox. Aqui temos uma refrescante fantasia para ser levada para as ruas, exalando muita sensualidade e virilidade. Sucesso garantido entre foliões de ambos os sexos!

5 – Capitão Bumerangue

Mais um uniforme para abrilhantar qualquer ala temática de escola de samba. Misture um quepe aeronáutico, uma camisa azul bufante estampada com inúmeros bumerangues, uma calvície que insiste em manter longas madeixas e um longo cachecol de seda branca e temos o australiano Digger Harkness, o Capitão Bumerangue. Uma fantasia unissex, com uma caracterização definitivamente carnavalesca, a roupa criada por Carmine Infantino dá uma graça aérea, e divertidamente risível, a qualquer desfile.

4 – Batman de Zur-Em-Arr

Você, caro carnavalesco, quer produzir uma fantasia de Batman para pular carnaval mas não tem nenhum tecido em mãos que se pareça com a roupa do homem-morcego? Ou você deseja homenagear seu boneco fabricado no Paraguai, aquele que vinha junto com o Home-Aranha e o Max Steel? Seus problemas acabaram. Com a fantasia de Batman de Zur-Em- Arr, o Batman alienígena de uniforme criado pelo saudoso Dick Sprang, você pode pular o carnaval vestido como seu herói preferido e misturando qualquer peça de roupa que encontrar pela frente. Diversão e economia para qualquer pulador de bloco.

3 –  Girl One (Top Ten)

Sexy e prático, o uniforme da policial da cidade de Neopolis – Girl One – é concorrente direto da nossa mulata globeleza. A personagem, policial do distrito Top Ten do gibi homônimo criado por Alan Moore, tem como poder não apenas força e resistência, como um controle refinado dos pigmentos da pele. De fato a personagem anda nua em todas as cenas, sua fantasia não passa de diferentes padrões de pigmento espalhados pelo corpo escultural  - nem Vanessa Valenssa consegue brilhar mais na passarela.

2 – Kraven

Nossa penúltima fantasia é possuidora de um luxo selvagem e um toque piegas que é imprescindível em qualquer fantasia de baile que se preze. Essa fantasia carrega na originalidade e ostenta pelo uso de uma cabeça de leão devidamente caçado e empalhado como peça principal e equlibra  a composição com uma despojada calça lycra adornada de textura de onça e uma sapatilha. Luxo, leveza e poder animalesco são a definição da roupa do único e inimitável Kraven, o caçador. Uma bela criação de Steve Ditko para o Homem-Aranha e uma certeza de encanto e respeito tanto no salão quanto no sambódromo.

1 – Homem-vergonha

Em nosso primeiro lugar temos uma fantasia especial para todos os foliões de rua. Absolutamente prático, mas sem esquecer-se de suas origens de herói da casa das idéias. o uniforme criado por Johnny Storm para disfarçar a identidade secreta do Homem-Aranha após Peter Parker ter o vínculo com o uniforme alienígena cortado desponta como a fantasia de carnaval  perfeita para aqueles que não tem fundos o suficiente mas que podem se sair bem com um macacão azul e um saco de pão. Tradicional e inovador, é uma fantasia nascida do lixo para nenhum Joãozinho 30 botar defeito.

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 4

A gente tinha falado que a lista do Pedro era a última, mas aí o nosso novo (e brilhante) colaborador Márcio Jr. nos enviou, como chave de ouro, mais estas 20 indicações de quadrinhos lidos em 2015. Totalizamos então 52 indicações devidamente resenhadas para você ler em 2016. Mãos à obra! (CIM)

Parte 1

Parte 2

Parte 3

por Márcio Jr.

Amo quadrinhos. Comecei a guardá-los desde que comprei Superaventuras Marvel nº 1, da Abril, em 1982. Da lá pra cá, a coisa meio que saiu de controle. Compro mais do que sou capaz de ler (ainda que toda compra tenha o claro - e fantasioso - propósito de ser lida em algum ponto do futuro). Não acho que isso seja muito saudável. Já pensei em terapia. Fiz as contas e percebi que ficaria mais caro que comprar os gibis. Sigo acumulando papel.

Numa tentativa de estabelecer um filtro nas aquisições, comecei a anotar na agenda todas as leituras e compras feitas ao longo do ano. Não deu muito certo. Em 2015, li em torno de 150 HQs. Devo ter adquirido o quádruplo disso. Ao menos serviu para mapear as leituras do período, o que nos traz a esta lista de melhores. Os meus melhores quadrinhos de 2015. (O que não quer dizer que tenham sido obrigatoriamente publicados em 2015. Alguns dos títulos estavam ali, esperando leitura há um bom par de anos.)

Listas são sempre subjetivas, incompletas, blábláblá. Dane-se. Esta é a lista que me agarrou pelas vísceras. Tem uma certa hierarquia nela, mas nada para se levar muito a sério. Eu mesmo não levo. Olhando para a lista, gosto de acreditar que seja uma bela porta de entrada para qualquer pessoa minimamente inteligente  que nunca leu uma HQ. Maurício de Sousa não vale. Faça o teste. Se não gostar, desista dos quadrinhos. A campanha do Bolsonaro precisa de você.  

1- TALCO DE VIDRO - Marcello Quintanilha (Veneta, 2015)

Mal baixamos a guarda após o nocaute provocado em 2014 pelo já clássico Tungstênio, e Marcello Quintanilha nos faz beijar novamente a lona com Talco de vidro. Niteroiense radicado em Barcelona, Quintanilha tem construído uma obra originalíssima, sem paralelos, transbordante de uma brasilidade impossível de ser capturada em clichês. Não por acaso, tem amealhado tudo quanto é prêmio (de  quadrinhos e literatura) ao redor do mundo. Em Talco de vidro - um tratado acerca da ordem indizível da inveja -,  mais uma vez expande seus próprios limites, gráficos e narrativos. De quebra, leva a linguagem das HQs a novos horizontes. Em lugar algum existe alguém fazendo quadrinhos como Marcello Quintanilha. Imperdível.

2- OS OLHOS DO GATO - Alejandro Jodorowsky e Moebius (Nemo, 2015)

Publicada originalmente no Brasil em 1987 pela Martins Fontes (em edição hoje raríssima  e disputada no fio da navalha por colecionadores), esta obra-prima finalmente retorna às livrarias, após inexplicáveis 28 anos. Cortesia da Editora Nemo - que diga-se de passagem, tem feito um belíssimo trabalho suprindo a inexplicável semi-ausência de Moebius em terras brasileiras. Simbolismo polissêmico, quadros que ocupam a totalidade da página, experiências envolvendo campo e contra-campo, a tensão dialógica estabelecida por uma arte alternadamente minimalista e detalhada, tudo isso está presente neste álbum, um clássico nascido do acaso, como nos explica o mago Jodorowsky em seu prefácio.  

3- A CHEGADA - Shaun Tan (SM, 2011)

A chegada, do australiano Shaun Tan, é daquelas HQs que dão vontade de sair mostrando para todo mundo, como prova irrefutável do quão rica, sofisticada e artística pode ser a linguagem dos quadrinhos. Uma epopeia tocante sobre migração, banhada em realismo fantástico. Tudo isso sem uma palavra sequer. Espetacular é pouco.

4. KAPUTT - Eloar Guazzelli (WMF Martins Fontes, 2014)

O multi-artista Eloar Guazzelli tem se tornado o maior nome de um gênero muito em voga nos quadrinhos brasileiros: a adaptação literária. Os dois Jabutis que ele papou em 2015 (um deles com este Kaputt, adaptação da obra do italiano Curzio Malaparte) não me deixam mentir. Guazza é também o quadrinista mais rápido de que se tem notícia: 700 páginas em seis meses é uma marca de deixar de orelha em pé velocistas lendários como Jack Kirby e Julio Shimamoto. A explicação me foi dada pelo próprio autor: "Quadrinho paga mal, então eu tenho que produzir muito para que seja viável economicamente." O xis da questão é que Guazzelli consegue produzir muito e com qualidade inquestionável. Para isso, desenvolveu uma estética muito peculiar, que converte brilhantemente urgência em estilo. Em Kaputt, profundo tratado acerca dos horrores do nazismo, baila entre diferentes abordagens gráficas, que vão do nanquim anoitecendo toda a página ao lápis de cor que beira o sublime. Um livraço, cujo lugar na estante é ao lado de Maus, de Art Spiegelman.

5 - COLEÇÃO HISTÓRICA MARVEL QUARTETO FANTÁSTICO Vol. 1 - Stan Lee e Jack Kirby (Panini, 2015)

O patético filme do Quarteto Fantástico teve ao menos um efeito colateral positivo: o lançamento no Brasil dos quatro volumes da Coleção Histórica Marvel, dedicados ao grupo que é a pedra fundamental da editora. Na primeira edição, Stan Lee e Jack Kirby estabelecem todos os parâmetros dos quadrinhos de super-heróis e nos entregam o que de melhor o gênero pode oferecer: personagens carismáticos, ação ininterrupta, imaginação tresloucada e arte embasbacante. O Dr. Destino, tema deste primeiro volume, é o único capaz de disputar com o Coringa o posto de vilão mais cool dos comics. É um pecado mortal as 102 edições originais do Quarteto, sob a batuta de Lee e Kirby, permanecerem sem publicação digna e completa no Brasil. São insuperáveis.

6- CASTELO DE AREIA - Pierre Oscar Lévy e Frederik Peeters (Tordesilhas, 2011);

AÂMA Vol. 1 - Frederik Peeters (Nemo, 2014);

PÍLULAS AZUIS - Frederik Peeters (Nemo, 2015)

2015 foi o ano em que finalmente entrei de cabeça na obra do suíço Frederik Peeters. Meu maxilar ainda está deslocado. O primeiro contato se deu no magnífico Castelo de areia, poderosa alegoria sobre o envelhecimento, onde a serena narrativa gráfica de Peeters dá o tom exato ao roteiro do documentarista oscarizado Pierre Oscar Lévy. Pílulas azuis, tocante HQ autobiográfica em que o quadrinista narra sua vida ao lado de uma portadora do vírus HIV está em todas as listas de melhores do ano. Nada mais justo. E o menos badalado (mas não menos espetacular) Aâma pode ser descrito como uma ficção científica existencialista. Três excelentes trabalhos que apontam em direções diferentes, unidas pelo senso de humanidade presente na arte de Frederik Peeters. Craque.

7- SERES URBANOS - vários (Independente, 2015)

No início dos anos 90, era pré-internet, Weaver Lima, Lupin e mais um bando de moleques cearenses criaram o coletivo Seres Urbanos e entupiram as caixas de correio do Brasil com uma tonelada de fanzines ultra envenenados, talento e transgressão escorrendo do papel. Fizeram história. Parte dela está registrada nesse livro (bancado com uma lei de incentivo local), indispensável em tempos de gourmetização fanzinística. Weaver garante que um segundo volume está a caminho, só com conteúdo impublicável. Mal posso esperar.

8. DAYTRIPPER - Fábio Moon e Gabriel Bá (Panini, 2011);

DOIS IRMÃOS - Fábio Moon e Gabriel Bá (Quadrinhos na Cia., 2015)

Falar sobre Daytripper é chover no molhado. Solidificou o nome dos gêmeos Moon e Bá dentro e fora do Brasil, ganhou prêmios, vendeu pra caramba. Merecidíssimo. (Mesmo com aquele papo estranho sobre plágio.) Depois de tanto sucesso, deve pesar bastante a expectativa sobre um próximo trabalho.

Dois irmãos, adaptação do romance homônimo de Milton Hatoun, veio para ratificar todas as conquistas pregressas. Não conheço o livro original. Ponto para a adaptação, que funciona espetacularmente como HQ. Salta aos olhos a verossimilhança dos personagens e seu entorno. Eu conheço aquela Manaus impressa no papel. E se é evidente a influência de Mike Mignola sobre Gabriel Bá, foi delicioso ver em seus desenhos ecos do saudoso Flávio Colin. Parafraseando a dupla, Daytripper e Dois irmãos são foda!

9- EISNER/MILLER - Charles Brownstein (Criativo, 2014)

Em 2002, durante um final de semana, o lendário Will Eisner (1917 - 2005) recebeu o não menos lendário Frank Miller em sua casa, na Flórida. Ali, os dois gigantes conversaram (e usualmente discordaram) sobre suas carreiras, quadrinhos, mercado, arte e cinema. Poucas vezes se viu um debate tão profundo e cheio de propriedade acerca das HQs quanto o que está registrado neste antológico livro. A edição da Criativo, graficamente superior à original norte-americana, desliza na tradução e no prefácio um tanto impreciso do Professor Nobu Chinen. Ainda assim, é um presente inestimável ao mercado brasileiro e a todos aqueles que se interessam seriamente por quadrinhos. 

10- MÁGICO VENTO Nos 32-40 - Gianfranco Manfredi (Mythos, 2005)

Tentaram rotular a saga de 131 edições de Mágico Vento como faroeste horror. É pouco. A epopeia do soldado Ned Ellis, que perde a memória após um terrível acidente e é adotado pelos índios Sioux, tornando-se um poderoso xamã que desconhece o homem que fora no passado, traz os limites característicos da Bonelli Editora (a mesma de Tex), tais como a obrigatória presença de um parceiro de aventuras (no caso, o jornalista Poe, sósia do escritor norte-americano) e  a disposição nada inovadora dos quadros na página. Todavia, a perícia do escritor Gianfranco Manfredi (que também é roteirista de cinema e TV, além de músico) leva a série em uma direção adulta e sofisticada, principalmente no que tange à representação nada maniqueísta da cultura indígena. Escudado por desenhistas do calibre de Pasquale Frisenda, José Ortiz, Goran Parlov e Ivo Milazzo, Mágico Vento é um fumetto comparável ao idolatrado Ken Parker. E como tal, não tem aquela babaquice caça-níquel dos super-heróis americanos, onde é impossível compreender uma história isoladamente. Qualquer edição que você pegar de Mágico Vento tem começo, meio e fim. Porém, lida em sua totalidade, a série adquire ares de grande romance americano. Made in Italy. Espero viver o suficiente para ler tudo.

11- NEXT MEN - John Byrne (Mythos, 2013)

John Byrne já foi o mais popular desenhista dos quadrinhos norte-americanos. Brilhou como ninguém nos títulos X-Men, Quarteto Fantástico, Tropa Alfa e Super-Homem. Mas as HQs estão longe de ser a mais generosa das profissões. Ondas se sucedem, turbinadas por impiedoso marketing corporativo - e o que era ouro para um geração, passa a ser lixo para a outra. Some-se a isso o desgaste natural de anos desenhando sem parar. Há mais de duas décadas Byrne não produz com a qualidade de seus tempos de glória. Tampouco faz o mesmo sucesso de outrora. Mas no início dos anos 90 ele ainda era quente e lançou Next Men pelo selo Legend (que também abrigava Sin City e Hellboy), da editora Dark Horse. Foi seu último grande trabalho. Vinte anos mais tarde, a Mythos publica pela primeira vez no Brasil um livrão coletando as 10 primeiras edições da série.

Next Men tem tudo aquilo que Byrne faz de melhor: a fusão entre ficção científica e super-heróis, desenhos vigorosos, cenários hipertecnológicos e roteiro capaz de segurar o leitor. O preço, como é de praxe na Mythos, é proibitivo: 100 mangos. Dá pra comprar quadrinho bem melhor com essa grana. Faça como eu: espere uma promoção. Vale a pena.

12- DEMOLIDOR Nos 7 e 8 - Mark Waid, Chris Samnee e outros (Panini, 2015)

Ao lado do Gavião Arqueiro, a série do Demolidor escrita pelo veterano Mark Waid é o comic book mais incensado e  premiado dos últimos anos. Não é pra menos: a concorrência é uma grandessíssima porcaria. Waid não reinventa a roda e nem tenta enganar o leitor com um suposto "conteúdo adulto". Ao contrário, ele conduz a série com apelo, suspense e simplicidade. As cores são corretas e condizentes com a arte (trocando em miúdos, você não ficará cego pelos efeitos de photoshop). E os desenhos de Chris Samnee são um espetáculo a parte. Sua clareza, equilíbrio e dinâmica narrativa remetem a mestres como John Romita e Gil Kane. Enfim, tudo que um gibi de super-herói tem a obrigação de ser. E pensar que ali pelos anos 70 e 80 quase todos os gibis da Marvel eram assim...

13 - HOMEM-MÁQUINA - Tom DeFalco, Herb Trimpe e Barry Windsor-Smith (Panini, 2015)

Taí outro gibi supimpa de super-herói, publicado originalmente em meados da década de 80. Trata-se de uma recauchutagem cyberpunk de um personagem secundário do panteão Marvel, criado pelo Rei Jack Kirby. Mas o que faz esta mini-série antológica é o retorno aos quadrinhos do magistral Barry Windsor-Smith. Após fazer história em Conan, o Bárbaro, o desenhista britânico sumiu do mapa, para voltar ainda melhor em Homem-Máquina. A capa dura e metalizada da edição da Panini são um quitute extra.

14 - MITCH O'CONNELL: THE WORLD'S BEST ARTIST (Last Gasp, 2014)

Como não poderia faltar um art book nesta lista, parti logo para o mais legal de todos: Mitch O'Connell: The world's best artist. Iconoclasta e sarcástico até falar chega, Mitch O'Connell reúne nesta deliciosa edição um apanhado geral de sua carreira de ilustrador, pintor e, eventualmente, quadrinista. Centenas de imagens do universo trash-pop do autor inundam as páginas, ancoradas em textos divertidíssimos. E se o recheio é quente, a embalagem não deixa por menos: capa emborrachada com aplique de purpurina, bordas arredondadas e um design matador que, por si só, já valeria a aquisição desta pérola. Duvido que seja publicado no Brasil.

15 - LIMIAR: DARK MATTER - Luciano Salles (Independente, 2015)

Luciano Salles vem se configurando como um dos quadrinistas mais sui generis (ou interessantes, ou pitorescos, ou estranhos, ou incômodos) da nova geração. Seus roteiros não se entregam na primeira leitura. Provavelmente nem na última. Possuem uma temporalidade enigmática, que provoca um desconforto cronenberguiano na leitura. E sua arte é acachapante, anfetaminada pelas cores de Marcelo Maiolo. Debaixo de camadas de personalidade, é possível, com algum esforço, encontrar fantasmagorias de Moebius, Mutarelli e Frank Miller (Elektra Vive). Melhor ficar de olho nesse sujeito.

16: ADORMECIDA: CEM ANOS PARA SEMPRE - Paula Mastroberti (8Inverso, 2012)

Os quadrinhos são apenas uma das áreas de atuação da artista e pesquisadora Paula Mastroberti. Entre 1988 e 1990 ela teceu para si mesma a intrincada tapeçaria que é Adormecida: cem anos para sempre. Ali cristalizou-se a paixão pelos contos de fada e pelos quadrinhos europeu de Moebius, Druillet e Crepax. Ponto para 8Inverso, que 22 anos depois conseguiu abrir essa arca secreta. Belo e atemporal.

17. PERPETUUM MOBILE - Diego Sanchez (Mino, 2015)

A lista não ficaria completa sem um livro da Editora Mino, responsável pelos lançamentos mais bacanas de 2015. Perpetuum Mobile, foi um deles. Diego Sanchez é um legítimo representante da novíssima geração de feras dos quadrinhos brazucas, ao lado de nomes como Pedro Cobiaco e Felipe Nunes. Eles têm em torno de 20 anos e chegaram sem o menor respeito, com o pé na porta. Os quadrinhos de Sanchez possuem uma atmosfera etérea, fluida, com um senso muito peculiar de disposição dos quadros na página. Ainda em 2015 ele lançaria Hermínia, um livro mais elaborado, bonito e bem estruturado. Mas Perpetuum Mobile possui uma espontaneidade que faz dele o meu favorito até o momento.  

18- A SOBREVIVENTE - Paul Gillon (Martins Fontes, 1988)

Paul Gillon (1926-2011) foi um mestre do erotismo francês. Sua arte irrepreensível, elegante e de clássico refinamento nos conduz em A sobrevivente - ficção científica pós-apocalíptica que retrata um mundo onde apenas um belíssima mulher parece ter sobrevivido. O robô da capa ficou bem feliz. 

19- GAROTA SIRIRICA - Lovelove6 (Independente, 2013)

2015 foi um ano decisivo para as quadrinistas no Brasil. Tomaram as redes sociais de assalto e fizeram um barulho gigantesco no FIQ. Não era sem tempo. A presença das mulheres como autoras e leitoras de quadrinhos é algo que precisa ser imediatamente discutido e potencializado. Como ponta-de-lança dessa agitação toda está Gabi, a Lovelove6, e sua irresistível Garota Siririca. Seu mérito? Produzir um quadrinho que é engajado, mas também divertido e instigante. Isto é, um quadrinho que sobrevive como linguagem, para além de sua função política. Gabi tem a manha.

20- O BABACA - Gary Panter (A Bolha, 2012)

Gary Panter é o pai da punk art, do desenho feio e sujo, influenciando todo mundo de bom gosto que tem atração pelo mau gosto. Fabio Zimbres é um exemplo desse tipo de gente. Gary Panter tem status de gênio no mundo das artes gráficas e é simplesmente ridículo que permaneça inédito no Brasil. Graças a Deus, temos A Bolha para tentar colocar o barraco em ordem, lançando este hilário

O babaca. Mais uma vez, muito obrigado, Rachel

2º CURSO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL

Ministrado pelos criadores de RAIO LASER

PROGRAMA DO CURSO

EMENTA:

Quadrinhos! Hoje em dia eles estão por toda parte: multiplicados pela Internet, em edições luxuosas nas bancas e livrarias, em filmes blockbuster de Hollywood, na ponta do lápis do artista brasileiro. Este enorme fenômeno da chamada “cultura pop” ganha, a cada dia, cada vez mais adeptos de todos os tipos e idades. Porém, qual a história desta forma de arte e entretenimento? Quando ela surge, como se consolida? Como dialoga com outros meio de comunicação? Quais são seus marcos históricos, suas escolas famosas, e como cada uma delas se desenvolveu? Como foi se modificando a visão que a sociedade tem sobre eles? Qual a importância deles na cultura contemporânea? Estas e outras perguntas são importantes para estabelecer os parâmetros do 2º CURSO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS: TRAJETÓRIA DE UMA ARTE SEQUENCIAL.

As histórias em quadrinhos modernas têm como marco inaugural uma publicação de 1895, mesmo ano da primeira exibição cinematográfica pública, realizada pelos irmãos Lumière. Elas se inserem na história e na cultura do século XX como um fenômeno de grande influência social e aceitação popular, lentamente requisitando seu lugar no universo das artes. Meio de alta maleabilidade e possibilidades expressivas, os quadrinhos se adaptam a todo gênero de modalidades narrativas: do horror à comédia. Da sátira social ao abstracionismo. Da contracultura à autobiografia. Da fantasia à política. O objetivo deste curso é percorrer um pouco da história desta mídia, em geografias distintas, abarcando também uma introdução à teoria dos quadrinhos.

PROFESSORES:

Ciro I. Marcondes é professor, crítico e pesquisador de Histórias em Quadrinhos e Cinema. Foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, do curso de Cinema do IESB e de Audiovisual no Unicesp. Atualmente cursa doutorado em Comunicação no PPG-FAC da UnB, na linha Imagem e Som. É mestre em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). É o editor do site www.raiolaser.net, especializado em crítica de Histórias em Quadrinhos. Já ministrou cursos como “História do Cinema”, “Crítica de cinema e análise fílmica”, “Hitchcock e a ilusão do cinema”, “Cinema e filosofia”, para o Espaço Cult, Centro Cultural Banco do Brasil e Espaço Varanda.

Pedro Brandt é jornalista formado pela Universidade Católica de Brasília (2006). Passou pelas editorias de cultura dos jornais Tribuna do Brasil (2005-2007), Jornal de Brasília (2007-2008) e Correio Braziliense (2008-2012), para as quais escreveu sobre diversos assuntos, com destaque para música e histórias em quadrinhos. Produziu e apresentou durante cinco anos (2006-2011), junto com Fernando Rosa, o programa Senhor F, na Rádio Cultura FM de Brasília, com enfoque diferenciado em clássicos, obscuridades e novidades do rock. Também trabalha como assessor de imprensa e coordenador de comunicação de projetos culturais, produtor de shows de rock e idealizador do selo Discos Além (lançamentos em vinil e CD). É articulista e editor do site especializado em quadrinhos Raio Laser (www.raiolaser.net).

CRONOGRAMA:

Aula 01

(22/02): O surgimento dos quadrinhos + primeiros quadrinhos: ainda no século XIX, os quadrinhos despontaram como mídia influente, industrializada, de conteúdo anárquico e politicamente incorreto. Krazy Kat; Little Nemo; Mutt and Jeff; O menino amarelo. Os funnies e a popularidade das family strips.

Aula 02

(23/02): Era de ouro americana + o quadrinho de horror (período clássico): a era clássica dos quadrinhos e a ascensão do heroísmo (Flash Gordon, Tarzan, Príncipe Valente, Dick Tracy). A criação do comic book e dos super-heróis (Superman; Batman). Will Eisner e Spirit. A popularidade da EC Comics e dos quadrinhos de horror, guerra e ficção científica. O código de censura e o fim da era de ouro.

Aula 03

(24/02): A cultura da BD e o quadrinho francobelga: os quadrinhos de tradição francófona em duas frentes. A rivalidade entre as revistas Spirou e Tintin e o quadrinho de humor (gros nez e linha clara). Jerry Spring, Lucky Luke, Spirou, Tintim, Asterix, Gaston Lagaffe. O quadrinho adulto francobelga a partir de revistas como Pilote e Métal Hurlant, entre outras. Autores: Dionet, Moebius, Druillet, Lob, Bilal, Jodorowsky, Tardi, Hermann, etc.

Aula 04

(25/02): O quadrinho italiano (fumetti) + o quadrinho japonês (mangá): introdução à cultura de HQ pulp das bancas italianas com faroeste (Tex, Ken Parker, Mágico Vento), aventura e horror (Martin Mystère, Dylan Dog, J. Kendall). O quadrinho autoral italiano: Hugo Pratt, Crepax, Manara, Serpieri, Liberatori. A cultura de quadrinhos japonesa em seus âmbitos histórico, social, industrial. Mangás e gekigás. Autores: Osamu Tezuka, Hayao Miiazaki, Katsuhiro Otomo, Suehiro Maruo, Yoshihiro Tatsumi, Jirô Taniguchi.

Aula 05

(26/02): O super-herói das eras de prata e bronze + O quadrinho nacional: o retorno à cultura de super-heróis a partir da ascensão da Marvel nos anos 1960. Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, John Buscema, etc. O dilema do herói na era do Vietnã e no flower power. O amadurecimento dos super-heróis no final dos anos 80 e o surgimento do anti-herói: John Byrne, Frank Miller, Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison. A trajetória do quadrinho brasileiro, desde os primórdios (Angelo Agostini a Tico-tico) até nomes históricos como Mauricio de Sousa, Ziraldo, Henfil, Angeli, Laerte, Glauco, Mozart Couto, Watson Portela, Shimamoto, Colin, Mutarelli, chegando à contemporaneidade.

Aula 06

(27/02): Os quadrinhos underground (comix) e o quadrinho autoral contemporâneo: a cultura de subversão do quadrinho independente americano dos anos 60.

De Zap Comix a American Splendor e Raw (Crumb, Shelton, Spain, Pekar, Spiegleman, etc).

O amadurecimento dos quadrinhos autorais a partir dos anos 80. Love and rockets, Maus e a revolução indie. Autores contemporâneos: Joe Sacco, Alison Bechdel, Daniel Clowes, Charles Burns, Marjane Satrapi, Chris Ware, etc.

Mais informações:www.cultvideo.com.br

Homem-Máquina e Barry Windsor-Smith: um oásis no deserto dos super-heróis

É com grande satisfação que anunciamos Márcio Júnior como colaborador de Raio Laser! Militante de longa data do rock e dos quadrinhos, o goiano Márcio Mário da Paixão Júnior (1972) é produtor cultural, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, sócio fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado, criador do Goiânia Noise Festival a da TRASH – Mostra Goiana de Filmes Independentes, além de vocalista da banda Mechanics. Dirigiu o curta O ogro e produziu Faroeste: um autêntico western – ambas animações premiadas. Em 2015, sua dissertação de mestrado foi lançada como livro: Comiczzt! – Rock e quadrinhos: possibilidades de interface. (PB)

por Márcio Jr.

Tédio. De um modo geral, este é o termo que define o atual panorama dos quadrinhos de super-herói que entopem as bancas de revista de norte a sul do Brasil. Golpes de marketing, megassagas que vão do nada ao lugar nenhum, personagens históricos completamente descaracterizados, desenhistas gerados em laboratórios de pasteurização, e malditas cores de photoshop que causam à nossa visão um efeito mais deletério do que aquele que o cigarro produz nos pulmões, são a tônica deste mercado - absolutamente servil ao primo rico chamado cinema. Na lógica verticalizada da indústria do entretenimento, os gibis de super-herói não têm mais fim em si mesmos. Sua função é ser o embrião de um blockbuster prenhe de licenciamentos. Ou seja, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que estão a anos-luz daquilo que chamamos de arte. Pior, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que sequer cumprem com decência sua função de divertir - esta, a verdadeira prerrogativa de um bom gibi de super-herói.

 No meio dessa pasmaceira nerd, o lançamento do encadernado Homem-Máquina (de Tom DeFalco, Herb Trimpe e Barry Windsor-Smith) pela Panini, reunindo a mini-série de 1984, é motivo de uma alegria inesperada, mas absolutamente bem-vinda.

Homem-Máquina, ainda na fase de Kirby

O tal Homem-Máquina é um herói de quinto escalão no cartel da Marvel Comics. Após uma temporada na rival DC (onde criou conceitos que ainda hoje estão entre os mais inventivos do mainstream norte-americano, tais como o Quarto Mundo, O.M.A.C. e Demon), o lendário Jack Kirby retorna ao time de Stan Lee, na segunda metade dos anos 70, com uma exigência irrevogável: escrever, desenhar e editar os próprios quadrinhos. Traduzindo em miúdos, o que Kirby queria era liberdade, autonomia e, por tabela, a possibilidade de provar de uma vez por todas que os méritos pelo sucesso da casa do Quarteto Fantástico eram seus e não do falastrão Lee. 

A coisa não transcorreu exatamente como o planejado, mas, como de praxe, Kirby inundou a Marvel com inúmeros projetos vindos de sua imaginação sem limites. Um dos mais excêntricos foi a espetacular adaptação em quadrinhos do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (o Kirby do cinema). Publicada originalmente em 1976 como uma treasury edition (edições especiais em formato gigante), 2001 logo ganhou título próprio, que não durou muito tempo. À medida em que desenvolvia conceitos sob sua ótica ímpar, os leitores foram raleando, o que fez com que Kirby desse um rumo mais convencional à série, focando-a em um super-herói, um androide cheio dos parangolés tecnológicos, mas recheado com sentimentos humanos: o Homem-Máquina. A estratégia proporcionou uma considerável sobrevida ao projeto, com o personagem pilotando agora um gibi solo. Após 19 edições (das quais Kirby foi responsável apenas pelas nove primeiras), o título foi cancelado e o herói relegado a coadjuvante eventual em gibis mais populares. Até ser resgatado, em outubro de 1984, na mini-série em 04 edições compilada agora pela Panini (e publicada em formatinho ainda nos anos 80, pela Abril).

O exuberante 2001 de Kirby

Conan do então "Barry Smith"

O que faz de Homem-Máquina uma pérola, não é apenas a retomada da cria de Kirby, mas o retorno de um gênio que por mais de uma década esteve afastado dos quadrinhos: o britânico Barry Windsor-Smith. Ao lado do roteirista Roy Thomas, Barry Smith havia causado frisson na primeira fase de Conan, o Bárbaro, no início dos anos 1970. O título destoava de tudo que era então publicado nos Estados Unidos, graças à forte pegada literária de Thomas e, principalmente, ao originalíssimo estilo do desenhista, calcado num repertório gráfico advindo da art noveau. A sofisticação do trabalho de Smith era tamanha que tornou-se impossível lidar com os prazos apertados dos gibis mensais. Conan foi então para as mãos do grande John Buscema, ao passo que Barry (agora Windsor-Smith) passou a dedicar-se a uma nova empreitada, a Gorblimey Press, especializada na publicação de portfólios e fine art. O período foi marcado por uma extraordinária pesquisa gráfica do artista rumo a um classicismo rafaelita, bem como pelo estúdio que dividiu com outros três gigantes das artes gráficas e dos quadrinhos: Jeffrey Jones, Mike W. Kaluta e Bernie Wrightson.

Ao tentar retornar aos quadrinhos, Barry Smith percebeu um terrível efeito colateral do período em que se dedicou exclusivamente ao aprimoramento de seu desenho: ele havia perdido o domínio da narrativa quadrinística. Eis então que o amigo (e veterano dos quadrinhos) Herb Trimpe lhe ofereceu os esboços feitos para a mini-série Homem-Máquina para que pudesse finalizar. Nascia então uma pequena obra-prima dos quadrinhos de super-herói dos anos 80.

No então distante ano de 2020, a robótica mundial é dominada pela Corporação Baintronics, a partir da tecnologia extraída do Homem-Máquina, desativado em 1985. Encontrado acidentalmente pelos Sucateiros da Madrugada - grupo rebelde que produz robôs e androides para o mercado negro a partir de sucata tecnológica -, o herói volta a ativa e inicia sua luta contra a megacorporação, enfrentando, entre outras coisas, uma versão recauchutada do Homem de Ferro. Tom DeFalco nunca foi um roteirista além de mediano, mas aqui ele entrega uma consistente trama de ficção científica - que obviamente fica melhor se comparada ao grosso da produção atual. Se não existem momentos de grande originalidade ou reviravoltas inesperadas, o ritmo preciso, a ação bem desenvolvida e a caracterização dos personagens garantem a leitura de cabo a rabo. Conceitos como os vid-salões (ambientes em que vídeo-viciados permanecem com seus cérebros conectados ao mundo virtual o tempo todo) e a cidadela rebelde flutuante Santuário, colocam a minissérie como uma possível influência não creditada à trilogia Matrix.

Herb Trimpe, falecido em 13 de abril último, foi um profícuo desenhista da segunda geração da Marvel, na virada dos anos 60 para os 70. Fortemente influenciado por Jack Kirby, fez história como um dos principais artistas do Incrível Hulk. É dele, inclusive, a capa da antológica edição da Rolling Stone Magazine que dissecava a editora e seu impacto na cultura jovem do período. Mais ainda, foi de seu lápis que surgiu a primeira aparição de Wolverine, a partir do design criado por John Romita. Se em meados da década de 1980 o próprio Kirby não estava entre os artistas mais populares (eram tempos de Frank Miller e John Byrne), o que dizer de Trimpe? De todo modo, foi a partir dos esboços do quadrinista que se deu o retorno de Barry Windsor-Smith aos quadrinhos. Em magnífica forma.

Trazendo na bagagem o inacreditável apuro técnico adquirido nos anos da Gorblimey Press, Barry Smith usou o storytelling de Herb Trimpe como a fundação sobre a qual edificaria a excelência visual presente em Homem-Máquina. Se na primeira edição ainda é possível reconhecer o design de Trimpe em personagens como o robô C-28 Morte Certa, já nos próximos números o artista iria progressivamente abandonar os esboços do colega - ao ponto de, no capítulo final da série, Trimpe sequer ser creditado. Em Homem-Máquina, o brilho de Barry Windsor-Smith ofusca tudo e todos.

A edição da Panini custa R$ 26,90. Vale cada centavo. A capa (dura e belíssima) é uma demonstração de como se utilizar impressão metalizada e aplicações em verniz a serviço do design da edição - e não como uma isca pega-nerd. Outro acerto digno de nota é a tradução de Érico Assis e Rodrigo Guerrino, onde fica evidente o esforço em preservar/traduzir a linguagem do futuro imaginada por DeFalco em 1984. No caso de uma série não tão popular quanto esta, a ausência de textos explicativos e extras se fez sentir. E definitivamente foi um pecado imperdoável reproduzirem as quatro capas originais (sensacional sequência em que uma parafernália tecnológica progressivamente constitui a cabeça do Homem-Máquina) em uma única página. Resta então a questão da cor...

A capa original da primeira edição

As cores sempre foram um ponto fundamental no trabalho de Windsor-Smith. O artista nunca se furtou a emitir as mais pesadas críticas ao péssimo uso de cores feito pela indústria dos quadrinhos e seu modelo de produção fordiano - que pode botar a perder todo o trabalho realizado nas etapas de desenho e tinta. A partir de seu retorno em Homem-Máquina, Barry Smith jamais deixou de ter controle sobre a arte-final e colorização de seu trabalho. Suas cores possuem função narrativa e são elaboradas levando-se em conta o tipo de impressão a ser utilizada.

Homem-Máquina é um gibi de uma época em que as edições especiais praticamente não existiam no mercado norte-americano. É anterior, por exemplo, ao Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Um gibi típico do período, impresso em papel jornal e com limitada paleta de cores. Foi dentro deste limites que Barry criou sua inovadora colorização. Uma vez que a edição da Panini utiliza papel couché brilhante, a proposta do artista não foi integralmente respeitada. Ainda assim é possível se deleitar com a abordagem cromática do inglês.

Ainda que não tenha status de clássico, Homem-Máquina é uma HQ que representa o potencial dos super-heróis enquanto gênero. No Brasil, ficou cerca de três décadas sem reencontrar leitores - o que, dada a quantidade de lixo nas bancas, é algo lamentável. Sua qualidade intrínseca vem aliada à sua importância histórica: o retorno de um mestre de primeira grandeza dos quadrinhos mundiais. Após Homem-Máquina, Barry Windsor-Smith seria responsável por algumas HQs antológicas da Marvel, como a canônica e definitiva Arma X, momento máximo do personagem Wolverine. Logo depois, seria peça fundamental na editora Valiant, publicaria livros pela Fantagraphics e ainda desenvolveria sue próprio título, o invocado BWS Storyteller, antes de sumir de novo. A esmagadora maioria deste material permanece inédita no Brasil - ou clamando por uma reedição decente. A surpresa de encontrar Homem-Máquina nas bancas acende uma pontinha de esperança em ver mais coisas dele por estas plagas. Barry Windsor-Smith tem feito uma falta dos diabos.

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 3

Acompanhei, à distância, boa parte dos quadrinhos – publicados por grandes editoras ou independentes – lançados no Brasil ao longo de 2015, mas li bem menos do que gostaria. Conferi muita coisa nas bancas e livrarias, mas poucas voltaram comigo ($) para casa. As melhores surpresas vieram dos sebos, onde costumo encontrar grandes achados, e em 2015 não foi diferente. Mas gostaria de ter bem lido mais. Lido outras coisas. Terei que correr atrás de muito quadrinho bom. Coincidência ou não, na hora de preparar esta lista, percebi que ela é composta basicamente de relançamentos ou material antigo (comics, mangá e BD). Teci breves comentários sobre 10 deles, elencados abaixo sem nenhuma ordem hierárquica, abordando roteiro, arte e também questões editoriais (como papel, impressão, etc). (PB)

Parte 1

Parte 2

por Pedro Brandt

1 - COMICS STAR WARS - CLÁSSICOS VOL. 4 E 5 - Archie Goodwin (roteiro) e vários (arte) (Planeta DeAgostini, 2015): O universo de Guerra nas Estrelas em quadrinhos é vastíssimo e a coleção Comics Star Wars - Clássicos, publicada desde setembro de 2014, é uma ótima oportunidade para o leitor brasileiro interessado em conhecer esse material, grande parte dele inédito por aqui. Serão ao todo 70 edições. Tem muita bobagem no meio (histórias insossas, desenhos canhestros), mas também algumas pérolas. As edições 4 e 5, por exemplo, guardam um tesouro especial: a adaptação ilustrada por Al Williamson de O Império contra-ataca. Renomado desenhista e arte-finalista, Williamson (1931-2010) recria o episódio V da saga cinematográfica com base em stills do longa-metragem de 1980. O ritmo da HQ é diferente do filme, bem mais lento e pouco dinâmico, ainda que, dado o número de páginas, a leitura seja rápida. Tudo isso poderia pesar contra a HQ, mas, pelo contrário, é o ideal para consumir a sensacional arte desse desenhista americano. A interpretação de Williamson para o filme dirigido por Irvin Kershner é bastante fotográfica, fiel às cenas que o inspiraram, mas é recriada pela ótica e estilo gráfico do ilustrador, à época, já um veterano de renome, mestre em cenários exóticos e ambientações fantásticas em quadrinhos de aventura, inspiração não apenas para George Lucas, mas para incontáveis outros criadores. Cada edição da coleção, publicada pela editora Planeta DeAgostini, é vendida lacrada em embalagem de plástico transparente, tem capa dura, papel couché, ótima impressão e recriação de cores (sem pesar a mão no digital). Mas tem um problema: não informa na contracapa detalhes do conteúdo de cada edição, quem são os autores, ano de publicação original, enfim, algo além de uma breve sinopse das tramas. Cabe ao leitor se informar sobre cada uma ou arriscar e comprar no escuro.

2 - COLEÇÃO HISTÓRICA MARVEL – O HOMEM-ARANHA #7 - Stan Lee, John Romita e Jim Mooney (Marvel / Panini, 1969-1970 [2014]): No final dos anos 1960, o roteirista Stan Lee, o desenhista John Romita e o arte-finalista Jim Mooney, então equipe de produção do Homem-Aranha, viviam um momento inspirado. As histórias presentes em Coleção Histórica Marvel – O Homem-Aranha # 7 (contemplando as edições # 68-75 de The Amazing Spider-Man, lançadas originalmente entre 1969 e 1970) apresentam um punhado de ótimas histórias, com ação e drama na mesma medida, mostrando o personagem em sua essência: a dualidade entre o universitário correto e desajeitado, sem grana ou tempo para família, amigos e namorada, fazendo jornada dupla (não remunerada!) como mascarado combatente do crime de grandes poderes e responsabilidades, além de desacreditado e à beira de desistir, contracenando com uma galeria de clássicos coadjuvantes (Rei do Crime, Lagarto, Shocker, Gwen Stacy, entre outros). Até aí, tudo dentro do esperado. É sabido que este é um dos melhores momentos da trajetória do personagem nas HQs. O que realmente chamou minha atenção nessa leitura foi perceber – desta vez, conscientemente – como o time por trás dessas histórias alcançou esses resultados. Esses quadrinhos, e tantos outros da mesma época, são exemplares da modernização pela qual a Marvel passava naquele período, com novas abordagens para personagens, atualizando pautas e trazendo um pouco de mundo real para as tramas, aproximando o leitor dos heróis; e, tão importante quanto, novas maneiras visuais de contar histórias de aventura. Em parceria com alguns talentosos desenhistas, Lee forjou um jeito Marvel de fazer histórias em quadrinhos (o livro How to do comics the Marvel way não tem esse nome à toa): ação quase ininterrupta, poucos quadros por página, narrativa econômica e eficiente (mostrando apenas o que é necessário e sempre trabalhando por uma continuidade clara da narrativa), influência de montagem cinematográfica, cenas dinâmicas de ação compostas por quadros com infinitas opções de angulação e uma série de recursos gráficos para retratar sentimentos e ações dos personagens. De um quadro para o outro, de uma página para a seguinte, de uma edição para a próxima, as conexões são ágeis, magnéticas, deixando o leitor sempre sem fôlego, curioso pelos próximos capítulos. Esse material é clássico e, dada a distância do tempo, mantém o frescor da novidade. Uma leitura divertida e, acima de tudo, instrutiva. Uma verdadeira aula de quadrinhos de super-herói. Pena que a impressão e a colorização – problema não apenas aqui, mas em outros títulos da coleção – ficaram tão lavadas, tanto nas cores como em várias áreas de preto.

3 - OS 80 ANOS DO PATO DONALD - POR SEUS PRINCIPAIS ARTISTAS

 - Vários autores (Disney / Abril, 1944-2014 [2014]): Os fãs de quadrinhos Disney não têm do que reclamar. Além dos títulos publicados mensalmente, as bancas estão sempre recebendo coletâneas especiais de seus principais personagens, como Donald, Mickey e Tio Patinhas. Mais do que as histórias propriamente ditas – algumas divertidíssimas, engraçadas, mas boa parte bastante infanto-juvenil, ingênuas e até mesmo bem bobinhas – foi o caráter histórico e panorâmico de Os 80 anos do Pato Donald– Por seus principais artistas que me atraiu para esta coletânea. É interessante notar como os desenhistas representados aqui (americanos, europeus e brasileiros. Nomes consagrados como Carl Barks, Don Rosa, Giovan Battista Carpi e Giorgio Cavazzano), cada um à sua maneira, consegue driblar as limitações do model sheet e imprimir sua marca distinta nas tramas e nos traços das histórias. Um índice detalha o país de produção, ano de cada HQ e se ela é inédita ou uma republicação no Brasil. Biografias apresentam os autores e suas principais contribuições para o universo de Donald nas histórias em quadrinhos. O acabamento da edição é impecável: capa dura, 480 páginas e papel couché (que é ótimo no geral, mas algo menos brilhoso valorizaria mais a arte). Infelizmente, as cores da maioria das histórias foram recriadas em computador, sem preocupação de quando elas foram publicadas originalmente. Fica feio, vulgar. Não faz nenhum sentido uma coloração assumidamente digital (que em nenhum momento tenta negar sua condição como tal) numa HQ da década de 1940!

4 - A DRIFTING LIFE – Yoshihiro Tatsumi (Drawn and Quarterly, 2009): Impossível assistir ao filme de animação Tatsumie não se interessar em conhecer os quadrinhos deste autor japonês. Diretor do longa-metragem, Eric Khoo apresenta adaptações de histórias curtas criadas por Yoshihiro Tatsumi (1935-2015) entremeados a várias passagens da vida do artista descritas na obra autobiográfica A drifting life. Apesar de seu tamanho monumental, com mais de 800 páginas, a leitura flui rapidamente e, em pouco tempo, o leitor pode ver-se engolido pela obra. Tatsumi nos fisga com relatos de drama e superação com uma narrativa detalhada (esbarrando por vezes na redundância) de sua trajetória pessoal (infância pobre, brigas familiares, relacionamentos) e profissional (os desafios para se manter como autor de mangás). Em paralelo, reconta a história das histórias em quadrinhos no Japão. Tudo com uma sensibilidade e leveza típicas dos autores japoneses (vêm à mente cineastas como Mikio Naruse e Yasujiro Ozu), apresentado com uma arte simples e eficiente em narrativa, construção de cenas e uso de recursos gráficos. A edição da editora Drawn & Quartely para a obra é simplesmente impecável (papel, impressão, acabamento, tudo)!

5 - THE ROMITA LEGACY - Tom Spurgeon (Dynamic Forces, 2010): Pai e filho, os desenhistas John Romita e John Romita Jr. fazem parte da história principal não apenas da Marvel Comics, mas da história das histórias em quadrinhos americanas. Tom Spurgeon apresenta longas entrevistas com ambos e reconta suas trajetórias, com enfoque na vida profissional. Pai e filho artistas comentam suas principais influências, o desenvolvimento de seus estilos de desenho, diversos bastidores da indústria dos quadrinhos, além, é claro, do relacionamento entre eles. Tudo acompanhado de dezenas de reproduções de páginas, capas, pinups e rascunhos. Um índice no fim do livro compila toda a produção quadrinistica de Romita Sr. e Jr. até 2010 (quando foi publicada a primeira edição). Como todo livro desse tipo, é recomendado especialmente para fãs.

6 - CREEPY – CONTOS CLÁSSICOS DE TERROR VOL. 2 – Vários autores (Dark Horse /  Devir, 1964-65 [2013]): Quando você pega uma coletânea da Creepy para ler está imediatamente fazendo um acordo entre as partes: a Creepy finge que te assusta e você finge que sente medo. Nada é minimamente assustador. As histórias são curtas demais e, geralmente, não conseguem alcançar um clima de suspense para então surpreender o leitor com uma reviravolta criativa ao final de cada trama. Tudo é muito ingênuo – bruxas, vampiros, múmias e mortos-vivos com uma abordagem datada. Quem não conta com o poder da nostalgia talvez se decepcione. Como leitura histórica e coletânea de grandes autores, aí é outro papo. O time da Creepy contava com os talentos de Frank Frazetta, Al Williamson, Alex Toth, Wallace Wood, entre outros grandes nomes, alguns veteranos e outros novatos à época (caso de Bernie Wrightson). Todos eles têm trabalhos melhores antes e depois de Creepy (aqui, parecem um tanto domesticados), mas não são chamados de mestre à toa. E é sempre bem-vinda uma publicação reunindo tanta gente boa. Destaque para as histórias com o personagem Adam Link, com desenhos de Joe Orlando e texto de Eando Pearson, protagonizadas por um robô com sentimentos humanos vivendo em uma sociedade hostil; e para o conto sobre a cobiça "Item de colecionador", de Archie Goodwin e Steve Ditko. A Devir está de parabéns com a edição, mas peca em um aspecto: por se tratar de quadrinhos tão fortemente associados a uma época, não dá para não se queixar das fontes de letras (computador, seu vilão!) utilizadas em algumas histórias, que tiram a cara vintage do material e soam como um corpo estranho ali.

7 - MIRACLEMAN – Alan Moore e vários (Marvel / Panini, 1982 [2014/15]): Muito já foi falado sobre Miracleman e sobre Alan Moore. Pulemos essa parte. Se você ainda tem dúvida sobre ler ou não Miracleman eu te digo: vá na fé, irmão. Mas eu entendo quem ainda não se deixou pegar pela série. Ao folheá-la, percebe-se que a arte não é o forte da HQ. Alan Davis, Gary Leach e os outros desenhistas que passaram pela série eram todos novatos na época, com estilo pouco definido e sem polimento. O que não empaca o ótimo roteiro de Moore, repleto de reviravoltas e surpresas, e a fluidez dos episódios, garantindo o bom entretenimento e a curiosidade para voltar à banca no mês seguinte. Os ingredientes viagens no tempo, conspirações governamentais, alienígenas e super-heróis (inseridos num contexto mais realista) são velhos conhecidos, mas Moore cozinha-os com seus temperos mágicos e leva-os para um nível superior. Logo na edição # 2 tem um acontecimento envolvendo Mike Moran (o Miracleman) e seu antigo pupilo Johnny (sem spolier) que me ganhou na hora. Mas (que chato, sempre tem um “mas”!), vendida por quase R$ 8, as edições deixam um tanto a desejar. Lá pela edição # 5 eu percebi estar sendo “meio” enganado. A impressão é que paga-se muito para ter apenas meia revista de Alan Moore (ou, o “roteirista original”, como ele está creditado) e o resto com histórias clássicas sem nenhum sabor, rascunhos (quem quer rascunho de desenhista meia boca?!) e pinups que nada acrescentam. Que venha logo um encadernado com apenas o filé!

8 - A SAGA DO MONSTRO DO PÂNTANO - LIVRO 4 - Alan Moore, Stephen Bissette, John Totleben, Stan Woch (DC Comics / Panini, 1985-6 [2015]): Tal qual em Spirit ou em Sandman, muitas das melhores histórias em O Monstro do Pântano têm o protagonista apenas como coadjuvante (ou nem isso), dando espaço para personagens secundários brilharem. O livro 4 de A saga do Monstro do Pântano, que engloba o ciclo Gótico americano, tem muito disso. Enquanto acompanhamos o protagonista em um percurso pelos Estados Unidos em busca de autoconhecimento, somos apresentados ao hippie Chester e suas experiências alucinógenas, ao grupo de jovens de Dança dos fantasmas e, principalmente, ao irritantemente carismático John Constantine. Ao contrário das tolas histórias de Creepy, aqui temos feitiços, casas mal-assombradas, manifestações sobrenaturais, psicopatia e demência usadas para máximo efeito. A arte de Stephen Bissette, John Totleben e Stan Woch são todas de uma personalidade visual esquisita, feia até. Mas essa feiura, esse exotismo gráfico, em determinado momento da leitura se tornam algo tão natural e próprio de cada história que funcionam como o complemento ideal para os roteiros de Alan Moore.

9 - SETON – UM NATURALISTA VIAJANTE – VOL. 1: LOBO, O REI DE CURRUMPAW – Jiro Tanigushi e Yoshiharu Imaizumi (Futabasha Publishers / Panini, 2004 [2008]): A simples menção de Jiro Tanigushi na capa de um quadrinho deveria ser o suficiente para atrair a atenção do leitor. Uma pena que pouquíssimo material do autor japonês tenha saído no Brasil.

Seton é um deles. Aqui, Tanigushi atua “apenas” como ilustrador e os roteiros são de autoria de Yoshiharu Imaizumi. Seton é inspirado na vida de Ernest Thompson Seton (1860-1946), pioneiro do escotismo e homem com forte admiração pela vida selvagem. Cabe a ele tentar capturar “O lobo”, líder da matilha que aterroriza os rebanhos da região de Currumpaw (EUA). Diferente da maioria dos quadrinhos de caubói, focados no embate de justiceiros e criminosos, Seton se foca na relação do homem com a natureza de maneira sensível e respeitosa. A narrativa tem fôlego tanto para as sequências de ação (que, pela dinâmica dos quadros, tem o pique dos animes), quanto para o drama. Fãs de Caninos Brancos(Jack London) e Princesa Mononoke (Hayao Miyazaki) têm de conhecer a obra. A despeito de suas qualidades, o mangá vendeu pouco e apenas o número 1 (de quatro) foi publicado pela Panini no Brasil.

10 - OS PASSAGEIROS DO VENTO #2 – O PONTÃO – François Bourgeon (Glénant / Meribérica / Liber, 1980): Pobres piratas! A pirataria, antes um gênero de aventura que rendeu incríveis livros, filmes e histórias em quadrinhos nos últimos tempos foi resumida a Jack Sparrow! Sendo assim, voltemos aos clássicos. Autor de Os passageiros do vento, o roteirista e desenhista francês François Bourgeon é do tipo que transporta o leitor para dentro de suas histórias. Faz isso com engenhosos roteiros, minuciosas pesquisas de época e dando a seus personagens uma vivacidade autêntica. Além disso, seu traço inconfundível (seus homens e mulheres têm feições bastante particulares) e a reconstrução fidedigna de barcos, armas, castelos, roupas e objetos de época acrescentam ainda mais à experiência intensa de leitura da obra. O mote de O pontão é o resgate engendrado por Isa e sua amiga Mary para resgatar Hoel de um navio (o tal “Pontão”) utilizado como prisão. Além da aventura, o relacionamento entre os personagens, todos donos de personalidades marcantes, dão bom ritmo à narrativa e impulsionam a história para o próximo episódio, de modo a deixar o leitor sedento por mais.

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 2

Olá pessoal da Raio!

Já estamos no ano de 2016 com a marcha engatada.

Mas isso não impede a Raio Laser de fazer uma lista de melhores do ano de 2015

! A minha lista também não pretende ser um levantamento do que foi lançado no ano que findou, mas é uma ajuntado do que eu li de particularmente inédito. Coisas velhas que nunca li, material de 2014 que só pude ler em 2015 e outras coisas que minha vida de trabalhador braçal não me permitiu ler quando lançou. Na minha lista entra um material bem variado, mas também acredito que muita coisa legal ficou de fora graças à minha memória avariada. Até a próxima! (LN)

Parte 1

Parte 3

por Lima Neto

1 - PÍLULAS AZUIS – Fredrik Peeters (Nemo,2015 [2001])

A autobiografia em quadrinhos, um filão lucrativo em produções de qualidade e muitas vezes criticado por seu óbvio ensimesmamento, tem parte de seu valor situado na área indistinta e amorfa em que se interseccionam a biografia do leitor e do autor. Alguns destes quadrinhos, como as Pílulas Azuis de Fredrik Peeters, têm ainda o ponto positivo de abrir ao leitor a possibilidade de experimentar uma alteridade coletiva em que vários cotidianos são apresentados como uma tessitura particular que retrata a fundo um drama pessoal e específico.

Frederik Peeters ainda é um desconhecido por aqui. Por isso mesmo a escolha de publicar seu trabalho biográfico foi bem acertada. O livro trata de sua vida junto com a companheira, Jude, e seu filho, ambos soropositivos.

Pílulas leva o leitor a atravessar uma ponte pouco visitada - aquela que separa a realidade de quem deve conviver com a AIDS e a imagem de desespero e perigo que é rapidamente evocada pelo imaginário da doença. Alternando momentos de sensibilidade e austeridade, Peeters monta uma trama enxuta em que duas grandes qualidades se apresentam como uma arma eficiente contra o preconceito - sobriedade e maturidade.

Mais do que a situação da companheira, é a maturidade das reflexões de Peeters em relação ao seu dia-a-dia que chama a atenção no gibi. Com um pragmatismo sensível, o autor vai expondo seus medos, tanto particulares quanto do casal, e vai demonstrando como que, paulatinamente, a relação dos dois se transforma em um companheirismo sóbrio, consciente da "normalidade anormal" da posição em que se encontram. Sem heroísmos ou melodramas. Ao final somos brindados com algumas páginas feitas anos depois, onde Peeters apresenta seu traço mais atual e realista, em que vemos um depoimento dos familiares envolvidos. Com certeza um dos melhores quadrinhos do ano.

2 - NOVA MARVEL X-MEN #1 a 15 – Brian Michael Bendis & Chris Bachalo (Panini, 2015 [New Marvel Uncanny X-men #1 – 18, 2014])

Já falamos muitas vezes aqui na RL que, quanto mais próximo da realidade um quadrinho de super-herói se posiciona, pior é sua qualidade. A imagem fantasiosa do herói super poderoso se desmonta em perigosos tons reacionários quando confrontada com problemas reais que pedem por soluções reais. A melhor forma com que o quadrinho super-heroístico pode abordar a realidade é sempre através da metáfora... algumas mais diretas que outras, e é assim que um título X consegue entrar nessa lista.

Há vários anos eu deixei de comprar gibis para acompanhar personagens e passei a acompanhar escritores de HQ. Das vezes em que retorno a ler X-Men, é por que algum autor que me interessa está capitaneando o gibi. Depois de ler muitas resenhas, resolvi correr atrás da fase do escritor Brian Michael Bendis. Com seu estilo característico em que mistura diálogos extensos com criativas viradas de roteiro, em X-Men Bendis extrapola a essência do grupo de mutantes no que eles têm de mais poderoso: na metáfora entre a causa mutante e as lutas por igualdade de direitos empenhadas pelos mais diversos grupos civis que se sentem lesados por uma insuficiência social em reconhecer suas diferenças.

Criados em um EUA pós-conflitos por direitos civis, Stan Lee via em seu pacifista Professor X um Martin Luther King, enquanto que a verve belicosa de Malcom X estava presente na atitude terrorista de Magneto. Essa imagem permanecia parcialmente inalterada até alguns anos atrás. Resumindo, porque a parte chata é a novelinha, após uma mega-saga que joga X-Men contra Vingadores (embora a premissa seja simplista, a relação entre minorias VS maioria se torna bastante explicita nessa saga, mas isso fica pra outra hora) e que termina com o personagem líder dos X-men, Ciclope, matando seu mentor Professor X (nenhuma surpresa ai, ele deve voltar em breve como todos os mortos da Marvel) e sendo considerado um terrorista internacional, o grupo se divide entre os que seguem o sonho de Xavier e os que preferem a realidade proativa de Ciclope, que passa a se tornar um ícone da luta mutante. A fase de Bendis é marcada ainda pela chegada dos X-Men originais para o presente, através do plano de um Fera moribundo que serve para confrontar o Ciclope terrorista com sua versão mais nova. É aquela típica confusão mutante pelo tempo, mas que acaba tornando-se um ótimo exercício de caracterização na mão de Bendis. O ponto negativo é a arte, por conta de um cansativo Chris Bachalo, antes um herói indie dos anos 90, agora um desenhista pouco criativo e que parece fora de sintonia com o roteiro na maioria das páginas.

O que importa aqui, e o que faz o titulo entrar nesta lista, é a nova atitude do ex-líder do grupo. No gibi vemos um Ciclope fugitivo reconstruir a escola Xavier nas ruínas do projeto Arma X e recrutar os membros descontentes dos X-Men. Em sua fase, Bendis deixa claro que o espaço entre a metáfora e a realidade se torna mais estreito do que nunca. O fator super poder é jogado para segundo plano e o que brilha é o desdobramento político das ações do personagem. A renovação do herói "escoteiro" como um tipo diferente de anti-herói, um anti-herói que simboliza e atua na luta coletiva investindo na ação proativa, quebrando com o status quo. Com habilidade, Bendis se aproxima e se afasta desse paradigma político evitando cair na relação aniquiladora entre fantasia e realidade, e com isso dá um novo frescor aos personagens e uma verdadeira sensação de mudança. Ou, como o próprio Ciclope comenta ao ser criticado pelo novo status de criminoso político: "Engano seu. Odiado. Temido. E salvando o mundo. Diga-me o que mudou.”

3 - CUBE – Marcelo d’Salete (Veneta, 2015)

Há uma relação nada sutil entre este item da lista e o anterior. Se Bendis radicaliza a metáfora dos mutantes como comentário social proativo, em Cumbe não há metáforas e nem dúvidas quanto ao posicionamento de seu autor em relação à luta contra as injustiças sociais.  Cumbe é uma exposição crua da história de resistência negra contra a sociedade escravagista no Brasil colônia. O último trabalho do quadrinista Marcelo d´Salete transporta sua temática dos excluídos e periféricos para um ambiente histórico buscando jogar uma luz muito necessária nos esforços ativos e pouco mostrados da resistência negra à escravidão.

Como é dito no próprio livro, Cumbe é uma palavra bantu que significa O Sol, O Dia, A Luz, O Fogo e também um sinônimo para Quilombo. Em três histórias que se entrecruzam, d´Salete mostra a crueldade de um sistema de trabalho forçado onde aqueles que eram obrigados a se submeter eram tratados como menos que animais, alguns enlouquecendo até tomaram a própria vida e outros tantos resistindo ativamente, dia a dia, para escapar da situação degradante de violência e retomarem a posse das próprias vidas. 

Sem metáfora.

O traço de d'Salete continua com seu vigoroso e poético preto e branco, abrindo mão de um realismo que, em qualquer nível, seria insuficiente para captar a crueza do período. Ele prefere apostar em suas áreas de tonalidades cinzentas feitas com esmero com seu pincel seco. Se em trabalhos anteriores o autor usava sua técnica para escancarar as fronteiras sociais demarcadas pelo vocabulário urbano - hora picho, hora logotipo - em Cumbe seu pincel estiliza o cenário colonial com um minimalismo ao mesmo tempo singelo e sufocante.

Os personagens de Cumbe também guardam a mesma relação paradoxal: seus rostos de limitadas expressões dão lugar ao volume ensurdecedor de suas ações. Cumbe é forte e direto sem abrir mão das suas possibilidades intersubjetivas e expõe não apenas o contraste do período colonial com o nosso presente, mas, principalmente, suas muitas semelhanças.

4 - O GRALHA: TÃO BANAL QUANTO ORIGINAL – José Aguiar e vários autores (Quadrinhópolis, 2014)

Na sequência desta lista nós temos outro quadrinho de super-herói. Aliás, um dos melhores quadrinhos de super-heróis - O Gralha, com o álbum Tão Banal Quanto Original. 

O Defensor das Araucárias é uma criação coletiva que envolve os autores Gian Danton e José Aguiar e os artistas Alessandro Dutra, Antonio Eder, Augusto Freitas, Edson Kohatsu, Luciano Lagares, Nilson Muller e Tako X. Havia muito tempo que tinha lido o primeiro álbum do personagem, lançado pela Via Lettera em 2008, e esta segunda antologia de histórias do Gralha me lembrou por que o conceito do personagem é tão divertido, sendo uma das melhores leituras do ano.

Vários autores, várias visões, o Gralha é um personagem pensado para se adequar a qualquer criador. O resultado é um quadrinho mais potente e facetado que qualquer outro gibi de super-herói. Lógico que todos os elementos do gibi de herói estão lá: Gustavo Gomes é o neto do Capitão Gralha e defende uma futurista Curitiba de uma galeria de vilões tão bizarra quanto idiossincrática - A gigante Araucária, o deformado Homem Lambrequim, o gênio do mal Craniano, o metalinguístico Homem Dor-De-Cabeça... a lista é extensa.

Esse segundo álbum dá continuidade às aventuras do personagem. Em destaque temos história "O Ovo e a Gralha", em que o macabro Craniano reflete sobre a necessidade de ser o arqui-inimigo de um herói tão abaixo de seu nível intelectual, com roteiro de José Aguiar e a bela pena de Jairo Rodriguez. A mesma dupla também narra uma história de singela beleza no divertido "Dia do Pinhão". Em "A Volta do Lambrequim", José Aguiar, acompanhado de Tako X, revela a intimidade do monstruoso Homem-Lambrequim, e na ótima "As Origens do Craniano", Aguiar, agora cuidando tanto da arte quanto dos desenhos, tenta dar uma explicação para o vilão com cabeça Pêssanka.

Como se pode perceber pelos nomes, a cultura curitibana e paranaense se tornam um dos personagens mais presentes nas histórias do Gralha, mas em momento algum estes traços regionais parecem forçados ou caricatos. Na verdade, o que diferencia o Gralha, a sua originalidade banal, é o fato de ser tão idiossincrático (uma característica de muitas produções do sul do país, como o rock sulista) que a cidade parece se destacar da realidade e se aproximar de outras metrópoles imaginárias como uma Metrópolis ou uma Gotham. Tudo isso sem perder o humor ou cair em dramas pedantes ou aventuras ufanistas sem graça. Um ponto negativo? Admito que me incomoda bastante a falta de diversidade étnica nos desenhos.

O gibi foi publicado pela Quadrinhópole e a mesma editora acabou de lançar a edição O Gralha Art Book, uma espécie de making of do personagem acompanhado de diversas pin-ups e pequenas histórias para o especial que foi patrocinado via Catarse. E em sebos ainda é possível encontrar a primeira edição do Gralha pela editora Via Lettera!

5 - HICKSVILLE – Dylan Horrocks (Drawn and Quartelly, 2010 [1998])

E por falar em idiossincrasias regionais, o quinto lugar desta lista fica para o Hicksville de Dylan Horrocks. Já falamos sobre este gibi na cobertura do FIQ, mas sua mistura de biografia à la “vida secreta dos ricos e famosos”, com um mistério envolvendo a história das HQ's no melhor estilo David Lynch, faz com que ela mereça voltar a ser citada.

A HQ acompanha o jornalista Leonard Batts em sua viagem para conhecer a cidade natal de Dick Burguer, uma estrela internacional do entretenimento hollywoodiano que chegou à fama vendendo o direito de seus quadrinhos para o cinema.

Hicksville, que também é o nome desta cidade fictícia que fica na ponta mais ao sul da Nova Zelândia, foi publicado em 1998. A edição que chegou até mim é a republicação de 2010 editada pela Draw and Quartely

e que conta com um belo capítulo inédito introdutório em quadrinhos onde Horrocks fala sobre as emoções e pulsões que levaram à criação do gibi.

Voltando à trama, Batts esbarra em uma cidade misteriosa e cheia de segredos onde aparentemente o pilar cultural de sua comunidade são as histórias em quadrinhos. De uma estalagem que conta com uma gibiteca carregada de edições raríssimas em perfeito estado até uma festa folclórica à fantasia em que toda a cidade se veste de personagens clássicos da história da HQ, Hicksville parece o sonho de qualquer apreciador de quadrinhos e leva um conceito bem conhecido da literatura para o meio dos gibis – o da biblioteca das histórias sonhadas e nunca publicadas. O resto, só lendo. Saiba mais sobre este gibi aqui.

6 - MISS: BETTER LIVING THROUGH CRIME – Philippe Thirault, Marc Riou e Mark Vigouroux. (Humanoids/DC comics, 2005 [1999])

Lançado nos estados unidos em 2005 pela finada parceria entre a Humanoids e a DC Comics,

Miss: Better Living Through Crime – álbum escrito por Philippe Tirault e com arte de Marc Riou e Mark Vigouroux – é um daqueles quadrinhos de crime que fascina tanto pela crueldade das situações, quanto pelo carisma de seus protagonistas. Numa decadente Brooklyn dos anos 20, uma órfã ruiva e um cafetão negro se juntam para sobreviver à miséria que os cerca e os empurra cada vez mais para o fundo do poço. Como resultado, viram parceiros na prestação de um serviço muito procurado tanto pela população empobrecida do local quanto pela elite que começa a se erguer dos escombros: assassinato por encomenda.

Nola, ou Miss, como é chamada por seu todos (trocadilho tanto para "senhorita" quanto um apelido dado à sua involuntária capacidade permanecer viva depois dos vários tiroteios dos quais participam) é uma personagem feminina cuja representação ultrapassa em muito o estereótipo das divas do charleston que ilustram o imaginário do período. Mãe viciada em drogas, pai falecido por abuso de álcool, criada em um convento de freiras onde cedo aprendeu a revidar, Lola é o lado negociante da dupla. O fato de ser branca é o cartão de visita para negociar com a alta sociedade de NY. Seu parceiro, Slim, é filho de uma família rica, com um irmão médico bem sucedido e várias complicações devido à sua vida como cafetão enfiado em todo tipo de negociata nas espeluncas de Brooklyn. Slim é a parte logística da dupla: sua desenvoltura no submundo complementa a dinâmica de trabalho dos dois.

Visualmente, a Nova Iorque de Miss varia entre a exuberância e as ruínas. Quadras vazias com cortiços mal acabados tomam conta da maior parte do álbum. A colorização, feita digitalmente e carregada em tons amarelos nauseantes, acentua a sensação de vazio da cidade. De certa forma, esse vazio também está presente nos personagens, de maneira mais acentuada ainda nos clientes e nas suas demandas imorais – um empresário que quer ver o filho do sócio morto, uma esposa de olho na fortuna do marido, outra que quer que a amante do marido desapareça – casos relativamente comuns que acabam levando a desdobramentos mais complicados. A dupla se vira como pode. Alguns sucessos, alguns fracassos, mas sempre com uma espécie de “nobreza” torta que ajuda a compor a dinâmica dos dois – Nola sempre direta e violenta, principalmente quando escuta que seu “empregado” deve esperar do lado de fora, e Slim sempre desvelando as hipocrisias da ascendente sociedade do Brooklyn ao assumir o trabalho que escolheu para subir na vida. Em alguns momentos, principalmente no início do álbum, algumas falas e transições entre requadros se tornam bastante confusas de entender, acredito que graças a uma dificuldade de tradução do francês para o inglês. Mesmo assim, Miss é um quadrinho certeiro, e o melhor policial que li no ano.

7 - BIG BOOK OF DEATH – Bronwyn Carlton e vários artistas (Paradox Press, 1995)

Existe um selo de quadrinhos perdido nos EUA que, embora fazendo parte do grupo Time-Warner e ligados à DC Comics, teve pouquíssimos trabalhos publicados por aqui (as edições de Gon da Conrad e A Estrada Para Perdição, para ser exato). Este selo é a Paradox Press. O carro chefe da editora é a série Factóide Books, grandes livros de antologias com historietas curtas de até cinco páginas girando em torno de um tema específico. Antes de se falar em Joe Sacco e jornalismo em quadrinhos, os Big Books da Paradox já faziam um apanhado narrativo vasto esmiuçando assuntos como discos voadores, mortes bizarras, mártires religiosos, crimes históricos, etc., com uma abordagem que mistura almanaque e documentário. A maioria dos livros é escrita por um escritor apenas e desenhada por uma vasta gama de artistas de quadrinhos do underground estadunidense, incluindo o citado Sacco.

Essa introdução é para apresentar o sétimo gibi da minha lista, o Big Book of Death. Duzentas e vinte e quatro páginas, em preto e branco, com centenas de relatos sobre a mais inescapável das sinas. O álbum, como todos os Big Books, mistura um relato aprofundado com uma arte que varia do realismo ao cartum resultando em diversão garantida (e fúnebre).

Os contos são organizados por temas: o primeiro capítulo conta a história do assassinato oficial, as execuções capitais, sua história e principais práticas. Este capítulo é de abrir os olhos para a maneira com que a lei evoluiu até nosso século XXI, deixando para trás algumas execuções extremamente doentias, como o pressionamento – onde o condenado se deita em uma cama de lâminas, seu corpo é coberto por uma tábua que cobre seu torso, e são colocados sobre a tábua vários pesos, vagarosamente, até que o corpo seja esmagado e perfurado. Enquanto o condenado ainda vive.

O segundo capítulo foca o homicídio criminoso e o suicídio. Mortes idiotas, cidadãos acima de quaisquer suspeitas que escondem um lado assassino brutal, a história da eutanásia, etc.

No terceiro capítulo temos os assassinatos em massa, as pragas históricas, tuberculose, febre tifóide, morte negra. As guerras e suas grandes matanças, as mortes religiosas e cultos suicidas.

O quarto capítulo se dedica aos falecimentos peculiares. Mortes inexplicáveis, combustões espontâneas, e todo tipo de morte bizarra.

O quinto capítulo, e um dos mais interessantes, revela a ciência da morte, seus limites biológicos e

 químicos, como funciona o exame da autópsia e as formas de preservação dos corpos.

O sexto capítulo faz um tour pelos cemitérios mais famosos ou bizarros do mundo, os museus da morte, e a morte como turismo.

O sétimo capítulo foca nas maneiras históricas e atuais de se desfazer de corpos, desde os enterros ritualísticos até os métodos da máfia italiana.

O oitavo capítulo aborda os costumes culturais envolvendo os mortos em todo mundo, e, finalizando, o nono capítulo fecha o livro com contos que abordam o que há, ou se há, algo após a morte.

É diversão garantida! Todos os textos foram escritos pela escritora Bronwyn Carlton, especializada em literatura criminal e forense, e as artes são feitas por um desfile de talentos como Craig Hamilton, D´Israeli, Rick Geary, Steve Bucellato, Linda Medley, Mark Badger, Joe Orlando, Hunt Emerson, e muitos outros. Recomendo também o fabuloso Big Book of Unexplained, onde o escritor de quadrinhos Doug Moench, junto com vários artistas, o levam a um passeio pelo mundo do estranho e bizarro, e eventualmente charlatanesco. Sempre com um bom humor negro e ironia.

8 - MARCO, O MACACO DO ESPAÇO - Daniel Lopes (Mês, 2014)

Em um mundo perfeito, a viagem do macaco Marco pelos confins da galáxia seria uma publicação semanal em coloridos suplementos de quadrinhos dominicais.

O álbum de Daniel Lopes, mais um grande trabalho saído do fanzine Mês (por motivos puramente cronológicos, o álbum O Aguardado, do também mensaleiro Augusto Botelho, não entra nesta lista) reúne os quadrinhos que foram publicados em um ano de produção em uma versão colorida e luxuosa.

Marco é o nome de um dos primeiros macacos lançado ao espaço pelos terrestres. Seu corpo já falecido é encontrado pelos pacíficos e avançados Vimanaranos que, por sua vez, o reabilitam e o evoluem ao máximo de sua capacidade física e intelectual. O que se segue é uma homenagem aos quadrinhos do passado, com todo um clima de ficção científica dos seriados de cinema e um ritmo sempre acelerado, mas sem esbarrar em um pastiche de referências visuais estéreis amarradas para acionar glândulas nostálgicas.

O Macaco do Espaço é um estudo do quadrinho clássico, dos heróis da ficção científica do início do século XX, mas sua existência e qualidade nos dias de hoje se deve ao fato de ser um catálogo desses mesmos quadrinhos. No espaço, o primata sofre de muitas das provações e desventuras que ocorrem nas tiras de space opera, mas sempre ao seu jeito, com o seu ponto de vista. Sempre calado, pensativo e atuante. O problema maior deste quadrinho é sua duração. O personagem tem potencial para ter uma epopeia em quadrinhos, mas o final acaba de forma abrupta, e o excesso de extras acaba fazendo você desejar mais histórias na edição. Mesmo assim, Marco o Macaco do Espaço é viciante como eram os quadrinhos de outrora. Uma leitura recompensadora.

9 - EC ARCHIVES: TWO FISTED TALES VOLUME 2 – Harvey Kurtzman e vários artistas (Gemstone Publishing, 2011 [1951-52])

Em nono lugar na lista das melhores leituras do ano de 2015 está o encadernado The EC Archives Two Fisted Tales Volume 2, reimprimindo em alta qualidade as edições de 7 a 12 da série de guerra da EC Comics. Sobre a EC é dispensável falar, se você está lendo este texto até aqui é por que sabe de cor o papel da editora em revolucionar o quadrinho no mundo, capitaneada pelas mãos de Bill Gaines

. A coletânea é da Gemstone Publishing, e a qualidade da edição é de cair queixo: papel luxuoso e capa dura. A colorização, infelizmente, não é a original (realizada pela lenda Marie Severin) mas segue seu estilo obsessivamente, mantendo o clima das edições originais e dando uma aula de cor para as edições de arquivo das grandes editoras norte americanas.

Todas as histórias foram concebidas, escritas e editadas pelo genial Harvey Kurtzman, e são uma janela nefasta para o que ocorria nos fronts em que os EUA estavam envolvidos. Entre os destaques da edição estão "Rubble!", com arte de Kurtzman, onde vemos a saga de um pai de família norte-coreano em construir, pedra por pedra, a casa de sua família apenas para que tudo, a família e a casa, deixem de existir. A narrativa é um duelo de onomatopeias onde os sons destrutivos da guerra atropelam os miúdos chiados, rastejos e marteladas que levantaram um lar. Esta história vai ser homenageada pela dupla Jason Aaron e R. M. Guera em uma edição fechada de Scalped mais recentemente. Em "Corpse on the Imjin", também com arte de Kurtzman, temos uma reflexão sobre a vida e a morte durante tempos de guerra. Como o espetáculo da morte, mesmo no caso de um corpo flutuante no rio Imjin, pode ofuscar a vida, ainda mais na soturna rotina da guerra: “Muitas coisas bóiam no Imjin! Madeira velha, caixas de munição, embalagens de ração, cápsulas de bala!… nós ignoramos estes destroços flutuantes! Por que então, um corpo sem vida chama tanto a atenção do nosso olhar?... bom, apesar de esquecermos, a vida É preciosa, e a morte é horrível e nunca passa despercebida!” Um quadrinho angustiante. Este material, entre outros da EC, estão na lista dos quadrinhos com mais urgência de serem publicados no Brasil. Já está na hora de alguma editora tomar a frente desse projeto e trazer o catálogo da EC para cá, principalmente o material de crime e guerra.

10 - MULTIVERSITY – Grant Morrison e vários artistas (DC Comics, 2014-2015)

Fechando essa lista está mais uma história de super-heróis, e, pior ainda, uma história de uma das grandes editoras! Mas, inegavelmente, os especiais de série Multiversity estão entre os melhores e mais instigantes quadrinhos que li em 2015. Escrita por Grant Morrison e com arte de vários artistas, a minissérie conta a história de um perigo tão grande que obriga heróis de várias dimensões a se unirem pra resolver o problema. Essa parte é dispensável. É interessante como Morrison abusa das metáforas para mostrar como a super comercialização dos heróis, as preocupações do mundo real e os limites editoriais estão matando o quadrinho de super-poder. Os monstros que ameaçam a realidade da história são a corporificação desses problemas e são chamados de The Gentry, uma crítica direta da gentrificação realizada no meio pelos grandes estúdios que chegam desconstruindo e reformatando os personagens. Interessante, mas dispensável, já que acaba por levar a uma outra história sem fim. O que é realmente interessante é o intricado multiverso que Morrison constrói e como cada edição especial é carregada da criatividade e da ousadia narrativa que são a marca do autor. Publicada em sete capítulos e mais um guia do multiverso, cada edição da minissérie é uma janela para um mundo paralelo do universo DC que se encontra às margens da destruição total, e temos até uma edição que se passa no “nosso” mundo e que tenta esclarecer a noção de “super-herói” que o autor prega.

Em destaque temos os deliciosos S.O.S. e Thunderworld, um universo de aventura pulp e o mundo de Shazam, respectivamente. Poucos trabalhos do autor são tão diretos quanto estas edições. Em Society Of Super-Heroes, com a belíssima arte de Chris Sprouse, um grupo de aventureiros se reúne para evitar um armagedom inca, e falham. Em Thunderworld, junto com Cameron Stewart, Morrison mostra como se faz história de super-heróis do jeito certo – muita aventura e um otimismo infantil que faz com que os heróis lutem com um sorriso no rosto mesmo diante da invasão final de Doutores Silvana de todas as dimensões.

De acordo com o mapa que o autor desenvolveu, o posicionamento da dimensão em relação a ele

 indica o quanto de realismo ou ingenuidade uma determinada dimensão agrega. No lado diametralmente oposto ao sonho juvenil dos Marvels está a edição Pax Americana, uma crítica quadrinística cifrada endereçada a Alan Moore. Retomando sua parceria com Frank Quitely, em Pax há uma intenção clara de ser uma interpretação de Watchmen. A dimensão em que se passa a história é a da Charlton Comics, lar do Besouro Azul, do Questão e do Capitão Marvel, a matriz original da série da obra-prima de Moore. Pax é uma pequena obra-prima em si mesmo, mas seu hermetismo e obsessão acabam por diluir o prazer da leitura. Mesmo assim o roteiro levanta vários questionamentos interessantes, como o momento onde explica o sucesso dos filmes de super-heróis: “Após a queda das torres, nós vendemos sonhos infantis para adultos amedrontados.” Questão e Capitão Átomo são outros destaques da revista, mas valem ser lidos e não narrados aqui.

Ultra Comics e O Guia do Multiverso são os capítulos mais metalinguísticos. Ultra Comics é o herói criado em um mundo sem super-heróis. Na verdade trata-se de uma revista em quadrinhos com uma ideia memética que funciona como um super-protetor psicológico que é acionado quando a revista é lida. Um capítulo muito interessante e que merece ser lido duas vezes para ter o efeito desejado. O guia é um passeio pelas diversas outras dimensões concebidas pelo escritor. Temos também The Just, uma deliciosa dimensão onde os anos 90 nunca acabaram e os filhos dos heróis desse período reencenam as lutas clássicas de seus pais enquanto festejam como adolescentes ricos. Uma homenagem ao Reino do Amanhã e aos anos Image da DC. Fica faltando apenas Mastermen, uma dimensão onde o foguete de Super-homem cai na Alemanha e o presente é dominado pelo terceiro Reich. Os heróis que resistem são considerados terroristas e há uma boa emulação de como a realidade pode ser distorcida entre um país e outro. Mas, nesse sentido, o Bendis lá no começo desta lista fez muito melhor. Multiversity está sendo publicada no Brasil pela Panini no mix picareta da série Multiverso DC.

É isso meus caros! Até a próxima.