Lixo extraordinário: sobre as HQs de Zé Carioca
/por Ciro I. Marcondes
| Dadinho é o caralho! |
| Malandraij |
| Locomotiva do Brazeel |
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| Malandraij |
| Locomotiva do Brazeel |
por Ciro I. Marcondes
Em 1957, cinco cartunistas espanhóis publicaram aquilo que seria, talvez tecnicamente, a primeira revista independente de quadrinhos da história. Guillhermo Cifré, Carlos Conti, Josep Escobar, Eugenio Giner e José Peñarroya, até então, eram os mais formidáveis cartunistas da mais formidável editora espanhola, a Bruguera, vivendo ali seu esplendor do auge da era editorial no século XX. Alguns dos quadrinhos mais populares desta época na Espanha eram editados pela Bruguera através da saudosa revista Pulgarcito: El reporter Tribulete, Don Pío, Zipi y Zape e, é claro, Mortadelo e Filemón (aqui: Mortadelo e Salaminho), o mais internacional quadrinho espanhol, criado por Francisco Ibáñez, de uma geração imeditamente posterior. O cômico-absurdo e politicamente incorreto desta HQ dá o tom de toda uma geração hoje bastante esquecida, mas que não tarda em ser resgatada a partir da memória da iconoclástica revista Tio Vivo. Insatisfeitos com as condições de trabalho e partindo para uma nova aventura editorial, estes cinco voluntariosos homens se demitiram da Burguera no auge de suas pretensões como cartunistas, numa época em que, em plena ditadura franquista, quadrinistas eram vistos como mera working class, precisando varar madrugadas para cumprir prazos absurdos, com salários baixos e nenhum reconhecimento. Já os quadrinhos eram uma extensão pobre e baixa do milionário mercado editorial, que via, antes da popularização da televisão, uma multiplicação sem precendentes da extensão de seu domínio.
Esta história é contada, com magnífica sensibilidade documental e artística, pelo proeminente Paco Roca, talvez o grande quadrinista espanhol da atualidade. Roca já havia surpreendido com o multipremiado romance gráfico Arrugas, de 2007, que gerou uma animação candidata ao Oscar, desenhando intrigante retrato do Mal de Alzheimer, e volta-se para a metalinguagem em El invierno del dibujante (O inverno do desenhista) para narrar, de forma quase aleatória, sem sequencia causal, sem marcadores tradicionais como letreiros e narradores, em um embelezado padrão de cores mornas, a aventura e posterior derrocada destes quadrinistas, incapazes de manter viva a revista Tío vivo (a publicação independente) graças a uma prática, bastante brutal, de phising (espécie de chantagem mercadológica) feita pela Brughera junto às distribuidoras da Espanha para que a nova revista nunca chegasse às bancas. Roca desenha seus mestres com forte detalhismo documental, preocupando-se com o que vestem, o que comem, para que time torcem, o que fumam (uns fumam charutos, outros, cigarros, outros, cachimbos, mas todos fumam), além de trazer nuances, em cenas bastante isoladas, que parecem “pescadas” do mundo real, a respeito do perfil psicológico de cada um, enchendo a história com pequenos easter eggs para o conhecedor da HQ europeia. A história é contada em 8 capítulos, entre 1957 e 1958, cada um representando uma estação do ano, e, cada estação, em uma cor diferente para as páginas, além de um amargo epílogo, no outono de 1979. A edição da Astiberri é bastante luxuosa, com textos complementares e a mais absoluta deferência prestada a esta viagem de volta à Barcelona dos anos 1950.
Gênese para "Mortadelo e Salaminho"
Ibáñez
Como a história é contada em fragmentos fora de ordem, em chave absolutamente melancólica – vemos, afinal, a euforia de se abrir uma editora independente e de se livrar das “garras opressoras”; e depois a decepção do naufrágio de toda empreitada e o retorno, com o rabo entre as pernas, dos cartunistas para a Bruguera – a experiência de se ler El invierno del dibujante não pode ser diferente de um impressionismo contemporâneo, em que não conseguimos efetivamente nos tornarmos íntimos de seus personagens, mas ao mesmo tempo percebemos as sombras fantasmáticas de seus existências, de seus autógrafos dados, as piadas contadas, de seus rascunhos nunca publicados. Este impressionismo reverbera em um olhar mais severo a respeito das condições difíceis de uma vida sob imperiosa ditadura, somadas às imposições castradoras de um mercado editorial potente.
Censurando a "Pulgarcito"
É por isso que o personagem mais ambíguo e envolvente da história acaba sendo o diretor de redação da Bruguera, Rafael González, também um personagem real. Ex-escritor e roteirista (frustrado) de quadrinhos, abertamente prejudicado pelo regime franquista em suas aspirações, é ele quem cuida de censurar previamente os quadrinhos com sua caixa de lápis vermelhos, além de manter, com mão de ferro, a linha editorial e obedecer às ordens dos irmãos Burguera. Francamente solitário, este homem censura suas próprias paixões e passa a censurar as de seus empregados, tudo em nome da manutenção de sua própria, extensa, e problemática família. No final das contas, após subornar o talentoso cartunista Vásquez (alcoólatra e endividado) para que denunciasse as atividades dos colegas, ele consegue impedir que a publicação independente Tío Vivo possar vingar no mercado espanhol. Tão melancólico quanto qualquer outro, o final de González representa a autofagia de todo o sistema editorial: sua família o abandona graças à sua fé inabalável em seu cargo.
Invernal como poucas, esta lírica e ao mesmo tempo sóbria (por contraditório que pareça) história em quadrinhos é mais do que uma homenagem e documento à história dos quadrinhos espanhóis. Seu formato arrojado, que pemite que escolhamos a ordem de leitura dos capítulos, assim como sua falta de amarras narrativas tradicionais, permite que o vejamos como um compêndio metalinguístico a respeito do processo de maturação (growing pains), enquanto indústria e enquanto arte, das histórias em quadrinhos, sendo ao mesmo tempo uma cicatriz e um exemplo de resistência. Talvez por isso o traço de Paco Roca se situe de maneira tão perfeita entre o realismo e o cartunismo, como se, tornados desenhos, aqueles homens não deixassem de passar a se assemelhar aos cômicos personagens a partir dos quais (com suor e lágrimas) eles puderam atravessar os mares turbulentos que são períodos de transição em qualquer forma de arte.
por Ciro I. Marcondes
E eis que chega às minhas mãos, via Pedro Brandt, um exemplar de Barbarella chamado “A obra-prima” (de 1977), numa simpática edição portuguesa da Meriberica/Liber (original da belga Dargaud), escrita e desenhada por ninguém menos que o criador da beldade, o francês Jean-Claude Forest. Ler uma Barbarella original é uma experiência muito legal por dois motivos: primeiro, porque a heroína surgiu em 1962, antes, por exemplo, da Valentina, e desde então se tornou citação preferida das feministas, enquanto ícone da cultura pop representando a mulher que utiliza sua sexualidade em prol de uma libertação sociopolítica. Em segundo lugar, sendo fã do filme de Roger Vadim (1968), pensava se valeria a pena buscar uma comparação da musa nos quadrinhos com sua sensacional e apimentada encarnação vivida por uma jovem e exuberate Jane Fonda (fiquem aí com o sensacional strip-tease da abertura).
A obra-prima (Le semble-Lune) é o terceiro, dentre quatro, volumes publicados por Forest, que deixou um legado enxuto, mas respeitável. A história se alterna num mundo de “tempos imovíveis”, dentro do sonho, à maneira do Andarilho dos limbos (já comentada aqui), misturando fantasia espacial, multidimensional, e uma ficção-científica tão pulp que é capaz de considerar o ano-luz uma unidade de tempo, e não de distância (para se ter uma ideia do nível das techno bubbles, basta dar uma sacada nessa fala: “meu mastacrac atirou-o para fora do U.P. 1.000 e espalhou-o pelo mundo infinito dos antimundos”). Muito curiosamente, esse ambiente maluco e inverossímil ganha tons de comédia, quase num estilo pornochanchada, quando uma sexualidade explosiva, muito mais que latente, vai se infiltrando de um jeito desavergonhado, e os personagens vão fodendo, assim, quase que naturalmente, enquanto decisões insanas são tomadas, daquelas que colocam “os multiversos” em risco.
Vejamos em mais detalhes esse plot: Barbarella é convocada por dois sujeitos com aspecto de cientistas malucos para, por meio de uma máquina (sempre as máquinas – e como não lembrar do saudoso orgasmatron, que faz parte do universo da heroína), entrar nos sonhos do grande construtor Browningwell – alterego do autor –, que jaz hibernando, e descobrir o enorme segredo que ele guarda. Barbarella concorda, é claro, mas apenas se puder tirar a roupa (pois sente calor!), e desperta num mundo de fantasias (todos os sentidos). Em contato com o introspectivo e mau-humorado (ainda que irresistivelmente sedutor) Browningwell, Barbarella percebe-se vítima de uma conspiração dos cientistas malucos e opta por ficar no mundo dos sonhos. Lá, ela vai ajudar Browningwell a vencer um concurso de esculturas cósmicas (os “obras-primas” – sendo a primeira delas bem parecida com a “estrela da morte” de George Lucas), cujo construtor do primeiro colocado leva um sistema estelar inteiro de prêmio. Browningwell quer muito levar esse prêmio porque, diz ele, os milhões de inocentes do sistema solar não podem cair nas mãos do construtor-crápula inescrupuloso que é seu maior rival.
Vixen
dona de casa
A história, como se vê, é um enorme blá-blá-blá sem sentido em que observamos Barbarella, sempre semi-nua (ou completamente), sendo levada de um lado para o outro, como um estorvo ou ameaça diante de todos com quem se mete. O legal é que a ameaça é sempre sua seuxalidade. Os “companheiros” da espécie de sindicato que faz as obras-primas chegam a chamá-la “aquela mulher vinda do universo intermédio, com seus baixos instintos e maneiras suspeitas”. A delicada questão surge quando, afinal de contas, a pergunta inevitável martela a cabeça: “afinal, o que tem de feminista em uma mulher sendo manipulada, física e psicologicamente, por um monte de homens conspiratórios, de ‘gênio brilhante’, empenhados em conceber uma obra-prima, de intelecto tão masculino”? Ora, vamos considerar que estamos em 1977 e Barbarella escolhe (ao bel-prazer, exclusivamente) seus parceiros sexuais. Vamos considerar, também, o engenho, meio chanchadesco-pornô-dos-70s, do final da história. Impossível não lembrar Russ Meyer, sendo Barbarella a definitiva vixen: após manifestar interesse em construir também sua obra-prima e ser ridicularizada e rechaçada por Browningwell, a heroína decide “recolher-se” ao seu “lugar feminino” e passa apenas a trabalhar limpando a nave do construtor (chegamos a vê-la usando um aspirador de pó futurista – para depois usá-lo, de outra forma, com Browningwell). Depois, ela decide refugiar-se num planeta de beleza natural enquanto o criador completa sua obra-prima.
Machismo/Feminismo: ambiguidade
Nesta passagem, vemos Barbarella gestando um filho. Quando o construtor retorna, o filho é usado como arma pela heroína, que não esconde suas antigas “desvantagens” (a “fragilidade sexual” e a maternidade) como estratégias de conquista do poder sobre os homens e em especial sobre o homem mais poderoso de “todos os multiversos”. Interessante mesmo é a concepção de que obra-prima masculina é produto da tecnologia e do intelecto humanos, enquanto a obra-prima feminina (colocada, vamos ser justos, em patamar de igualdade na HQ) é a própria obra do instinto, do furor animal: a gestação em si, a reprodução, a continuidade da espécie. Dona da continuidade da espécie, a mulher (no caso, Barbarella) assume o destino do casal e o comando da história. Ainda que passível de crítica, esse é a ambiguidade entre machismo e feminismo que compõe o universo da heroína.
No final das contas, ler esta velocíssima pequena saga de Barbarella, a despeito de seu aspecto barato e tosco, é uma experiência divertida e até fulgurante. A arte e quadrinização de Forest não fica muito à frente da de um Zéfiro, mas é esse aspecto de coisa pra se jogar no lixo que torna seu significado social ainda mais potente. Não é todos os dias que se vê um produto tão despretensioso levantar uma questão tão contraditória, interessante e relevante de maneira tão leve e natural. A sexualidade, o sexismo, os padrões de comportamento social, os preconceitos, chistes e todo tipo de atividade saudável (ou não) da nossa intimidade no século 20 são trazidos de forma absolutamente irreverente e sagaz nesta história. Além disso, o jeito pulp da HQ até contribui para deixar tudo mais sedutor de uma forma meio perversa, meio escondida, mais sacana ainda. E a Barbarella, apesar do traço meio grosseiro, é gostosa, reconheçamos. Jane Fonda teve, em seu avatar original, curvas logisticamente engrenadas para inspirá-la para o irretocável e safadinho filme de Vadim.
A "Estrela da Morte" de Forest Vale lembrar, nesse contexto todo que envolve coisas tão díspares – humor non-sense, erotismo sacana e ficção científica –, o quanto a cultura das BDs pode ser surpreendente, seja na ambição megalítica (praticamente usandos os mesmos elementos) de um Druillet ou de um Moebius, seja na despretensão acolhedoura de um Forest. Observando ao mesmo tempo o corpus comum de temas e a variedade de histórias e abordagens realizados neles, percebemos que a BD é ainda exemplo irretocável de como culturas completas e longevas, tradicionais e de ruptura (às vezes, tudo ao mesmo tempo) podem emergir da história das histórias em quadrinhos.
| Herói grego por Pichard |
| why so NOT serious? |
| Picareta? |
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