LASERCAST #07 - Quadrinho erótico é sacanagem?

LASERCAST #07 - Quadrinho erótico é sacanagem?

A equipe Raio discute sexualidade, erotismo, pornografia e o cacete a quatro nas HQs produzidas no Brasil, EUA, França, Itália e Japão. Estreia também da nova integrante da Raio, a jornalista e tradutora Dandara Palankof.

Participam do debate: Ciro Inácio Marcondes, Pedro Brandt, Márcio Jr., Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e a estreante Dandara Palankof.

Edição: Gustavo Trevisolli

Disponível em: SPOTIFY, APPLE PODCASTS, GOOGLE PODCASTS, CASTBOX, ANCHOR, BREAKER, RADIOPUBLIC, POCKET CASTS, OVERCAST, DEEZER

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Será Ba-Ba-Barbarella??


por Pedro Brandt

Acho que não é só na banca pertinho da minha casa, mas em várias outras já constatei que a seção de revistas pornô fica muito próxima da seção de quadrinhos. Será que os funcionários acham que o público é o mesmo? Vai saber...

O fato é que, não fosse por essa “coincidência”, eu não teria levado para casa uma edição de Quadrinhos Super Eróticos. Não foi uma necessidade masturbatória que me fez levar para casa esse gibi proibido para menores de 18 anos (como indica a capa).

Comprei a revistinha por uma curiosidade quadrinística (“claro, claro”, diria um amigo). Ainda que eu saiba que o conteúdo desse tipo de publicação está há anos luz de um Manara, um Serpieri, um Levis, um Frollo ou mesmo um Carlos Zéfiro, um detalhe me chamou a atenção e foi determinante para a aquisição. A tarja preta impressa no plástico que embrulhava a revista deixava à mostra, no alto, seu título e um personagem, um robô que, não tive dúvidas, reconheci das histórias de Barbarella.

Puxei o plástico para um lado e para o outro na tentativa de identificar, na capa, algo que confirmasse a presença da personagem no interior da publicação, mas foi em vão. A revista, tão fininha, claro, não teria como ter uma HQ completa de Barbarella, mas quem sabe um pedaço?

Na dúvida, resolvi pagar os R$ 2,99 pela minha curiosidade. Se não estivesse ali a famosa heroína criada por Jean-Claude Forest, pelo menos eu poderia conferir o nível dos quadrinhos eróticos publicados no Brasil atualmente (e ainda teria uma prova cabal do uso indevido — leviano, mal intencionado, diria um amigo — da imagem da loira espacial). Detalhe: há uma nota no editorial que diz: “O Hard Studio que criou, produziu e realizou este projeto. Assim, tem inteira responsabilidade sobre a originalidade e autenticidade de seu conteúdo”. Então tá.

Realmente, Barbarella está apenas na imagem da capa (deitada numa cama ao lado do robô). As 34 páginas da revista são divididas entre quatro HQs. Diana é a protagonista da primeira delas, assinada (argumento e arte) por Leão Lim (um sub-Watson Portela). A personagem é uma prisioneira que usa de artimanhas sexuais para escapar da prisão. Depois de prestar favores sexuais a uma guarda, ela faz sexo com um tenente que, fatigado depois da transa, adormece. Diana escapa. Fácil demais, né? Mas tudo não passa de uma armação da guarda. “Realmente, um golpe de mestre”, ela diz. Então tá.

A segunda história tem argumento de Ataíde Braz e desenhos de Roberto Kussumoto, dois veteranos dos quadrinhos brasileiros. Apesar de as ilustrações estarem (toscamente) coloridas por computador, suspeito que essa HQ — intitulada Espelho — seja antiga (é o que sugere o visual e o figurino dos protagonistas). A dupla de autores cria uma história interessante na qual o sexo é o coadjuvante das inquietudes e inseguranças dos personagens. Naldo acha que seu membro é pequeno e que ele não será capaz de satisfazer Ana. Para ilustrar a situação, Kussumoto desenhou alguns quadros no qual Naldo aparece em tamanho diminuto em relação a Ana. A história é o ponto alto da edição, não pelo apelo erótico, mas pelas soluções narrativas apresentadas pelo desenhista.


Ela é... Sádika foi escrita e desenhada por Franco de Rosa e arte-finalizada por Bonini (também veteraníssimos). Uma historinha boba e clichê, na qual o homem se surpreende quando a namorada se revela uma devassa sadomasoquista e dominadora. Também tem cara de ser uma HQ antiga recolorida e, neste caso, as cores digitais só empobreceram a arte.

A revista termina com A boneca e seu boneco (autores não revelados). Pelo padrão dos desenhos, suspeito que seja uma antiga HQ gringa. A protagonista, uma menina de 19 anos, não desgruda de palhaço de brinquedo. Os pais dizem que ela não tem mais idade para isso, mas não desconfiam que o objeto toma vida quando eles não estão olhando e, com um enorme membro, transa gostoso com a ninfeta (desculpem, não pude evitar usar em ao menos uma frase as palavras transa, gostoso e ninfeta).

Como inspiração onanista, Quadrinhos Super Eróticos é uma negação. As histórias são simplórias, sem clima, e o acabamento gráfico é grosseiro. Boa sorte tentando se satisfazer com ela (putz, não rola nem uma ereção básica). Entretanto, a sem-vergonhice máxima de vender gato por lebre colocando Barbarella na capa me conquistou. Fico imaginando a equipe da editora Heavy Sex pensando “vamos colocar Barbarella na capa! Quem sabe, mesmo com o plástico, alguém reconheça o desenho e acabe sendo fisgado por isso”. Parabéns, pessoal, eu fui fisgado!

Sabe quando você fica impressionado com a tosquice, com a simplicidade de alguma coisa? Como se aquilo, na sua rudeza e, em alguns caso, ingenuidade, de alguma forma te diverte? Pois é, foi o que aconteceu comigo. E só a história de Braz e Kussumoto já valeram meus R$ 2,99. Encontrar a produção deles, hoje em dia, é algo raro (estão nos sebos e nas coleções espalhadas pelo país, não em bancas de jornal).

Mas Quadrinhos Super Eróticos é ruim, não comprarei outra. Bom, quem sabe se eles colocaram na capa uma Phoebe Zeit-Geist ou uma Little Annie Fanny, talvez uma Jodelle ou uma Pravda ...

Estripulias de Ba-Ba-Barbarella

por Ciro I. Marcondes

E eis que chega às minhas mãos, via Pedro Brandt, um exemplar de Barbarella chamado “A obra-prima” (de 1977), numa simpática edição portuguesa da Meriberica/Liber (original da belga Dargaud), escrita e desenhada por ninguém menos que o criador da beldade, o francês Jean-Claude Forest. Ler uma Barbarella original é uma experiência muito legal por dois motivos: primeiro, porque a heroína surgiu em 1962, antes, por exemplo, da Valentina, e desde então se tornou citação preferida das feministas, enquanto ícone da cultura pop representando a mulher que utiliza sua sexualidade em prol de uma libertação sociopolítica. Em segundo lugar, sendo fã do filme de Roger Vadim (1968), pensava se valeria a pena buscar uma comparação da musa nos quadrinhos com sua sensacional e apimentada encarnação vivida por uma jovem e exuberate Jane Fonda (fiquem aí com o sensacional strip-tease da abertura). 

A obra-prima (Le semble-Lune) é o terceiro, dentre quatro, volumes publicados por Forest, que deixou um legado enxuto, mas respeitável. A história se alterna num mundo de “tempos imovíveis”, dentro do sonho, à maneira do Andarilho dos limbos (já comentada aqui), misturando fantasia espacial, multidimensional, e uma ficção-científica tão pulp que é capaz de considerar o ano-luz uma unidade de tempo, e não de distância (para se ter uma ideia do nível das techno bubbles, basta dar uma sacada nessa fala: “meu mastacrac atirou-o para fora do U.P. 1.000 e espalhou-o pelo mundo infinito dos antimundos”). Muito curiosamente, esse ambiente maluco e inverossímil ganha tons de comédia, quase num estilo pornochanchada, quando uma sexualidade explosiva, muito mais que latente, vai se infiltrando de um jeito desavergonhado, e os personagens vão fodendo, assim, quase que naturalmente, enquanto decisões insanas são tomadas, daquelas que colocam “os multiversos” em risco.

Vejamos em mais detalhes esse plot: Barbarella é convocada por dois sujeitos com aspecto de cientistas malucos para, por meio de uma máquina (sempre as máquinas – e como não lembrar do saudoso orgasmatron, que faz parte do universo da heroína), entrar nos sonhos do grande construtor Browningwell – alterego do autor –, que jaz hibernando, e descobrir o enorme segredo que ele guarda. Barbarella concorda, é claro, mas apenas se puder tirar a roupa (pois sente calor!), e desperta num mundo de fantasias (todos os sentidos). Em contato com o introspectivo e mau-humorado (ainda que irresistivelmente sedutor) Browningwell, Barbarella percebe-se vítima de uma conspiração dos cientistas malucos e opta por ficar no mundo dos sonhos. Lá, ela vai ajudar Browningwell a vencer um concurso de esculturas cósmicas (os “obras-primas” – sendo a primeira delas bem parecida com a “estrela da morte” de George Lucas), cujo construtor do primeiro colocado leva um sistema estelar inteiro de prêmio. Browningwell quer muito levar esse prêmio porque, diz ele, os milhões de inocentes do sistema solar não podem cair nas mãos do construtor-crápula inescrupuloso que é seu maior rival.

Vixen

dona de casa

A história, como se vê, é um enorme blá-blá-blá sem sentido em que observamos Barbarella, sempre semi-nua (ou completamente), sendo levada de um lado para o outro, como um estorvo ou ameaça diante de todos com quem se mete. O legal é que a ameaça é sempre sua seuxalidade. Os “companheiros” da espécie de sindicato que faz as obras-primas chegam a chamá-la “aquela mulher vinda do universo intermédio, com seus baixos instintos e maneiras suspeitas”. A delicada questão surge quando, afinal de contas, a pergunta inevitável martela a cabeça: “afinal, o que tem de feminista em uma mulher sendo manipulada, física e psicologicamente, por um monte de homens conspiratórios, de ‘gênio brilhante’, empenhados em conceber uma obra-prima, de intelecto tão masculino”? Ora, vamos considerar que estamos em 1977 e Barbarella escolhe (ao bel-prazer, exclusivamente) seus parceiros sexuais. Vamos considerar, também, o engenho, meio chanchadesco-pornô-dos-70s, do final da história. Impossível não lembrar Russ Meyer, sendo Barbarella a definitiva vixen: após manifestar interesse em construir também sua obra-prima e ser ridicularizada e rechaçada por Browningwell, a heroína decide “recolher-se” ao seu “lugar feminino” e passa apenas a trabalhar limpando a nave do construtor (chegamos a vê-la usando um aspirador de pó futurista – para depois usá-lo, de outra forma, com Browningwell). Depois, ela decide refugiar-se num planeta de beleza natural enquanto o criador completa sua obra-prima.

Machismo/Feminismo: ambiguidade

Nesta passagem, vemos Barbarella gestando um filho. Quando o construtor retorna, o filho é usado como arma pela heroína, que não esconde suas antigas “desvantagens” (a “fragilidade sexual” e a maternidade) como estratégias de conquista do poder sobre os homens e em especial sobre o homem mais poderoso de “todos os multiversos”. Interessante mesmo é a concepção de que obra-prima masculina é produto da tecnologia e do intelecto humanos, enquanto a obra-prima feminina (colocada, vamos ser justos, em patamar de igualdade na HQ) é a própria obra do instinto, do furor animal: a gestação em si, a reprodução, a continuidade da espécie. Dona da continuidade da espécie, a mulher (no caso, Barbarella) assume o destino do casal e o comando da história. Ainda que passível de crítica, esse é a ambiguidade entre machismo e feminismo que compõe o universo da heroína.

No final das contas, ler esta velocíssima pequena saga de Barbarella, a despeito de seu aspecto barato e tosco, é uma experiência divertida e até fulgurante. A arte e quadrinização de Forest não fica muito à frente da de um Zéfiro, mas é esse aspecto de coisa pra se jogar no lixo que torna seu significado social ainda mais potente. Não é todos os dias que se vê um produto tão despretensioso levantar uma questão tão contraditória, interessante e relevante de maneira tão leve e natural. A sexualidade, o sexismo, os padrões de comportamento social, os preconceitos, chistes e todo tipo de atividade saudável (ou não) da nossa intimidade no século 20 são trazidos de forma absolutamente irreverente e sagaz nesta história. Além disso, o jeito pulp da HQ até contribui para deixar tudo mais sedutor de uma forma meio perversa, meio escondida, mais sacana ainda. E a Barbarella, apesar do traço meio grosseiro, é gostosa, reconheçamos. Jane Fonda teve, em seu avatar original, curvas logisticamente engrenadas para inspirá-la para o irretocável e safadinho filme de Vadim.

A "Estrela da Morte" de Forest Vale lembrar, nesse contexto todo que envolve coisas tão díspares – humor non-sense, erotismo sacana e ficção científica –, o quanto a cultura das BDs pode ser surpreendente, seja na ambição megalítica (praticamente usandos os mesmos elementos) de um Druillet ou de um Moebius, seja na despretensão acolhedoura de um Forest. Observando ao mesmo tempo o corpus comum de temas e a variedade de histórias e abordagens realizados neles, percebemos que a BD é ainda exemplo irretocável de como culturas completas e longevas, tradicionais e de ruptura (às vezes, tudo ao mesmo tempo) podem emergir da história das histórias em quadrinhos.