Tons da seca


por Roberta Machado
A história de O Quinze começa cinza-azulada, quase negra. Logo, conforme evolui a trama de Conceição, Vicente e Chico Bento, as páginas mudam do azul da calmaria para um amarelo-alaranjado cheio de agonia, até alcançar o clímax da história, num céu vermelho que clama por chuva. Foi por meio das cores da aquarela que o artista Shiko conseguiu traduzir a histórica narrativa de Rachel de Queiroz, agora publicada em quadrinhos pela Editora Ática. O livro faz parte da coleção Clássicos Brasileiros em HQ, que já recontou tramas como O Alienista, Triste fim de Policarpo Quaresma e O Cortiço.

A transferência da narrativa de O Quinze para os quadrinhos não amenizou os duros parágrafos de Rachel de Queiroz sobre um dos piores anos já vividos na seca nordestina. Ao contrário, graças ao traço realista e delicado o quadrinista Francisco José de Souto, o Shiko, o cenário ganhou figurantes, os nomes ganharam rostos e a fome, feições. As ilustrações dão vida a um sertão cruel, botam fogo na terra quente que engole os corpos esquálidos e machucados pela seca. Mas a adaptação respeita o livro publicado em 1930, e mantém suas falas originais. O ilustrador não suprime a descrição do ambiente, e faz questão de unir às palavras brilhantes da autora ao próprio traço.


Acostumado a trabalhar com textos consagrados como roteiro, Shiko já levou para os quadrinhos obras de nomes como Augusto dos Anjos, Moacyr Scliar e Xico Sá. A experiência lhe garantiu o bom-senso de não sacrificar a linguagem da HQ em nome da história, nem de desrespeitar o texto para dar destaque desnecessário às ilustrações. A adaptação encolhe pela metade o número de páginas da obra, mas não comete o pecado de acelerar o ritmo da história.

O ilustrador se dá ao luxo de inserir quadrinhos sem palavras em meio aos diálogos—e são esses que prendem o leitor. É fácil se perder lendo as expressões corporais e faciais dos personagens, ou admirando as paisagens imensas e poderosas descritas no desenho de Shiko. As emoções estão no movimento das mãos nervosas de Conceição sobre a trança, na mulher de Chico Bento que despenca de cansaço sobre os joelhos, no sol que nasce rasgando de cor o céu negro.

Dignidade

Shiko também deu atenção aos detalhes que buscam reproduzir as roupas, a arquitetura e os costumes da época retratada. O trabalho de pesquisa e de planejamento do ilustrador ganha força na história de Chico Bento, que é expulso do seu trabalho e da sua casa pela seca interminável. Sem ter como ganhar a vida, o vaqueiro se torna um retirante, e toma o sertão com a família a tira-colo. “O Chico Bento é, sem dúvidas, o personagem que mais gosto.Porque é impossível não identificar em Chico Bento, naquele tipo de orgulho, uma dignidade e uma altivez presentes em tantas outros sertanejos que conheci. Usei o rosto e o jeito de se mover de um amigo meu, que antigamente competia em vaquejadas, para desenhar o Chico”, confessa Shiko.

O resultado emociona em passagens como o momento em que Chico Bento mata um bode para dar aos filhos famintos, e é impedido de consumir a carne pelo dono do animal. Enquanto as falas do retirante imploram clemência, seus olhos mostram as lágrimas secas de quem já cansou de chorar. Não é difícil se emocionar com a jornada do personagem até que ele chega à cidade para morar num campo de concentração. Ali, Chico Bento desaparece em meio a muitas outras famílias que compartilham da mesma agonia. A chegada do vaqueiro à cidade marca o clímax da história, que não rende tantas imagens marcantes a partir desse ponto.



Do sertão para o mundo

Embora nutra um carinho pelo xará, Shiko partilha mais semelhanças com a heroína de O Quinze. Da mesma forma que a personagem Conceição enfrentou os paradigmas do início do século 20 para deixar o sertão e se tornar uma professora solteira, o artista cresceu demais para viver em Patos, no interior paraibano. Passou por Brasília, onde teve a primeira experiência com quadrinhos e resolveu trabalhar com essa arte, e foi para João Pessoa. Se reinventou, e tomou para si o nome de Shiko depois de conhecer a palavra japonesa no mangá Lobo Solitário. Logo ele—cujo nova alcunha significa“o alcance da lâmina do samurai”—marcou muros e galerias com sua arte, e tornou-se uma referência no ramo dos quadrinhos independentes, conhecido por obras como o Marginalzine e Blue Note.

Hoje, Shiko mora na Itália. Mesmo que sua jornada continue em outras terras, ele não se esquece das raízes, e revela que o passado lhe serviu de inspiração para adaptar a obra de Rachel de Queiroz. Já aos 18 anos, quando leu O Quinze pela primeira vez, montava na cabeça os quadros que uniam as palavras da autora com as imagens que conhecia desde pequeno, por meio das histórias do avô.“Ele era de origem rural e portava essa religiosidade arcaica do sertão do Nordeste, então a ameaça das estiagens e a fé como única possibilidade de redenção, eram informações muito presentes no meu imaginário”, recorda. “O livro da Raquel me ofereceu, pela primeira vez, imagens de pessoas e paisagens muito próximas.”

Lá do outro lado do oceano ele continua a carreira de ilustrador, e planeja continuar trabalhando com adaptações. Shiko também revela que está investindo numa obra que une duas paixões do artista: uma história de velho oeste situada no sertão paraibano. “É uma história com explosões de caixas eletrônicos em pequenas cidades do interior, enforcamentos e fugas. Está sendo bem divertido”, adianta.

Duas perguntas para Shiko
Como você já havia trabalhado em adaptações literárias, foi fácil trabalhar em O Quinze? O que foi mais complicado?
“Talvez o mais difícil seja fazer um romance caber num livro de quadrinhos porque muita coisa tem que ser deixada de fora, o que no caso específico d'O Quinze é ainda mais doloroso, porque o livro é muito seco. Raquel não gastava palavra além do necessário, tudo no livro é medido e justo. Lembro sempre de Graciliano dizendo que palavra não é enfeite. Ela sabia disso, e é impressionante como fez caber tanto em um livro tão pequeno, mas ainda assim grande demais para 80 páginas de HQ. Senti falta de mais espaço para a amplidão das paisagens.”

Na sua opinião, qual o papel dessas adaptações de obras clássicas para os quadrinhos?
“As editoras descobriram um filão de mercado e isso popularizou as adaptações, o que nos leva a diversos aspectos desse fenômeno editorial. A parte boa é que, na avalanche do segmento, vamos encontrar coisas muito boas como o projeto DOMÍNIO PÚBLICO, da Editora Ragú, de Recife. Porém não podemos deixar de notar alguns pontos negativos, como a pouca qualidade de algumas obras e a falsa ideia de que os quadrinhos precisam abraçar o carimbo do ''clássico literário'' para se legitimar como leitura válida. Outro ponto é que as editoras não tem interesse em produzir adaptações de obras ou escritores que não estejam cobertos pelo manto do ''clássico'', o que deixa muita coisa interessante de fora da peneira do mercado.”

Duas observações envolvendo Batman Ressurge


Por Ciro I. Marcondes


1: Sobre o Herói grego, os Super-Heróis e o atirador do Colorado

Herói grego por Pichard
O herói na antiguidade clássica era uma figura legitimamente criada pelo imaginário popular. Sua função, enquanto criação coletiva de um mundo pré-científico (ou melhor dizendo, pré-logosófico), em que religião, arte, filosofia e ciência se misturavam, era a de tornar cognoscível um sistema ético, metafísico, político, estético e religioso para o povo. Figuras como Aquiles, Ulisses e Heitor não eram apenas “histórias” que serviam para o povo se entreter, mas verdadeiras estruturas míticas de significação do mundo. A partir da instituição da filosofia, especialmente socrática, estas figuras vão assumindo caráter cada vez menos inspirador no sentido educacional, e passam a ser tornar personagens de literatura. Vale lembrar as palavras de Harold Innis: “Os poemas homéricos foram o trabalho de gerações de recitadores e menestréis, refletindo as demandas de gerações de público para quem esses poemas foram recitados”.

why so NOT serious?
Quando comparamos os super-heróis com os heróis gregos, como o faz, de um jeito mais ou menos irresponsável, Stan Lee, há um erro e um acerto: o acerto é que o super-heróis também são, de algum jeito, criações coletivas, moldadas num imaginário comum, que, através de diferentes artistas e com intensa participação de um público, acabam assumindo arquétipos sociais. O erro, entretanto, não pode ser desprezado. Os super-heróis aparecem em uma época já hiper-midiatizada, em que as criações da indústria claramente são modelos autorreferentes, cuja função quase exlcusiva é retroalimentar as próprias estruturas e funções da indústria. Foi assim com os quadrinhos, assim é com o cinema. Assim é com as adaptações de super-heróis para o cinema. Os super-heróis foram criados especialmente como propaganda de guerra, e sugiro expressamente que leiam o artigo que escrevi a respeito. A inspiração para suas atuações nas sociedades contemporâneas nada têm a ver com  a inspiração que o herói antigo tinha para os gregos. O super-herói nada inspira a não ser uma relação especular com sua própria estrutura midiática e industrial, sendo o público uma parcela ativa e participante deste jogo. Dentro destes limites, eles podem gerar histórias incríveis, algumas intensamente inteligentes, e é como produtos dentro deste universo hipermidiático do pop que devem ser pensados e apreciados. Fora isso, super-heróis são inverossímeis em sua mais crua natureza, e dar atenção demais a eles é dedicar muita energia a uma coisa escancaradamente alienante. Um culto extremado, que passe a colocá-los como modelos para representações da vida real é um culto ao próprio dinheiro que é o desdobramento inicial de todo seu processo constitutivo.  Não podemos esquecer as palavras do velho Milton Santos:

Picareta?
O consumo é o grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é, também, um veículo de narcisismos, por meio de seus estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece como o grande fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente.

Why so GODDAMN serious?
Eu sempre fui leitor e apreciador de quadrinhos de super-heróis, mas entendo que eles servem para serem consumidos, e não para que me inspirem coisa alguma. Na verdade, em termos de “inspiração”, é mais comum que o tiro saia pela culatra. O caso do atirador do Colorado é epistolar. Não podemos fechar os olhos e pensar que ele era apenas “mais um maluco” e que o filme do Batman não teve nada a ver com isso. Sim, ele era “mais um maluco”, mas um maluco que se dizia “ser o Coringa”, inspirado em um filme em que o Coringa é retratado como um niilista cruel e psicopático que quer “apenas ver o mundo queimar”. Certamente não foi a unica causa, e não tenho nada contra o filme, que é particularmente bom, mesmo que eu ache que esse Coringa do Nolan não traduza a essência do que o Coringa é para o Batman dos quadrinhos. A questão é: no mundo real, não existe e nem pode existir nenhum Batman para nos salvar de psicopatas niilistas. E, no mundo real, conforme o caso do Colorado bem demonstra, psicopatas niilistas estão aí, à espreita, para atirar em todo mundo. Não devemos nos encantar tanto com a cultura pop. Não vamos inverter esses valores. Mendigos não se parecem com zumbis. Zumbis é que se parecem com mendigos. Pensem nisso.

2: Sobre Bane e “A queda do Morcego”


O bom desempenho do personagem Bane em O cavaleiro das trevas ressurge confirmou algo que eu já pensava e desconfiava havia um bom tempo: o grande qualidade da saga A queda do morcego (Knightfall), tão execrada e questionada à sua época, humilhada por seu suposto viés exclusivamente comercial, vinculado à estratégia de “matar um personagem” para aumentar as vendas dos quadrinhos e depois ressuscitá-lo. Isso me faz pensar no quanto fãs de quadrinhos às vezes gostam de repetir bravatas e fixar pontos-de-vista por medo de encarar ideias novas ou puro e simples chauvinismo.

Li A queda do morcego no meio de minha adolescência, nos anos 90, com assiduidade e veneração que acho que nunca foi repetida em minha trajetória como fã de HQs. Esta não era apenas uma pequena história de um novo vilão que simplesmente aparece do nada e “quebra” o Batman. Esta era uma história de um personagem radicalmente novo, intensamente natural ao universo de Batman, ousado, corajoso e obcecado, com robusto mito de origem: Bane teria nascido e sido criado na pior prisão do mundo, e perturbadoramente uma única ideia fixa o motivara a sair e argutamente planejar uma longa ação de desmantelamento humano: matar o Batman. Porém, Bane se prova um personagem de inteligência ferina e diferentemente psicopática, e usa as próprias aporias de Batman para miná-lo psicologicamente, até que seu aspecto físico também esmoreça, e a obsessão do vilão sobrepuje a obsessão do herói.

Não é à toa que Bane seja o vilão escolhido para finalizar a trilogia de Nolan, planejada para capturar um aura mais hiper-realista de Batman, iniciada com as fabulosas novelas gráficas dos anos 80. Bane – e valem os créditos para os tão frequentemente desacreditados Chuck Dixon e Doug Moench – é a cristalização mais imediata deste conceito,  traduzido em sua incorporação ao cânone do herói, quando nenhum personagem que não figurasse nos primeiros anos de existência de Batman nos quadrinhos tivesse conseguido isso. Nolan percebeu que a argúcia hiper-realista, monstruosa porém factível, primada pela força obsessiva do vilão, seria a qualidade que ele buscava para finalizar a trilogia com um personagem que ancorasse Batman ainda mais no chão. Dito isso, vale pensar no quanto, às vezes, enquanto patrulhadores xiitas de nossos personagens, deixamos passar grandes ideias, que ainda existem, e que escapam diante dos nossos olhos, simplesmente pelo fato de acreditarmos que todas as boas histórias já foram contadas.


HQ em um quadro: todo o gênio de Robert E. Howard, em Conan. Por Roy Thomas e John Buscema.


A horripilante aparição do demônio Thog, de Xhutal, para Natala, da Britúnia (Roy Thomas e John Buscema, 1985): ao ler a história de Conan entitulada "A sombra no palácio da morte" (sendo a segunda parte "Nos tentáculos de Thog") em uma velha "Conan, o bárbaro: especial número 2" da editora Abril, não pude deixar de ficar fantasmagoricamente impactado não apenas com a arte vigorosa, viril e ricamente detalhada (sempre rembrandtiana, no preto-e-branco) de John Buscema, ou com o roteiro sólido, de minuciosa decupagem e estilística literária, de Roy Thomas - mas também com uma certa qualidade nefasta, demoníaca, quase metafísica, da base original do perturbador escritor Robert E. Howard.

Aqui, encontramos Conan e a loiraça (sempre muito curvilíneas, no traço de Buscema) Natala da Britúnia saindo do deserto para se encontrarem no oásis de Xhutal, uma cidade muito estranha: enfeitiçados constantemente pelos efeitos psicotrópicos da lótus negra, os habitantes desta cidade estão o tempo inteiro dormindo, e vivendo experiências para além dos limites da vida comum, em seus sonhos. Homens e mulheres permanecem em constante estado de torpor, e acordam apenas para preparar grandes refeições e praticar inimagináveis orgias, para então voltarem a consumir a lótus, e dormir. Conan e Natala adentram cada vez mais profundamente neste labiríntica e sinistra sociedade para depois descobrirem que a citadela é ainda governada por uma criatura literalmente demoníaca, o ancião Thog, uma aparição tenebrosa e inacreditável que Thomas vai segurando no roteiro até que a curiosidade do leitor já não tenha mais para onde fugir. É quando surge o quadro destacado acima.

Thog é descrito como uma criatura inteligente, devoradora de sacrifícios, geralmente mulheres, oferecidos de quando em quando pela manutenção do sistema sombrio de sobrevivência na citadela. A natureza lúbrica e libidinosa de Thog, entretanto, é o maior interesse aqui. O demônio, uma espécie de rinoceronte molengo e reptiliano, cheio de tentáculos, é coerentemente horripilante, mas, a partir de Howard, Thomas vai descrevendo-o como criatura perturbadoramente sedutora, sensitivamente sedutora, de imenso poder sexual, e isso é sentido pela musa de Conan. Diz o letreiro: "Ela grita ao sentir sua carne sendo tocada! A sensação é indescritível! Os membros não são nem frios, nem quentes... nem ásperos, nem lisos... Ao sentir tais carícias, ela conhece um medo e uma vergonha como jamais havia sonhado! Toda obscenidade e infâmia produzidas nas fossas libidinosas da vida parecem transbordar num mar de imundície cósmica! Naquele momento, ela sente prazer e nojo. Desejo e repulsa pela besta disforme!"

Todo este imaginário de Thog revela a seriedade com que Howard tratava os temas de seus contos na era hiboriana. Nesta indigesta e lovecraftiana história, os temas do prazer lúbrico, da orgia sexual, da cojuração de demônios e de poderosas ambiguidades eróticas aparecem como corolários da própria condição de outcast do autor, nunca devidamente reconhecido em vida, publicando em revistas pulp e relegado a uma marginalidade literária. Seu olhar assombrado para demônios literais e figurados não deixam de parecer olhares para dentro de si, considerando que estamos falando de um homem que se matou jovem, aos 30 anos, em 1936. (CIM)

Serviço de utilidade pública: Novidades d’A Bolha


por Pedro Brandt 

Nós, da Raio Laser, somos fãs da editora Rachel Gontijo. Ano passado, ela lançou A Bolha Editora, especializada em quadrinhos pouco convencionais e bizarros. Este fim de semana, Rachel, que é brasiliense mas mora no Rio de Janeiro, estará mais uma vez em Brasília para divulgar material d’A Bolha. Ela chega na cidade com duas novidades: Ice fuckers, do francês Frédéric Fleury, e O babaca, do americano Gary Panter. Recomendo uma googleada para conferir o trabalhos dos dois artistas.

Pessoalmente, gosto mais do Panter, dono de um estilo mais explosivo e selvagem (como o nome dele sugere) e criativo do que o Fleury, com seu traço underground tosco (“escola” que tem formado alunos demais, eu diria). De qualquer jeito, quero conferir os dois lançamentos para melhor avaliá-los. 


O agito está marcado para às 15h, deste sábado (28 de julho) na Laje (708 Sul, bloco A, casa 47). Presença confirmada de quase toda a galera que produz quadrinhos em Brasília. E, claro, da equipe Raio Laser. Nos vemos lá!


Razão, causalidade e narrativa: o caso das HQs

por Eiliko Flores

O uso que fazemos das palavras é capaz de dizer muito sobre o modo como enxergamos o mundo. No uso da palavra razão encontra-se as marcas de como, em geral, a concebemos. Dizemos que “a razão disto é aquilo”, ou seja, associamos, sem perceber, razão a causalidade, como se fossem a mesma coisa. Quando dizemos que “a razão disto é aquilo” estamos querendo dizer justamente que a “causa” disto é aquilo. Mas um pensamento que se guie unicamente pela causalidade na interpretação do mundo certamente corre sério risco de reduzí-lo. O mesmo acontece na narrativa: ainda que muitas narrativas sejam construídas em torno de uma causalidade que simplesmente encadeia os acontecimentos, há sempre a possibilidade de construir de outro modo o que se quer contar. Um exemplo banal: começar pelo fim.

Se associamos de modo tão escancarado razão e causalidade, e se é verdade que a causalidade não é tão importante assim para a arte, não é estranho que se associe tanto arte e loucura. O reino da arte consegue subverter o primado da causalidade, permite o exercício de uma racionalidade outra, sem as rédeas e margens do mecanicismo. Subverter os meandros da causalidade na narrativa, explorar os múltiplos significados que podem surgir quando deixamos de ser regidos pela racionalidade anquilosada do pensamento estreito e unívoco, abrindo campo para a exploração de associações inesperadas, é uma experiência de liberdade: é deixar que emerja o mistério e a plurissignificação, é a descoberta de novas maneiras de interpretação e figuração do mundo, capazes de surgir do choque e da diferença entre os fragmentos, e não apenas de seu mero encadeamento linear, causal.

No âmbito da arte seqüencial, a justaposição de quadros pode, evidentemente, limitar-se a colocar uma ação ou pensamento depois do outro, como em uma narrativa tradicional. Entretanto, essa lógica pode ser subvertida, e não é nenhuma novidade: a justaposição de quadros pode ser capaz de associar imagens e momentos aparentemente desconexos, ocasionando a implosão de plurissignificações e simbolismos que a mera causalidade desconhece. 

Associações narrativas inesperadas: uma experiência de liberdade

Citando um artista da arte seqüencial contemporânea, de reconhecida posição iconoclasta, é fácil perceber que, há décadas, Laerte produz quadrinhos que subvertem não apenas a lógica causal em sua arte (promovendo, muitas vezes, associações inesperadas que beiram um absurdo calculado) e que afrontam todo um modo de ver o mundo. Laerte subverte a lógica estreita e mecanicista do dia-a-dia, as caretices das quais faz parte a causalidade erigida como lógica imperialista do pensamento. E não é o único, é claro.

Narrativa segundo Laerte

O pensamento causal, indispensável à ciência, é de pouca utilidade para a atividade do artista e sua interpretação da existência: basta dizer que o fluxo da vida, excluídas as contingências naturais, encontra pouco amparo na causalidade, embora seja comum que tentemos conduzir nossas ações segundo esse tipo limitado de lógica, prevendo conseqüências e reações a cada pequeno instante, de maneira automática. Não é a toa que o que se chama de ironia trágica, ou ironia do destino, seja justamente a emergência na cadeia dos acontecimentos de algo imprevisto, contraditório, inesperado e completamente avesso àquilo que as expectativas usuais poderiam prever. Também não é por acaso que a arte do século XX demonstrou a inutilidade da imediatez causal frente às marés do pensamento interior e suas associações selvagens, essa dança das idéias e sensações que transfigura o mundo exterior em símbolos e significações.

É o caso do movimento geral dos sonhos que encontramos em Little Nemo, por exemplo. É curioso ver que ali a lógica da criança está associada a tudo, menos à causalidade: e é inevitável notar que o jogo de associações que resulta da exclusão da causalidade imediata – que obviamente emula o universo infantil mais primário – alcança, em Little Nemo, justamente a expressão de muitas das possibilidades poéticas da arte seqüencial. A zombaria que se faz da causalidade, como nas vanguardas do século XX, associada com freqüência ao mundo infantil por razões óbvias, é, na arte, expressão da mais alta maturidade e domínio de expressão.

Little Nemo: lógica da criança não está associada à causalidade

O Dr. Manhattan de cada um

Utilizando nomenclatura que talvez seja considerada antiquada, poucas vezes a lógica causal, importante nas ciências exatas, consegue importar no mundo da arte na consideração daquilo que não está aparente, do que não é facilmente apreensível ao nosso redor. Causas aparentes, na arte, em geral são apenas isso: aparentes. A aparência é muito usada para determinar causas e conseqüências, e daí saem todos os preconceitos. Também todos os utilitarismos, toda a paranóia, toda a doentia vontade de poder que instrumentaliza o mundo, tentando dominar as causas e conseqüências de cada pequeno aspecto da realidade, até o limite da frustração. É nosso lado Dr. Manhattan – tanto mais evidente à medida que Dr. Manhattan se desumaniza, ao longo de Watchman.

É impossível negar a importância do pensamento causal e ele é necessário. Mas pode ser nocivo quando se transforma em um modo padronizado de interpretação do mundo, baseado mais em associações do que em diferenças. É isso o que a arte, incluindo os quadrinhos, consegue enfrentar. Jogar fora a causalidade seria, também, apenas infantilidade (sem arte). Recairíamos em uma ênfase desmedida no casual, no gratuito. Questões de pesos e medidas, é claro. 

Não pretendemos com estas considerações nenhuma atividade prescritiva: não pressupomos este texto como uma causa, da qual se extraia necessariamente uma conseqüência. Há muito mais no mundo do que isso.

Eiliko Flores é escritor, compositor e professor de literatura brasileira. 

HQ em um quadro: a lendária seca de 69, por Gilbert Shelton

Hippies lastimam seu apocalipse junkie (Gilbert Shelton, 1976): A cena é desoladora: no cruzamento da 2nd Avenue com a Praça St. Marks, em Nova York, seis personagens dispõem-se num movimento estatizado pelo formato de charge do quadro, cada um envolto em suas próprias preocupações, reiterando seu próprio monólogo. Na rua, uma enxurrada de lixo que, se prestarmos um mínimo de atenção, revelará um pouco dos hábitos desta louca sociedade no mês precedente: todo tipo de garrafa de bebidas alcoólicas legalizadas (gin, uísque, cerveja, todo tipo de vinho - até um "suave french wine" - , e até coisas como "toxic tickle" e "óleo de fígado"), um edição da revista East village other (publicação lendária pela qual passaram Crumb, Spain Rodriguez e o próprio Shelton), um sutiã, uma cueca e até mesmo um papel de "doce de gordura de porco". 


Diante deste cenário remetente a um grande apocalipse junkie, os seis personagens alternam-se em expressões de desolamento ou auto-resolução: um velho hippie barbudo reclama da seca: "sem erva em um mês! Acho que, afinal de contas, vou estudar economia na Notre Dame"! Dois pré-adolescentes com cara de mexicanos reclamam de ter nadado e morrido na praia: "Que hora para uma seca de maconha! Bem quando estávamos prestes a nos graduarmos para as "coisas mais pesadas"! Outro hippie considera partir para negócios com seguradoras, e uma peituda doidona pensa em se casar, ter filhos e criar sua família em Dallas (vale lembrar que o Texas é o estado mais conservador dos EUA, e que Shelton vem de lá, da fabulosa cidade de Austin). Por fim, um ex-pantera negra considera se juntar à "youth for christian america" e pensa em fazer campanha para George Wallace, um notório racista e político americano contrário aos direitos civis, candidato à presidência em 1968. 

Em quê consiste a genialidade de Gilbert Shelton? Este quadro único se chama "Scenes from the revolution: the legendary dope famine of 69", e foi publicado em 76 em sua clássica revista Freak Brothers. Eu o li em uma coletânea da Knockabout comics. Shelton sugere aqui, com dose mordaz de ironia, que durante uma looooonga seca de maconha na Nova York dos late 60's, todos os tipos contraculturais que se via nas ruas naquela época teriam de ser obrigados a se enquadrarem aos destinos medíocres do american dream: se formar em economia, criar uma família em Dallas, trabalhar no negócio das seguradoras.


A força-contra que esses hippies depositaram diante de ter que se juntar ao status quo foi tanta que estas decisões têm de ser tomadas no meio da mais absoluta desolação pós-apocalíptica, quando tudo que tinha para se fazer em termos de sexo, drogas e rock and roll estava esgotado, e todas as bebidas acabadas, e todo o sonho contracultural turbinado pelo consumo de drogas morto graças à eficiência da polícia, que aparece no fundo do quadro, com suspeição repressiva. Shelton sugere que, finda a distribuição de drogas e morto o sonho, o apocalipse vem na forma do entregar-se, do render-se ao proselitismo capitalista, última das últimas opções. 


Ao mesmo tempo, sugere que uma vida chapada é melhor que uma vida enquadrada e que, enquanto esse povo tiver maconha, ele não se preocupará em estudar economia ou se juntar à Juventude Cristã Pela América, e que, de alguma forma, isso é algo bom. Isso me lembrou aquela música (incrível) do Alice in Chains, Junkhead, em que o falecido (por overdose) Layne Staley canta, de maneira bem mais barra-pesada, um hino exaltando as vantagens de se ser um junkie num mundo em que nada faz sentido: You can't understand a user's mind / But try with your books and degrees / If you let yourself go and opened your mind / I'll bet you'd be doing like me.  


Os exageros de Shelton podem até parecer sombrios, irresponsáveis ou descabidos para uma grande quantidade de leitores menos "experienced", mas vamos admitir, sem reservas ou pudores, que o homem tem um senso de humor escarninho e verdadeiramente provocativo, além de um grande par de bolas dentro da cueca. (CIM)


Dando uma boa olhadinha debaixo da cama [e dentro das lixeiras também!]



Cristiano Bastos é um gaúcho sangue boníssimo e nosso amigo, residindo aqui em Brasília. Escreveu, dentre muitas atividades, para as revistas Bizz, ESPN e Aplauso. Atualmente é reporter especial da revista Rolling Stone, onde escreve sobre música e política.  Nesta última, fez reportagens maravilhosas sobre Novos Baianos, Raul Seixas e Romário. É autor do livro Gauleses Irredutíveis - Causos e atitudes do rock gaúcho. É também diretor do documentário Nas paredes da pedra encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. E ele curte quadrinhos. E ele curte EC Comics, Tales from the Crypt, quadrinhos de antes do comics code authority. E ele curte bons textos. E fez um ótimo texto pra gente, contando sua relação com estes lendários quadrinhos de terror, além da arte de chafurdar no lixo alheio. Para quem quiser conhecer o trabalho do Cristiano, ele tem um blog e um portfolio online. Valeu meu véio. Esta é uma colaboração realmente especial. PS: Ilustrei a crônica do Cristiano com imagens sortidas das HQs de Cripta do terror. Enjoy! (CIM

por Cristiano Bastos

Aos meus “40 invernos” eu às vezes ainda sonho um sonho que sonhava sempre quando criança. De tanto sonhá-lo ficou gravado em minha memória. Sonho que perambulo entre as lixeiras do prédio “minhocão” [esses conjuntos habitacionais levantados pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), nos anos 1970, para acomodar a classe C], em um dos quais minha família estabeleceu-se quando meus pais deixaram Cachoeirinha, na região metropolitana da capital gaúcha, para ir morar em Porto Alegre. Eram dezesseis blocos e as respectivas lixeiras, enfileiradas uma ao lado da outra. E, para cada andar, havia um compartimento através do qual os moradores despojavam seus refugos domésticos – e, também, jornais, livros e revistas.

Cristiano, à esquerda, e seus irmãos: Ethel e Marcelo.
No local onde revirava as lixeiras. Porto Alegre, anos 80. 

Para mim, uma tarefa religiosa, diária e, sobretudo, uma grande aventura era revolver o lixo alheio possivelmente repleto de “surpresas gráficas”. Pedalando a minha bicicleta Caloy, chafurdava a imundície dos outros atrás de qualquer coisa para ler. Embora meu pai, sócio fiel do “Clube do Livro”, não deixasse que faltasse leitura em casa [nem comida!] – as mais diversificadas. O velho comprava um livro por semana, em média. Muitos best-sellers como Sidney Sheldon e o “mestre da sordidez” Haroldo Robbins [dentre os quais as obras: Nunca Ame um Estranho (1948) e Uma prece para Danny Fisher (1952), roteirizado para o cinema como King Creole (1958), estrelado pelo ainda “príncipe” Elvis Presley].

Woolf
Também havia “alta literatura”: Jack London, até hoje, um dos meus herois da vida e das letras. E o sacana Henry Miller, que me ensinou umas palavrinhas desbocadas antes do tempo... O primeiro livro que ganhei de meu pai foi uma edição de Tarzan – O Filho das Selvas (1912), de Edgar Rice Burroughs, porém, confesso que não li até hoje. Mas o livro continua morando na minha biblioteca; representa uma espécie de desafio que, um dia, terei de cumprir em nome da honra. Mesmo que a historia de Tarzan seja conhecida de trás para diante. Tal como aconteceu com a leitura de Mrs Dalloway (1925), de Virginia Woolf – lido tardiamente, mas lido. Quase apenas para tentar decifrar um pouquinho do que as mulheres pensam. A revolução oferecida por Mrs Dalloway, todavia, não é feminista: é estilística. Desenrola-se em um dia na vida da protagonista, Clarissa Dalloway, e tem como cenário o período pós-Primeira Guerra Mundial, na Inglaterra. Trata dos preparativos para uma festa da qual Clarissa é a anfitriã. Artifício literário do qual o escritor gaúcho Dyonélio Machado também lançou mão, uma década depois, com a publicação de Os Ratos (1935) – história nascida de um pesadelo relatado a Dyonélio por sua mãe. A narrativa centra-se no pobre “barnabé” Naziazeno Barbosa, que um dia inteiro perambula pelo centro de Porto Alegre à cata de dinheiro para garantir o leite da recém-nascida cria.

Zéfiro
Nessas incursões “trash”,  descobri muitas leituras que, inconscientemente, formaram  muito de minhas futuras predileções literárias. Lembro, certa vez, de ter encontrado uma intocada coleção de fascículos sobre dinossauros – uma das minhas fascinações da “estação” infância. Noutra achei um inocente livro sobe ioga ilustrado com fotos de iogues contorcendo-se piramidalmente em posições nunca dantes imaginadas em minha inocência de petiz. Em minha cabecinha de guri, achei que aquilo, afinal, era o que tanto chamavam de “sexo”. Na verdade foi uma experiência pra lá de estranha: “Será isso?”, me perguntava com uma interrogação sobrevoando a cuca [naquela época ainda falava-se “cuca”!]. Dúvida que logo foi desfeita quando, numa dessas incursões, deparei-me com os primeiros exemplares de pulp pornografia: havia desde a pornografia “pesada” [para os anos 70, ainda vivia-se sob jugo militar] aos catecismos de Carlos Zéfiro, iniciadores das gerações anteriores “nas artes onanísticas”. Ou mais bonitamente dizendo , na arte de se fazer “justiça com as própria mãos”. Meu pai incluído, provavelmente. Nos anos 60/70 – e nem ainda nos 80’s – “comer alguém” não era bem assim, meus amigos.

Eu era obsessivamente fascinado pelos livros e pelas revistas, não importando o calão: alto ou baixo. Devo à leitura toda minha formação “intelectual”, muito mais do que à faculdade, onde os jornalistas, especialmente os contemporâneos – pelo que se lê nas entrelinhas – poucos, de fato, estão interessados na exigente arte de ler um livro.

Nunca vou esquecer o dia em que minha avó quis se desfazer de todos os volumes de enciclopédica coleção O Tesouro da Juventude [editada de 1920 a 1958, por W. M. Jackson, Inc.]. Obra originalmente britânica,, que, no português de antigamente, assim anunciava-se: 

“Encyclopedia em que se reunem os conhecimentos que todas as pessoas cultas necessitam possuir, offerecendo-os em forma adequada para o proveito e entretimento (sic) dos meninos”.

Antes, eu sempre lia O Tesouro da Juventude quando ia à casa dela, em Caxias do Sul. Para ganhar a coleção, já em Porto Alegre, fui sozinho até sua residência, a pézito, buscar os pesados volumes, carregados “no muque” até minha casa. Conhecimento exige algum esforço, o qual nem sempre é garantido somente às custas da máxima socrática do “sei que nada sei”. 

Minha seção predileta era o “O Livro do Porquês”, que trazia perguntas e respostas para qualquer indagação. Como, por exemplo, esta [no original]: 

Conhece-se alguma especie de matéria que não se encontre na terra?
“Segundo o que o espectroscopio nos revelou, existe no sol um elemento que não se encontra no nosso planeta; foi observado pela primeira vez na parte do sol que se chama a "coroa", dando-se, por isso, o nome de "coronio". Até hoje ainda não se encontrou este elemento em parte alguma da terra. Tambem se descobriu no sol outro elemento conhecido com o nome de "helio", palavra derivada do vocabulario grego "helios" que significa sol; mas alguns anos depois de ter sido observado no sol, esse mesmo elemento foi encontrado na terra, na forma de um mineral muito raro; e, actualmente, sabe-se que o (elemento) radio o produz continuamente. Do mesmo modo que averiguámos que elementos formam o sol, podemos chegar a saber, por meio do estudo da luz que as estrellas emittem, de que se compõem estes astros, situados a tão enorme distancia de nós”.

Não é uma maravilha? 

Quem disse que as gerações passadas não tinham seu  “Google”?

E vou confessar para vocês: a mania de revirar lixeiras é um hábito [obsessão?] que ainda acompanha-me... Minha atual vizinha de prédio, uma gostosa assessora de algum mistério – que é melhor nem comentar –, recebe, aos fins de semana, todas as revistas semanais disponíveis no Brasil e todos os “importantes” jornais em circulação. Leitura, como se sabe, que não é lá grandes coisas. Criei atualmente um novo ritual: toda santa manhã de sábado e de domingo, o porteiro de meu prédio deixa em frente à porta dela um fardo de revistas e periódicos. De meu apartamento posso ouvir a vizinha gostosa agachando seu belo traseiro para recolhê-lo. Espero cerca de uma ou duas horas e vou à lixeira. E é “batata”: lá estará aquele monte de papel ainda recendendo tinta – maior parte deles intocados como a última das virgens.

Voltando à infância, ou melhor, adolescência [revirei lixeiras dos seis ao dezesseis anos], foi numa dessas andanças de piá que achei uma das HQ’s que afetaram muitos a minha “visão gráfica”, por assim dizer – assim como afetou a de toda da juventude reprimida criada nos estertores dos anos 1950. A revistinha chama-se Tales From The Crypt, da EC Comics, que, no Brasil, foi editada como Contos da Cripta.


Para meu completo déjà vu, dia desses o Ciro Marcondes, editor deste site, apareceu-me com uma caprichada edição da HQ, trazida por ele dos Estados Unidos. Robusta, a edição  compila cinco volumes lindamente encadernados e ricamente recoloridos: Tales From The Crypt – The EC Archives – Volume Two [Six Complete Issues 7-12!. Comandada pelo lendário publisher Bill Gaines, Tales... foi originalmente publicada de 1950 a 1955, e inspirou, por exemplo, a televisiva série da HBO. Igualmente afetou dezenas de bandas. Dentre elas, Ramones, The Cramps, Fuzztones e a homônima Tales From The Crypt.  


Nessa edição que me chegou às mãos, há contos clássicos de horror escritos por autores como Al Feldstein e ilustrada por um line-up estelar das história em quadrinhos: Wally Wood, Jack Kamen, Craig Johnny, Al Feldstein, Orlando Joe, Ingels Graham, Jack Davis, John Severin. No total são 24 histórias. O prefácio leva assinatura de Joe Dante, diretor de filmes como Gremlins e Twilight Zone: The Movie, assumidamente fascinado pela obra. Com histórias, em sua maioria, pintadas em um odioso/delicioso horror cotidiano/fantástico, a cada edição a série surpreendia/espantava ao abordar situações das mais bizarras/amedrontadoras imaginadas. Verdadeiro deleite visual e narrativo. Geralmente com um “plot twist” surpreendente ao final de cada conto.


                                                                   TFTC: o filme
Wertham
Mas o fim da revista iniciou-se rapidamente, com a perseguição moral liderada pelo psiquiatra alemão Fredric Wertham, que publicou a obra Seduction of the Innocent [em português, Sedução dos Inocentes], de 1954. O livro tentava desacreditar os leitores com a tese de que as revistas em quadrinhos eram uma “forma ruim” de literatura popular – além de sério estímulo à “delinqüência juvenil”. Seduction of the Innocent   não só causou rebuliço entre os pais norte-americanos como desencadeou uma campanha a favor da censura para esse tipo de publicação. O documentário “embedado” ao final deste texto mostra cenas de Gaines defendendo a Tales From The Crypt no tribunal. O caso repercutiu ao cúmulo de o Congresso Norte-Americano lançar uma investigação cujo foco foi a indústria dos quadrinhos. Logo após a publicação de Seduction..., a EC viu-se obrigada a formular o “Comics Code Authority” ou “Código dos Quadrinhos”, que passou a regular o conteúdo e a autocensurarem-se... Sem o terrorífico “mojo”, nunca mais a revista foi a mesma. Uma lástima que terminou por matar a publicação, a qual sobreviveu na humorística Mad – um grande sucesso até hoje.

A EC foi revolucionária, e poderia ter revolucionado mais se não fosse o livro A Sedução do Inocente, escrito pelo alemão Dr. Fredric Wertham. Foi na Cripta dos anos 1950 que vimos e lemos as melhores histórias de guerra, mistérios, horror e crimes já criadas. Narrativas ousadas e livres do infantilismo pós-Sedução... Contos macabros de humor negro fez da nona arte um terreno fértil com frutos maduros de doces venenos. Nas páginas autores como Graham Ingels, Wally Wood, Jack Davis, Bernard Krigstein e outras feras marcaram uma época, influenciaram gerações de quadrinistas, diretores de cinema e escritores como Frank Miller, Steven Spielberg, Joe Dante, Stephen King e Neil Gaiman.  Às vezes fico pensando o que poderia ter sido dos quadrinhos norte-americanos se Sedução do Inocente não tivesse sido escrito e não tivesse polemizado tantos os quadrinhos como um mal aos seus leitores. Talvez, seria um outro reinado. Não com os super-heróis, mas com inteligência, horror e humor negro”, diz o roteirista e ilustrador Carlos Ferreira – editor da revista independente Picabu,  que também roteirizou para os quadrinhos, entre outras, obras como Os Sertões – A Luta, ilustrado por Rodrigo Rosa.

Zelador da Cripta
Em Tales From The Crypt, as histórias eram inicialmente apresentadas pelo Crypt Keeper [o “Zelador da Cripta”, no Brasil], um velho decrépito e sarcástico que introduzia as histórias e dava uma “moral” ao final de cada conto. Personagem, ao mesmo tempo,  arrepiante e engraçado, que fazia piadas com o trágico e o caótico. Ter o Crypt Keeper apresentando as horripilantes narrativas foi o primeiro passo em direção ao famoso “Estilo EC”. O Crypt Keeper apareceu pela primeira vez na revista Crime Patrol#15 e repetiu a dose na edição seguinte. Logo após, na revista War Against Crime#10, apareceu outro personagem com a mesma função: The Vault Keeper [“O Guardião da Câmara”]. E, mais tarde, um novo ser surgiu das trevas:  The Old Witch [“A Bruxa Velha”], que estreou em The Haunt of Fear. Todos maravilhosamente decrépitos.


Entre junho e novembro de 1991, a Editora Record tentou, essa é a verdade, publicar no Brasil o gibi Tales From the Crypt. Mas apenas sete parcas edições do “Contos da Cripta”, como foi chamado por aqui, viram a luz das bancas de jornais. Guri, consegui comprar somente dois desses números. Esse aqui é um exemplar que se salvou no alfarrábio das relíquias infanto-juvenis. Lançada em dezembro de 1991, a edição traz um conto de psico-ficção científica muito chocante escrito pelo falecido Ray Bradbury. Jackie Davies, Kurtzmann e Frazeta são outros autores que também “exprimiram sangue” na páginas da versão brasileira da Cripta. A tradução do nome dos contos, pelo menos, conservaram o bom-humor original: “Tomo um Banho de Lua, Fico Branco de Pavor”, “Refeição Noturna!”, “Infiltra-Sangue”, “A Rinha”.

Lembro ter lido e folheado o gibi-filho-único dezenas de vezes – e não sem o mesmo calafrio de sempre. Um dos motivos de tanta atração estavam os enredos de suspense na linha soberbamente canônica [e horripilante] do mestre Edgard Allan Poe. Numa das estórias mais impressionantes, após cometer grave crime o bandido fica paranóico com as próprias digitais e, por fim, consigo mesmo [“Caidaço”]. Desabaladamente sai a limpar a cena do crime com igual obsessão do “noiadinho de pedra”. Ele finalmente pira: o crime nunca compensa. Noutro quadrinho, o pobre e desavisado viajante noturno descobre-se numa convenção de... vampiros! Tarde demais.

A única coisa que, na realidade, a Record fez direitinho foi apresentar material antigo da EC Comics no formato “magazine”, seguindo especificações originais da revista. Em sua breve existência, a edição nacional primou por desleixo gráfico, papel de terceira e impressão meia-boquíssima. Não emplacou por falta de capricho. No divertidíssimo site Nostalgia do Terror dá para conhecer todas as edições da Tales From The Crypt saídas no Brasil.  O site conglomera verdadeiro universo paralelo de capas, títulos e editoras, de épocas distintas, e libera, também, download de HQs de artistas da velha e da nova guarda.

Tem, ainda, contos, reportagens e o apavorante “Correio do Terror”. A ilustração deste post é um almadiçoado walpapper. Seria muito legal seria se a Record – ou outra esperta editora – reeditasse a Tales From the Crypt no Brasil. Nem é preciso dizer, com a merecida qualidade. E hoje à noite, antes de ir dormir, não esqueça: dê uma boa olhadinha debaixo da cama!

E nas lixeiras também. Sempre pode haver altas aventuras à sua espera.