O Poderoso Thor

por Ciro I. Marcondes

Lendo a recente republicação das primeiras histórias de “O Poderoso Thor”, com roteiros de Stan Lee e arte de um ainda imaturo Jack Kirby, creio ser correto pensar na incômoda ambiguidade da cultura de super-heróis tanto para as HQs em geral quanto para a cultura de nossa era, assim como na ausência de perspectiva crítica sobre a adorada figura de Stan Lee da maneira como se faz, por exemplo, com Walt Disney. Digo isso pensando na avalanche de filmes desprezíveis consumindo salas de cinema e monopolizando a atenção de Hollywood na direção de um entretenimento bombado em efeitos especiais, mas infantilizado e vazio. Muitas vezes baseados nos simpáticos personagens de Lee, alguns destes filmes estão aquém da cultura de HQs, alimentando o estigma de descartabilidade. 

É claro que a força das criações de Stan Lee - com admirável moderação dos exageros dos heróis da era de ouro, popularizando em um contexto pós-midiático arquétipos humanos interessantes e aproximando o herói dos seus leitores -  tem méritos. O sentido aqui não é colocar na berlinda o Homem-Aranha, o Hulk, os X-Men ou sequer o poderoso Thor (cuja adaptação pro cinema saiu justo agora). As criações de Lee (ou remodelações, já que quase tudo em Lee é francamente baseado em algo de outros quadrinhos ou culturas), importantes para nosso imaginário atual, permanecem com suas essências ao mesmo tempo simples e adequadas. Elas estão muito além do alcance de seu criador. Parece um problema, porém, que estas essências, fetichizadas, disseminadas em bonecos, produtos, metáforas cotidianas, fantasias sexuais, moda, etc, estejam se tornando um denominador comum da sociedade de consumo. Esta atenção entusiasmada e cultista de um imaginário antes muito consciente de suas limitações está tornando o que hoje entendemos como uma identidade geek em uma cultura autoindulgente, cínica, explicitamente perversa, confessadamente idiotizante. Como fã de quadrinhos e até como leitor de Stan Lee, confesso acompanhar com horror a massificação do imaginário de super-heróis.

Vejamos estes quadrinhos do Poderoso Thor, datados de 1962, roteirizados no estilo marvel way por seu criador Stan Lee, com diálogos detalhados por Larry Lieber e arte de Jack Kirby. Meu primeiro interesse por Thor foi justamente buscar de que maneira esta figura extraída das mitologias vikings havia sido revertida em objeto de exploração (acho que, no caso de Thor, é lícito dizer “exploitation”) pela indústria das HQs. Sempre pareceu-me que, a partir de abordagens inteligentes como a de Alan Zelenetz e Charles Vess (“A Bandeira do Corvo”) ou a de Robert Rodi e Esad Ribic (“Loki”), o universo de Thor tivesse grande potencial. Daí recorrer à arqueologia. Lendo as mais de 10 histórias magnificamente republicadas pela Panini na versão nacional da “Biblioteca histórica marvel”, logo nos chama à atenção a pobreza conceitual e artística, mesmo para os padrões da Marvel nos anos 60, do universo de Thor.

Não é novidade que HQs da era de prata, fora algumas coisas do Homem-Aranha, Surfista Prateado e X-Men, despertam interesse mais pelo lápis vigoroso de um Kirby, Ditko ou Buscema do que pelas aventuras ingênuas de Stan Lee. No caso de Thor, entretanto, o caráter derivativo é franco e patente. Lee, já ocupado com o sucesso do Hulk, do Quarteto Fantástico e do Homem-Aranha, produziu roteiros sintéticos com os plots básicos e passou o detalhamento para Larry Lieber, processo que se tornaria tradicional em alguns setores da Marvel. Assim, os personagens de Thor são pálidos, óbvios, diretos. O frágil alterego Don Blake, médico cuja deficiência física contrasta com sua contraparte divina e ariana, logo é abandonado em sua assepsia maniqueísta. O mesmo ocorre com o interesse romântico, a puritana Jane, apaixonada por Thor, mas desdenhosa de Blake (bla bla bla... mesma velha história). Assim, o que emerge dessas tediosas tramas da Thor é justamente o aspecto não-ingênuo que delas se depreende, o que nos permite um comentário mais severo a respeito da isenção de Stan Lee.

Caça às bruxas



Consideremos, em primeiro lugar, que o mais interessante em Thor, e o que o definirá na sequência de sua trajetória enquanto mito e personagem de HQ, quando ele já não estiver mais sob o controle de Stan Lee, é sua origem na cultura nórdica, na mitologia viking, na inesgotável fonte de inspiração para o imaginário ocidental, do épico mudo de Fritz Lang “Os Nibelungos” às recentes e oscarizadas adaptações de “O Senhor dos Anéis”. Logo, mesmo nas histórias de Lee, são as intrigas mágicas e palacianas dos deuses tortos de Argard que vão instilar algum diferencial no universo do personagem, especialmente na figura do nêmesis Loki, um tipo picaresco, subversivo e invejoso, contraponto importante.  Porém, submetido a um ritmo industrial de produção, aos rigores do comics code authority (incomodamente estampado em todas as capas da republicação) e à franca paranoia da guerra fria em seu auge, imagino que Lee não tenha tido muito interesse em aprofundar o personagem em suas origens resididas na cultura popular. Thor é um herói qualquer, exilado na Terra, e combate vilões eventuais e ordinários como o “Copiador”, “Sandu” ou “Mister Hyde”, apaixonado por uma moça reprimida que o ridiculariza em sua essência humana. Nada que um Super-Homem, protótipo de todo super-herói, já não fosse.

Porém, além de vilões insossos perdidos no tempo, Thor também trabalha junto com o exército americano. Logo na primeira história (“Os homens de pedra de sarturno”), uma ilusão provocada pelos tais “homens de pedra” chama atenção pelo seu caráter subliminar: um dragão vermelho que aterroriza o povo norteamericano. Nas histórias subsequentes, vemos que as alusões ao mundo comunista deixam de ser subliminares. Em “O poderoso Thor x o executor”, Thor deve lançar-se contra uma ameaça militar controlada por um tirano ensandecido por aspiração de domínio global chamado “executor”. Ele e seus comparsas possuem traços alatinados, com cicatrizes de guerra deformativas, usam boinas e seus caças ostentam a foice e o martelo. São rudes, pavorosos, e suas ações sugerem tortura e estupro. Lee não avança no conteudo político deste conjunto de signos. Nada sobre o mundo do socialismo é revelado. O executor é um vilão genérico e cruel como um Esqueleto de He-Man ou um Munn-ha de Thundercats. É o mal pelo mal, sem arestas ideológicas. Mas usa boina como guerrilheiros cubanos, chama-se “executor” e, em quadro emblemático, manda para o paredão de fuzilamento um soldado que falhou em uma missão.


Esta associação à cultura militar e a uma demonização dos inimigos dos Estados Unidos nos anos 60 se encontra, ainda neste mesmo volume, em várias outras histórias. Em “Prisioneiro dos vermelhos”, Thor precisa ir à União Soviética à procura de cientistas americanos, supostos desertores. Lá ele os encontra capturados pelos grotescos soviéticos, que os obrigam a desenvolver tecnologia sob regime de escravidão. Esta história, escrita no auge da guerra fria, distorce tema controverso do passado norteamericano: o dos cientistas americanos que efetivamente fugiram por se filiarem ao partido comunista. A história de Thor descarta essa possibilidade e os coloca como vítimas de uma tola conspiração. Os exemplos se repetem e seria perda de tempo recapitulá-los em detalhes. Em “Aprisionado pelo copiador”, Thor se depara com grupo de alienígenas cruéis e com sede de conquista cujo líder tem o rosto de Stalin (além de serem da cor vermelha). Em “O misterioso homem radioativo”, Thor vai à Índia salvar a população da ameaça da China comunista, genérica como todos os outros.

O ponto em que eu queria chegar é evidente: pouco se fala sobre um Stan Lee colaboracionista e ideologista, usando tramas pueris e românticas em inocentes histórias de ação (orgulhosamente aprovadas pelo comics code authority) para associar símbolos mundiais (estrelas, cores, foices) a figuras grotescas e rasas, que sequer têm o poder de crítica aos estados socialistas para além de uma transfiguração direta e barata, porque nenhum conteúdo propriamente político é abordado nestas histórias. E isso é fácil de se entender, afinal, as histórias são direcionadas às crianças, que são bem menos capazes do ato da problematização. Neste sentido, Lee não difere dos primórdios da Marvel Comics, ainda Timely Comics, que criou nos anos 40 inúmeros personagens embandeirados como motivação para a segunda guerra mundial. Logo na primeira edição do Capitão América, vemos o herói que veste e personifica o american way desferir um golpe de boxe nas fuças de Adolph Hitler. Com certeza é preciso entender o contexto sociopolítico da guerra fria e relativizar a participação da cultura pop em um mundo bipartido, mas também é preciso lembrar a vulnerabilidade de um pequeno leitor de HQs nessa mesma época.

As criações de Stan Lee fazem parte de nosso patrimônio cultural mundial e comum. Seu poder de trazer a cultura de quadrinhos para um patamar humano desencadeou muitas mudanças importantes na maneira como lidamos com nossas aspirações e heroísmos pessoais, sendo até hoje fonte de entretenimento legítimo e servindo como um aperitivo daquilo que a totalidade do prazer e da educação que o pensamento mitológico inspirou em culturas antigas ou selvagens. Porém, como toda mitologia, seus heróis se desvinculam de seus criadores no decorrer da História, e seguem vivos pela força coletiva de autores e leitores que procuram cada vez mais adequá-los à passagem do tempo. Confundir, de maneira fetichista, a mente criativa, porém artística e politicamente limitada de Stan Lee, com o efeito mitológico de suas criações, parece consequência do ato de querer-se apenas cultuar o universo dos quadrinhos sem problematizá-lo. Isso é curioso porque fornece munição justamente para aqueles que querem impedir o crescimento cultural desta forma de expressão, os mesmos que proibiram a colossal e alternativa cultura de HQs dos anos 40, permitindo a ascensão de heróis em seu formato light, cujo principal expoente é justamente o velho Stan Lee que aparece, tal qual um Hitchcock acidental, em cada uma das megaproduções cinematográficas da Marvel que são lançadas nos verões americanos.

Ciro Inácio Marcondes não odeia os heróis Marvel

Vida de estagiário: em breve na tevê





















por Pedro Brandt

Não vejo a hora da série Vida de estagiário estrear na tevê. Em novembro do ano passado, passei uns dias de férias em São Paulo, na casa do Vitão, meu primo e diretor da adaptação televisiva da hilária tirinha criada por Allan Sieber. Tive o privilégio de ver três episódios e posso garantir: ficou incrível.

Não vou comentar muito para não estragar a surpresa, mas posso adiantar que a série tem uma pegada de humor que eu não vejo na tevê brasileira. Fico muito satisfeito com isso, não só pelo Vitor, mas também porque estou cansado desse humor sem ideias e enervantemente sem-graça que, com raríssimas exceções, impera na televisão — tanto na aberta, quanto na paga — aqui no Brasil.

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Esta semana, o Sieber postou no blog dele o teaser de Vida de estagiário. Baseado apenas em 1,5 min de vídeo, alguns leitores já vieram jogar pedra. Eles não fazem ideia do que estar por vir. Pelo vídeo, realmente, não dá para ter muita noção do que será a série. Por um lado, se eu tivesse visto apenas esse trailerzinho, talvez também ficasse com o pé atrás. Por outro, se eu tivesse achado palha o que vi em São Paulo no ano passado, nem perdia meu tempo divulgando a parada.

Vida de estagiário será exibido pela TV Cultura e, por enquanto, não tem data de estreia.

Crédito da foto: Manoela de Ombreiras

HQ em um quadro: exército japonês por Hugo Pratt


Exército japonês na segunda guerra mundial (Hugo Pratt/Héctor Oesterheld, 1959): Mais de 10 anos antes de se celebrizar pela genial série Corto Maltese, o grande ilustrador e roteirista italiano Hugo Pratt esteve na Argentina e trabalhou anos com Oesterheld, o maior roteirista platino. Esta imagem é da série Earnie Pike, que está dentre os mais qualificados quadrinhos de guerra do mundo. Oesterheld tinha a fina qualidade de situar a segunda guerra em localidades tão díspares quanto o norte da África, o sul da Itália ou ilhas no Japão, elaborando a diversidade do conflito. Pratt, como se vê, em 1959 já desenvolvera seu traço angulado de belo riscado em preto-e-branco, num requadro panorâmico que deixa, sem que apareçam ideologismos, os japoneses tão assustadores quanto o papel que desempenham na história.

Liniers: um cara macanudo





















por Pedro Brandt

Macanudo, em espanhol, quer dizer supimpa, bacana. Ricardo Liniers, o cartunista argentino dono da tirinha de mesmo nome, é um cara pra lá de macanudo. Tive a oportunidade de perceber isso ao vivo, no mês passado, quando conheci o roteirista e desenhista em Brasília. Ele esteve na cidade para falar sobre seu trabalho em duas noites de palestra (29 e 30 de março) no Instituto Cervantes (que promoveu o evento).

Liniers, 37 anos, conquistou os espectadores com carisma e muito bom humor. No final do primeiro dia de palestra, me aproximei para pedir uns autógrafos. O ilustrador Fernando Lopes, meu colega de Correio Braziliense, perguntou se Liniers não teria interesse de fazer um passeio por Brasília na manhã seguinte, para conhecer alguns monumentos da cidade e visitar algumas exposições. Liniers aceitou no ato. Como eu não trabalharia na quarta de manhã, combinei de fazer o rolê com eles.




Passamos pelo Museu da República, Catedral, Esplanada dos Ministérios e Memorial JK. O argentino se impressionou com a arquitetura retro-futurista da capital brasileira. “O visual da cidade me lembra Sleeper”, ele comentou, em alusão ao filme de Woody Allen lançado em 1973 (O dorminhoco). Liniers é gente boníssima, daqueles caras com quem a conversa pode durar horas. Falamos especialmente sobre quadrinhos: autores brasileiros e argentinos, o mercado das HQs nos dois países, etc.

Depois do almoço, levei Liniers para a Cultura do Casa Park, onde cerca de 30 fãs já esperavam para conseguir desenhos, autógrafos e fazer fotos. Ele é o tipo de artista atencioso. Nas fotos, era só sorrisos. Mais do que simplesmente assinar os livros, fazia um desenho em cada um, um diferente do outro, sempre coloridos, caprichados.

Quem também estava na livraria na ocasião era o editor da Zarabatana, Cláudio Martini. Ele tem feito um trabalho elogiável, lançando títulos de qualidade autoral e com ótimo acabamento editorial. Além de Macanudo, a Zarabatana lançou recentemente outros dois materiais argentinos, a revista semestral Fierro Brasil (coletânea de histórias curtas de autores brasileiros e argentinos) e a Noturno, de Salvador Sanz, que está saindo pela Coleção Fierro.

Dois amigos que também estiveram nas palestra de Liniers comentaram a passagem dele por Brasília em seus blogs: o desenhista Caio Gomez e o desenhista/ roteirista/ roqueiro/ camelô Evandro “Esfolando” Viera. Depois da segunda noite de palestra (que eu não pude comparecer), os dois, mais alguns amigos, continuaram ciceroneando o cartunista argentino e o levaram para tomar umas cervas. Caio escreveu um breve relato do encontro. O Evandro foi mais longe, fez umas fotos e ainda uma HQ sobre o assunto. Liniers, cara macanudo que é, quando voltou para casa, agradeceu a recepção brasiliense com uma tirinha muito simpática sobre Brasília.

Cachalote: nossa própria Moby Dick


Por Ciro Inácio Marcondes

Sempre gostei da imagem da baleia cachalote. Ela nada em todos os oceanos e é a única baleia que chega a águas profundas, justificando seus lendários (mesmo que nunca propriamente documentados) combates com lulas gigantes abissais. A cachalote, com sua cabeça enorme e respeitável, é uma baleia dentada, e assombra nosso imaginário por ser também carnívora, ainda quem nem de longe se aproxime da agressividade das orcas, por exemplo. Mas é claro que a cachalote traz consigo um maior status cultural porque a mais famosa de todas as baleias – Moby Dick – é uma cachalote, e isso diz muito sobre esta impressionante e monumental graphic novel de Daniel Galera e Rafael Coutinho lançada em 2010. Em Moby Dick, uma inegável obra-prima da literatura americana e universal, o obcecado capitão Ahab passa, junto a um marujo chamado Ishmael, a vida tentando caçar a monstruosa baleia que lhe devorou a perna, sem receio de atravessar as raias da loucura para conseguir seu objetivo.


Cachalote pode ser considerado, de cara, um divisor de águas nas graphic novels nacionais, não porque nossa tradição em HQ não seja rica, mas sim porque nossa atenção com a arte dos quadrinhos sempre se voltou mais para as tiras ou histórias curtas. O trabalho de estreia nas HQs do escritor gaúcho Daniel Galera e de Rafael Coutinho (um desenhista fora do comum) organiza-se claramente, porém, como um projeto de grande estatura, com intenção de desvirginar este pequeno tabu nacional, e entregar ao público uma experiência megalítica e profunda. Vale, neste caso, a experiência literária e o diálogo com o cinema do escritor/roteirista, que acaba mencionando as outras formas de arte escrita/visual em Cachalote sem que esta seja uma pura viagem do melhor que a narrativa em quadrinhos pode oferecer.

A metáfora da baleia é conhecida e parodiada em todo canto, de X-Men a desenhos de qualidade duvidosa, mas raramente alcança sua densidade integral sem o acompanhamento da narrativa impressionista de Herman Melville. Moby Dick é uma travessia sombria pelas contingências da obsessão de um homem vista (e isso é essencial) pelos olhos de outro homem. De certa forma, Moby Dick nos fala sobre o ato de nos pegarmos acompanhando as buscas centrais das outras pessoas, tragados pelo universo alheio, caçando os cachalotes dos outros. Lembro-me de que meu irmão, num templo budista, descreveu a tentativa de se alcançar a meditação com a eficaz imagem daquele que tenta domar um elefante. Daí para pensarmos que a vida de cada um é uma busca por domar seu próprio paquiderme dos mares (o cachalote) e que, como Ishmael, pegamos carona nos paquidermes dos outros, é um passo simples e uma alegoria tão exata quanto angustiante.

É aqui que Galera e Coutinho nos aparecem como Ishmaels de acordo com suas próprias aptidões, usando a arte da HQ para contar cinco histórias paralelas – de angústias, incertezas e decisões a serem tomadas – que se cruzam apenas num tom factual: o cachalote pessoal que cada personagem precisa domar. Esse leitmotiv não é apenas a força propulsora desta HQ em si, mas também transmite a ideia de que nos valemos deste ato de domar, e que, como o playboy tentando empurrar a baleia no fim da história, jamais conseguimos nos livrar deste monstro interno: ele é constante, parte de nós, e nos resolvemos quando fechamos algum tipo de acordo com ele.

Vale, portanto, relacionar as histórias e a maneira com que este painel ao mesmo tempo narrativo e alegórico é construído em Cachalote. Daniel Galera enfilera cinco padrões de angústia: a de um ator chinês internacional entediado com a falta de sentido de sua vida e o suicídio de seu melhor amigo; a de um humilde atendente que ao mesmo tempo é um mestre da bondage erótica e se sente um objeto de sua principal amante; a de um escultor em crise com seu casamento e que resolve entrar num projeto tosco de cinema independente; a de um escritor depressivo que mantém amizade com sua ex-mulher, mas que não consegue superar o fim do relacionamento; e por fim a angústia de um jovem playboy arrogante e detestável, abandonado por todos, solto em uma peregrinação suicida pela Europa.

Triunfo inquestionável

Estas histórias, tão diferentes em suas meras sinopses, são compensadas no tom que os autores utilizam para erguer a HQ, sem letreiros, com franca alteração no valor e tamanho dos quadros, utilizando-se de grande quantidade de ângulos que valorizem a ação pictórica e a capacidade narrativa dos desenhos em si. O realismo fino de Rafael Coutinho, marcado por contrastes sensíveis e significativos de preto-e-branco, destila camadas narrativas, cria ambientes, demarca passagens de tempo, faz brotar sensações. Poucas vezes vi uma utilização tão refinada de tempos mortos, comuns no cinema, mas difíceis de se determinar com precisão em HQ: instâncias temporais imprecisas misturadas a estados psicológicos diluídos.

Soma-se a isso o talento de Galera para criar personagens de profundidade e detalhismo sem que pareçam forçados, valendo-se de diálogos naturais e surpreendentes, com inflexões robustas e filosóficas, inseridos cirurgicamente no esplendor gráfico de Rafael Coutinho. Cachalote é um triunfo, portanto, porque equaliza com honesto e dedicado trabalho artístico os componentes básicos que fundam a história em quadrinhos: a palavra, o espaço gráfico e o silêncio. Nesta HQ é possível que convivam, ao mesmo tempo, quatro páginas emulando as tomadas repetidas de uma filmagem cinematográfica com sutis (mas não desprezíveis) alterações, produzindo inusitado padrão de diálogo entre os dois meios; e também importantes painéis com requadros panorâmicos de página inteira, como pinturas inseridas no meio da HQ, de grande potencial expressivo e também narrativo – basta lembrar a página da troca de olhares entre o playboy na França e a namorada de seu conhecido, de forte impacto emocional e moral, anunciador do que acontecerá. 

Sem respostas fáceis ou didatismo, mas ao mesmo tempo puro em termos narrativos, Cachalote tem os ingredientes certos para uma grande obra artística. O que há de monstruoso nas buscas e escolhas destes personagens é o mesmo que há de humano neles, e é nesse sentido que uma arte visual e voyerística como as Histórias em Quadrinhos pode nos servir de substituto para o olhar meticuloso e observador de Ishmael sobre a busca de Ahab em Moby Dick: somos todos, aqui, testemunhas oculares desta peregrinação humana em direção a seus cachalotes, e o sentido desta busca, ainda que não vençamos esta baleia, não deixa de ser moral e existencial: morremos se deixamos de buscar. É por nadar nestas águas profundas que Cachalote está sendo recebido como obra-prima dos quadrinhos, e nos resta esperar que isso inspire novos trabalhos do mesmo nível.

Lobo solitário

por Ciro Inácio Marcondes  

É comum que se considere Spirit, publicação dos anos 40 e 50 de Will Eisner (especialmente a fase do pós-guerra) como um modelo de transvisualização do mapeamento visual e espacial e dos raccords propriamente cinematográficos para a linguagem dos quadrinhos. Não há como negar que Spirit, mais antigo e mais evidentemente vinculado a uma cultura pulp do que o gekigá Lobo Solitário, de Kojima e Koike, abre passagem para uma abordagem propriamente moderna nos quadrinhos. Porém, uma leitura cada vez mais progressiva da saga do ronin Itto Ogami e seu “filhote” Daigoro provocam uma impressão muito forte de espanto e paralisia; descoberta e incredulidade; regozijo e até mesmo horror diante de obra tão naturalmente requintada.

Lobo Solitário é uma longa série desenvolvida ao longo dos anos 70, e são muitos os fatores que a tornam objeto canônico indiscutível para a HQ mundial. Se Spirit investia em uma narrativa detalhista centrada na obliquidade da estilística noir, contrapondo planos tortos com hiper-closes e transformando os painéis das páginas em microlentes maleáveis de retardamento/aceleração do tempo e investigação do espaço, os roteiros de Koike, de maneira igualmente brilhante, partem para uma detalhadíssima segmentação do espaço em uma ordem não-narrativa, projetando-se para uma aclimatação de timing perfeito, traduzindo o tom de cada cena através do tamanho e investimento nos painéis. Isso nos deixa conscientes do sentimento do personagem, da movimentação dos ambientes, da temperatura em que estão situados, sem precisar o tempo, mas sem nos confundir, transformando o espaço da HQ em uma profusão de sentidos.

Esta abordagem, que se aproxima do cinema minimalista de Yasujiro Ozu, produz a indescritível sensação de conhecermos os sentimentos dos personagens sem que eles jamais tenham de verbalizar a respeito disso. Não é preciso dizer que este método sofisticado de representação tem implicações muito mais profundas do que a rasa técnica de simplesmente botar o personagem para dizer “eu te amo”, “me sinto mal”, “me sinto triste”, etc. Koike acaba produzindo, portanto, uma obra monumental de ação, mas de dimensão profundamente íntima. Duas histórias situadas no volume 7 lançado pela editora Panini são cabais para compreendermos este efeito simples e intenso de projeção/identificação.

Criança sem infância


Como Spirit, Lobo Solitário tem o (não pequeno) mérito de problematizar fortemente os personagens coadjuvantes, tornando seus dramas, inúmeras vezes, mais interessantes do que os dos protagonistas. A trama principal, como um leitmotiv que gosta de se ocultar e submergir sem que nos apercebamos, circunda uma história de vingança lentamente desenvolvida nos mais de 30 volumes da série. Entretanto, como na maioria das parábolas zen, é elaboração do caminho que produz a significação da obra. Itto Ogami em muitos momentos serve apenas como testemunho para o desenrolar dos mais diversos dramas humanos, e sua humanidade por vezes heróica pode ceder para a nobreza de outros que perecem antes/diante ou nas mãos dele. As histórias que voltam a perspectiva narrativa para o filho Daigoro potencializam em muito esta relação.

Neste volume 7 temos uma primeira história (“O caso do assassino”) em que Ogami está fora para uma missão e Daigoro, uma criança de 4 anos, está solto em uma pequena cidade que vive de extração madeireira. O aprendizado de Daigoro, conforme conferimos com admiração e espanto durante toda a série, é um lento caminho de resignado regime de autocontrole, uma ascese. O garoto precisa encontrar a maturidade no auge de sua incompreensão infantil, levado a decodificar um mundo hostil logo no alvorecer de sua vida. Em seu breve caminho, Daigoro testemunha massacres, aproxima-se da morte e chega a cometer assassinatos. Nesta história, presenciamos a criança num treinamento em perigosas toras de madeira flutuantes, contrastando com cenas de sua profunda solidão, expressada com poder sublime pelo lápis riscado e impressionista de Goseki Kojima. Daigoro fala muito pouco, e sua imagem solitária, sem amigos ou interlocutores, torna-se código na profunda relação do personagem com a própria condição, ao mesmo tempo intuitivamente sábia e naïve.

Tudo isso converte-se nas espantosas decisões morais da criança, que parece sempre nostálgica, porém ascética, quanto à sua condição de criança sem infância. Assim, sem temor, mas consciente de sua frágil existência, Daigoro testemunha o assassinato brutal de uma jovem nobre, revelando a verdade somente após intuitiva e segura ponderação. Esta relação, porém, intensifica-se na história “Código penal, artigo 79”, em que Daigoro, novamente só e aguardando o pai retornar de uma missão, acaba por acidente sendo acusado de furto. Neste caso, a ascese aproxima-se de uma forma animalesca e brutal, tipo de frieza aracnídea, derivada do contato com a absoluta rigidez disciplinar e moral no comportamento do pai. Presenciamos, em primeira instância, a tristeza profunda do menino para o qual o inofensivo universo da feira representa uma barreira intransponível. Kojima inteligentemente alterna letreiros, diálogos e as mais diversas disposições entre os quadros para trazer um Daigoro ao mesmo tempo disciplinado e melancólico. Porém, vítima da armação de uma simpática ladra, uma carteira roubada cai-lhe em mãos, e ele promete cumprir a missão. A partir daí, impressiona a resignação com que ele insiste em não denunciar a ladra e falhar em sua missão. “Era isso que a criança havia aprendido vendo seu pai trabalhar... mesmo sem saber diferenciar o bem do mal... Quando alguém lhe solicita um serviço, o verdadeiro matador cumpre sua missão até o fim...”.

Choca-nos observar repetidamente, exaustivamente, o semblante da criança ensimesmada, profundamente melancólica e resignada, negando-se insistentemente a delatar a ladra, mesmo após ela mesma declarar-se culpada. Vemos a criança ser humilhada e açoitada em praça pública pelas autoridades até que o espanto dos próprios algozes provoca a necessidade urgente de libertar o garoto e livrar-se daquele espírito antípoda e assustador justamente porque tão profundamente enraizado em suas solitárias convicções. Apenas entendemos esta ascese de Daigoro porque Kojima e Koike não poupam páginas em desdobrar a linguagem dos quadrinhos para nos revelar, quase sem diálogos, uma estranha essência humana que captamos pela ordem narrativa sensitiva das páginas de Lobo Solitário. Se Will Eisner usa a HQ como dínamo de múltiplas narrativas sobre a cidade, inaugurando um olhar complexo, a série japonesa fragmenta a perspectiva não tanto no sentido de aprimorar o ato de contar histórias, mas sim de olhar tanto e sob tantas medidas para um personagem, que ele será obrigado a olhar de volta para você. Assim, num passe mágica e encanto, o estado de contemplação da história se torna o nosso próprio,e os quadrinhos se tornam um tipo de mantra.

Xampu e um lado autoral: entrevista com Roger Cruz


Por Pedro Brandt

Folheei uma, duas vezes e nada. Procurei então no índice e fui direto na página. Eu já sabia que o Roger Cruz participaria daquela edição da Metal Pesado e estava ansioso para conferir o resultado – eu era fã do cara, tinha um monte de revistas desenhadas por ele. Logo entendi porque eu não tinha achado a história antes. O Roger ali não era o que eu estava acostumado, o desenhista de comics, mas o Roger autor (RO.C.K.), com um traço bem diferente de todos os que eu já tinha visto ele usar até aquele longínquo 1997. Adorei a HQ! Xampu era o nome. Me identifiquei demais com aquela história de sexo, birita e rock’n’roll – tanto que xeroquei as três páginas da HQ e usei como capa e contracapa do meu fichário de colégio (que foi comigo, guerreiro, até o fim da faculdade). Pouco depois eu li em algum lugar que aquela era uma história de várias que o Roger gostaria de contar. A espera para ler as outras histórias do universo Xampu demorou 13 anos. Em seu blog, o desenhista dava pequenas amostras do trabalho.

Em maio do ano passado, Xampu - Lovely Losers foi lançada pela Devir. A minha ansiedade para conferir a obra foi tão grande quanto aquela de 13 anos atrás. E a minha satisfação ao terminar de ler todo o álbum, comparativamente, foi a mesma da adolescência.

Depois de anos de espera, Roger me provou o talento que eu sempre soube que ele tinha – e que eu acho que não aparecia mais em sua produção para a Marvel havia anos. Em Xampu temos um Roger renovado, criativo, em plena forma tanto como narrador gráfico quanto como contador de história.

Entrevistei o desenhista paulistano por e-mail em junho de 2010. A nossa conversa segue abaixo.
Quando e por que você decidiu que tinha chegado a hora para fazer a HQ?


Isso ocorreu no ano passado, em 2009. Já há alguns anos não sentia o mesmo prazer em desenhar comics por uma série de motivos.
O fato é que hoje eu entendo bem a decisão de alguns amigos que pararam de desenhar para as editoras americanas.

Xampu sempre esteve nos meus planos mas o volume de trabalho para a Marvel inviabilizava qualquer investida no projeto porque pretendia usar outro estilo no título.


E não é fácil fazer uma página de comics de manhã e “virar uma chave” para fazer algo completamente diferente à tarde.
A única opção foi pedir férias por tempo indeterminado na Marvel. 
Isso me deu tempo para amadurecer uma identidade visual para o Xampu.
Nos últimos cinco ou seis anos, entre uma edição de X-Men e outra, tentei finalizar o livro diversas vezes. E sempre que voltava para uma página do Xampu percebia que o traço não fluia como eu queria.
Nessas férias da Marvel consegui produzir o livro de um fôlego só. O que conferiu a unidade que eu buscava desde o início.


Os outros dois volumes já estão prontos? Pode dar uma prévia de como continuam as histórias? Elas terão os mesmos personagens? Quando serão publicadas?


Ainda não. Tenho roteiros escritos para mais ou menos 50 páginas de HQ. O que ainda é bem pouco. Mas pretendo intercalar as próximas edições do Xampu com as edições de Gutigutz.

Alguns personagens deste livro ainda estarão nos próximos mas não serão o foco. As épocas serão outras também. O que signifca que o pano de fundo musical não será tão relevante.


E a Gutigutz, tem previsão de publicação?


Espero terminar o primeiro livro ainda neste ano. Mas, no momento, estou me dedicando a outro projeto pessoal mais urgente e que, por enquanto, não posso divulgar.

Ainda assim, pretendo cumprir o prazo que estabeleci para as Gutigutz. Estou fazendo o mesmo que fiz com Xampu – estabelecendo um prazo. Nem mesmo tentei elaborar uma linguagem que soasse universal para que se adequasse também a mercados no exterior.

Penso que o livro não funcionaria para mim se tivesse isso em mente.

Mas algumas pessoas já me sugeriram apresentar o Xampu para outros mercados. Se houver interesse, será ótimo também.





Você cita várias bandas de rock ao longo da HQ, desde o som mais pesado, que está claro que é a preferência musical dos personagens, até o rock clássico, punk rock, new wave, indie rock, bandas alternativas brasileiras dos anos 80, brega, etc. Imagino que tudo isso seja um reflexo do seu gosto musical. Ou você inseriu algumas dessas bandas para dar mais personalidade aos personagens? Quais eram as suas bandas favoritas naquela época? Você costumava ir nos shows das bandas de SP na época? E hoje, você ainda curte rock? Quais bandas você tem ouvido atualmente?

Eu optei por não deixar clara a distinção entre realidade e ficção, mas esse era realmente o meu gosto musical.
Ainda gosto de muitas dessas bandas. Outras, ouvindo hoje, não gosto mais. Acontece.
Nesta fase da vida, o gosto musical define quem você é no grupo ou na tribo da qual faz parte. 
Conheci pessoas com “bom gosto musical” e que também gostavam de sons de “gosto duvidoso”. E, no final, a quem importa se você gosta disso ou daquilo, não é?
Mas olhando de perto, as urgências dos personagens são outras e a música é apenas o pano de fundo nas histórias.
Na época, as minhas preferências eram quase as mesmas de todos. Gostava de Iron Maiden, Metallica, Rush, Led Zeppelin, Ramones, Violeta de Outono, Slayer, Megadeth, etc. Mas gostava muito de bandas com bons bateristas porque tinha uma bateria e me arriscava com as baquetas.
A investida na carreira de baterista não durou muito, felizmente.
Eu não era um grande frequentador de shows mas fui em alguns. New Model Army, Ramones, quinto dia do Rock in Rio 2, Ratos de Porão, alguns que não me lembro e outros que prefiro esquecer.
Ainda gosto de rock e metal mas realmente ouço de tudo um pouco e, às vezes, por pouco tempo. Estou sempre desatualizado com relação a tudo. Música, quadrinhos, cinema, etc. 
Até prefiro assim. Não sinto tanta necessidade de ficar “antenado”, essa correria para ficar por dentro de tudo.
Acho que o ritmo de trabalho dos últimos 10 anos me fez desejar uma rotina cada vez mais lenta, longe de pressões e urgências.


Na Xampu original eram perceptíveis as influências de Laerte, Love & Rockets, Crepúsculo (do Pascal Ferry – que, aliás, ganhou citação na nova Xampu), por exemplo. No novo traço da história, arrisco dizer que Mutarelli, Paul Pope (e os gêmeos Bá e Moon, na condução da história) foram algumas das suas influências. Quem mais você diria que serviu de inspiração/ influência?


Laerte, Love & Rockets e Crepúsculo (HQ do Pascal Ferry!) foram influências importantes na época em que comecei a fazer HQs autorais antes de entrar para o mercado de comics nos EUA. Certamente me influenciaram na primeira HQ de 97. 

Mutarelli também foi influência em uma HQ específica publicada na extinta revista Mil Perigos.
Pope e os gêmeos são grandes artistas mas nunca os tive como influência. Na verdade, tudo o que eu não queria no Xampu era ser influenciado por algum trabalho.
Tentei deixar o lápis correr solto, sem construções de anatomia e perspectiva. Finalizei intencionalmente com as ferramentas com a quais estou menos acostumado – bico de pena e penas caligráficas para as áreas de preto.
Uma tentativa de me afastar do desenho muito mecânico e estruturado que faço para comics.
A intenção era que as figuras parecessem lembranças disformes e sem nitidez daquela época.







Quais foram os desafios da produção de Xampu?

O prazo foi o maior desafio. 
Fiz uma reserva financeira prevendo quatro meses de produção do álbum. 
Não seria possível produzir as páginas, tratar as imagens, letrerar e fechar os arquivos digitais se eu estivesse produzindo regularmente para a Marvel.
Penso que este é o maior desafio para quem pretende tocar um projeto pessoal. 
Conheço muitos artistas com excelentes idéias que não podem se dedicar a elas porque precisam antes garantir seus salários.
Além disso, se dedicar a um projeto pessoal é trocar o certo pelo duvidoso.
Você não recebe para produzir, você não sabe se alguém vai comprar a sua idéia e você não sabe se vai vender.
É um tiro no escuro mesmo.






E como a Devir entrou nessa história?

O Leandro, que foi o editor no Xampu, sempre foi um dos grandes incentivadores do projeto.
Desde a época da editora Pandora ele me dizia que eu precisava fazer um álbum do Xampu
E toda vez que nos encontrávamos ele me dizia isso. 
Por esse motivo, a Devir foi a primeira e única editora que procurei para oferecer o projeto. Queria mesmo que o Leandro estivesse envolvido.
E quando finalmente apresentei um preview para a Devir, o Douglas aceitou publicar na hora. 
A partir desse ponto, cabia a mim produzir o restante do álbum.


Você comenta no álbum que as outras histórias foram criadas na época da primeira. Você manteve os textos/ enredos intactos desde lá? Para você, quais são os desafios de criar também os textos de uma HQ?


Sim. Escrevi os outros roteiros na mesma época. Entre 1997 e 1999, mais ou menos. Fiz algumas mudança para atualizar ou reforçar certos pontos de vista ou para mudar desfechos de situações. Sempre fui fã de autores confessionais como Charles Bukowski, Angeli e Henry Miller por se posicionarem abertamente. Foi algo que tentei nesse álbum.



O personagem Max é bem parecido (fisicamente, pelo menos) contigo. O quanto das situações apresentadas na HQ são vivências suas? Todas as histórias têm um quê de autobiográficas ou você também se valeu da ficção para criá-las?


Algumas pessoas já me disseram isso. Que me pareço com o Max ou vice-versa.
Será? (risos) Combinei vivências minhas com muita ficção. O Sombra, por exemplo, é um mix das características de um amigo de escola que tinha o apelido de Sombra com Paul Stanley do Kiss e Slash do Guns n Roses. Sobre o caminho que cada personagem segue na história, não tive nada a ver com isso. Não escrevi nenhuma delas com idéias prontas de começo, meio e fim. Tentei durante o processo de criação fazer o exercício de acompanhar os personagens sem julgar ou direcionar escolhas.




O seu contrato com a Marvel vai até quando? O que pode adiantar sobre os seus próximos trabalhos para o mercado gringo?

O contrato é de exclusividade e por tempo ou edições. Ainda me resta um ano ou 12 edições. 
Não pretendo renovar o contrato. 
Se eu continuar com o trabalho no mercado americano, prefiro ficar livre para escolher o que vou fazer.



Você acha possível viver de HQs autorais no Brasil? Vislumbra isso para você no futuro? Além de Xampu e Gutituzt você tem outros trabalhos autorais?


Só de HQs autorais? Não mesmo. Não no Brasil.
E aí vem a pergunta: “Então por que fazer?”
Porque através da HQs posso realizar idéias com texto e desenhos.
Posso fazer isso em casa e escolher meu horário de trabalho.
Com certeza eu receberia um salário melhor se tivesse continuado a trabalhar com agências de publicidade mas não teria a mesma qualidade de vida.
Não espero que as HQs autorais sejam a minha fonte de renda. Seria uma grande surpresa se isso acontecesse.Além de Xampu e Gutigutz tenho outros projetos. Nem todos são HQs. Em breve, poderei dar mais detalhes.




Em entrevista em evento na Quanta Academia de arte em 2007, Roger ainda tinha planos duradouros com os comics: