Mundos de Aldebaran: dainbaía de hâmbrios

A história de vida do amigo Marcos Maciel de Almeida se confunde com a história dos quadrinhos em Brasília. Ávido leitor de comics, este fã de Beatles, Monstro do Pântano e Warriors – Os selvagens da Noite foi fundador, junto com Nonato Natinho, da Kingdom Comics, primeira loja especializada em quadrinhos da capital brasileira. Marcos foi sócio da Kingdom até 2007, quando vendeu sua parte no negócio. A paixão pelos quadrinhos, entretanto, nunca diminuiu. Apresentei Aldebaran para o Marcos como uma das séries mais impressionantes que eu li recentemente. Ele foi atrás da obra, leu e teve a mesma percepção sobre a HQ. Aproveitei o entusiasmo do Marcos e perguntei se ele gostaria de escrever suas impressões sobre Aldebaran. O texto – esperamos que o primeiro de muitos – segue abaixo. (PB)

por Marcos Maciel de Almeida

Dinbaía de Hâmbrios: essa estranha expressão me veio durante um sonho. Não consta nos dicionários. Apesar disso, não consigo deixar de pensar que teria algum significado para mim. É como se já tivesse esquecido o que é, ou talvez seja algo que ainda conhecerei no futuro.Usei esse exemplo para tentar explicar a sensação de familiar estranhamento que a leitura de Mundos de Aldebaran causou em mim. A HQ, escrita e desenhada pelo brasileiro Luiz Eduardo de Oliveira – mais conhecido pelo acrônimo LEO – já é publicada desde 1994 no mercado franco-belga.

Mais que uma história de ficção, o carioca LEO lançou as bases de um novo futuro para humanidade, que enfim logrou colonizar outros planetas. Em um deles, Aldebaran, os colonos foram deixados à própria sorte. Os terráqueos nunca mais retornaram a essa parte do universo, e, por essa razão, os habitantes não tiveram outra alternativa senão caminhar sozinhos.

Nessa HQ singular, os personagens são o pano de fundo para o cenário, e não o contrário. OK, Marc e Kim são dois bons protagonistas, mas parecem coadjuvantes para a geografia e a fauna dos mundos dessa nova realidade. Sobreviventes de uma vila destruída pela Mantrisse – criatura misteriosa cujas aparições servem como fio condutor da saga – a dupla tem uma química interessante, mas que parece ter sido criada somente para permitir o desenrolar de situações que, gradualmente, desvendam os mundos exóticos construídos por LEO. Em busca de respostas para sua catástrofe pessoal, Marc e Kim acabam conhecendo diversas pessoas que também tiveram suas vidas afetadas pela Mantrisse, numa investigação que os levará a outros planetas e a se deparar com seres e provações tão bizarros quanto incomuns.

A primeira aparição da Mantrisse foi bastante traumática para Marc e Kim, habitantes da vila de Arena Blanca em Aldebaran. A cidade natal da dupla foi erradicada após a passagem da criatura. Nada permaneceu de pé, e eles só conseguiram escapar com a roupa do corpo. Familiares e amigos também não foram poupados da onda de destruição. Esse foi o preço pago pelo fato de os habitantes não terem ouvido Driss, forasteiro que os tinha avisado do perigo que se aproximava. Os raros sobreviventes da catástrofe pouco a pouco se encontram, e descobrem que Driss é um homem procurado pelas autoridades de Aldebaran, planeta marcado pelo autoritarismo de líderes religiosos prontos a eliminar qualquer ameaça ao status quo. Outra personagem de destaque, ligada a Driss, é Alexa, que também tem um passado em comum com a Mantrisse. Gradualmente, o autor revela a conexão de ambos com a criatura, a partir de um encontro que mudaria para sempre seus destinos.

O contato de Marc e Kim com Driss os torna procurados pela lei, já que esse último é um fator de instabilidade para o governo, que não consegue compreender e tampouco controlar sua agenda. A baixa cooperação da dupla com as autoridades faz com que eles sejam presos. A precariedade da situação os torna mais suscetíveis a fazer alianças arriscadas, com personagens de índole duvidosa, como o velho Pad, cujo auxílio nunca vem de modo gratuito. Esse personagem mostra-se um mestre da manipulação, sempre hábil a encaminhar as circunstâncias para obter benefício próprio. Sem grandes alternativas, Marc e Kim são compelidos a seguir a orientações de Pad, o que nem sempre se revela uma boa decisão.

Com o passar do tempo, Marc e Kim conseguem reunir um grupo de pessoas interessadas no mistério da Mantrisse. Ou talvez tenha sido a Mantrisse quem os selecionou para seus propósitos secretos. O fato é que todos ficarão cara a cara com a indecifrável criatura, num encontro que marcará o conflito final com os líderes de Aldebaran e trará consequências radicais para cada um dos participantes. Esses fatos marcam o desfecho do primeiro ciclo da história.

O grande mérito de LEO é não economizar na criatividade. Sim, os mundos de Aldebaran são bastante semelhantes à Terra, mas quando o autor decide mostrar a fauna e a vegetação alienígenas, a imaginação viaja longe. Os seres dos outros planetas parecem estranhos não por sua aparência, mas pela autenticidade que parecem transmitir. Assim, pode-se dizer que seriam espécies menos extra-terrestres que comuns, talvez até menos ficcionais que reais. Quem pode dizer em que formas evoluiriam os animais de nosso planeta diante de outras necessidades de adaptação? Talvez essa seja a explicação para a sensação de familiaridade/estranhamento com as criaturas de Aldebaran: perceber que elas poderiam estar aqui em nosso plano de existência, não fossem os desígnios secretos da natureza.

Os cenários também são de tirar o fôlego. Partindo de soluções aparentemente simples, LEO cria uma ambientação inovadora, que inclui despenhadeiros verdejantes no deserto, oceanos gelatinosos e pântanos habitados por seres terríveis. O senso de composição nunca parece exagerado ou inverossímil. É uma realidade coesa e espontânea, que independe de quaisquer outros universos exteriores, como o nosso.

Quanto às ilustrações, LEO revela-se um desenhista apenas regular, que carece de estilo e marcas pessoais. Entretanto, essa deficiência é compensada por sua grande habilidade em criar seres únicos, que poderiam habitar paraísos ou pesadelos. Sua originalidade é decorrente da capacidade de produzir figuras pouco convencionais, como gorilas aquáticos, répteis humanoides e vegetais flutuantes, muitas vezes revestidos por cores inesperadas, o que confere um clima bastante lisérgico ao universo criado. Seu domínio da figura humana é inquestionável, como comprovam as inúmeras cenas de sexo que permeiam a trama.

Um dos pontos altos da narrativa são as pitadas de suspense habilmente despejadas. Aos poucos os leitores vão depositando maior confiança no autor, já que ele entrega o que dele se espera. As migalhas de mistérios são gradualmente solucionadas e prontamente substituídas por outras, para que nosso apetite não seja saciado. Aqui não há espaço para embromações ou cenas desnecessárias. A história já está pronta, bastando degustá-la. Não há o temor de que surgirão soluções previsíveis ou meros tapa buracos. O autor tem algo a contar e vai fazê-lo a seu modo, porque está seguro da qualidade do enredo. Isso não quer dizer que a história não se permita surpresas ou reviravoltas, pelo contrário. O inesperado está ali, na esquina, pronto para derrubar nossas convicções. 

Com 18 álbuns já lançados no mercado franco-belga, pela Editora Dargaud, Aldebaran teve 10 histórias publicadas em 5 edições duplas no Brasil pela Panini, entre 2006 e 2007. Se puder, não hesite em mergulhar nessa dainbaía de hâmbrios. Serão águas não navegadas, mas insolitamente conhecidas.

A iniciativa ENQUADRINHOS

Novidade nos bancos de poeira do planalto central! Eu já venho dizendo que algo acontece na química que constrói os quadrinistas do Distrito Federal. Por aqui, paredes dos túneis das tesourinhas e passarelas por debaixo do eixão são encantadas e coloridas por pôsteres, lambe-lambes, ilustrações, grafites e stencil com poesia vagabunda. Bem ou mal, a linguagem gráfica ganha cada vez mais adeptos e os quadrinhos, enquanto forma de comunicação mais versátil e modelável do séc. 21, se inscrevem como mais uma forma de identidade da nossa jovem capital.

Pois eis que uma inciativa do grupo GIBI (que meigo), integrado por estudantes de pós-graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (incluindo o professor Lima Neto, membro da RAIO LASER), formalizou a criação de um evento que dá um passo além tanto na formulação teórica e científica quanto na criação artística em quadrinhos no território brasileiro. Trata-se do ENQUADRINHOS - 1° ENCONTRO DE QUADRINHOS DE BRASÍLIA (16 a 18 de setembro de 2015). Diferentemente de outros eventos semelhantes que também ajudam a consolidar o estudo dos quadrinhos como campo acadêmico, o Enquadrinhos, despojado, vai se focar em um formato mais breve (o pôster) e apostar no mérito de dar oportunidades iguais de apresentação tanto para o pesquisador quanto para o artista: existem as modalidades de inscrição "acadêmica" e "artística". 

Além dos trabalhos, divididos em quatro abrangentes eixos temáticos, o Encontro contará com quatro pauladas em forma de palestras, realizadas por gente de calibre tanto em produção acadêmica, quanto em editoração, quanto em realização artística: Paulo Ramos, Edgar Silveira Franco, Henrique Magalhães e Rafael Coutinho. Tudo isso ajuda a se pensar uma confluência dialógica entre artistas, pesquisadores e editores, elaborando a única sinergia possível para a continuidade e ampliação do movimento vibrante que ocorre com os quadrinhos no Brasil atualmente, mas que corre (sempre) o risco de morrer na praia graças à marginalização que o meio sofreu em todas as suas áreas de atuação desde... bem, desde sempre.

É hora de consolidar o grande momento dos quadrinhos no Brasil. Não apenas com uma morosa institucionalização e legitimação técnica e intelectual, mas sim com pensamento vigoroso, transformador, capaz de entender e modelar os processos que este meio de comunicação e arte move na sociedade. E isso não é possível sem que mercado, academia e os próprios artistas pensem conjuntamente. É o que o Encontro está propondo. Artista ou pesquisador, vai lá e se inscreve sem medo! É até 13 de julho. (CIM)

NORMAS PARA ELABORAÇÃO DE POSTER

1 – O EnQuadrinhos receberá resumos de trabalhos acadêmicos e projetos de produção em quadrinhos de inscritos ligados ao ensino superior. Os resumos aprovados serão transformados em posters para exibição durante o evento e se dividirão em duas categorias: Poster acadêmico e pôster artístico.

2 - Para que o pôster proposto aprovado seja apresentado é obrigatória a inscrição formal do autor, ou um dos co-autores no site do evento: www.enquadrinhos.net.br

3 - Cada poster poderá ter 01(um) autor principal e até 02 (dois) co-autores;

4 - Os resumos aprovados deverão ser adaptados para o formato de pôster e enviados para confecção até a data prevista (conferir nos informativos do site). O pôster impresso deve ser apresentado ao público por, no mínimo, um de seus responsáveis em um horário pré-determinado para apreciação geral e avaliação por parte da comissão científica;

5 - É obrigatório que o autor responsável pela inscrição forneça os seguintes dados: Título do Trabalho e nome de todos os autores com seus respectivos vínculos institucionais. Importante - Esses dados serão utilizados para confecção do certificado. O preenchimento incorreto é de inteira responsabilidade dos autores, e não implicará em troca de certificados posteriormente;

6- Prazo para sumissão de resumos: impreterivelmente até dia …, através do site www.enquadrinhos.net.br;

7 - Os posters devem obedecer as medidas de 120cm de altura e 80cm de largura, ou seja, obedecendo a orientação de retrato. Deverão estar expostos com clareza no poster: título, autores e instituição de origem na parte superior com o logotipo da respectiva instituição;

8 – O arquivo digital do pôster deve ser enviado no formato PDF atentando para o gerenciamento das cores em CMYK (cores para impressão);

9 - Abaixo do título e da identificação deve constar, em letra de tamanho inferior à utilizada no texto, a forma de contato com os autores;

10 - A área de apresentação deve conter as informações referentes aos objetivos da pesquisa, processo metodológico, corpo da pesquisa, discussão e referências bibliográficas (no caso de poster científico);

11- Deverá ser reservado 15 cm de altura na parte inferior do poster onde será colocada a identificação do Encontro (logotipo do encontro e das agências de fomento participantes assim como os apoiadores privados);

12 - Cada trabalho exposto receberá um certificado.

13 - Os certificados estarão disponíveis no site do evento em data que ainda será determinada.

Teia de aranha em quadrinhos

por Ciro I. Marcondes*

Uma casa de madeira junto a um farol na praia. Um homem tremendo, em aparente estado de intensa angústia e sofrimento, espera na porta. Uma bela mulher nua o observa da janela. O homem fuma, cospe sangue, o mar bravio se agita. Ele segue neste estado tremeluzente, elétrico, impassível. Um carro sai pela enseada. Uma história de pesadelo tem início. Quem são este homem e esta mulher? O que significam estas cenas? A que tipo de interioridade se conectam? De que inconsciente óptico fazem parte?

Estas imagens fazem parte do começo de Torpor, que o pernambucano Mateus Acioli lançou em 2014 pelo selo Narval para a coleção “Franca”, que é uma espécie de carta branca para os quadrinistas mais talentosos desta geração independente expressarem sua intimidade artística, suas ideias mais livres e radicais. São imagens que anunciam um submundo onírico e oblíquo, de difícil penetração, mas de acesso livre a um fluxo de impressões fortes, revisitando os universos selvagens do sexo e do torpor da vida e da morte. Trata-se de uma história silenciosa e carregada de uma iconografia que varia entre a psicanálise e o ocultismo, sempre com uma ação desconfortável na mente.

A primeira impressão que temos ao nos depararmos com os quadrinhos de Acioly é a de um certo desdém. O nosso, pela frouxidão da narrativa, pelas lacunares arestas abertas, que parecem, de início, um recurso fácil; e o dele, pelo “desleixo” no desenho, bastante simples, minimalista, onde até o traçado dos requadros é tremido e irregular. Avançando em leituras e releituras desta obra cíclica e infernal, percebemos, porém, que esta impressão é um erro. É como acontece com outros quadrinistas de estilo elementar, como Rafael Coutinho ou o francês Johann Sfar: estes quadrinhos estão em função de um olho arquetípico. Não são nem narração, nem documento e nem poesia, mas são todos ao mesmo tempo.

A escolha por uma obra quase inteiramente silenciosa não é por acaso. A jornada de um homem em direção ao segredo do seu desejo e, por fim, à experiência da morte, necessita de um arrojo que as palavras não comportam – a não ser que estejam em estado de poesia, quando aparecem aqui –, e a imagem crua e selvagem, sem referente, aparece como uma solução. Ela liga o torpor febril do protagonista à linguagem do sonho, e a associação livre, por meio da metamorfose destas imagens, se mescla a uma grande variedade de propostas para as páginas e os quadros. O resultado é um mapa de signos de morte e desejo que se apropriam do homem em seu estado limítrofe. Imagens da natureza se mesclam a estes signos para trazer também um sentido fugidio, profano e espectral para a figura feminina, não muito longe do que Lars Von Trier fez em Anticristo.

Através de uma rica cena da experiência de quase-morte, potente como uma martelada, somos definitivamente abatidos por esta história em quadrinhos sintética e intensa. Ela enfim nos domina com seu impressionismo cheio de sinestesias, e qualquer desconfiança inicial se dissipa. As imagens finais (um sino rachado, uma caveira com pinos, um salto feminino), o que significam? Mais do que elaborar um discurso para os personagens, elas cumprem bem a função de hipnotizar e deixar em estado de torpor também o leitor. Em transe, automaticamente recapitulamos os signos do início, reabrimos a revista, voltamos reiteradamente a este entrelugar que a obra nos coloca. Um triunfo milimetricamente calculado, uma teia de aranha em quadrinhos paranoicos. Sejamos vítimas dela. 

*Publicado originalmente no jornal Suplemento

Nº 03 

A Era Hiboriana de Conan e suas Nações

É com satisfação que trazemos mais um colaborador aqui para as fileiras da Raio Laser. Marco Collares vem da área da História e contribui com um texto nada menos que excelente sobre os fundamentos historiográficos da Era Hiboriana de Robert E. Howard (ou seja; CONAN). É um texto que vai além do óbvio e que nos mostra as sutilezas com que a contemporaneidade se infiltra nos discursos de ficção histórica. Quanto ao Marco, deixo ele mesmo se apresentar. Obrigado Marco. (CIM)

Sou professor de história no RS, formado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e mestre em história e cultura política pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Franca/SP. Me especializei em história antiga, mais especificamente em Império Romano, estudando autores latinos do porte de Cícero, César, Tito Lívio, Salústio, etc. Meu gosto pela história antiga é da juventude, da época em que acompanhava de perto as HQs e outras mídias (agora é uma paixão mais esporádica e seleta, mas acompanho boas estórias, e quando falo em outras mídias, falo de cinema, games, RPGs, séries televisivas, animes, etc).

por Marco Collares

Um tema bastante interessante diz respeito aos chamados "usos do passado", mais especificamente, a forma como as sociedades de outros tempos e lugares são representadas no contexto presente, ou melhor, em algum contexto mais contemporâneo, com toda a carga ideológica, conceitual e temática inerentes ao ambiente sócio histórico, político e cultural do referido contexto. Como bem afirmado pelo historiador medievalista da Escola dos Annales, Marc Bloch: "o passado em si não é o objeto do historiador, mas sim a importância do presente para a compreensão do passado e vice versa".

Isso significa que quaisquer fontes, documentos e textos, quaisquer conjunto de enunciados, quaisquer obras da literatura, ou mesmo quaisquer artefatos culturais de naturezas diversas (sejam tais artefatos iconográficos, gráficos ou materiais) que tratam de algum passado, seja histórico ou munido de traços históricos, todos esses documentos dispõem de signos, significantes e significados inerentes ao contexto presente de consecução dos mesmos.

Nesse ponto estamos próximos daquela arrebatadora verdade acerca das obras do Aedo Homero, a Ilíada e a Odisseia. Que verdade seria essa? Ora, os poemas narravam eventos em torno da Guerra de Troia e depois desses eventos, narravam sobre o retorno de um de seus heróis, Odisseu (Ulisses em latim) para sua terra natal, a Ilha de Ítaca, tratando-se assim de eventos que teriam ocorrido por volta do ano 1200 A.C, no final do chamado Período Minoico-Micênico da história grega. Porém, quase todas as questões sobre os conhecidos poemas não circunda somente na enfadonha Questão Homérica de definição da real autoria dos poemas, mas sim no fato de que o poeta (ou poetas, segundo alguns autores) colocou diversos traços de sua própria época histórica no passado retratado, traços históricos de um período posterior chamado de Período Homérico da Grécia Antiga (e o nome “Período Homérico” não se deve a esse fato?), com elementos culturais, políticos e sociais desse período.

O que depreendemos dessa verdade? Que os brilhantes estudos de historiadores renomados do porte de Jean-Pierre Vernant ou de Pierre Vidal-Naquet sobre o Período Homérico não deixam de lidar com os supracitados "usos do passado", visto que eles procuraram compreender, entre tantas outras coisas interessantes, quais são os elementos históricos do período de compilação e difusão do corpus homérico, quais são os aspectos sociais, políticos e culturais do mundo do autor da obra e os que foram inscritos e misturados, conscientemente ou não, ao passado mítico narrado pelo poeta.

Não se pode deixar de mencionar, claro, que grande parte desse processo ocorreu devido aos aspectos inerentes do que se costuma denominar de tradição oral, tradição essa que usualmente transforma completamente os eventos narrados oralmente, devido às contínuas recitações de poemas e narrativas proferidas de "boca em boca". Em outras palavras: o anacronismo é inerente quando se repassa um fato oralmente, pois cada um conta uma história diferente da original.

É nesse sentido que trato o tema do título deste post, "A Era Hiboriana, de Conan e suas Nações". Isso porque o criador da personagem Conan, da Ciméria, o escritor pulp texano Robert E. Howard, não criou somente um personagem isolado. Ele consolidou igualmente todo um gênero literário e narrativo denominado de Sword and Sorcery (Espada e Feitiçaria), gênero que se difundiu sobremaneira no século XX e que atrai milhões de pessoas aos cinemas no mundo inteiro, com filmes do porte de O Senhor dos Anéis.

Howard criou, para além de tudo isso, um verdadeiro "mundo meta-histórico", ou seja, uma era ficcional com elementos de nosso mundo histórico chamado por ele de Era Hiboriana. Seria na verdade uma espécie de Era Histórica anterior ao nosso período Neolítico da Pré-História, onde haveria um conjunto diversificado e complexo de civilizações e sociedades que, segundo a própria mitologia criada pelo texano, teriam sido destruídas em um grande cataclisma, evento esse que teria sido o marco inicial da história cronológica da humanidade como a conhecemos, munida de sua evolução linear convencional comumente difundida em livros de história e, principalmente, em livros didáticos.

O que chama a atenção, no entanto, é que Howard se utilizou de elementos culturais, políticos, religiosos e sociais de civilizações históricas conhecidas, tanto as ditas civilizações do chamado “Mundo Antigo” quanto as sociedades estruturadas na “Idade Média Europeia” e até oriental, em uma espécie de miscelânea de povos e culturas, com representações de povos que apresentam semelhanças com os gregos e romanos antigos, com os mongóis do medievo, com os árabes e europeus do medievo, os japoneses, os chineses e os egípcios antigos, os persas, os mesopotâmicos, os eslavos, normandos, os magiares e tantos outros.

A Era Hiboriana seria assim uma espécie de “Era de Pré-Civilizações Históricas”, datada mais ou menos em 10.000 A.C, uma espécie de "contexto histórico-ficcional" de diversos povos e culturas que, segundo Howard, teriam sido destruídas e apagadas da memória da história convencional em meio a um fenômeno climático, ainda que tais povos tivessem traços daquelas culturas e civilizações que viriam a surgir a posteriori. Se parece confuso, bem, isso é apenas o começo. Isso porque a Era Hiboriana seria um passado semiesquecido de nossa própria memória histórica, um passado com características das civilizações que viriam a se organizar posteriormente e que, para nós, contemporâneos do século XXI, estão inseridas na chamada História Antiga e Medieval, segundo os matizes convencionais da disciplina da história.

O próprio Howard, em meados da década de 1930, escreveu que seu objetivo de montar e explicar os povos dessa era criada por ele seria o de conceber uma conotação mais realista para as aventuras de Conan, como que um pano de fundo ficcional para uma série de narrativas que teriam uma base realista em termos culturais, comportamentais, sociais e até políticos. Assim, a Era Hiboriana seria como que um parâmetro para as narrativas ficcionais de Conan, sendo que Howard se comprometia a seguir fielmente esse parâmetro previamente concebido por ele, tal como o faria qualquer escritor de um romance histórico em relação à "história convencional" das civilizações históricas. Reinos, civilizações, impérios e nações ficcionais surgiram então nas linhas de Conan, bem como um mapa histórico-geográfico dos continentes da África, Ásia e Europa, unidos em uma espécie de Pangeia, onde estariam inseridos todos esses reinos, nações e civilizações baseadas em elementos mesclados de sociedades da antiguidade e do medievo.

A famosa Aquilônia, onde Conan se tornaria rei ao final de sua trajetória, seria culturalmente e politicamente uma mescla entre o Império Carolíngio com o Império Romano Germanizado dos séculos IV e V D.C. A Ciméria, terra natal do bárbaro, equivaleria a uma Inglaterra Celta com suas tribos bretãs ainda não "civilizadas", ou seja, pré-romanas, enquanto que a Coríntia seria o amálgama ficcional da civilização grega clássica do século V A.C. A Nemédia, por sua vez, apareceria como que uma versão suis generis do Sacro Império Romano Germânico do medievo. A Stygia seria quase que o espelho distorcido do Egito Antigo faraônico, misturado ao período pré-dinástico, ficando a Hiperbórea como o reflexo ainda mais bizarro da Rússia czarista misturada a um totalitarismo soviético anacrônico (ainda que não anacrônico em relação aos anos de consecução da narrativa de Howard), enquanto Khitai apareceria como a China de Marco Polo e Shem como uma nação a integrar os povos semitas que um dia ocuparam a Mesopotâmia, a Síria, a Palestina e a Arábia de nosso mundo histórico convencional.

Howard efetuou todo esse movimento como que em auxílio para suas tramas, de modo a torná-las mais verossímeis aos leitores, o que sugere um alto grau de imaginação histórica da parte dele. Não é descabido explicar aqui que um filósofo da história chamado R.G. Collingwood afirmara, em uma famosa obra teórica, que ao longo do processo linear histórico ocorrera um desenvolvimento gradual do que chamou de imaginação histórica por parte dos homens, principalmente aqueles do Ocidente. Essa apurada imaginação histórica, entendida por ele como o conjunto de ideias gerais que temos acerca dos fatos e eventos do passado das sociedades humanas, teria tornado a dita civilização ocidental cada vez mais consciente de seu papel e de sua identidade no mundo contemporâneo. Para deixar claro, seria como se cada homem e mulher hoje em dia tivessem mais capacidade de compreender o passado com o passar do tempo e isso teria concebido em nós uma identidade histórica mais cristalizada, responsável por definir nosso papel no mundo.

Bem, o fato é que, concordando nós ou não com as premissas da imaginação histórica enquanto imperativo de uma civilização ocidental, uma coisa é certa: enredos narrativos ficcionais que se baseiam na história acontecida costumam gerar identidades nos receptores dessas respectivas narrativas, visto que o passado é um dos elementos mais bem sucedidos para tais fins, sendo coerente e crível uma construção histórica complexa e não totalmente arbitrária para o sucesso dessas narrativas ficcionais. Isso pode ser facilmente comprovado pelo sucesso de romances históricos que, apesar de ficcionais, tomam personagens reais em suas tramas (os sucessos do escritor britânico Bernard Cornwell são prova desse fato).

É nesse ponto que gostaria de tratar o termo "Nações" na Era Hiboriana de Conan e no fato de Howard, conscientemente ou não, se valer de seu próprio contexto histórico, aquele contexto da primeira metade do século XX e especificamente o da Grande Depressão dos anos 1930, para construir seu mundo ficcional. Isso porque o mapa da Era Hiboriana e as narrativas sobre os próprios Reinos e Impérios desse mundo ficcional, possuem características históricas não somente do mundo antigo e medieval, mas igualmente dos Estados-Nações Modernos, principalmente aqueles definidos como Nações Civilizadas por Howard.

Seguindo os princípios tradicionais de que uma nação se constitui pela história em comum, língua, instituições e pela etnicidade dos povos que integram seu território e são assim governados por um Estado enquanto aparelho ou entidade política, Howard deu um caráter moderno para essas nações na obra, visto que, como bem explicado pelo historiador Eric Hobsbawm, todos esses elementos poderiam até pré-existir em quaisquer coletividades do passado, mas a homogeneização de todos eles possuía uma artificialidade inexistente em períodos anteriores ao século XIX. Em outras palavras, Howard executou a constituição de um mundo integrado por fronteiras nacionais ao estilo contemporâneo, um mapa recortado por nações herméticas e de fronteiras definidas, não somente espaciais, como também culturais, linguísticas, políticas e étnicas, o que inexistia no Mundo Antigo e muito menos no Mundo Medieval.

Um dos maiores especialistas brasileiros no que tange às narrativas de Howard e seu mundo ficcional, Renato Amado Peixoto, reitera em dois textos acadêmicos que o autoquestionamento ante a identidade sulista e texana do autor auxiliou em muito na consecução de sua narrativa permeada de verossimilhança, bem como uma identidade familiar que ele se atribuía e reforçava constantemente. Isso porque Howard seria um questionador niilista da moral sulista dos EUA, dando vazão ao mundo selvagem colonizado pela expansão do oeste americano do século XIX, aquele mundo dos índios cheroquis e das demais nações indígenas que foram exterminadas pelos homens brancos.

Por tal motivo observamos a exaltação em sua obra do tipo selvagem e do bárbaro em contraposição ao homem civilizado. Isso também teria sido efetuado com base em sua identidade familiar, visto que ele descendia de ancestrais irlandeses por parte de mãe, levando-o a idealização dos povos celtas que lutaram e enfrentaram os ditos povos civilizadores, tais como os romanos da antiguidade (aliás, seu personagem Bran Mak Morn elucida essa constatação).

Mas existe outro ponto na narrativa de Howard, especificamente aquela em torno da Era Hiboriana, que vai muito além de identidades pessoais, regionais ou familiares, uma identidade vinculada ao seu macrocontexto. O fato é que Howard, tal como a maior parte dos homens da primeira metade do século XX, guardada as proporções, não conseguia conceber o Mundo Antigo e Medieval (ainda que inseridos em seu mundo ficcional) fora dos marcos nacionais usuais do século XIX em diante, dos binômios Nação-Estado, Povo-Território, Entidade Política- Coletividade Social.

Assim sendo, os estígios teriam uma mesma língua, formariam uma mesma nação étnica, seriam governados por um Estado centralizado e eles formariam uma entidade política bastante estável (ainda que houvesse disputas políticas e de poder, claro), o mesmo valendo para quase toda a Aquilônia (com exceção de Pontain e da Gunderlândia, representadas como em feudos semi-independentes), para a Nemédia e tantos outros reinos ou civilizações do mundo ficcional de Conan.

O recorte espacial de sua Era Hiboriana não seria nem aquele do medievo e suas identidades fluídas e feudais e nem aquele do Mundo Antigo, com seus contrastes regionais e seus conflitos endêmicos entre centro e periferias conquistadas, mas sim o espaço delimitado do mundo contemporâneo, ainda que os povos representados nesse espaço se parecessem culturalmente com aqueles da antiguidade e do medievo.

Os estudos em torno dos "usos do passado" demonstram, portanto, o quanto um tempo pregresso, ainda que pretensamente histórico em algumas de suas bases e premissas, acaba tendo ainda mais traços contemporâneos do que aparenta a primeira vista. O lado positivo, em se tratando de uma obra ficcional com traços históricos, é que tal construto, ainda que um tanto arbitrário em relação ao passado histórico da humanidade (pelo menos o passado convencional dos livros de história), mas sincronizado com relação ao presente, gera identidades nos chamados receptores de bens culturais (leitores, telespectadores, etc.). Esses receptores se vinculam ao referido mundo apresentado na narrativa e se deliciam com as tramas, por exemplo, de um bárbaro errante entre fronteiras da civilização e barbárie, tramas essas tão distantes e ao mesmo tempo tão próximas ao nosso mundo contemporâneo.

Marco: odisseia em busca da origem dos quadrinhos

Aproveitando o lançamento da edição "integral" e colorizada da saga espacial publicada por Daniel Lopes ao longo de 2013, deixo aqui o texto que escrevi como introdução para "Marco, o macaco do espaço". A colorização ficou ótima e vale muito a pena garantir seu próprio volume. (CIM)

Marco: odisseia em busca da origem dos quadrinhos

por Ciro I. Marcondes

“O homem não é nada além de um macaco no espaço”. Foi esta frase que eu ingenuamente inseri em um filme amador feito para o colégio nos idos de 1998. A coisa toda incluía uma animação primitiva feita com as próprias mãos (pintadas de preto) e um fundo escuro. Ela mostrava um macaquinho de playmobil saindo de uma nave espacial ao som do famoso poema sinfônico de Strauss Assim falou Zaratustra (a “música de 2001”), seguido de uma narração em voz over que entoava a “impactante” sentença.

Ao ler toda a série Marco, esta ligação entre uma ancestralidade primitiva e um futuro pós-humano (que eu ingenuamente havia tentado expressar na ocasião do filmete) me voltou como uma forma de estética. Explico-me: talvez, para expressar o mundo incognoscível dos nossos alhures passados e relacioná-lo com nossas ambições de buscar a eternidade da espécie por meio da tecnologia, seja necessário misturar alguma sofisticação mágica, criadora de ilusão (no meu caso, a “ambição” da animação) com algo que a sabote instantaneamente, e isso é algo que revela seu próprio artifício (o próprio método “primitivo” de animar mostrando as mãos que mexiam o brinquedo). Somente uma contradição dos procedimentos estéticos poderia revelar a contradição da própria odisseia humana.

É claro que Kubrick, no 2001 mesmo, optou pelo virtuosismo estético, até porque era um artista de quilate maior. Porém, mesmo no livro de Arthur C. Clarke, com uma prosa simples e límpida, muito racional e até um tanto obtusa, encontramos essa contradição sobre a qual estou comentando. O livro é raso. O tema, profundo. Não é preciso dizer que o Planeta dos macacos, mais uma fantasia do que propriamente hard sci-fi (o livro ou os filmes), se aproveita muito desta contradição entre mágica, ciência, primitivismo, futurismo. Nos quadrinhos temos inúmeros exemplos: de Buck Rogers a Storm, de Valerian a Love and Rockets, todo tipo de space-opera se funda da ideia de que o mundo mágico dos “selvagens” ainda persiste no mundo racional dos “evoluídos”.

Digo isto porque me parece que Daniel Lopes, um corajoso quadrinista capaz de questionar a história e o formato da mídia com a qual trabalha, parece ter percebido perfeitamente esta estranha dicotomia, esta incongruência, esta aporia. Desenhado num traço claro, sem gradações e poucas hachuras, econômico sem ser simplório, Marco é um pequeno tesouro que corre o risco de ficar perdido em meio à sua aparente naïvité. Mas onde exatamente reside esta ingenuidade? Não é difícil encontrá-la. A série Marco foi lançada em pequenas tiras mensais ao longo de 2013 na publicação Mês, e quem a acompanhou de maneira seriada pôde repetir a sensação que tinham os longínquos leitores de quadrinhos de aventura nas tiras diárias dos jornais americanos nos anos 1930. Flash Gordon, na qual Marco é amplamente baseada, foi publicada desta forma. Este formato, que utiliza pouquíssima decupagem (o adição “cinematográfica” aos quadrinhos que aconteceu sobretudo nos anos 1940, com Spirit e outros), acaba se obrigando a abusar de recursos hoje enfadonhos, como letreiros grandes e um resumo da história no primeiro quadro de cada tira. Estudante da história dos quadrinhos, Daniel resolveu criar seu próprio experimento no que ele entende ser uma junção de um mundo “primitivo” de quadrinhos com o “futuro” incerto desta forma de arte. Daí temos como resultado não apenas um traço simples (mas inegavelmente carismático), como também uma história igualmente simples, space-opera arcaica no talo, cheia de desventuras incongruentes, technobabble a torto e a direito, raças estranhas, civilizações perdidas, arenas galácticas, viagens espaciais impossíveis, etc.

A própria figura do macaco “evoluído” Marco, jogado de um lado a outro por conspiradores, tratantes e revolucionários, simboliza um pouco a grande licença poética que é pensar a humanidade como “apenas um macaco no espaço”. De alguma forma, a série Marco, em sua ingenuidade, é nada mais que aquilo cada um deseja que ela seja: pode ser uma recuperação de uma era romântica nos quadrinhos; um exercício de estilo e forma; uma aventura despretensiosa, mais voltada ao design de criaturas e naves. Ou, como prefiro pensar, uma atualização engenhosa do “mito de origem” dos quadrinhos, as tiras dominicais e semanais, entrando com intensa propriedade na dinâmica deste meio, usando o formato mais “pobre” possível para chegar ao resultado mais longínquo alcançável para o autor, que é provocar a reflexão sobre nosso interior ancestral e nosso exterior longevo.

Assim, se desconfiamos quando, em Marco, conserta-se um teletransportador em ruínas ou uma nave algumas horas, ou quando o macaco confunde Marte com a Terra e aterrisa no planeta errado, estas coisas seguramente podem ser limadas pela licença poética que intui que este quadrinho é uma espécie de narrativa sintética primitiva, mítica, e seu conteúdo é facilmente determinado pela forma, que mantém um olho no passado e outro no futuro. Daniel Lopes marca esta limpidez naïve com intervenções pontuais extremamente importantes para o sentido todo da série. Em um certo momento, Marco viaja pelo espaço e descobre uma série de planetas com civilizações exóticas, culturalmente e biologicamente desafiadoras, e um claro assentamento filosófico se ilumina dentro dos limites estreitos da tira: passamos a conhecer uma raça hermafrodita, um ser zen de outras dimensões, citações a Carlos Castañeda, Alan Moore, King Kong, etc.

Sem pudores, Daniel sugere a relação sexual interespécies e cria um panteão de personagens volúveis, afeitos a seus próprios egos e objetivos cretinos, algo inimaginável no realismo rembrandtiano de Alex Raymond, mas realizável na limpidez rústica do quadrinista brasiliense. Por estas e outras, temos aqui um quadrinho fora de categorização, com um conceito óbvio e ao mesmo tempo radical, capaz de provocar profunda indiferença ou profunda inquietação, sendo a sua forma a simbolização do paradoxo que a própria história representa. Tudo isso qualifica Daniel Lopes como alguém que possui ao menos a habilidade fundamental exigida para qualquer artista que mereça a alcunha: entender o tempo e o espaço de sua obra. Isso não é pouca coisa. Afinal, os quadrinhos não são nada além de um hominídeo solto na arte do espaço. 

PIMBA na gorduchinha!

por Ciro I. Marcondes

Estando no “exílio”, recebo pouco material nacional aqui, e é por isso que a chegada do número dois do Jornal Pimba foi motivo de celebração. Já falamos sobre esta heroica publicação de Brasília aqui. O formato de jornal, que atrai certa nostalgia e ao mesmo tempo impulsiona novo entusiasmo às artes da ilustração e dos quadrinhos, é aquela contradição “do bem”: é barato, dá espaço para os desenhos fazerem vingar seu potencial, e além de tudo possui uma relação afetiva com a história dos quadrinhos. Afinal, os quadrinhos nasceram nos jornais. Aqui na França, a tradição de jornais (ou revistas que começaram como jornais) que publicam quadrinhos (de aventura ou humor) persiste até hoje. Não apenas nas pedras inaugurais belgas (Spirou, Tintin), mas em publicações que mantêm sua essência: Le Canard Enchainé, Fluide Glacial, Pilote, Charlie Hedbo. O Pimba aparece, em meio a estas leituras, em perfeita sintonia.

Felipe Sobreiro

Paradoxal também acabou sendo a leitura do segundo Pimba, já que, tendo lido a vigorosa e em tudo impressionante primeira edição, a sede de que o repeteco viesse na mesma toada era grande. Pois é, meus amigos: posso dizer que conheço o pessoal que faz o Pimba, mas não posso simplesmente me render a uma crítica camarada. Perfeito em diagramação (desta vez rosa e preto), com todo um cuidado de curadoria e franca honestidade artística, o Pimba, além de tudo, ofereceu bons textos de qualidade literária. Meu lado “estudante de Letras” (atrofiado há anos) se despertou com a capacidade que alguns colaboradores ali têm em escrever. O paradoxo, no entanto, veio junto com quadrinhos um tanto abaixo da média, que demonstram talvez uma concepção apressada aqui, um deadline apertado ali, uma escolha temática infeliz acolá. O que terá causado tal deslize?

Vejamos, primeiro, o papel dos mais veteranos: se temos um bom caso de experimentação como o jogo da memória e da imagem em quadrinhos com André Valente (o nosso “Chris Ware encontra Walt Disney”, ainda em processo de amadurecimento), com Eduardo Belga temos apenas uma tentativa de condensar grandes histórias em poucos quadros (“Mas não presta muito contar assim, só por alto. Um dia eu conto estas histórias direito”, admite). Neste caso, é preciso decidir: fazer o quadrinho narrativo direito, com desenvoltura e, especialmente, muitos quadros, ou o negócio é optar por outro gênero, mais próximo da poesia e dos sincretismos.

André Valente

Daniel Carvalho

A mente fértil de Gomez, esse sim adepto das narrativas, geralmente cíclicas, pequenas parábolas de uma Brasília juvenil, aqui bate ponto, entrega coisas engraçadas, mas causa a impressão de não ter dedicado seu melhor. Estaria Gomez se repetindo? Sim, quando o cara é bom e muito exposto, aumenta-se a cobrança. Ninguém disse que era um mundo justo. O mesmo ocorre com Daniel Carvalho, exímio ilustrador que, no campo narrativo, causou-me a impressão de ter replicado, de certa forma, a história que fez para a edição anterior.

Meus quadrinhos favoritos na edição vão para Felipe Sobreiro e “A caixa”, uma história meio “gangues de Brasília nos anos 90” com um toque surrealista à Robert Silverberg. Despretensioso, eficaz, nada mal. A outra que me agradou foi “O mestre dos muros”, quadrinho hoje póstumo do talentoso Mateus Gandara, uma linda parábola budista contada com a regularidade tântrica dos requadros tabulares, muito bonitos na diagramação do jornal.

Entre os que estrearam, aliás, há ainda arroz com feijão para comer. Pedro D’Apremont (nosso Peter Bagge do black metal), mesmo que tenha a grande vantagem de estar criando um universo e um imaginário comuns aos seus quadrinhos, ainda precisa calibrar melhor as gags e piadas, um tantos canhestras aqui. Já a Gabi LoveLove6 arrisca uma narrativa confessional, mais realista, muito direta. Não me agrada muito quando um discurso engajado parece simplesmente literal. Joga contra. Melhor voltar ao lirismo despojado e transgressor do Garota Siririca. Por fim, vale falar no quadrinho tóxico e mala (no bom sentido, se é que isso existe) do Heron Prado, herdeiro de Gabriel Góes, que dá um bom upgrade no nonsense rabiscado de Futuro do Pretérito.

Mateus Gandara

Literatura

Pedro D'Apremont

Juventude de maloqueiragem anos 90, puberdade sem qualquer romantismo e algum trato experimental, aliás, é o tom nas narrativas literárias do jornal. Pode parecer excesso de nostalgia de tempos mais simples e crus (o que na verdade não é ruim, dado o mundo de merda em que vivemos), mas os autores conseguem verter essas coisas em qualidades, visões de mundo, perspectivas literárias. Afinal, são três ou quatro contos falando de molecagem, 13 punhetas por dia, tesão pela professora, etc. Destas, gostei especialmente de Diário do Timor Leste, escrito por Danylton Penacho, uma série de relatos escrachados, mas carregados de melancolia quase exclusivamente brasiliense, como se fosse um retrato “ame-ou-odeie” de alguém ligado umbilicalmente à sua cidade. Também vale a disposição mais clássica, cômica e cruel de Retrato ao redor de um banheiro, do veterano Milton Sobreiro, além do trato à Murilo Rubião do onírico Colcha de chenile (também de Penacho), além da poesia que trinca os espaços modernistas de Brasília em Espaço é um local cercado de cantos por todos os lados, de Biu.

Heron Prado

A joia da edição, IMHO, no entanto, fica com a qualidade de literatura impressionista do conto O asfalto, de Pedro Menezes, uma jornada febril em discurso indireto livre que parte de uma aula de educação física até o mais irrevogável niilismo. Se o Pimba declaradamente não possui uma linha editorial, a própria geração de quadrinistas e escritores faz questão de trazer naturalmente suas angústias e problemáticas, criando uma massa comum de memórias e experiências com o corpo e com o espaço da cidade, marca profunda e indelével da contemporaneidade. O Pimba, com seu pé no passado, mas com mãos que apontam o futuro, carregado de imperfeições (não podia ser diferente), é talvez a melhor expressão da cultura de Brasília nos dias de hoje. Afinal, do absurdismo dos quadrinistas às trevas de Pedro Menezes, há um substrato comum com o qual qualquer brasiliense se identifica.

PS: e viva Osmar Santos!   

HQ em um quadro: sudeste da Ásia na BD clássica, por Peyo e Delporte

Benoît Brisefer chega em Khben-Nogbang (Peyo, Yvan Delporte, 1968): bem na época em que houve a polêmica a respeito do brasileiro executado na Indonésia, eu estava lendo esta história do personagem Benoît Brisefer, clássico belga criado por Peyo (de "Schtroumps" e "Johann e Pirluit"). Aqui, o simpático mini-herói (edição: "Os doze trabalhos de Benoît Brisefer") precisa recuperar nove pedaços de papel dos títulos de um terreno com petróleo que estão espalhados pelo mundo. Isso o leva até um "certo país no sudeste asiático", descrito no letreiro do quadro aqui destacado desta maneira: "Khben Nogbang, cidadezinha do Sudeste da Ásia, mistura o charme pitoresco do extremo oriente aos benefícios da civilização ocidental...". Ao olharmos para o quadro, vemos não apenas a cidade viva, magnificamente representada no traço gros nez de Peyo, como também as propagandas de Coca-Cola ironicamente emplacadas acima das lojinhas orientais. Ora, longe de querer fazer qualquer análise pseudossociológica que compare a situação sociocultural do sudeste da Ásia com a história da BD francobelga, eu gostaria apenas de apontar algumas curiosidades ao redor deste requadro.

Fuzilamento no sudeste da Ásia... Peyo já foi chamado de racista e comunista, e creio que neste caso sua intenção era fazer uma discreta denúncia dos "males do capitalismo" chegando de maneira ambígua a "tão bárbaro país". O imaginário sobre a Ásia, e especialmente do sudeste asiático (guerra do Vietnã pegando fogo) no meio dos anos 60 dificilmente seria outro: não apenas Peyo e Delporte não nomeiam o país, tratando-o como alguma substância genérica, como logo à frente o pequeno herói se envolve rapidamente em uma trama militar, mostrando os soldados (amarelos) do sudeste da Ásia prestes a fuzilar (por engano, lógico) um "honesto" arqueólogo europeu. Logo emerge, obviamente, o imaginário do colonialismo "cientificista" belga (e francês), e em plena era das descolonizações. Logicamente, os militares de tal país são mostrados como vilões atrapalhados, que caem na astúcia de Benoìt, mas ao mesmo tempo choca a imposição de suas leis brutais, de suas sanções severas, ditatoriais. Se pensarmos hoje na Coreia do Norte, ou neste caso de execução na Indonésia, etc, de que lado estariam efetivamente Peyo e Delporte? Na denúncia da "praga capitalista" ou no estereótipo racista que constroem a respeito das culturas que eles, de maneira tão colonialmente paternal, querem "proteger"?

A China de Hergé

A resposta reside, obviamente, na ambiguidade. Se hoje estas questões são plurais e apontam para vários lados, imagine nos anos 60, quando um imaginário de identidades sólidas e iluministas ainda vigorava com força em países como a França e a Bélgica. Isso tudo poderia levar a mais um debate inútil sobre Charlie Hedbo, mas eu prefiro olhar ainda mais para o passado e pensar a HQ de Tintim O lótus azul, de Hergé (1936). Muito criticado pelo viés racista e canhestro de seu Tintim no Congo, Hergé, afetado por uma crise identitária, resolve, na época, fazer da investida do personagem na China uma verdadeira experiência etnográfica e transcultural, consultado um amigo chinês a respeito dos costumes e de maneira de ser dos chineses, à época em um impasse político graças ao imperialismo japonês, retratado na história. O detalhismo cultural perseguido por Hergé aqui é fotográfico: das casas de ópio às cidades, à natureza e aos veículos, a China era processada e representada com respeito, numa trama também militar, mas menos esquemática do que na HQ de Peyo. Há inclusive uma página inteira de desambiguação dos estereótipos chineses, e Tintim e o chinês Tchang desenvolvem terna amizade.

O que quero chamar a atenção é que esta esquizofrenia representacional e de posicionamento político que apontamos em Peyo e Delporte (é sempre um "alvo fácil" mirar uma obra de outro contexto histórico e cultural) também existe no mestre "intocável" Hergé. Qual Hergé preferimos ler: o racista do Congo ou o humanista da China? Seria fácil defender um ou outro dependendo dos propósitos e intenções ideologizantes que construímos a priori. Não se enganem: Os doze trabalhos de Benoît Brisefer é uma ótima história em quadrinhos: é dinâmica, ilustrada e narrada com a excelência da BD clássica, e um lindo inventário sobre o envelhecimento e a maturidade. O personagem é até mais cativante do que a contrapartida mais famosa das criações de Peyo (Schtroumps), além de dar um tabefe irônico na cultura de super-heróis. Até ganhou um filme recentemente. Talvez bons produtos culturais possam (e até devam) ser ambíguos, facilitando o destrinchar da complexidade que envolve nosso posicionamento ético e político nos dias de hoje.

Por fim, escrevi tudo isso para me ajudar a pensar também a capa da última revista Fluide Glacial, que, num movimento (talvez honesto) anti-Tintim (reparem que o desenho faz referência ao quadro de O lótus azul), retrata um "francês típico" carregando um chinês rico (com um loira) em uma Paris completamente dominada pela cultura chinesa, com a seguinte chamada: "Perigo amarelo! E se já for tarde demais?" A capa da tradicionalíssima revista de humor francesa (ops...) já provocou stress diplomático com a China. Enfim, novos tempos, mas a polêmica histórica continua... (CIM)