Dando uma boa olhadinha debaixo da cama [e dentro das lixeiras também!]



Cristiano Bastos é um gaúcho sangue boníssimo e nosso amigo, residindo aqui em Brasília. Escreveu, dentre muitas atividades, para as revistas Bizz, ESPN e Aplauso. Atualmente é reporter especial da revista Rolling Stone, onde escreve sobre música e política.  Nesta última, fez reportagens maravilhosas sobre Novos Baianos, Raul Seixas e Romário. É autor do livro Gauleses Irredutíveis - Causos e atitudes do rock gaúcho. É também diretor do documentário Nas paredes da pedra encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. E ele curte quadrinhos. E ele curte EC Comics, Tales from the Crypt, quadrinhos de antes do comics code authority. E ele curte bons textos. E fez um ótimo texto pra gente, contando sua relação com estes lendários quadrinhos de terror, além da arte de chafurdar no lixo alheio. Para quem quiser conhecer o trabalho do Cristiano, ele tem um blog e um portfolio online. Valeu meu véio. Esta é uma colaboração realmente especial. PS: Ilustrei a crônica do Cristiano com imagens sortidas das HQs de Cripta do terror. Enjoy! (CIM

por Cristiano Bastos

Aos meus “40 invernos” eu às vezes ainda sonho um sonho que sonhava sempre quando criança. De tanto sonhá-lo ficou gravado em minha memória. Sonho que perambulo entre as lixeiras do prédio “minhocão” [esses conjuntos habitacionais levantados pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), nos anos 1970, para acomodar a classe C], em um dos quais minha família estabeleceu-se quando meus pais deixaram Cachoeirinha, na região metropolitana da capital gaúcha, para ir morar em Porto Alegre. Eram dezesseis blocos e as respectivas lixeiras, enfileiradas uma ao lado da outra. E, para cada andar, havia um compartimento através do qual os moradores despojavam seus refugos domésticos – e, também, jornais, livros e revistas.

Cristiano, à esquerda, e seus irmãos: Ethel e Marcelo.
No local onde revirava as lixeiras. Porto Alegre, anos 80. 

Para mim, uma tarefa religiosa, diária e, sobretudo, uma grande aventura era revolver o lixo alheio possivelmente repleto de “surpresas gráficas”. Pedalando a minha bicicleta Caloy, chafurdava a imundície dos outros atrás de qualquer coisa para ler. Embora meu pai, sócio fiel do “Clube do Livro”, não deixasse que faltasse leitura em casa [nem comida!] – as mais diversificadas. O velho comprava um livro por semana, em média. Muitos best-sellers como Sidney Sheldon e o “mestre da sordidez” Haroldo Robbins [dentre os quais as obras: Nunca Ame um Estranho (1948) e Uma prece para Danny Fisher (1952), roteirizado para o cinema como King Creole (1958), estrelado pelo ainda “príncipe” Elvis Presley].

Woolf
Também havia “alta literatura”: Jack London, até hoje, um dos meus herois da vida e das letras. E o sacana Henry Miller, que me ensinou umas palavrinhas desbocadas antes do tempo... O primeiro livro que ganhei de meu pai foi uma edição de Tarzan – O Filho das Selvas (1912), de Edgar Rice Burroughs, porém, confesso que não li até hoje. Mas o livro continua morando na minha biblioteca; representa uma espécie de desafio que, um dia, terei de cumprir em nome da honra. Mesmo que a historia de Tarzan seja conhecida de trás para diante. Tal como aconteceu com a leitura de Mrs Dalloway (1925), de Virginia Woolf – lido tardiamente, mas lido. Quase apenas para tentar decifrar um pouquinho do que as mulheres pensam. A revolução oferecida por Mrs Dalloway, todavia, não é feminista: é estilística. Desenrola-se em um dia na vida da protagonista, Clarissa Dalloway, e tem como cenário o período pós-Primeira Guerra Mundial, na Inglaterra. Trata dos preparativos para uma festa da qual Clarissa é a anfitriã. Artifício literário do qual o escritor gaúcho Dyonélio Machado também lançou mão, uma década depois, com a publicação de Os Ratos (1935) – história nascida de um pesadelo relatado a Dyonélio por sua mãe. A narrativa centra-se no pobre “barnabé” Naziazeno Barbosa, que um dia inteiro perambula pelo centro de Porto Alegre à cata de dinheiro para garantir o leite da recém-nascida cria.

Zéfiro
Nessas incursões “trash”,  descobri muitas leituras que, inconscientemente, formaram  muito de minhas futuras predileções literárias. Lembro, certa vez, de ter encontrado uma intocada coleção de fascículos sobre dinossauros – uma das minhas fascinações da “estação” infância. Noutra achei um inocente livro sobe ioga ilustrado com fotos de iogues contorcendo-se piramidalmente em posições nunca dantes imaginadas em minha inocência de petiz. Em minha cabecinha de guri, achei que aquilo, afinal, era o que tanto chamavam de “sexo”. Na verdade foi uma experiência pra lá de estranha: “Será isso?”, me perguntava com uma interrogação sobrevoando a cuca [naquela época ainda falava-se “cuca”!]. Dúvida que logo foi desfeita quando, numa dessas incursões, deparei-me com os primeiros exemplares de pulp pornografia: havia desde a pornografia “pesada” [para os anos 70, ainda vivia-se sob jugo militar] aos catecismos de Carlos Zéfiro, iniciadores das gerações anteriores “nas artes onanísticas”. Ou mais bonitamente dizendo , na arte de se fazer “justiça com as própria mãos”. Meu pai incluído, provavelmente. Nos anos 60/70 – e nem ainda nos 80’s – “comer alguém” não era bem assim, meus amigos.

Eu era obsessivamente fascinado pelos livros e pelas revistas, não importando o calão: alto ou baixo. Devo à leitura toda minha formação “intelectual”, muito mais do que à faculdade, onde os jornalistas, especialmente os contemporâneos – pelo que se lê nas entrelinhas – poucos, de fato, estão interessados na exigente arte de ler um livro.

Nunca vou esquecer o dia em que minha avó quis se desfazer de todos os volumes de enciclopédica coleção O Tesouro da Juventude [editada de 1920 a 1958, por W. M. Jackson, Inc.]. Obra originalmente britânica,, que, no português de antigamente, assim anunciava-se: 

“Encyclopedia em que se reunem os conhecimentos que todas as pessoas cultas necessitam possuir, offerecendo-os em forma adequada para o proveito e entretimento (sic) dos meninos”.

Antes, eu sempre lia O Tesouro da Juventude quando ia à casa dela, em Caxias do Sul. Para ganhar a coleção, já em Porto Alegre, fui sozinho até sua residência, a pézito, buscar os pesados volumes, carregados “no muque” até minha casa. Conhecimento exige algum esforço, o qual nem sempre é garantido somente às custas da máxima socrática do “sei que nada sei”. 

Minha seção predileta era o “O Livro do Porquês”, que trazia perguntas e respostas para qualquer indagação. Como, por exemplo, esta [no original]: 

Conhece-se alguma especie de matéria que não se encontre na terra?
“Segundo o que o espectroscopio nos revelou, existe no sol um elemento que não se encontra no nosso planeta; foi observado pela primeira vez na parte do sol que se chama a "coroa", dando-se, por isso, o nome de "coronio". Até hoje ainda não se encontrou este elemento em parte alguma da terra. Tambem se descobriu no sol outro elemento conhecido com o nome de "helio", palavra derivada do vocabulario grego "helios" que significa sol; mas alguns anos depois de ter sido observado no sol, esse mesmo elemento foi encontrado na terra, na forma de um mineral muito raro; e, actualmente, sabe-se que o (elemento) radio o produz continuamente. Do mesmo modo que averiguámos que elementos formam o sol, podemos chegar a saber, por meio do estudo da luz que as estrellas emittem, de que se compõem estes astros, situados a tão enorme distancia de nós”.

Não é uma maravilha? 

Quem disse que as gerações passadas não tinham seu  “Google”?

E vou confessar para vocês: a mania de revirar lixeiras é um hábito [obsessão?] que ainda acompanha-me... Minha atual vizinha de prédio, uma gostosa assessora de algum mistério – que é melhor nem comentar –, recebe, aos fins de semana, todas as revistas semanais disponíveis no Brasil e todos os “importantes” jornais em circulação. Leitura, como se sabe, que não é lá grandes coisas. Criei atualmente um novo ritual: toda santa manhã de sábado e de domingo, o porteiro de meu prédio deixa em frente à porta dela um fardo de revistas e periódicos. De meu apartamento posso ouvir a vizinha gostosa agachando seu belo traseiro para recolhê-lo. Espero cerca de uma ou duas horas e vou à lixeira. E é “batata”: lá estará aquele monte de papel ainda recendendo tinta – maior parte deles intocados como a última das virgens.

Voltando à infância, ou melhor, adolescência [revirei lixeiras dos seis ao dezesseis anos], foi numa dessas andanças de piá que achei uma das HQ’s que afetaram muitos a minha “visão gráfica”, por assim dizer – assim como afetou a de toda da juventude reprimida criada nos estertores dos anos 1950. A revistinha chama-se Tales From The Crypt, da EC Comics, que, no Brasil, foi editada como Contos da Cripta.


Para meu completo déjà vu, dia desses o Ciro Marcondes, editor deste site, apareceu-me com uma caprichada edição da HQ, trazida por ele dos Estados Unidos. Robusta, a edição  compila cinco volumes lindamente encadernados e ricamente recoloridos: Tales From The Crypt – The EC Archives – Volume Two [Six Complete Issues 7-12!. Comandada pelo lendário publisher Bill Gaines, Tales... foi originalmente publicada de 1950 a 1955, e inspirou, por exemplo, a televisiva série da HBO. Igualmente afetou dezenas de bandas. Dentre elas, Ramones, The Cramps, Fuzztones e a homônima Tales From The Crypt.  


Nessa edição que me chegou às mãos, há contos clássicos de horror escritos por autores como Al Feldstein e ilustrada por um line-up estelar das história em quadrinhos: Wally Wood, Jack Kamen, Craig Johnny, Al Feldstein, Orlando Joe, Ingels Graham, Jack Davis, John Severin. No total são 24 histórias. O prefácio leva assinatura de Joe Dante, diretor de filmes como Gremlins e Twilight Zone: The Movie, assumidamente fascinado pela obra. Com histórias, em sua maioria, pintadas em um odioso/delicioso horror cotidiano/fantástico, a cada edição a série surpreendia/espantava ao abordar situações das mais bizarras/amedrontadoras imaginadas. Verdadeiro deleite visual e narrativo. Geralmente com um “plot twist” surpreendente ao final de cada conto.


                                                                   TFTC: o filme
Wertham
Mas o fim da revista iniciou-se rapidamente, com a perseguição moral liderada pelo psiquiatra alemão Fredric Wertham, que publicou a obra Seduction of the Innocent [em português, Sedução dos Inocentes], de 1954. O livro tentava desacreditar os leitores com a tese de que as revistas em quadrinhos eram uma “forma ruim” de literatura popular – além de sério estímulo à “delinqüência juvenil”. Seduction of the Innocent   não só causou rebuliço entre os pais norte-americanos como desencadeou uma campanha a favor da censura para esse tipo de publicação. O documentário “embedado” ao final deste texto mostra cenas de Gaines defendendo a Tales From The Crypt no tribunal. O caso repercutiu ao cúmulo de o Congresso Norte-Americano lançar uma investigação cujo foco foi a indústria dos quadrinhos. Logo após a publicação de Seduction..., a EC viu-se obrigada a formular o “Comics Code Authority” ou “Código dos Quadrinhos”, que passou a regular o conteúdo e a autocensurarem-se... Sem o terrorífico “mojo”, nunca mais a revista foi a mesma. Uma lástima que terminou por matar a publicação, a qual sobreviveu na humorística Mad – um grande sucesso até hoje.

A EC foi revolucionária, e poderia ter revolucionado mais se não fosse o livro A Sedução do Inocente, escrito pelo alemão Dr. Fredric Wertham. Foi na Cripta dos anos 1950 que vimos e lemos as melhores histórias de guerra, mistérios, horror e crimes já criadas. Narrativas ousadas e livres do infantilismo pós-Sedução... Contos macabros de humor negro fez da nona arte um terreno fértil com frutos maduros de doces venenos. Nas páginas autores como Graham Ingels, Wally Wood, Jack Davis, Bernard Krigstein e outras feras marcaram uma época, influenciaram gerações de quadrinistas, diretores de cinema e escritores como Frank Miller, Steven Spielberg, Joe Dante, Stephen King e Neil Gaiman.  Às vezes fico pensando o que poderia ter sido dos quadrinhos norte-americanos se Sedução do Inocente não tivesse sido escrito e não tivesse polemizado tantos os quadrinhos como um mal aos seus leitores. Talvez, seria um outro reinado. Não com os super-heróis, mas com inteligência, horror e humor negro”, diz o roteirista e ilustrador Carlos Ferreira – editor da revista independente Picabu,  que também roteirizou para os quadrinhos, entre outras, obras como Os Sertões – A Luta, ilustrado por Rodrigo Rosa.

Zelador da Cripta
Em Tales From The Crypt, as histórias eram inicialmente apresentadas pelo Crypt Keeper [o “Zelador da Cripta”, no Brasil], um velho decrépito e sarcástico que introduzia as histórias e dava uma “moral” ao final de cada conto. Personagem, ao mesmo tempo,  arrepiante e engraçado, que fazia piadas com o trágico e o caótico. Ter o Crypt Keeper apresentando as horripilantes narrativas foi o primeiro passo em direção ao famoso “Estilo EC”. O Crypt Keeper apareceu pela primeira vez na revista Crime Patrol#15 e repetiu a dose na edição seguinte. Logo após, na revista War Against Crime#10, apareceu outro personagem com a mesma função: The Vault Keeper [“O Guardião da Câmara”]. E, mais tarde, um novo ser surgiu das trevas:  The Old Witch [“A Bruxa Velha”], que estreou em The Haunt of Fear. Todos maravilhosamente decrépitos.


Entre junho e novembro de 1991, a Editora Record tentou, essa é a verdade, publicar no Brasil o gibi Tales From the Crypt. Mas apenas sete parcas edições do “Contos da Cripta”, como foi chamado por aqui, viram a luz das bancas de jornais. Guri, consegui comprar somente dois desses números. Esse aqui é um exemplar que se salvou no alfarrábio das relíquias infanto-juvenis. Lançada em dezembro de 1991, a edição traz um conto de psico-ficção científica muito chocante escrito pelo falecido Ray Bradbury. Jackie Davies, Kurtzmann e Frazeta são outros autores que também “exprimiram sangue” na páginas da versão brasileira da Cripta. A tradução do nome dos contos, pelo menos, conservaram o bom-humor original: “Tomo um Banho de Lua, Fico Branco de Pavor”, “Refeição Noturna!”, “Infiltra-Sangue”, “A Rinha”.

Lembro ter lido e folheado o gibi-filho-único dezenas de vezes – e não sem o mesmo calafrio de sempre. Um dos motivos de tanta atração estavam os enredos de suspense na linha soberbamente canônica [e horripilante] do mestre Edgard Allan Poe. Numa das estórias mais impressionantes, após cometer grave crime o bandido fica paranóico com as próprias digitais e, por fim, consigo mesmo [“Caidaço”]. Desabaladamente sai a limpar a cena do crime com igual obsessão do “noiadinho de pedra”. Ele finalmente pira: o crime nunca compensa. Noutro quadrinho, o pobre e desavisado viajante noturno descobre-se numa convenção de... vampiros! Tarde demais.

A única coisa que, na realidade, a Record fez direitinho foi apresentar material antigo da EC Comics no formato “magazine”, seguindo especificações originais da revista. Em sua breve existência, a edição nacional primou por desleixo gráfico, papel de terceira e impressão meia-boquíssima. Não emplacou por falta de capricho. No divertidíssimo site Nostalgia do Terror dá para conhecer todas as edições da Tales From The Crypt saídas no Brasil.  O site conglomera verdadeiro universo paralelo de capas, títulos e editoras, de épocas distintas, e libera, também, download de HQs de artistas da velha e da nova guarda.

Tem, ainda, contos, reportagens e o apavorante “Correio do Terror”. A ilustração deste post é um almadiçoado walpapper. Seria muito legal seria se a Record – ou outra esperta editora – reeditasse a Tales From the Crypt no Brasil. Nem é preciso dizer, com a merecida qualidade. E hoje à noite, antes de ir dormir, não esqueça: dê uma boa olhadinha debaixo da cama!

E nas lixeiras também. Sempre pode haver altas aventuras à sua espera.



Visão total

por Pedro Brandt

A revista Animal teve vida breve, durou 22 números, entre 1988 e 1990, mas deixou um legado que ainda reverbera na memória de leitores e autores de histórias em quadrinhos. Foi em suas páginas que vários personagens, roteiristas e desenhistas estrangeiros, até então inéditos no Brasil, foram publicado no país pela primeira vez. O espanhol Max foi um deles. Seu Peter Pank — uma releitura mucho loca de Peter Pan — foi uma das séries mais populares da publicação.

Depois disso, os fãs brasileiros de Max ficariam anos sem notícias do espanhol, até a publicação, no final de 2006, de O prolongado sonho do Sr. T (estreia da editora Zarabatana). Esse distanciamento pode dar a impressão de que autor espanhol tem uma produção sazonal. Não é o caso. Aos 55 anos, Max (nascido Francesc Capdevila) acumula quatro décadas de ilustrações e histórias em quadrinhos e goza de grande prestígio na Espanha. Em 2007, o barcelonês recebeu o Prêmio Nacional dos Quadrinhos. Ano passado, foi tema de uma grande exposição retrospectiva no Museo Valenciano de la Ilustración y la Modernidad, em Valência, que depois passou pela Cidade do México (contabilizando 30 mil visitantes) e desde 18 de junho ocupa a galeria do Instituto Cervantes de Brasília, onde permanece até agosto. De lá, segue para Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador.

À mostra estão dezenas de trabalhos originais, como páginas de histórias em quadrinhos, ilustrações para cartazes de shows, capas de discos e revistas (como a prestigiada The New Yorker) e vídeos. Um passeio pela exposição, dividida por décadas, permite acompanhar as diferentes fases de Max, um artista em constante mutação, ainda que dono de traço inconfundível. “Ele trocou muito de estilo, mas tem uma linha mestra ligando sua obra. A liberdade de criação é o fio condutor de seu trabalho”, aponta a espanhola Marta Sierra, curadora da exposição, batizada de Panóptica (“visão total”).

Pelas décadas

Marta, que esteve no Brasil para montar a exposição e fazer uma visita guiada no dia da abertura, é amiga do homenageado desde as primeiras publicações. Ela conta que os desenhos animados, o rock, as artes plásticas e a literatura são algumas das influências de Max. “Também os sábios, as bruxas, as ninfas e os bosques — por isso mesmo, ele escolheu morar em Majorca, cercado de bosques”.

Max começou a publicar nos anos 1970, aos 16 anos, em revistas clandestinas. “Naquela época, a Espanha vivia sob ditadura, e a contracultura americana, em especial, Robert Crumb, o influenciaram bastante”, explica a curadora.

Nos anos 1980, já dono de uma identidade gráfica própria, e participando da antológica revista El Víbora (da qual foi um dos fundadores), Max criou seu personagem mais conhecido. “Ele poderia ter vivido só de Peter Pank, mas não é autor de um só personagem e foi em frente”, pontua Marta Sierra.

A década de 1990 não foi das melhores para os quadrinhos na Espanha, tanto que Max publicou a história

Nosotros somos los muertos (reflexão crítica sobre a Guerra da Bósnia) em fotocópias. A HQ repercutiu muito bem e deu origem a uma inovadora revista de mesmo nome, que contou com colaborações de artistas internacionais de renome. Em 1997, o autor publicou em seu país O prolongado sonho do Sr. T. O personagem Bardín, el superrealista, marca sua produção nos anos 2000 com um surrealismo que evoca Luis Buñuel e Salvadora Dalí. Recentemente, a obra foi incluída no livro 1001 comics you must read before you die (“1001 quadrinhos para ler antes de morrer”, ainda inédito em português). Em texto produzido para ser lido por Marta na abertura da exposição, Max comenta que é sempre uma incógnita saber como sua obra será recebida em outro país, mas está confiante que o público desfrutará da exposição. “Meus desenhos falam visualmente de muitas coisas que, tenho certeza, vocês vão se identificar”. O autor virá ao Brasil em setembro, para participar de eventos de quadrinhos em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

Panóptica — 1973-2011

Exposição do espanhol Max. Até 11 de agosto, de segunda à sexta, das 11 às 21h. Sábados, das 9h às 14h, na galeria do Instituto Cervantes (707/907 Sul). Informações: 3242 0603. Classificação indicativa livre.

Cinco perguntas para Max:

De onde vem seu pseudônimo? Eu procurava um nome que soasse igual em qualquer idioma. Um dia, vendo um livro de Max Ernst, um dos meus pintores favoritos, me fixei em seu nome. Naquele momento (final dos anos 1970) era um nome muito pouco conhecido na Espanha.

Em que obra você está trabalhando atualmente? Se chama Vapor. É uma novela gráfica de 110 páginas em preto e branco, sobre um homem que está cansado do mundo e decide ir ao deserto buscar um pouco de paz mental. Mas as distrações do mundo moderno o perseguem até lá. Começa como uma comédia e termina como uma história de horror metafísico.

Como você mantém e renova o interesse pelo trabalho? Assim que um trabalho fica pronto, me dou conta de quem não estou totalmente satisfeito com ele. Sempre penso que o próximo pode ser melhor ainda. E a curiosidade, as perguntas sobre o mundo e as pessoas são o motor para novas histórias.

Qual das suas obras gostaria de ver publicada no Brasil? Bem, gostaria de ver publicado Vapor, claro, mas especialmente Bardín, el Superrealista, que creio ser uma obra que marcou um ponto de virada em meu trabalho, onde encontrei um grafismo que buscava: minimalista e emocional ao mesmo tempo e com um tipo de humor metafísico, divertido, profundo e inquietante que creio pouca gente pratica.

Você visitará o Brasil em breve. Conhece o trabalho de autores brasileiros de quadrinhos? O único autor que conheço, e que admiro muito, é o Fábio Zimbres. Também conheço o trabalho de alguns ilustradores como Samuel Casal e Flávio Morais (que mora na Espanha). Mas o quadrinho brasileiro para mim é um grande desconhecido. Espero me atualizar na minha visita em setembro ao Rio e Belo Horizonte. Tenho certeza que o Brasil pode ser extremamente inspirador para o meu trabalho.

O eterno gato por lebre


 por Lima Neto

Olá Leitores! Começo este post afirmando que tentei não escrevê-lo por muito tempo.


Desde que o escritor Grant Morrison colocou seu ponto de vista em relação às patentes inclinações gays do conceito de Batman, na revista Playboy, passando pelo apoio “pessoal” do presidente Obama ao casamento igualitário e chegando, finalmente, ao casamento de Estrela Polar e a recentíssima reencarnação do Lanterna Verde original Alan Scott como um herói homossexual – não acreditei que este assunto deveria ser uma pauta, ou melhor, não queria engrossar a super-exposição que um assunto como esse acaba recebendo, mesmo sendo um defensor da causa LGBTS e entusiasta da inclusão social nos quadrinhos Marvel e DC. 



Joel Schumacher: já sabia
No entanto, o odor de algo podre que emana desses atuais eventos aliado à reação geral do público, tanto na rede mundial quanto ao vivo na minha loja, somado à cobertura “Praça é Nossa” que a imprensa brasileira costuma dispensar para ambos os temas – quadrinhos e homoafetividade – me convenceram a escrever algumas linhas e colocar no papel virtual algo dos meus pensamentos a respeito, e minha profunda irritação.



Para começo de conversa, nenhum destes eventos está relacionado com a melhora do dia-a-dia da população Lesbica Gay Bissexual Transexual Simpatizante do mundo.  Nenhum. No máximo eles podem ser encarados pela esfera das homoafetividades apenas como uma melhoria na representatividade. Mas o que está sendo cobrado neste escambo é algo bem mais valioso.  O fato é que as exigências desta fatia da sociedade são um prato cheio para oportunistas e moeda de troca para políticos tentando se reeleger.  E política é a palavra que amarra todos estes eventos. 



Meet your maker!
Não precisa ser um fã de quadrinhos DC e Marvel para saber que estas duas empresas, que já tiveram brilhantes momentos de criatividade no passado, hoje são apenas produtoras rigorosamente controladas de matéria prima para a indústria de cinema, constantemente ordenhadas pelas mega-empresas de mídia às quais elas pertencem: Warner e Disney. Vale lembrar que até pouco tempo, antes dos filmes de super-heróis venderem bilhões em bilheteria, tanto Marvel quanto DC não despertavam o interesse dessas corporações e gozavam de uma liberdade, restrita, mas enorme comparada com os padrões de hoje. 



Quem sofreu bastante com isso foi a casa de Super-homem, que teve que rebootar todo seu universo para  que seus personagens se adaptassem ao mercado mais “amplo” do cinema.  A Marvel, por outro lado, era uma empresa também relativamente autônoma até ter sido comprada pela Disney.  Resumindo, elas sempre foram uma indústria que segue a lógica do mercado, e agora são mega-indústrias. Some a esse panorama empresarial o apoio oportunista de Obama e o que temos é um surto de casamentos e saídas do armário que ocorrem de modo artificial sacrificando a boa leitura em favor de um golpe de marketing. Quando os holofotes estiverem virados para o outro lado, Estrela Polar voltará ao limbo onde estava escondido e Alan Scott provavelmente terá uma morte heroica.  

Obama: defensor de frascos e comprimidos?



Isso... até "morrerem de AIDS"?
Explicando. Estrela Polar foi o primeiro super-herói homossexual assumido da história, e sofreu bastante por isso sendo transformado até em fada após correr o risco de morrer de AIDS (afinal não é assim que todo gay morre?). Até há pouco tempo ele era um membro dos X-men, grupo de heróis que são uma metáfora para todos os outsiders da sociedade, e nunca se ouviu falar de um namoro sério ou de algum Kyle. Enquanto isso, na DC, o golpe de marketing e ação pasteurizante chamado New 52 abriu um leque de oportunidades a serem exploradas, faltando apenas um bom motivo.  Aí entra Obama e seu motivo e de uma hora para outra o obscuro Estrela Polar se casa e um herói de uma outra realidade é vendido como um “herói seminal da DC”. E é importante diferenciar, Alan Scott, o Lanterna Verde original “não saiu do armário” pois sua versão novo 52 que estreou nos EUA sempre foi assumidamente gay.  Se o escritor James Robinson – que no passado brilhou comandando as aventuras de Starman -  havia planejado re-introduzir Alan Scott como homossexual ou se essa foi uma decisão tomada apenas após o discurso de Obama, não importa. No fringir dos ovos tudo não passa de uma jogada e mais uma exploração do desejo humano de milhões de leitores de serem levados a sério como cidadãos.



Esclarecendo. Não tenho nada contra o casamento de Estrela Polar ou um Lanterna Verde gay, mas a maneira com que foram executadas essas histórias expõe as fundações mercantilistas mercenárias que tentam vender um eterno gato por lebre para aqueles que as sustentam desde suas fundações. Tanto Marvel quanto DC já tiveram momentos de extremo respeito ao seu público LGBTS em quadrinhos como o ótimo Jovens Vingadores e o casal Wiccano e Hulkling e, na DC, com personagens como Renné Montoya – a Questão -  e Kate Kane – a Batwoman . Personagens e histórias pautadas em um bom enredo e uma boa construção que vieram à tona através do desejo de seus criadores de criá-los e não pela obrigação oportunista de atrair clientes para a feira.  



É urgente, sim, que a representatividade social seja uma prioridade para qualquer meio de comunicação de massa. A indústria cultural é um fenômeno responsável por uma significativa parcela não apenas da educação do indivíduo quanto da própria maneira deste ver o mundo.  Representar, nos quadrinhos, nas novelas, nos jornais, uma realidade pautada na diversidade social é uma autêntica ação afirmativa que em muito ajuda, não apenas no alívio de tensões entre parcelas da sociedade, mas também na formação de indivíduos psicologicamente saudáveis e integrados a uma comunidade diversificada. Por outro lado, quando esta mesma ação é feita por motivos ulteriores comprometidos apenas com o mercado, o resultado é a invalidação das possibilidades integradoras, efetivamente aumentando o abismo entre estas parcelas sociais, ambas ressentidas por fazer parte de mais uma falácia de um capitalismo cada dia mais descarado.



Porém, deixando para trás toda essa confusão que é sintomática de um quadrinho industrial que tenta agradar crianças e adultos, mas que resulta apenas na exposição de material inapropriado para os primeiros (e friso aqui o forte conteúdo sexual constrangedor e a violência gráfica exagerada que a nova DC vem imprimindo em seus quadrinhos) e na infantilização dos segundos, nos EUA existem opções de bons quadrinhos gays que são produzidos por artistas do meio, porém com um considerável apelo ao público heterossexual: Criado por Ed Luce, o quadrinho Wuvable Oaf é uma mistura eclética de quadrinhos mainstream e underground. O personagem principal é uma espécie de urso, que no meio gay é como se chamam seus representantes grandes e peludos, que tem super força e outras características esquisitas (como fazer crescer os pelos do corpo em segundos e exalar um cheiro que atrai todos os gatos nas proximidades) e que se envolve em uma bizarra trama ao se apaixonar pelo líder de uma banda de “grind-disco” local. Muitas referências musicais, de Smiths a uma infinidade de bandas de Death Metal e participações especiais de personagens Marvel e DC disfarçados são um prato cheio para os fãs de quadrinhos, independente da orientação sexual. Outra boa pedida é Spandex, uma HQ inglesa de super-heróis sobre um grupo formado apenas por membros LGBTS e liderados por Liberty, uma travesti com uma roupa feminina que lhe dá super poderes.  



Para terminar este artigo, reitero: viva a diversidade! Queremos mais super-heróis gays sim! E mais super-heróis negros e asiáticos e índios; e super-heroínas que não são apenas gostosas de pouca roupa para a satisfação onanista de alguns. Mas que estas mudanças aconteçam porque seus criadores percebem que existe uma urgência para isso e não para transformar necessidades genuínas de minorias em mais uma mercadoria sem alma para ser vendida a qualquer custo. E se você sabe escrever, ou desenhar, faça você mesmo o quadrinho que você gostaria de ler. Este, sim, é o melhor meio de aumentar a diversidade nas HQ´s e evitar que mega-corporações se apropriem de suas carências para transforma-las em golpes de marketing.

Spandex

FESTA! UM ANO DE RAIO LASER!

RAIO LASER - Quadrinhos Além é uma publicação que busca uma visão diferente, aprofundada e dinâmica da arte deliciosa que são as Histórias em Quadrinhos. Completamos um ano em Abril e agora convidamos todos a comemorarem conosco numa festa chocante, alucinática, divertida e deliciosa! Nos acompanha também o pessoal da Ilustrativa, a incrível empresa de ilustração de Brasília, que conta com talentosos quadrinistas, e que celebra 10 anos de existência. Vamos alucinar?

O que são BDs? Um segundo corte, parte 3: Moebius

Por Ciro I. Marcondes

Moebius morreu em 12 de março de 2012. Eu havia programado um texto sobre Escala em Pharagonescia, uma de suas histórias mais interessantes e pitorescas, para a série “o que são BDs – um segundo corte”, quando, em 12 de março de 2012, Moebius morreu. Isso me fez repensar algumas coisas sobre como este texto deveria ser conduzido, e resolvi realizar apenas um comentário breve sobre Pharagonescia e encarar novamente, com toda sua complexidade, irregularidade e gordurosas gotas de primorosa intuição lisérgica, A garagem hermética, uma obra que é toda Moebius, uma obra que está toda dentro de Moebius, e a vida e morte de Moebius, de certa forma, atravessa a esteira dimensional que compõe esta obra.

Sobre A garagem hermética, escreveu Moebius: “Ao criar este sentimento de permanente insegurança, eu descobri o prazer da continuidade. Todo mês eu tentaria, com certa dificuldade, recriar uma trama coerente a partir dos elementos existentes. Então, as separaria outra vez para me sentir inseguro novamente e, assim, no mês seguinte, unir os pedaços e começar tudo de novo, até o final da história”. Este procedimento criativo, que intui as próprias hipóteses (e não as respostas) da história a partir das imagens que vão se transvisualizando no lápis do autor, é o diferencial de um artista como Moebius. Ele sai de uma noção bela, simples e ao mesmo tempo inexorável de inconsciente, como se, lá no fundo de nós mesmos, ao invés de palavras tivéssemos imagens (ainda Freud, ao invés de Lacan), e essas imagens é que gerassem nossa consciência, nosso self, tudo o que somos, e daí também, no processo artístico, os diálogos brotam das imagens, a trama brota das imagens, portas abrem outras portas, fiações geram estruturas que abrem mais portas, e a linguagem do sonho parece uma oficina organizada, mas organizada no condensar e no deslocar. É uma garagem, sim, mas hermética.

É curioso que Jean Girauld tenha adotado “Moebius” (“Möbius”) como nome de guerra para sua ficção científica lisérgica, já que o universo da garagem hermética nos coloca na perspectiva de que podemos estar vivendo em um mundo inventado – não por um deus, mas por alguém como nós –, e que a realidade se encaixa em modelos concêntricos de construção, como se, se aplicamos engenharia para construir um prédio, alguém pudesse ter aplicado engenharia para construir a nós e a esse planeta. A fita de Möbius é um espaço sem bordas e sem fronteiras, sem frente nem verso, sem direção e cuja perspectiva é a de se andar para frente e para os lados ao mesmo tempo. A predileção por este fantástico objeto matemático como nome de guerra nos mostra que, realmente, a série A garagem hermética funciona como a própria labiríntica rede de túneis em que o personagem Larc Dalxtré adentra para tentar encontrar Lewis Carnelian: podemos entrar por qualquer lugar, andar sem saber o rumo, pensar que vamos numa direção e ir para outra, mas sempre, sempre chegamos a algum lugar, geralmente o nosso mesmo ponto de partida.

A garagem hermética é uma das grandes obras das histórias em quadrinhos. Foi escrita, de maneira bastante irregular, ao longo de 10 anos (1976-1987) por Moebius para a revista Métal Hurlant, sob editoração de Jean-Pierre Dionnet. É comum que nos percamos na hora de ligar os pontos das jornadas individuais de cada personagem, especialmente na primeira metade da história, bem diferente das últimas (e aventurescas quase num nível de super-herói) quinze páginas, escritas de uma só vez. De certa forma, perder-se no labirinto do real é um objetivo da arte de Moebius. Como em Becket, seus personagens, mesmo parados, trilham caminhos, e encontram sentido (como na fita de Möbius) somente no movimento de trilhar em si, irrompendo na encruzilhada entre a fiação da realidade exterior e a da realidade interior, mediados pela tecnologia (no fim das contas, para Moebius, é tudo a mesma coisa). Para aprofundar (minimamente que seja) uma análise desta HQ, vale pensar em outros dois aspectos:

1: A superfície visual do mundo

Como eu disse antes, Moebius trabalha nesse nível plasmático do mundo, uma superfície visual mutável que faz vezes de diálogo, faz vezes de história. Na Garagem hermética, num espaço de conflito pelos botões que gerenciam a própria realidade, acompanhamos as jornadas becketianas de cinco personagens: o engenheiro (e assassino de um guarda... “pai de dois filhos”!) Barnier, que quebra um aparalho na garagem e precisa fugir (e logo encontra o misterioso Arqueiro); Samuel L. Mohad e sua namorada Okania, responsáveis por espionar os planos de Lewis Carnelian; Larc Dalxtré, por sua vez um espião da mulher do Major Grubert, Malvina, a feiticeira sexual; o próprio Major Grubert, famoso personagem de Moebius, um humano que descobre a chave tanto da imortalidade quanto da criação de mundos, e é o responsável pela criação dos três níveis do universo da mitologia de Moebius, sendo cada nível mais puro que o outro, um como gerador do outro (mais ou menos como no filme “A origem” ou na HQ “O reino dos malditos”); e, por fim, Lewis Carnelian, humano da geração de Grubert, a quem foram conferidos poderes especiais pelo Nagual (“aquele que permanece imóvel e silencioso no centro da teia do tempo”, oh my god...), e que pretende, de alguma forma, tomar conta dos níveis do universo de Grubert, gerando aí toda uma série de tramas, espionagens e desventuras em busca desse centro de poder. Como se pode ver, os entrecruzamentos destes personagens são vagos, num quebra-cabeças impreciso, nada wellesiano, e cercado de paisagens estranhas, dobras e vácuos no tempo e na realidade, a partir de veículos esdrúxulos, culturas esquisitas, indumentárias e modas cruzadas, arquiteturas oníricas, mundos que abrem passagem uns aos outros. Seria, assim, um flanar pela própria estrutura interdimensional do espaçotempo.

Poderíamos pensar, sem querer trazer conceitos filosóficos demais (sem necessidade) a este texto, que a  imagem, essa plasmadora do quebra-cabeças, para Moebius, funciona como o conceito de imanência para o filósofo Gilles Deleuze: ou seja, dessa superfície onde repousam todas as coisas tangíveis, brotam todas as outras intangíveis (os incorpóreos). Basta pensar o método de quadrinização de Moebius, que, apesar de mudar no decurso da série, teria uma propensão mais centrípeta (cada quadro é um universo em si, com linhas de ação e tempo acontecendo dentro de uma só imagem) do que centrífuga (a arte sequencial narrativa da HQ de tradição mais americana, muito dependente da sarjeta, sem as lacunas de Moebius, funcional). É comum, n’A garagem hermética, que três ou quatro quadros resumam situações bastante complexas, com diálogos extensos, alongando o tempo de observação das próprias imagens, ou o contrário: diálogos lacônicos cuja função será privilegiar a imprecisão temporal da história. Moebius realizava, durante muito tempo, apenas duas páginas por mês, então é natural que se compreenda a Garagem hermética como uma estrutura de sistema solar, onde cada pequeno núcleo orbita os outros, mas de maneira relativamente autônoma. Neste sentido, o vagar dos personagens pelas fendas do mundo do Major Grubert é ao mesmo tempo o vagar das palavras pela imprecisão das imagens (ou vice-versa) e o vagar dos acontecimentos do mundo por essa estrutura plasmática que seria a imanência deleuziana. É por isso que vemos, n’A garagem, tantas contribuições de metalinguagem, com o narrador dos letreiros cada vez mais aloprado e sem funcionalidade, assim como também uma variação muito exótica entre humor e drama, aventura barata e densidade filosófica. Os túneis de Larc são, em todos os níveis, alegoria da própria transcendentalidade, em todos os níveis (artístico, real, filosófico) da visão de mundo de Moebius.

2: Transmutabilidade

Assim, chegando em Escala em Pharagonescia, é impossível não pensar neste precisamente bem-executado spin-off d’A garagem hermética como um epílogo mais organizado e simpático do que a obra maior de Moebius. Afinal, aqui, Moebius problematiza a situação do estrangeiro, da figura em passagem (mais uma vez, becketiano), que procura se alojar, por um dia que seja, na cultura antípoda, mas isso acaba por revertê-lo numa mutação: no sentido alegórico da história, uma mutação existencial. No sentido literal, uma mutação física. Moebius não explica tecnicamente (é claro. Ele deixa apenas deixa que se antevenha que aquela “magia” possui algum fundamento técnico, ou melhor, mecânico, seja ele qual for) a razão porque, após beber uma coisa de um jeito errado, o terrestre J.D. Foster, numa escala no planeta Pharagonescia (bem na fase IV do dia das mutações! Seja lá o que isso signifique...) passa a sofrer mutações cada vez mais estranhas, com sua estrutura molecular se reorganizando o tempo todo. Chega um momento em que os Pharagos, tentando resolver o problema, casualmente soltam diálogos deste tipo: “Ah! Não é estranho? Saiu do estado de Pnouche... pra entrar no estado ‘ultrafluidez molecular osk-bergam’”. “Estado ‘ultrafluidez molecular osk-bergam,’ claro, claro. O problema é que estamos exatamente no dia da festa das mutações e que a conjunção das três luas e do grande fasma resulta naquilo que vocês bem sabem”...

Ao trabalhar o conceito de mutação como algo pertencendo a um universo absolutamente alienígena (“ultrafluidez molecular osk-bergam”), mas ao mesmo tempo colocando os personagens para discutirem esse cotidiano com imprevisível familiaridade (“O problema é que estamos exatamente no dia da festa das mutações e que a conjunção das três luas e do grande fasma resulta naquilo que vocês bem sabem”), Moebius faz verdadeira ficção-científica. Suas imagens e seu texto servem ao mesmo tempo para que pensemos em seres cuja fragilidade molecular permite que se transmutem, em nível atômico, como atividade ritual, fazendo-nos refletir sobre a fluidez ou cristalidade do mundo subatômico, no que fomos, no que somos e no que seremos; e ao mesmo tempo para criar um cotidiano absolutamente entediante ao redor de quem vê essa cultura de uma perspectiva interna, como um lixeiro tendo que varrer as merdas dos turistas ao final docarnaval carioca. Esta tensão entre humor e metafísica é o que acaba extenuando a qualidade de Moebius como artista sem fronteiras, cujo hermetismo pode variar de edificações de mundos com leis próprias até a simplicidade de um humor anedótico e chulo. N’A garagem hermética, há um momento em que o Major Grubert faz perspicaz observação: “às vezes, o próprio tempo sonha”. E era mesmo isso que seus universos, e o próprio Moebius, faziam parecer querer ser: sonhos do próprio tempo. Em 12 de março de 2012, o tempo despertou, e nos deixou, ao que parece, numa eterna vigília.  

Panorama da HQ chilena



É com muita satisfação que a Raio Laser recebe suas propostas de colaborações, que têm crescido, com pautas interessantes, dentro do nosso conceito. Foi numa dessas que conhecemos o Gustavo Trevisolli, que colaborou com nosso parceiro Pipoca e Nanquim, e que nos ofereceu um texto muito interessante sobre a cultura de quadrinhos chilena. Ei-lo! E eis as informações sobre nosso mais novo (e jovem) colaborador: Gustavo Trevisolli tem 21 anos e é Analista de Suporte. Ele atualiza um um site onde coloca textos mais curtos e notas sobre opiniões mais pessoais e ilustrações com algumas tiras e charges (quando tem tempo de scanear). Vai lá.

Pra não deixar de meter o bedelho, vou indicar eu mesmo também uma HQ chilena que passou em branco no texto do Gustavo. Trata-se de Humanillo, uma coletânea do já veterano ilustrador e quadrinista chileno Jorge Quien. Adquiri esse livro numa viagem para a Argentina no começo de 2011 e coincidentemente estava-o lendo agora. Quien é um quadrinista diferente e sensível, de matriz poética, procurando reverter o valor e lugar dos objetos e das coisas, muitas vezes ilustrando poemas de outros autores. Destaco esse quadro aonde ele faz o grande Frank Herbert, autor de Duna, apresentar a si mesmo a um personagem. (CIM)

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por Gustavo Trevisolli

Nas férias decidi com a minha esposa fazer algo diferente: uma viagem a algum país da América do sul. Como ela já conhecia a Argentina, ficamos entre Peru e Chile. Queria conhecer o Chile principalmente por ser a casa de Neruda, além de ser conhecido como um dos países mais culturais da América do Sul. Depois de pesquisar bastante, percebi que, além de Condorito, não havia muita coisa sobre os quadrinhos chilenos das quais se teria algum conhecimento ou divulgação no Brasil. Resolvi
dedicar então algum tempo de minha viagem fazendo uma pesquisa informal em Santiago, sobre a produção e distribuição dos gibis chilenos.


Depois de andar pelos bairros de Lastarria, Centro, Providência, Bella Vista e adjacências, cheguei à conclusão de que o mercado americano não oferece muito poder sobre o Chile: os quadrinhos do Condorito ainda são muito distribuídos, sendo uma espécie de turma da Mônica. A diferença é que seu humor é mais adulto, não sendo difícil encontrar piadas sexistas ou chauvinistas em seus quadros. Geralmente as mulheres são retratadas todas de maneira igual. Os traços me lembram um pouco os quadrinhos da Disney.

O condor é um passaro (e isto todos devem saber), símbolo do Chile. Porém, o  Condorito, assim como toda a cultura em quadrinhos, em geral, envolvendo nossos vizinhos (Argentina, Uruguai, Chile, etc.) é um pouco desconhecido para nós. Se fôssemos comparar com algum personagem, ele seria o Zé Carioca dos chilenos. Inclusive, foi criado como resposta do Chile ao desenho da Disney chamado Saludos amigos, onde temos o Pato Donald se encontrando com o Zé Carioca e o galo Tríbilin (esse do México). Em 1953, Condorito ganhou sua revista própria, e tive a sorte de encontrar na biblioteca nacional chilena uma exposição sobre os 100 anos de seu criador, o Pepo, com diversas tiras e cartuns, alguns com bom humor político, às vezes explicito ou não. O interessante é ressaltar o tamanho do sucesso que a revista faz com os chilenos. Podemos encontrar edições de Condorito para ler na íntegra em uma pesquisa rápida na internet. O formato chama a atenção por abranger geralmente todas histórias em uma página. A marca registrada ficou com o pássaro terminando várias tiras com as pernas para o ar.

É meio triste admitir, mas foi difícil encontrar coisas relacionadas aos quadrinhos no Chile, principalmente de produção nacional, se formos analisar. Nas bancas em geral encontra-se, além de Condorito, algumas edições do X-Men, e (pasmem!) quadrinhos de Star Wars (os filmes adaptados em graphic-novels, e não as séries publicadas pela Mythos). Mas não desisti:  queria procurar e pesquisar mais em campo sobre os quadrinhos chilenos, e frequentei uma pequena feira onde livros e quadrinhos usados são vendidos. Encontrei mais HQs da Marvel ou DC, e perguntei a alguns vendedores se havia alguns “cómics” chilenos. Alguns me apresentaram mangás (um gênero que também está bem difundido no Chile, e é mais comum ver anúncios de aulas de mangás e encontros do tipo do que de outros quadrinhos). Alguns chegaram a dizer que não tinha praticamente nada de quadrinhos no Chile. Resolvi continuar procurando em bancas, quando encontrei no dia seguinte a loja Westcoast Motion Picture. Ao encontrá-la tive um verdadeiro choque, pois se trata de provavelmente uma das melhores lojas voltadas aos quadrinhos que já encontrei. Fiquei um tempo olhando e conversando com a atendente da loja (uma senhora que julguei ser mãe do dono). Ela não parecia entender muito e apenas indicou Condorito quando perguntei dos quadrinhos chilenos, além de algumas revistas muito antigas. Quando citei Jodorowski,  me apontou seus filmes ao invés dos cómics. Perguntei sobre quem era o dono e ela me pediu para eu voltar mais tarde. Eram dias complicados, e tentei equilibrar os quadrinhos com os passeios turísticos em Santiago, Viña del Mar, Valparaiso e uma visita à vinheda de Concha Y Toro, cidades que conheci nos últimos dias. Logo, havia apenas neste mesmo dia em questão a oportunidade para conversar com o dono da loja, já que faltavam poucos dias (que seriam ocupados) para ir embora do Chile.

Quando encontrei o dono, ele estava de saída e me atendeu muito rápido. Apesar de ser educado, ele disse que precisava ir embora e perguntou se não poderia voltar outro dia. Fiquei muito triste, pois não poderia encontrar com ele de novo. Após nossa breve troca de informações, menti dizendo que voltaria outro dia. Ele me indicou alguns quadrinhos, porém não consegui tirar nenhuma foto de dentro da loja! O lugar era alucinante, acho que a melhor comic shop que já vi. Encontrei muitos quadrinhos de diferentes estilos, além de brinquedos e filmes. Havia diversos itens que transformaria a loja em um museu, como cartazes antigos. Vocês podem conferir mais sobre a loja aqui.

Depois resolvi ir até a loja chamada “Feira do livro nacional chilena”, uma espécie de livraria gigante aonde encontramos quase quaisquer tipos de livros, muito comum no Chile. Logo, como não consegui comprar nada na loja de quadrinhos, decidi procurar, entre os conhecimentos que adquiri nesses dias, algo na livraria para trazer para casa. Não queria álbuns grandes ou luxuosos, e sim coisas que refletem o dia-a-dia do Chile. Dentre uma boa quantidade de graphic novels, de maioria importada, trouxe comigo:

* Zombies en la Moneda, onde temos zumbis tentando invadir o palácio de la Moneda. Escolhi este livro porque parecia ser um dos quadrinhos mais vendidos do Chile. Já tinha ouvido falar e é realmente muito interessante, pois eles juntaram vários autores diferentes, entre roteiristas e desenhistas, e, dentro do tema em comum, desenvolveram um roteiro base. Então temos vários estilos, do realista ao cartoon, envolvendo a história que termina com um gancho no final  (tem uma nova edição saindo, se não  me engano). Achei muito interessante essa iniciativa, que originalmente foi publicada de forma independente e separada por capítulos. Seria bem legal algo envolvendo um plot desses aqui no Brasil, não? Zumbis tentando invadir o Senado! Mas, falando sério, também temos que analisar que o palácio de La Moneda é conhecido como um dos principais pontos turísticos da cidade. Só para se ter uma noção, é lá que foi foi o palco central do golpe militar do Chile em 1973, aonde o então presidente Salvador Allende se suicidou após tropas do General Pinochet invadirem o palácio. Logo, temos na
história uma ligação direta com a ideia do quadrinho.

* Um livro de Marcela Trujillo, El diario intimo de maliki cuatro ojos. Como diz o título, , é uma espécie de diario, e eu já conhecia, antes de viajar, o trabalho de Marcela pelo seu site. Ela é uma representante forte dos quadrinhos chilenos, especialmente no meio underground. E ainda por cima por ser mulher, mãe e divorciada. E é realmente essas e outras informações de sua vida pessoal que temos na leitura de seu livro. Gosto muito do estilo dela, lembrando bastante Crumb, mas acho que o que realmente me fez gostar de seu trabalho é sem dúvida a maneira natural com a qual consegue expor sua vida, de um jeito transparente, sem medo do que vão pensar. Acho que nunca vi um quadrinho tão sincero quanto o dela. Para quem quer conhecer bem o quadrinho atual produzido no Chile, recomendo fortemente. Outro livro publicado pela autora é  Crônicas de Maliki.

* O terceiro cómic que comprei foi um mais underground e fanfarrão. Malaimagen é uma espécie de autor da área de Lastarria (bairro boêmio de Santiago. Como uma Lapa sem tanta sujeira e com lindos bairros ao invés de apenas uma ou duas ruas decentes. Acho uma parada obrigatória para tomar uma cerveja ou um petisco). Trata-se mais de um livrinho com piadas onde cada folha tem um cartoon contando elas (charge). De humor rápido e de leitura leve, temos diferentes idéias em um estilo bem comum para quem desenha, contorna e faz acabamentos dos desenhos com caneta de escrever em CD. Para quem tiver com uma graninha curta e quiser pegar um quadrinho apenas de lembrança, também dou essa recomendação.

* Menção honrosa: Aqui no Brasil também conhecemos bastante o trabalho de Alberto Montt por meio de sites onde seus trabalhos são sempre expostos. Se não me engano, um Jacaré Banguela da vida vive postando. Conhecia bem o trabalho do autor, e no Chile encontramos várias edições de suas tiras que podem ser encontradas on-line neste sítio.

 
Bom, resumindo, é isso: o Chile está vivendo um bom momento nos quadrinhos, onde autores jovens estão se destacando. Algo ainda bem regional mesmo, e pretendo viajar ao Chile algumas outras vezes ( para conhecer a Isla Negra, onde fica a única das três lindas casas do Pablo Neruda que não visitei e que, acreditem, vale mais a pena do que alguns museus, e também para conhecer o deserto do Atacama, que provavelmente é o lugar mais lindo do mundo).

Entre a utopia e a distopia: Mickey no ano 2000

Em 1988 a Editora Abril lançou três grandes e lindos volumes recompilando todas as primeiras edições de “Pato Donald”, que não apenas foram as primeiras publicações de Disney no Brasil, como também as primeiras publicações da própria Abril. E, naquela época, levado por meu pai a uma das feiras do livro de Brasília, eu estava lá, observando a linda capa do Volume 1, com Donald xerife de peito de aço recebendo saraivada de balas. Eu estava lá, e pedi a meu pai que comprasse aquele volume pra mim. Tenho certeza de que esta edição de “Anos de ouro do Pato Donald” foi muito importante para a minha formação quadrinística. Lembro-me de ler este volume algumas vezes, bastante afoito. E lembro-me de uma história em especial, que nunca me fugiu à mente depois que o volume desapareceu da minha casa, em meados dos anos 90.

“Mickey no ano 2000” é uma história do ano de 1950, e não faço ideia a quem se deve atribuir a autoria (“Copyright 1950 Walt Disney Productions”). É uma história absolutamente admirável e, nela, o camundongo recebe, de maneira muito não-usual, uma encomenda pelo correio com uma caixa e o seguinte bilhete: “Querido Mickey! Ponha esta capa invisível e verá as maravilhas do ano 2000. – Um amigo da ciência”. Se a própria noção de uma “capa invisível” já parece junk-science o suficiente, imagine o que ela – e todo o resto de vitupérios científicos que viriam nas páginas a seguir – podiam realizar na cabeça de um menino de sete anos. Essa coisa do ano 2.000 sempre me fascinou de tamanha maneira (obviamente, antes que o ano modorrento que ele efetivamente foi chegasse) que eu também aderi de um jeito um tanto irracional a outra obra de retrofuturismo que abordava (de uma maneira, digamos, ligeiramente diferente) a mesma questão: o filme 2001, um odisseia no espaço. Quando encontrei, mais recentemente, num sebo, esta mesma edição por preço até módico, catei ela da prateleria e resolvi reler esta minha incrível história de formação.

Hohoho. E Papai Noel, vai bem?

É surpreendente que uma história tão ingênua tenha sido capaz de me reencantar. Para entender o processo todo, cabe um pequeno exercício de futurologia e análise retrofuturista: após vestir a capa, Mickey efetivamente se materializa no ano 2000. Em primeira instância, temos uma investigação do nosso herói – após atravessar o simbólico portal para a nossa suposta contemporaneidade – da vida, coisas e hábitos do ano 2000. Além de engenhocas como hidrantes esquisitos e máquinas que te vestem e lavam, há um fascínio pela conquista do espaço aéreo, com helicópteros cumprindo todas as funções do nosso trânsito, a ponto de Mickey, ao observar o aero-ônibus “Bonde aéreo à praça da Sé” (a tradução paulistana é impagável), soltar a seguinte observação: “Formidável! Solucionaram o problema de transporte de passageiros!”. Se cabe um comentário ao camundongo, vale dizer que nós, habitantes verdadeiros do ano 2000, nunca sequer soubemos de um “problema de transporte de passageiros” em São Paulo... em 1950! Quão surpreso nosso herói ficaria se pudesse como realmente andam essas coisas nos anos 2000.

Além de algumas previsibilidades interessantes e acertadas, como as videoconferências e a emulação de algumas contingências sociais derivadas disso, a primeira parte é toda motivada por um espanto do personagem (junto com Pluto) em relação a uma tecnização absoluta do mundo: pessoas se alimentando de pílulas, vendendo terrenos nas nuvens, mendigos dormindo em redes flutuantes. Há outros tipos de comentários sociais neste “admirável mundo novo”, como a presença de um “olho elétrico” que impede que Pluto entre num mercado avesso a animais. Todo este ato, corolário da eficiência da tecnologia (e de um mundo racionalizado pela técnica) ganha seu comentário definitivo quando Minnie é sequestrada por Bafo de Onça (“Pete”), e Mickey se dirige à polícia. Lá ele toma conhecimento de que “não há crimes no ano 2000” (estranho: se não há crimes, pra quê existe polícia? E estranho essa designação de “ano 2000” como um lugar, e não como uma época). Em 2000, uma conquista do espaço aéreo como espaço de habitação e convivência (alguém aí lembrou o Elevado de São Paulo?) e uma tecnologia capaz de realizar tudo que precisamos (inclusive plantando árvores artificiais para nós) leva o mundo a uma utopia. Quase uma utopia comunista, conforme Marx havia imaginado que teleologicamente aconteceria. É irônico que esta história tenha sido escrita dentro da empresa de maior pegada industrial de quadrinhos dos EUA, no meio da era do macartismo.

 A essa altura, a história já era suficientemente interessante sob vários aspectos, mas ela melhora ainda mais no segundo ato quando descobrimos que Bafo de Onça (conflito!) vive dentro de uma nuvem onde existe uma outra abordagem sobre a tecnologia, complexificando enormemente a versão ingênua do primeiro ato. Aqui, nosso herói deve se deparar com um mundo perversamente tecnizado, dominado por um ditador à 50’s (o próprio Bafo), que pretende, nada mais e nada menos, que “conquistar o universo”. Neste seu reino particular, Bafo controla um exército de autômatos (“robots são como autômatos”, eles precisam explicar) que usufruem de todo tipo de armas e techno bubbles, assim como compõem as divisões de defesa, política e organização de uma sociedade inteiramente não-humana. Prevê-se uma substituição completa da humanidade por duplos mecanizados, obedientes, seguidores de programações . Uma distopia se anuncia, e Mickey se depara com horripilante perspectiva ao perceber que Bafo havia construído um clone mecânico seu, com suas virtudes de herói, mas revertidas para a servidão. Um problema do complexo de Frankenstein, da tecnofobia, e um comentário sobre cibercultura contemporânea se estabelece: se nosso duplo fáustico for um duplo mecânico, devemos temê-lo mais ainda?

Bafão

Tudo caminha, então, para a concretização desta distopia que nos levaria à extinção quando, mais uma vez, esta engenhosa história que – à parte uma análise futurista ingênua que apontaria apenas os itens sonhadores que não se concretizaram –, numa imanência subliminar, parece entender de alguma forma nossa própria época e ao mesmo tempo lançar os antídotos para solucioná-la. Assim como Mickey, Minnie também tem um duplo robótico (a sensual Mimi, não exatamente igual a Minnie, mas cumprindo mesma função narrativa). Mimi, o robô humanizado, tão retratado na ficção científica, se apaixona por Mickey, e, lançando-se à vontade de se tornar indefectivelmente humana, sabota a operação de Bafo, reprograma os outros robôs, salva o mundo e – pasmem – ainda é tragicamente assassinada pelo facínora. No final das contas, à maneira de outro conto sombrio que também denunciava metaforicamente a tecnização do mundo (O gabinete do Dr. Caligari), Mickey desperta e percebe que tudo aquilo não passara de um sonho que ele tivera após brincar com seu sobrinho e seus bonequinhos de “robots”.

Bem, que leitura eu poderia retirar desta fábula tão bem construída em dois atos sólidos e excelente quadrinização, altamente problematizadora e invertendo relações na cabeça de um modesto garoto de sete anos? Neste mundo de 2000, excetuando-se a bobagem de prever o futuro (sempre o erro dos que pensam que sci-fi serve pra isso), vemos um ambiente onde algumas das principais questões do século 20 são retratadas de maneira dinâmica, com a possibilidade de reprogramação da distopia pela utopia utilizando das mesmas ferramentas que levaram a sociedade ao colapso: o velho paradoxo da tecnologia. Não é à toa que Mickey fantasia este mundo através de um objeto infantil, cuja premissa de repetição é a mesma da técnica. A criança que brinca (já dizia Walter Benjamin) quer continuar brincando (e não há mal nisso). Mas o adulto não pode mais brincar, e, ao invés disso, cria uma fantasia narrativa sobre o processo cumulativo, repetitivo e asséptico da técnica, que, felizmente, ainda pode ser reprogramado.