JORNADA!!!

Começa amanhã, e segue até quarta-feira, a III Jornada de Estudos Sobre Romances Gráficos na UnB. O evento é organizado pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e, desta vez, tive a honra de participar da organização. Apresentarei, logo na primeira mesa, no dia 24, o trabalho "A espaçotopia a partir de Moebius", e vou ministrar um pequeno workshop sobre a história dos Quadrinhos no dia 25. A programação está muito rica e conta ainda com o lançamento do livro Histórias em quadrinhos: diante da experiência dos outros, organizado por Regina Dalcastagnè.

Segue a programação abaixo e... programe-se! (CIM)


III Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos
 
Brasília – Universidade de Brasília – 24 a 26 de setembro de 2012
Local: Auditório 1 do Instituto de Ciências Biológicas
Coordenação: Regina Dalcastagnè (UnB) 
Comitê organizador: Ciro Inácio Marcondes (UnB), Gabriel Estedis Delgado (UnB), Igor Ximenes Graciano (UFF), Ludimila Moreira Menezes (UnB), Maria Clara da Silva Ramos Carneiro (UFRJ) 
Organização: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea
Apoio: Departamento de Teoria Literária e Literaturas 
Inscrições pelo e-mail:jornadaromancesgraficos@gmail.com
As histórias em quadrinhos contaminaram o imaginário contemporâneo com seus personagens mais famosos, assim como sua estrutura icônica e sua narrativa tornaram-se referência para outras artes. Elas fazem parte do universo plástico e afetivo de pessoas de diferentes faixas etárias, gêneros, nacionalidades. Das tiras às histórias mais longas, seu sistema compreende diversos modos de realização, dentre as quais destacamos as graphic novels – ou romances gráficos. Fugindo ao herói tradicional dos gibis, muitos romances gráficos tratarão de temas extremamente literários, trazendo à baila, também, novas possibilidades discursivas. Dessa forma, os romances gráficos suscitam questões sobre o mercado livreiro, a indústria do entretenimento, a arte como relato e testemunho, e apresentam-se como espaço de exercício sobre memória, subjetividade, gênero, sexualidades. São problemas frequentes para a crítica literária que podem ser analisados, hoje, à luz desse objeto cultural ainda tão pouco estudado. 
Nesse âmbito, a Jornada de Estudos sobre Romances Gráficos, organizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, chega à sua terceira edição confirmando-se como um espaço necessário ao aprofundamento de tais discussões. Reunindo estudantes, profissionais da área de comunicação, artes e literaturas, professores e pesquisadores, o evento cresce a cada ano, envolvendo, a cada vez, novos eixos de debates.


PROGRAMAÇÃO
Dia 24/9
MESA 1
8h às 10h
Pontos de contato entre literatura infantil e histórias em quadrinhos no mercado editorial brasileiro
Paulo Ramos (Unifesp)
A espaçotopia a partir de Moebius 
Ciro Inácio Marcondes (UnB)
A utopia enquanto forma em La fièvre d’Urbicande
André Cabral de Almeida Cardoso (UFF)
MESA 2
10h30 às 12h
Formas animadas e percursos de leitura da imagem: vetorialidade e sistema das ações no humor gráfico
Benjamim Picado (UFF)
Sigmund Freud em quadrinhos: O homem dos lobos 
Pascoal Farinaccio (UFF)
Arquiteto de papel: ação do duplo em Asterios Polyp
Rosângela Maria Soares de Queiroz e Cleriston de Oliveira Costa (UEPB)
MESA 3
14h30 às 16h
Os homens da areia de Hoffmann e Gaiman
Sílvia Herkenhoff Carijó (UFF)
A fase independente de Alan Moore e sua cria subversiva
Naiana Mussato Amorim (UFU)
A Liga Extraordinária: o fanfiction de Alan Moore e Kevin O’Neill
Vinicius da Silva Rodrigues (UFRGS)
MESA 4
16h30 às 17h30
Jonah Hex: um cowboy americano de típico italiano
Alex Vidigal Rodrigues de Sousa (UnB)
Os cegos, os mortos, os bárbaros: desastre, violência e prognósticos do presente em Os mortos-vivos e Ensaio sobre a cegueira 
Pedro Galas Araújo (UnB)



Dia 25/9
MESA 5
8h30 às 10h
A difícil representação da equivocidade feminina em O homem que ri: da narrativa hugoana aos romances gráficos da contemporaneidade  
Junia Regina de Faria Barreto (UnB)
O grotesco e a monstruosidade feminina em Y: o último homem
Anne Caroline de Souza Quiangala (UnB)
Anti-urbanismo queer em Fun Home: uma tragicomédia em família, de Alison Bechdel
Adelaide Calhman de Miranda (UnB)
MESA 6
10h30 às 12h
Gênero, Shoujo Mangá e história alternativa: reflexões sobre Ōoku de Fumi Yoshinaga
Valéria Fernandes da Silva (FTB/Colégio Militar de Brasília)
Representações da prostituição nos quadrinhos
Daniel Leal Werneck e Letícia Cardoso Barreto (UFMG)
MESA 7
14h30 às 16h
Liberação sexual: a juventude da contracultura a partir da autobiografia de Robert Crumb, emMinha vida
Larissa Silva Nascimento (UEG)
Autobiografia e subjetividade: Fréderic Boilet e a nouvelle manga
Tiago Canário de Araújo (UFBA)
Sarjeta: o espaço subjetivo dos quadrinhos
André Valente (UnB)
MESA 8
16h30 às 18h
Capuchinho Vermelho, de Charles Perrault, e Mônica: a de vestidinho vermelho, de Mauricio de Sousa: dois estilos, duas linguagens e a expressão contemporânea do conto de fadas
Rita de Cássia Silva Dionísio (UNIMONTES)
O exílio da gata: a mulher felina como ameaça sexual em Batman
Marcia Heloisa Amarante Gonçalves (UFF)
Heróis em ação: palavra, narrativa e heroicidade na longa viagem entre o passado e o presente
Juliano de Almeida Pirajá (UEG)



Dia 26/9
MESA 9
8h30 – 10h
Narrativas contemporâneas: das artes “à margem”. Sobre Encruzilhada e outras “artes periféricas”
 Maria Clara da Silva R. Carneiro (UFRJ)
A imagem na palavra, a representação sob o signo da Esfinge em A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli
Rafael Martins (UFMG)
A narrativa visual em Eu te amo Lucimar, de Lourenço Mutarelli
Guilherme Lima Bruno E. Silveira (UNESP/São José Rio Preto)
MESA 10
10h30 – 12h
Infortúnios espaciais, prosperidades distantes em Lucille e Renée, de Ludovic Debeurme
Ludimila Moreira Menezes (UnB)
Desenhos do isolamento: personagens de Jimmy Corrigan, de Chris Ware
Breno Couto Kümmel (UFMG)
The Left Bank Gang: crise da memória e a crise na escrita
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad (UFMG)
MESA 11
14h30 – 16h
Tradução e formação do mercado editorial dos quadrinhos no Brasil
Dennys da Silva Reis (UnB)
E-comics: linguagens, estratégias e prospectivas
Raimundo Clemente Lima Neto (UnB)
A poética da imagem como o atrativo de HQs
Eliane Dourado (UnB)
MESA 12
16h30 – 17h30
A peso do fandon no universo dos quadrinhos
Lucas de Sousa Medeiros (UFU)
Graphic novels na escola: o que propõem os suplementos de leitura?
Angela Enz Teixeira (UEM)



Oficinas
24/09 (18:30 às 21h30)
Oficina Básica de HQ’s, com André Valente
25/09 (18:30 às 21h30)
Oficina “História dos quadrinhos em 3 atos”,  com Ciro Marcondes



Lançamentos
Livro Histórias em quadrinhos: diante da experiência dos outros, organizado por Regina Dalcastagnè.
Número 39 da revista Estudos de literatura Brasileira Contemporânea, com dossiê sobre “realismo e realidade”.

Lixo extraordinário: sobre as HQs de Zé Carioca


por Ciro I. Marcondes

No ano passado, numa frutífera excursão aos sebos, encontrei uma pequena coleção do Zé Carioca – edição quinzenal – entre 1971 e 1979 (pegando os – ainda modestos – 25 anos da Editora Abril), que consegui pechinchar pela quantia de R$ 1,00 cada, levando, ao todo, no final, umas 40 edições bem conservadas, sem grampo, bem amareladas (como não poderia deixar de ser), mas dignas. A coleção está toda furada, mas isso pouco me importava (não sou muito afeito aos esquisitismos do colecionismo). Após uma amiga me declarar que eu havia gasto 40 reais em uma bela pilha de lixo, resolvi ensacar aquilo e guardar para quando uma oportunidade interessante de aproveitá-la na Raio Laser aparecesse.

Sempre fui leitor Disney (é verdade que é difícil indicar algum tipo de HQ que eu não leia) desde a infância, e, por mais que estivesse distante desse universo há alguns bons anos (ou décadas), sentia falta dessa parcela tão importante da cultura de HQs aqui no blog. Disney acabou sendo bastante defenestrado por suas associações com o macartismo, além da presença daquele livro eficiente, mas academicamente chucro e datado (“Para ler o Pato Donald”), que cuidou de limar lentamente outros tipos de leitura inteligente de seus quadrinhos. Minha lembrança dos quadrinhos Disney sempre foi de narrativas versáteis, atuais, cheias de ricos universos de personagens, com arquétipos fortes (carregando, lá, seus preconceitos, mas, felizmente, naquela época ninguém se importava), variabilidade temática, instigações cientificas, sociológicas, uma fartura de benesses.

Minha pequena “pilha de lixo” vai do número 1031 até o número 1445, lembrando que, em primeiro lugar, esta série começa no número 449 (primeira estranheza) e que, em segundo, ela consta apenas de números ímpares, já que os números pares eram dedicados ao Pato Donald na Abril dos anos 60-70 (estranheza editorial número 2). É claro que, como estamos falando de Zé Carioca, estamos falando de um tipo especial de cultura Disney, ou seja, uma desenvolvida no Brasil e para o Brasil, e vou privilegiar aqui a análise deste aspecto das histórias. A imensa maioria delas é já da fase de editoração 100% nacional, provavelmente desenhadas pelo lendário Renato Canini, responsável pelo abrasileiramento absoluto do Zé nos anos 70, mas não há créditos.

As histórias do Zé nesta época são intensamente vivazes, muito coloridas, com familiar cenário brasileiro, e geralmente lidando com problemas mais afeitos ao leitor brasileiro: um tipo especial de assaltos e violência, por exemplo, ou a cultura do samba e outros tipos de cultura de matriz negra, geralmente excluídas do compêndio cultural da Disney, ou um certo temperamento mais despojado, elétrico e malandro de todos os personagens, contaminados por um senso de ética carioca que, sejamos francos, ainda faz bastante sentido. Portanto, selecionei quatro histórias que funcionam como um anedotário daquilo que encontrei em Zé Carioca ao chafurdar neste “lixo extraordinário”.

1: A cultura do western e a cultura da violência

Em “O mais procurado da cidade”, presente em Zé Carioca Nº 1037, de 71, acompanhamos a história se abrir com um belo requadro panorâmico desenhado de forma realista (grande sacada), em que uma grande tela de cinema mostra um cowboy atirando (Bam! Bam!), ao mesmo tempo em que silhuetas de personagens Disney observam atônitos. Logo depois, após mais um requadro anunciar o fim da história, vemos as silhuetas (dentre as quais podemos identificar a de Zé Carioca) conversarem empolgadamente sobre o filme. Saindo do cinema, diante do cartaz, Zé (ainda vestido de terninho, chapéu panamá e guarda-chuva, conforme seu visual clássico) empunha o guarda-chuva empolgado, entusiasmadamente falando em voz alta: “Menino! O Texas Bill é o máximo! É o quente!”

Esta pequena história, cuja moral se centrará num engano (Zé será confundido com um bandido e verá que vida “cheia de perigos” do faroeste não é tão legal quando vivenciada no “mundo real”), me faz pensar em dois aspectos dignos de nota: em primeiro lugar, a solidez da cultura do western no Brasil já nos anos 70, quando o gênero, em sua matriz americana, resfolegava. Filmes extremamente críticos à cultura do faroeste, como Os profissionais (66), Meu ódio será sua herança (69) e Pequeno grande homem (70), já delineavam o declínio do gênero, que nas décadas seguintes apenas perderia cada vez mais sua espantosa popularidade adquirida nos anos 30, 40 e 50. 

Como o entusiasmo do Zé com o filme de “Texas Bill” parece fresco como o de um menino vendo hoje “Os vingadores”, isso é amostra o suficiente da perenidade da cultura dos westerns no Brasil, com vários cinemas especializados, durante os anos 70, além da popularidade dos chamados “Western Spaghetti” (feitos por italianos), que vão se disseminar a partir especialmente desta década. O nome do filme de “Texas Bill”, “O Cruzeiro furado”, de fato parece parodiar os títulos dos filmes de Sérgio Leone. A história, simpática, ainda flerta com o gangsterismo e o noir, fazendo singela homenagem ao cinema, alinhavando a relação que o cinema de violência no Brasil tem com estas culturas estrangeiras. Se alguém se lembrou, na outra ponta da corda, um filme como Cidade de Deus, eu não acho que seja por acaso.

2: O Rio continua lindo

Em “Um guia em apuros” (Zé Carioca Nº 1207), o quadro panorâmico que geralmente abre toda história Disney mostra Zé Carioca em um modesto stand (o “Zé-Tur”) tentando dar viabilidade à sua agência de turismo. No fundo, nada menos que os morros da Urca e do Pão de Açúcar. “Conheçam o Rio! Férias! Sol! Verão!”. No quadro seguinte, após vermos as ofertas dos concorrentes, Zé olha, num plano frontal, para o próprio leitor e comenta, desanimado: “Ufa! E me disseram que o turismo é um bom negócio... mas por mais que eu grite... a turma vai toda pra agência concorrente!”

Tentando trabalhar (mas não conseguindo – como é a tônica da maioria das histórias do Zé Carioca) honestamente, Zé, aturdido com os baixos preços dos concorrentes (uns gatunos malhados), resolve implementar todo tipo de reforma no negócio para conseguir tirar um trocado: muda o stand de localidade (juntamente com seu amigo urubu, Nestor), abaixa os preços, mas nada muda. Resolvendo então pagar para ver qual o segredo dos gatos, eles descobrem que os concorrentes executavam um crime consideravelmente hediondo: levavam os turistas para cima de um morro e os assaltavam. Me pergunto se colocavam eles dentro de pneus enfileirados e tacavam fogo também, para depois jogar as carcaças na floresta da Tijuca.

Dadinho é o caralho!

Esta história me trouxe à tona dois imaginários sobre o Rio: primeiro, o turismo, que agora bomba tanto com as Olimpíadas, sempre primitivo, batendo na mesma tecla tropical, mostrando que, num estereótipo grosseiro em um gibi para as massas, ou numa campanha governamental “séria”, o Rio de Janeiro continua sob o signo de umas duas ou três características supostamente imutáveis. Em segundo lugar, o aparecimento, bastante agressivo, de uma terceira característica implicada no mundo caótico dos cariocas: a violência associada a uma inteligência intrusa e perversa, ou a selvageria do gangsterismo à brasileira. De alguma forma enraizado num paradoxo de eterno paraíso perdido, o Rio só tem salvação mesmo, nas páginas do gibi, na figura do malandro romântico que é Zé Carioca, trazendo sempre algo de “bom selvagem”, procurando sempre mostrar ao leitor cínico que naquele algures caótico que se valoriza o descaso e a trapaça, convive também a cultura do “viva e deixe viver” tropical, deitada na rede, jogando futebol.

Malandraij

3: Tô me guardando pra quando...

A edição número 1.111 de Zé Carioca, datada (precisamente) de 23/02/73, é uma edição de carnaval. Logo na capa, uma bela ilustração sobre fundo rosa-bebê, vemos um verdadeiro fuzuê com Zé, Donald, Pateta e toda turma batucando no tamborim, soprando corneta, soltando serpentina, cheirando lança-perfume (sic!). Quando abrimos o gibi, nos deparamos com a encantadora história “Um paulista na corte do rei momo”, um tema dificilmente batível em termos de brasilidade. Cheia de vitalidade carnavalesca, esta história vai contar o deslumbramento do desajeitado primo Zé Paulista quando é convidado por Zé Carioca para desfilar no carnaval mais famoso do mundo. Vale recontar a primeira página: Zé Paulista, de cabelinho penteado, terninho empoleirado e uma puída gravata, chega na rodoviária carioca cheio de dúvida e anseios, enquanto lê-se numa placa na própria rodoviária: “o serviço público rodoviário informa: faltam 3 dias para o carnaval”.

Zé Paulista, pontual e ansioso, pergunta-se onde estará Zé Carioca, que prometera buscá-lo na rodoviária. Ao mesmo tempo, num suspeito estereótipo de erudição paulista, pergunta-se como comprará ingressos para o Teatro Municipal. A verdade é que Zé Carioca estava na praia e vai buscar o primo apressado e “culto” com duas horas de atraso. O grande charme desta história é exatamente a caricatura um tanto ridícula, mas ao mesmo tempo insistentemente pregnante, que se pode observar da cultura de São Paulo a partir do primo de Zé. Este enfoque na dedicação, mas ao mesmo tempo na ingenuidade, acabam por definir o destino do personagem na história. Se o trabalho sem malandragem (exatamente o oposto do Zé Carioca) aparece como fator definidor do paulista na história, é justamente o apego ingênuo ao trabalho que o transforma no melhor tocador de tamborim de Vila Xurupita. Como bom paulista obcecado e dedicado, ele recebe a missão de tocar o instrumento, no bloco de rua da moçada, das mãos do próprio Zé. Levando a experiência como uma missão de vida ou morte e treinando dia e noite, ele acaba surpreendendo os jurados e vencendo o carnaval de Vila Xurupita. Diante deste panorama paradoxal, qual é exatamente, portanto, a visão construída sobre os paulistas nesta história? A do “mané” que não sabe tocar e perde o tempo treinando pateticamente, ou a do bastião da força de trabalho, eficiente até mesmo na cultura alheia? Esta singela historinha tem o poder de invocar as duas perspectivas.

Locomotiva do Brazeel

4:  Brasil grande

Por fim, uma das histórias que melhor atestam o carimbo de “brasilidade” atribuído às HQs do Zé Carioca está na edição número 1209, e tem por título “O sumiço dos herdeiros”. Aqui, novamente o primeiro requadro panorâmico, padronizadamente responsável por nos introduzir os conteúdos essenciais da história, é o guia que nos denuncia os signos para uma análise cultural. Num casarão iluminado a velas e com a presença elementos aristocráticos (uma armadura medieval, uma grande poltrona central), o velho coronel (sim, um coronel brasileiro à moda antiga) conversa com quatro de seus herdeiros, humildemente espremidos em um pequeno sofá. São eles: Zé Paulista, Zé dos Pampas, Zé Queijinho e Zé Jandaia, cada um representando o estereótipo cultural de uma região brasileira, fator bem marcado pelo chapéu que cada indivíduo veste. Este coronel, pintado como uma figura severa, mas de bom coração, explica que há um mistério: tentam matá-lo, e cabe aos herdeiros resolver esse problema.

Esta história vale-se de um sincretismo bastante bizarro, que associa o coronelismo arcaico brasileiro a uma certa aristocracia europeia, fazendo a casa do coronel parecer um castelo, e fazendo seus herdeiros parecerem, de algum jeito estranho, vassalos de uma casta nobre e digna. A história, portanto, desenvolve-se em exótica mistura do clima de uma fazenda no interior do Brasil, com direito a sotaque característico e comidas típicas, com romance de fantasmas europeu à Horace Walpole. No final das contas, Zé Carioca, que não participara da reunião por esperteza, salva a família do golpe planejado pelos primos tortos que não estavam sendo contemplados pela herança do coronel. 


Este coronel, que usa chapéu, bengala, monóculo e bigodinho, propõe-se na história a ser um signo exótico, de um antigo conformismo paternalista com culturas brasileiras arcaicas, ainda num manso traquejo de favores entre uma cultura herdeira do escravismo (ou de um militarismo torpe e corrupto) e uma certa dignidade empostada perdida na contemporaneidade. Que as regiões mais famosas do Brasil estejam presentes para abaixarem a cabeça diante de tal autoridade não surpreende e, mesmo sendo tiro pela culatra, a história do Zé Carioca acaba desvelando um sentido meio macabro da própria subserviência brasileira. Uma história de terror e fantasmas, sem dúvida.

A verdade dos quadrinhos e os ciúmes


Alexandre Linck Vargas é professor universitário de Cinema. Atualmente faz também doutorado sobre Teoria dos Quadrinhos e escreve para um blog diferente, com uma proposta "além", o Quadrinhos na Sarjeta. Linck realiza leituras analíticas, muito contextuais, deslindando visões estéticas e sociopolíticas a partir dos quadrinhos, e seu blog é altamente recomendado. Aqui, colaborando para a gente, ele escreve sobre a Academia e os Quadrinhos, um tema relevante. Como em qualquer assunto, os quadrinhos são matéria-prima para o pensamento estético, filosófico e/ou sociológico. Não existe absolutamente qualquer razão para que assim não o seja, considerando que o "pensamento acadêmico" por sí só não existe, a não ser como direcionamento do próprio pensamento em si. Obrigado Linck e boa leitura a todos! (CIM)

por Linck

Antes de tudo gostaria de agradecer o convite do Ciro para escrever aqui. Demorei para achar o tom na medida em que já escrevo em outro lugar e não queria apenas fazer mais um texto de “rotina”. Pensei então em concentrar uma discussão que de certa maneira se dissemina em cada texto lá no Quadrinhos na Sarjeta: A verdade das HQs! (música de revelação). Isso é pretensioso? Demais. E é mentiroso também. Eu não falo da verdade, muito menos das HQs, mas quero pensar um pouco o problema da verdade.
                                         
É sabido que historicamente os quadrinhos foram pouco lidos pela academia. Há diversas iniciativas que se destacam, mas pontuais. No Brasil existem duas tradições bastante fortes, a tradição semiótica e a tradição marxista. Mesmo assim num país pouco escolarizado e bastante alheio ao mundo acadêmico, essas duas linhas não encontraram muita ressonância no leitor comum. Com isso criou-se um curioso cenário de isolamento. Não só isolamento da academia com o leitor, mas também entre os pequenos grupos que estudavam quadrinhos no âmbito acadêmico.


Tudo isso que aponto, tenho por base algumas conversas que ouvi do pessoal da velha guarda, como Álvaro de Moya e Moacy Cirne. Mas também noto isso falando com os antigos colecionadores de quadrinhos. Seja como for, o que me parece evidente é que grupos ou pessoas, no isolamento cultural natural dessa arte, outrora “lixo”, desenvolveram verdades a respeito das HQs para si. A falta de interlocução fora do “clube” propiciou isso. Então chegamos aos anos 2000.

O gradual movimento de valorização das HQs na Europa nos anos 1960, no Brasil nos anos 1970 e nos EUA nos anos 1980 fez os quadrinhos integrarem toda uma sorte de debates nos dias de hoje, sejam eles estéticos, políticos, mercadológicos, etc. Somados à internet, com a profusão de blogs e sites a respeito, qual o resultado mais provável? Um estranhamento. Mas não qualquer estranhamento, falo do tipo ciumento mesmo, ensimesmado que quando vislumbra um olhar muito diferente sobre algo já consolidado para si, tende a deixar de ver, rejeitar ou até mesmo agredir. “Como ousa dizer que o Batman é assim quando ele é assado?” é a personificação desse gesto. Academicamente outro clichê é “você não pode ler Batman assim ignorando a teoria a, o autor b e tradição c”!

O que está em jogo no cenário atual é uma espécie de choque com o reflexo. “Como alguém que curte Conan, como eu, pode ser tão diferente?”  A resposta, creio eu, é porque as HQs são de fato uma arte rica, como qualquer coisa que pode ser enriquecida quando tanta gente devota uma paixão. O maior desafio agora, entre os leitores, nos blogs e na academia, é a abolição da verdade. Do conceito de verdade, dessa metáfora que a gente usa pra encerrar uma discussão e preservar narcisicamente um pensamento. “Isso é verdade, tudo o que você disser contrário é mentira!”. A afirmação de uma verdade é a maior covardia perante a responsabilidade que um olhar pode ter. Só hipocritamente se eximindo de nossa atuação extrínseca que dá pra qualificar como verdadeiro algo intrinsicamente.

Semioticismo, marxismo, ou qualquer outro ismo são formas de ver, ferramentas que uns julgam mais eficientes, outros não. Faz parte do jogo. A mesma coisa vale com aquele leitor que nunca precisou recorrer a essas teorias pra ler um gibi. Teorias são atravessadas na cultura, a diferença é quando conhecemos a tradição que nos inserimos e praticamos ou não. Por isso a necessidade de largar mão de certos ciúmes, aceitar outros olhares no que há de contínuo, criativo, estranhamente diferente no outro. É por aí que se potencializa a artes das HQs, não no vale tudo da relatividade, mas no próprio poder de inventividade dos argumentos. Contra o choque monocromático da verdade é preciso o diferencial da afecção de cada um. Longa vida criativa então aos espaços dedicados a pensar os quadrinhos de forma aberta – mesmo que sejam eles, também, muito estranhos ao meu olhar! Sigamos, como quadro após quadro, na diferença do desenho, que estabelece uma única narrativa.

Inverno dos quadrinhos

por Ciro I. Marcondes

Em 1957, cinco cartunistas espanhóis publicaram aquilo que seria, talvez tecnicamente, a primeira revista independente de quadrinhos da história. Guillhermo Cifré, Carlos Conti, Josep Escobar, Eugenio Giner e José Peñarroya, até então, eram os mais formidáveis cartunistas da mais formidável editora espanhola, a Bruguera, vivendo ali seu esplendor do auge da era editorial no século XX. Alguns dos quadrinhos mais populares desta época na Espanha eram editados pela Bruguera através da saudosa revista Pulgarcito: El reporter Tribulete, Don Pío, Zipi y Zape e, é claro, Mortadelo e Filemón (aqui: Mortadelo e Salaminho), o mais internacional quadrinho espanhol, criado por Francisco Ibáñez, de uma geração imeditamente posterior. O cômico-absurdo e politicamente incorreto desta HQ dá o tom de toda uma geração hoje bastante esquecida, mas que não tarda em ser resgatada a partir da memória da iconoclástica revista Tio Vivo. Insatisfeitos com as condições de trabalho e partindo para uma nova aventura editorial, estes cinco voluntariosos homens se demitiram da Burguera no auge de suas pretensões como cartunistas, numa época em que, em plena ditadura franquista, quadrinistas eram vistos como mera working class, precisando varar madrugadas para cumprir prazos absurdos, com salários baixos e nenhum reconhecimento. Já os quadrinhos eram uma extensão pobre e baixa do milionário mercado editorial, que via, antes da popularização da televisão, uma multiplicação sem precendentes da extensão de seu domínio.

Esta história é contada, com magnífica sensibilidade documental e artística, pelo proeminente Paco Roca, talvez o grande quadrinista espanhol da atualidade. Roca já havia surpreendido com o multipremiado romance gráfico Arrugas, de 2007, que gerou uma animação candidata ao Oscar, desenhando intrigante retrato do Mal de Alzheimer, e volta-se para a metalinguagem em El invierno del dibujante (O inverno do desenhista) para narrar, de forma quase aleatória, sem sequencia causal, sem marcadores tradicionais como letreiros e narradores, em um embelezado padrão de cores mornas, a aventura e posterior derrocada destes quadrinistas, incapazes de manter viva a revista Tío vivo (a publicação independente) graças a uma prática, bastante brutal, de phising (espécie de chantagem mercadológica) feita pela Brughera junto às distribuidoras da Espanha para que a nova revista nunca chegasse às bancas. Roca desenha seus mestres com forte detalhismo documental, preocupando-se com o que vestem, o que comem, para que time torcem, o que fumam (uns fumam charutos, outros, cigarros, outros, cachimbos, mas todos fumam), além de trazer nuances, em cenas bastante isoladas, que parecem “pescadas” do mundo real, a respeito do perfil psicológico de cada um, enchendo a história com pequenos easter eggs para o conhecedor da HQ europeia. A história é contada em 8 capítulos, entre 1957 e 1958, cada um representando uma estação do ano, e, cada estação, em uma cor diferente para as páginas, além de um amargo epílogo, no outono de 1979. A edição da Astiberri é bastante luxuosa, com textos complementares e a mais absoluta deferência prestada a esta viagem de volta à Barcelona dos anos 1950.

Gênese para "Mortadelo e Salaminho"

Ibáñez

Como a história é contada em fragmentos fora de ordem, em chave absolutamente melancólica – vemos, afinal, a euforia de se abrir uma editora independente e de se livrar das “garras opressoras”; e depois a decepção do naufrágio de toda empreitada e o retorno, com o rabo entre as pernas, dos cartunistas para a Bruguera – a experiência de se ler El invierno del dibujante não pode ser diferente de um impressionismo contemporâneo, em que não conseguimos efetivamente nos tornarmos íntimos de seus personagens, mas ao mesmo tempo percebemos as sombras fantasmáticas de seus existências, de seus autógrafos dados, as piadas contadas, de seus rascunhos nunca publicados. Este impressionismo reverbera em um olhar mais severo a respeito das condições difíceis de uma vida sob imperiosa ditadura, somadas às imposições castradoras de um mercado editorial potente.

Censurando a "Pulgarcito"

É por isso que o personagem mais ambíguo e envolvente da história acaba sendo o diretor de redação da Bruguera, Rafael González, também um personagem real. Ex-escritor e roteirista (frustrado) de quadrinhos, abertamente prejudicado pelo regime franquista em suas aspirações, é ele quem cuida de censurar previamente os quadrinhos com sua caixa de lápis vermelhos, além de manter, com mão de ferro, a linha editorial e obedecer às ordens dos irmãos Burguera. Francamente solitário, este homem censura suas próprias paixões e passa a censurar as de seus empregados, tudo em nome da manutenção de sua própria, extensa, e problemática família. No final das contas, após subornar o talentoso cartunista Vásquez (alcoólatra e endividado) para que denunciasse as atividades dos colegas, ele consegue impedir que a publicação independente Tío Vivo possar vingar no mercado espanhol. Tão melancólico quanto qualquer outro, o final de González representa a autofagia de todo o sistema editorial: sua família o abandona graças à sua fé inabalável em seu cargo.

Invernal como poucas, esta lírica e ao mesmo tempo sóbria (por contraditório que pareça) história em quadrinhos é mais do que uma homenagem e documento à história dos quadrinhos espanhóis. Seu formato arrojado, que pemite que escolhamos a ordem de leitura dos capítulos, assim como sua falta de amarras narrativas tradicionais, permite que o vejamos como um compêndio metalinguístico a respeito do processo de maturação (growing pains), enquanto indústria e enquanto arte, das histórias em quadrinhos, sendo ao mesmo tempo uma cicatriz e um exemplo de resistência. Talvez por isso o traço de Paco Roca se situe de maneira tão perfeita entre o realismo e o cartunismo, como se, tornados desenhos, aqueles homens não deixassem de passar a se assemelhar aos cômicos personagens a partir dos quais (com suor e lágrimas) eles puderam atravessar os mares turbulentos que são períodos de transição em qualquer forma de arte. 

Será Ba-Ba-Barbarella??


por Pedro Brandt

Acho que não é só na banca pertinho da minha casa, mas em várias outras já constatei que a seção de revistas pornô fica muito próxima da seção de quadrinhos. Será que os funcionários acham que o público é o mesmo? Vai saber...

O fato é que, não fosse por essa “coincidência”, eu não teria levado para casa uma edição de Quadrinhos Super Eróticos. Não foi uma necessidade masturbatória que me fez levar para casa esse gibi proibido para menores de 18 anos (como indica a capa).

Comprei a revistinha por uma curiosidade quadrinística (“claro, claro”, diria um amigo). Ainda que eu saiba que o conteúdo desse tipo de publicação está há anos luz de um Manara, um Serpieri, um Levis, um Frollo ou mesmo um Carlos Zéfiro, um detalhe me chamou a atenção e foi determinante para a aquisição. A tarja preta impressa no plástico que embrulhava a revista deixava à mostra, no alto, seu título e um personagem, um robô que, não tive dúvidas, reconheci das histórias de Barbarella.

Puxei o plástico para um lado e para o outro na tentativa de identificar, na capa, algo que confirmasse a presença da personagem no interior da publicação, mas foi em vão. A revista, tão fininha, claro, não teria como ter uma HQ completa de Barbarella, mas quem sabe um pedaço?

Na dúvida, resolvi pagar os R$ 2,99 pela minha curiosidade. Se não estivesse ali a famosa heroína criada por Jean-Claude Forest, pelo menos eu poderia conferir o nível dos quadrinhos eróticos publicados no Brasil atualmente (e ainda teria uma prova cabal do uso indevido — leviano, mal intencionado, diria um amigo — da imagem da loira espacial). Detalhe: há uma nota no editorial que diz: “O Hard Studio que criou, produziu e realizou este projeto. Assim, tem inteira responsabilidade sobre a originalidade e autenticidade de seu conteúdo”. Então tá.

Realmente, Barbarella está apenas na imagem da capa (deitada numa cama ao lado do robô). As 34 páginas da revista são divididas entre quatro HQs. Diana é a protagonista da primeira delas, assinada (argumento e arte) por Leão Lim (um sub-Watson Portela). A personagem é uma prisioneira que usa de artimanhas sexuais para escapar da prisão. Depois de prestar favores sexuais a uma guarda, ela faz sexo com um tenente que, fatigado depois da transa, adormece. Diana escapa. Fácil demais, né? Mas tudo não passa de uma armação da guarda. “Realmente, um golpe de mestre”, ela diz. Então tá.

A segunda história tem argumento de Ataíde Braz e desenhos de Roberto Kussumoto, dois veteranos dos quadrinhos brasileiros. Apesar de as ilustrações estarem (toscamente) coloridas por computador, suspeito que essa HQ — intitulada Espelho — seja antiga (é o que sugere o visual e o figurino dos protagonistas). A dupla de autores cria uma história interessante na qual o sexo é o coadjuvante das inquietudes e inseguranças dos personagens. Naldo acha que seu membro é pequeno e que ele não será capaz de satisfazer Ana. Para ilustrar a situação, Kussumoto desenhou alguns quadros no qual Naldo aparece em tamanho diminuto em relação a Ana. A história é o ponto alto da edição, não pelo apelo erótico, mas pelas soluções narrativas apresentadas pelo desenhista.


Ela é... Sádika foi escrita e desenhada por Franco de Rosa e arte-finalizada por Bonini (também veteraníssimos). Uma historinha boba e clichê, na qual o homem se surpreende quando a namorada se revela uma devassa sadomasoquista e dominadora. Também tem cara de ser uma HQ antiga recolorida e, neste caso, as cores digitais só empobreceram a arte.

A revista termina com A boneca e seu boneco (autores não revelados). Pelo padrão dos desenhos, suspeito que seja uma antiga HQ gringa. A protagonista, uma menina de 19 anos, não desgruda de palhaço de brinquedo. Os pais dizem que ela não tem mais idade para isso, mas não desconfiam que o objeto toma vida quando eles não estão olhando e, com um enorme membro, transa gostoso com a ninfeta (desculpem, não pude evitar usar em ao menos uma frase as palavras transa, gostoso e ninfeta).

Como inspiração onanista, Quadrinhos Super Eróticos é uma negação. As histórias são simplórias, sem clima, e o acabamento gráfico é grosseiro. Boa sorte tentando se satisfazer com ela (putz, não rola nem uma ereção básica). Entretanto, a sem-vergonhice máxima de vender gato por lebre colocando Barbarella na capa me conquistou. Fico imaginando a equipe da editora Heavy Sex pensando “vamos colocar Barbarella na capa! Quem sabe, mesmo com o plástico, alguém reconheça o desenho e acabe sendo fisgado por isso”. Parabéns, pessoal, eu fui fisgado!

Sabe quando você fica impressionado com a tosquice, com a simplicidade de alguma coisa? Como se aquilo, na sua rudeza e, em alguns caso, ingenuidade, de alguma forma te diverte? Pois é, foi o que aconteceu comigo. E só a história de Braz e Kussumoto já valeram meus R$ 2,99. Encontrar a produção deles, hoje em dia, é algo raro (estão nos sebos e nas coleções espalhadas pelo país, não em bancas de jornal).

Mas Quadrinhos Super Eróticos é ruim, não comprarei outra. Bom, quem sabe se eles colocaram na capa uma Phoebe Zeit-Geist ou uma Little Annie Fanny, talvez uma Jodelle ou uma Pravda ...

Estripulias de Ba-Ba-Barbarella

por Ciro I. Marcondes

E eis que chega às minhas mãos, via Pedro Brandt, um exemplar de Barbarella chamado “A obra-prima” (de 1977), numa simpática edição portuguesa da Meriberica/Liber (original da belga Dargaud), escrita e desenhada por ninguém menos que o criador da beldade, o francês Jean-Claude Forest. Ler uma Barbarella original é uma experiência muito legal por dois motivos: primeiro, porque a heroína surgiu em 1962, antes, por exemplo, da Valentina, e desde então se tornou citação preferida das feministas, enquanto ícone da cultura pop representando a mulher que utiliza sua sexualidade em prol de uma libertação sociopolítica. Em segundo lugar, sendo fã do filme de Roger Vadim (1968), pensava se valeria a pena buscar uma comparação da musa nos quadrinhos com sua sensacional e apimentada encarnação vivida por uma jovem e exuberate Jane Fonda (fiquem aí com o sensacional strip-tease da abertura). 

A obra-prima (Le semble-Lune) é o terceiro, dentre quatro, volumes publicados por Forest, que deixou um legado enxuto, mas respeitável. A história se alterna num mundo de “tempos imovíveis”, dentro do sonho, à maneira do Andarilho dos limbos (já comentada aqui), misturando fantasia espacial, multidimensional, e uma ficção-científica tão pulp que é capaz de considerar o ano-luz uma unidade de tempo, e não de distância (para se ter uma ideia do nível das techno bubbles, basta dar uma sacada nessa fala: “meu mastacrac atirou-o para fora do U.P. 1.000 e espalhou-o pelo mundo infinito dos antimundos”). Muito curiosamente, esse ambiente maluco e inverossímil ganha tons de comédia, quase num estilo pornochanchada, quando uma sexualidade explosiva, muito mais que latente, vai se infiltrando de um jeito desavergonhado, e os personagens vão fodendo, assim, quase que naturalmente, enquanto decisões insanas são tomadas, daquelas que colocam “os multiversos” em risco.

Vejamos em mais detalhes esse plot: Barbarella é convocada por dois sujeitos com aspecto de cientistas malucos para, por meio de uma máquina (sempre as máquinas – e como não lembrar do saudoso orgasmatron, que faz parte do universo da heroína), entrar nos sonhos do grande construtor Browningwell – alterego do autor –, que jaz hibernando, e descobrir o enorme segredo que ele guarda. Barbarella concorda, é claro, mas apenas se puder tirar a roupa (pois sente calor!), e desperta num mundo de fantasias (todos os sentidos). Em contato com o introspectivo e mau-humorado (ainda que irresistivelmente sedutor) Browningwell, Barbarella percebe-se vítima de uma conspiração dos cientistas malucos e opta por ficar no mundo dos sonhos. Lá, ela vai ajudar Browningwell a vencer um concurso de esculturas cósmicas (os “obras-primas” – sendo a primeira delas bem parecida com a “estrela da morte” de George Lucas), cujo construtor do primeiro colocado leva um sistema estelar inteiro de prêmio. Browningwell quer muito levar esse prêmio porque, diz ele, os milhões de inocentes do sistema solar não podem cair nas mãos do construtor-crápula inescrupuloso que é seu maior rival.

Vixen

dona de casa

A história, como se vê, é um enorme blá-blá-blá sem sentido em que observamos Barbarella, sempre semi-nua (ou completamente), sendo levada de um lado para o outro, como um estorvo ou ameaça diante de todos com quem se mete. O legal é que a ameaça é sempre sua seuxalidade. Os “companheiros” da espécie de sindicato que faz as obras-primas chegam a chamá-la “aquela mulher vinda do universo intermédio, com seus baixos instintos e maneiras suspeitas”. A delicada questão surge quando, afinal de contas, a pergunta inevitável martela a cabeça: “afinal, o que tem de feminista em uma mulher sendo manipulada, física e psicologicamente, por um monte de homens conspiratórios, de ‘gênio brilhante’, empenhados em conceber uma obra-prima, de intelecto tão masculino”? Ora, vamos considerar que estamos em 1977 e Barbarella escolhe (ao bel-prazer, exclusivamente) seus parceiros sexuais. Vamos considerar, também, o engenho, meio chanchadesco-pornô-dos-70s, do final da história. Impossível não lembrar Russ Meyer, sendo Barbarella a definitiva vixen: após manifestar interesse em construir também sua obra-prima e ser ridicularizada e rechaçada por Browningwell, a heroína decide “recolher-se” ao seu “lugar feminino” e passa apenas a trabalhar limpando a nave do construtor (chegamos a vê-la usando um aspirador de pó futurista – para depois usá-lo, de outra forma, com Browningwell). Depois, ela decide refugiar-se num planeta de beleza natural enquanto o criador completa sua obra-prima.

Machismo/Feminismo: ambiguidade

Nesta passagem, vemos Barbarella gestando um filho. Quando o construtor retorna, o filho é usado como arma pela heroína, que não esconde suas antigas “desvantagens” (a “fragilidade sexual” e a maternidade) como estratégias de conquista do poder sobre os homens e em especial sobre o homem mais poderoso de “todos os multiversos”. Interessante mesmo é a concepção de que obra-prima masculina é produto da tecnologia e do intelecto humanos, enquanto a obra-prima feminina (colocada, vamos ser justos, em patamar de igualdade na HQ) é a própria obra do instinto, do furor animal: a gestação em si, a reprodução, a continuidade da espécie. Dona da continuidade da espécie, a mulher (no caso, Barbarella) assume o destino do casal e o comando da história. Ainda que passível de crítica, esse é a ambiguidade entre machismo e feminismo que compõe o universo da heroína.

No final das contas, ler esta velocíssima pequena saga de Barbarella, a despeito de seu aspecto barato e tosco, é uma experiência divertida e até fulgurante. A arte e quadrinização de Forest não fica muito à frente da de um Zéfiro, mas é esse aspecto de coisa pra se jogar no lixo que torna seu significado social ainda mais potente. Não é todos os dias que se vê um produto tão despretensioso levantar uma questão tão contraditória, interessante e relevante de maneira tão leve e natural. A sexualidade, o sexismo, os padrões de comportamento social, os preconceitos, chistes e todo tipo de atividade saudável (ou não) da nossa intimidade no século 20 são trazidos de forma absolutamente irreverente e sagaz nesta história. Além disso, o jeito pulp da HQ até contribui para deixar tudo mais sedutor de uma forma meio perversa, meio escondida, mais sacana ainda. E a Barbarella, apesar do traço meio grosseiro, é gostosa, reconheçamos. Jane Fonda teve, em seu avatar original, curvas logisticamente engrenadas para inspirá-la para o irretocável e safadinho filme de Vadim.

A "Estrela da Morte" de Forest Vale lembrar, nesse contexto todo que envolve coisas tão díspares – humor non-sense, erotismo sacana e ficção científica –, o quanto a cultura das BDs pode ser surpreendente, seja na ambição megalítica (praticamente usandos os mesmos elementos) de um Druillet ou de um Moebius, seja na despretensão acolhedoura de um Forest. Observando ao mesmo tempo o corpus comum de temas e a variedade de histórias e abordagens realizados neles, percebemos que a BD é ainda exemplo irretocável de como culturas completas e longevas, tradicionais e de ruptura (às vezes, tudo ao mesmo tempo) podem emergir da história das histórias em quadrinhos. 

Tons da seca


por Roberta Machado
A história de O Quinze começa cinza-azulada, quase negra. Logo, conforme evolui a trama de Conceição, Vicente e Chico Bento, as páginas mudam do azul da calmaria para um amarelo-alaranjado cheio de agonia, até alcançar o clímax da história, num céu vermelho que clama por chuva. Foi por meio das cores da aquarela que o artista Shiko conseguiu traduzir a histórica narrativa de Rachel de Queiroz, agora publicada em quadrinhos pela Editora Ática. O livro faz parte da coleção Clássicos Brasileiros em HQ, que já recontou tramas como O Alienista, Triste fim de Policarpo Quaresma e O Cortiço.

A transferência da narrativa de O Quinze para os quadrinhos não amenizou os duros parágrafos de Rachel de Queiroz sobre um dos piores anos já vividos na seca nordestina. Ao contrário, graças ao traço realista e delicado o quadrinista Francisco José de Souto, o Shiko, o cenário ganhou figurantes, os nomes ganharam rostos e a fome, feições. As ilustrações dão vida a um sertão cruel, botam fogo na terra quente que engole os corpos esquálidos e machucados pela seca. Mas a adaptação respeita o livro publicado em 1930, e mantém suas falas originais. O ilustrador não suprime a descrição do ambiente, e faz questão de unir às palavras brilhantes da autora ao próprio traço.


Acostumado a trabalhar com textos consagrados como roteiro, Shiko já levou para os quadrinhos obras de nomes como Augusto dos Anjos, Moacyr Scliar e Xico Sá. A experiência lhe garantiu o bom-senso de não sacrificar a linguagem da HQ em nome da história, nem de desrespeitar o texto para dar destaque desnecessário às ilustrações. A adaptação encolhe pela metade o número de páginas da obra, mas não comete o pecado de acelerar o ritmo da história.

O ilustrador se dá ao luxo de inserir quadrinhos sem palavras em meio aos diálogos—e são esses que prendem o leitor. É fácil se perder lendo as expressões corporais e faciais dos personagens, ou admirando as paisagens imensas e poderosas descritas no desenho de Shiko. As emoções estão no movimento das mãos nervosas de Conceição sobre a trança, na mulher de Chico Bento que despenca de cansaço sobre os joelhos, no sol que nasce rasgando de cor o céu negro.

Dignidade

Shiko também deu atenção aos detalhes que buscam reproduzir as roupas, a arquitetura e os costumes da época retratada. O trabalho de pesquisa e de planejamento do ilustrador ganha força na história de Chico Bento, que é expulso do seu trabalho e da sua casa pela seca interminável. Sem ter como ganhar a vida, o vaqueiro se torna um retirante, e toma o sertão com a família a tira-colo. “O Chico Bento é, sem dúvidas, o personagem que mais gosto.Porque é impossível não identificar em Chico Bento, naquele tipo de orgulho, uma dignidade e uma altivez presentes em tantas outros sertanejos que conheci. Usei o rosto e o jeito de se mover de um amigo meu, que antigamente competia em vaquejadas, para desenhar o Chico”, confessa Shiko.

O resultado emociona em passagens como o momento em que Chico Bento mata um bode para dar aos filhos famintos, e é impedido de consumir a carne pelo dono do animal. Enquanto as falas do retirante imploram clemência, seus olhos mostram as lágrimas secas de quem já cansou de chorar. Não é difícil se emocionar com a jornada do personagem até que ele chega à cidade para morar num campo de concentração. Ali, Chico Bento desaparece em meio a muitas outras famílias que compartilham da mesma agonia. A chegada do vaqueiro à cidade marca o clímax da história, que não rende tantas imagens marcantes a partir desse ponto.



Do sertão para o mundo

Embora nutra um carinho pelo xará, Shiko partilha mais semelhanças com a heroína de O Quinze. Da mesma forma que a personagem Conceição enfrentou os paradigmas do início do século 20 para deixar o sertão e se tornar uma professora solteira, o artista cresceu demais para viver em Patos, no interior paraibano. Passou por Brasília, onde teve a primeira experiência com quadrinhos e resolveu trabalhar com essa arte, e foi para João Pessoa. Se reinventou, e tomou para si o nome de Shiko depois de conhecer a palavra japonesa no mangá Lobo Solitário. Logo ele—cujo nova alcunha significa“o alcance da lâmina do samurai”—marcou muros e galerias com sua arte, e tornou-se uma referência no ramo dos quadrinhos independentes, conhecido por obras como o Marginalzine e Blue Note.

Hoje, Shiko mora na Itália. Mesmo que sua jornada continue em outras terras, ele não se esquece das raízes, e revela que o passado lhe serviu de inspiração para adaptar a obra de Rachel de Queiroz. Já aos 18 anos, quando leu O Quinze pela primeira vez, montava na cabeça os quadros que uniam as palavras da autora com as imagens que conhecia desde pequeno, por meio das histórias do avô.“Ele era de origem rural e portava essa religiosidade arcaica do sertão do Nordeste, então a ameaça das estiagens e a fé como única possibilidade de redenção, eram informações muito presentes no meu imaginário”, recorda. “O livro da Raquel me ofereceu, pela primeira vez, imagens de pessoas e paisagens muito próximas.”

Lá do outro lado do oceano ele continua a carreira de ilustrador, e planeja continuar trabalhando com adaptações. Shiko também revela que está investindo numa obra que une duas paixões do artista: uma história de velho oeste situada no sertão paraibano. “É uma história com explosões de caixas eletrônicos em pequenas cidades do interior, enforcamentos e fugas. Está sendo bem divertido”, adianta.

Duas perguntas para Shiko
Como você já havia trabalhado em adaptações literárias, foi fácil trabalhar em O Quinze? O que foi mais complicado?
“Talvez o mais difícil seja fazer um romance caber num livro de quadrinhos porque muita coisa tem que ser deixada de fora, o que no caso específico d'O Quinze é ainda mais doloroso, porque o livro é muito seco. Raquel não gastava palavra além do necessário, tudo no livro é medido e justo. Lembro sempre de Graciliano dizendo que palavra não é enfeite. Ela sabia disso, e é impressionante como fez caber tanto em um livro tão pequeno, mas ainda assim grande demais para 80 páginas de HQ. Senti falta de mais espaço para a amplidão das paisagens.”

Na sua opinião, qual o papel dessas adaptações de obras clássicas para os quadrinhos?
“As editoras descobriram um filão de mercado e isso popularizou as adaptações, o que nos leva a diversos aspectos desse fenômeno editorial. A parte boa é que, na avalanche do segmento, vamos encontrar coisas muito boas como o projeto DOMÍNIO PÚBLICO, da Editora Ragú, de Recife. Porém não podemos deixar de notar alguns pontos negativos, como a pouca qualidade de algumas obras e a falsa ideia de que os quadrinhos precisam abraçar o carimbo do ''clássico literário'' para se legitimar como leitura válida. Outro ponto é que as editoras não tem interesse em produzir adaptações de obras ou escritores que não estejam cobertos pelo manto do ''clássico'', o que deixa muita coisa interessante de fora da peneira do mercado.”