HQ em um quadro: Mandrake, doutrinador de Hollywood, por Lee Falk





















Mandrake dá palmadas virtuais em astro mirim de Hollywood (Lee Falk, 1938): voltando de uma viagem à Itália,  meu irmão veio com uma edição bem puída, datada dos anos 70, de uma coletânea de histórias de Mandrake (Editoriale Corno (!); coleção Super fumetti in FILM), incluindo um ciclo completo realizado pelo próprio Lee Falk em 1938, além de três outros dos anos 60, da ótima fase de Phil Davis. A edição é curiosamente um produto de convergência, procurando republicar heróis que haviam aparecido também no cinema. No caso de Mandrake, uma série de pequenos filmes, 12 episódios, bem vagabunda, lançada em 1939 (outros heróis da coleção incluem Doc Savage, Diabolik, Kriminal, Drácula, Fantasma, Satanik... bem legal). Como não sei italiano, para ler o gibi desfalecente e mofadinho tive que fazer um mínimo múltiplo comum de português, francês e espanhol. A coisa meio que funcionou e tornou a experiência ainda mais pitoresca. Un altro trucco di Mandrake!


O que chama a atenção para este requadro selecionado é o fato de pertencer ao arco da história (publicado pelo King Features Syndicate) escrita pelo criador do personagem, bem apropriadamente chamada "Mandrake em Hollywood", antecipando o lançamento da série para o cinema. Logicamente, esta série em quadrinhos foi publicada em tiras de 3 em 3 quadros, tornando a coletânea uma leitura bastante monótona. A arte, digamos, "primitiva", lembra os próprios primórdios do cinema - pouca ação, com baixa variação de ângulos (quase todos em "plano americano") e exploração primária de recursos básicos como flashbacks, letreiros e outros elementos dos quadrinhos. Estes "primeiros quadrinhos" eram balizados, em quase sua totalidade, nos diálogos. O conteúdo moral das histórias, porém, bem duvidoso, não parece processar a mesma ingenuidade.

Aqui, Mandrake, o mago da "magia branca" (como o prefácio do gibi faz questão de esclarecer), assina contrato como ator de Hollywood e passa a investigar casos envolvendo as celebridades de Beverly Hills. Os dois casos mostrados em "Mandrake em Hollywood" apresentam o mesmo detour moral: no primeiro, uma vedete loira e orgulhosa, namoradinha da América, que não gosta de atuar e maltrata sua dublê, se vê cair num golpe engenhoso (dá-lhe vilões!): a dublê assume sua identidade e bota a biscate na miséria. Mandrake, o enfadonho gentil-homem, passa a investigar, desvendar o caso, prender a dublê e restaurar a ordem. Nas tiras subsequentes, o fato de a atriz humilhar anteriormente a dublê não é mais mencionado. Para o velho mago, dois pesos são duas medidas diferentes. No segundo caso, ainda mais hilário, um pequeno Justin Bieber da época, o rabugento Sonny, é uma giga estrela mirim, indescritivelmente babaca, que humilha camareiros e motoristas, prestando respeito apenas à amizade sóbria de Mandrake. As coisas vão se dando assim até que alguns empregados, coerentemente de saco cheio, resolvem sequestrar o infame peralta e pedir a fortuna de 1 milhão de dólares como resgate. Claro que Mandrake passa a investigar tudo e restaurar a paz no reino de Hollywood novamente.

A diferença entre os dois arcos é que, na história de Sonny, Mandrake reconhece a personalidade "difícil" do menino e resolve usar de alguns corretivos para libertar a natureza bondosa que se escondia por trás daquele pequeno Hitler (o grande, por sinal, já chegava invadindo a Polônia naquela mesma época). O hilário é que, evidentemente, Mandrake não vai sujar suas mãos pra dar umas palmadas no moleque (afinal, quem é que bate no filho dos outros?). Então, ele cria uma ilusão (tipo um... hmmm... cinema?) que mostra a mãe de Sonny aplicando-lhe o corretivo, como se o ato passivo da espectatorialidade, conforme muito bem se acreditava a respeito do cinema na época, provocasse o distanciamento necessário para que fossem aplicadas às massas, num doutrinamento técnico, os corretivos capazes de reconstruir as imagens individuais e coletivas de um povo. Hitler que o diga! Cinema é magia! (CIM)


Quadrinhos além... do papel!












por Lima Neto
Ahhh! Terremotos! Tsunamis! Crises monetárias mundiais!
Realmente o mundo anda vivenciando um clima aconchegante de apocalipse. Mas, se o tempo e o espaço pudessem ser resumidos em uma palavra, talvez “mudança” fosse a mais apropriada. Mudança causa terror! Mudança causa apreensão! E mudança traz esperança, para aqueles que são de sentir esperança. Um desses abençoados é um velho conhecido do mundo do quadrinho norte-americano: o escritor Mark Waid, famoso pela sua visão do futuro do universo DC junto com o artista Alex Ross em Reino do Amanhã e outros trabalhos tanto para a editora da Warner quanto para a Marvel.



Mark Waid escreveu Reino do amanhã. Sujeito cabuloso
No final do ano passado, Waid deixou seu cargo de editor chefe da editora Boom!, onde publicava seus títulos Irredimable e Uncorruptible, para voltar ao estatus de escritor freelance. Mas seus objetivos eram maiores que isso, e bem mais proféticos! Waid agora é o porta-estandarte dos quadrinhos digitais. De acordo com o escritor, uma série de fatores, como a popularização de mídias portáteis de leitura, a imensa queda nas vendas dos quadrinhos impressos, o alto custo da impressão em papel, a porcentagem absurda taxada pelas distribuidoras – além de impossibilitar a entrada de sangue novo no mercado, vão mudar o perfil da indústria de quadrinhos até o ponto de dar um fim ao quadrinho impresso na maneira como são produzidos hoje nos EUA. E para ele (e para mim também) está é uma boa mudança.
Apostando em Waid, a Disn... digo, a  Marvel comics anunciou o lançamento do selo Infinty de quadrinhos online e app's de realidade aumentada, visando o mercado dos tablets. Em uma decisão sábia, colocou o próprio Waid como chefe da linha. A decisão é sábia pois Waid não só faz campanha a favor do quadrinho digital como, junto de artistas colaboradores, vem pesquisando técnicas narrativas que exploram as potencialidades do meio digital. Você pode conferir parte desse processo, ainda inicial, neste vídeo abaixo:


O resultado da parceria Waid/Marvel pode ser vista na edição Avengers Vs X-men Infinity, uma introdução à saga que você pode baixar via um código dado na compra da edição número #1. A revista tem arte de Stuart Immonen, que recebe crédito de co-roteirista. Esse crédito não é dado por acaso. Existe um leque enorme de possibilidades para produção do quadrinho online e, de acordo com o próprio Waid, a ideia não é fazer um quadrinho animado, como já houve em outros experimentos, e sim procurar a afinação correta em que se possa explorar alternativas, mas sem tirar do leitor o controle sobre o timing da narrativa. Nessa perspectiva, o artista acumula uma nova função: a de contar a história com a tecnologia disponível para a mídia digital.
O maior problema, no entanto, não está na exploração da capacidade narrativa do meio, o que na verdade é um motivo de empolgação para os artistas envolvidos, mas sim em outros aspectos mais, digamos, quantitativos. Atualmente existem terabytes infinitos de quadrinhos online sendo publicados na net. Existem graus diferentes de qualidade, é verdade, mas o grande ponto em comum entre eles é o fato de não receberem pagamento pela veiculação dos mesmos. Lógico que o grande sonho é que seu quadrinho faça sucesso o suficiente para poder daí ser lançado na mídia de revista. Mas para mapear todos os quadrinhos online sendo produzidos no mundo seria preciso uma dedicação realmente sobre-humana.
Neste panorama, o respaldo de editoras já estabelecidas no mercado poderia servir como um portal de extrema utilidade para se conhecer novos trabalhos que tenham um nível efetivo de qualidade. É lógico, porém, que tal ação funcionaria como um filtro que obedeceria a critérios muito específicos e que acabem não privilegiando a criatividade ou qualidade destas HQs.
Uma boa saída para este impasse pode estar justamente na criação de portais cooperativos de artistas associados e autônomos que possam, em conjunto, colaborar para a manutenção da produção e da qualidade buscando apoio monetário via publicidade no site. Pensar este novo lugar para o quadrinho pode ser uma boa saída frente às limitações impostas, tanto monetárias quanto ideológicas, do quadrinho impresso. Lógico que o trabalho de produção continua o mesmo e demanda o mesmo tempo. Mas o que vejo é uma boa época para que o quadrinho independente, com todo o potencial artístico envolvido neste termo e sem preconceitos de gênero (de histórias, não o sexual), possa tomar o lugar que vai ser deixado vago pelas grandes corporações em breve.
E, agora que acabo de escrever o artigo, o site Comics Alliance acaba de postar uma matéria sobre um site que ajuda a procurar quadrinhos online postando primeiro quadro de cada título. Just the first frame é o nome do site e uma boa maneira de passar os olhos por um conteúdo de quadrinhos online bem extensos e que sofre updates constantes. Outra novidade, que chegou até mim via Ciro Marcondes - uma das mentes por trás do site Raio Laser - é o Tumblr Maria Nanquim, que posta charges e tiras nacionais e gringas sempre com uma verve mordaz e com vários artistas novos. 

Daytripper: quadrinhos como vontade e representação























por Ciro I. Marcondes

Li Daytripper, dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, em um avião. De certa maneira, acabei me tornando um leitor privilegiado de uma obra que não para de receber o mais unânime e justo laureamento. No avião, você parece ainda mais dentro de Daytripper, como se esta coincidência de ironia macabra fizesse parte daquele penúltimo capítulo, de um sonho emaranhado na vida, que nunca termina. Como Daytripper nos alerta, a cada instante, da possibilidade iminente da morte (ainda que celebrando a robustez da vida), não apenas não havia como não se substituir pelo personagem Brás de Oliva Domingos (isso é óbvio, já que esta HQ fala mesmo é de mim, você, todos), como não havia como não pensar em minha própria morte, em sua iminência, naquele mesmo instante. Para quem já leu, apenas imaginem como me senti enquanto estava lendo o capítulo do acidente da TAM.  Penso que alguns não conseguissem empreender tal façanha (ler Daytripper no voo), mas a vida é esta, e o pior que podemos perder é ela própria, não é? Segui lendo, arriscando minha própria obsessão por uma morte irônica, e venci esta venturosa graphic novel.


Na página de abertura do capítulo dos sonhos, vemos Brás retornando ao episódio onírico em que se encontra, num bote, com Iemanjá, em mar aberto, rodeado por oferendas. Ela lhe diz: “Você é este barco flutuando em um oceano infinito. Estas cestas contêm desejos, ambições... forças que movem sua vontade adiante. Porém, se você ficar aqui apenas olhando para elas... cedo ou tarde... elas irão todas afundar”. Esse trecho, além de retomar a própria trajetória do personagem e dar-lhe ares mitológicos, fundamenta a linda base filosófica (schopenhaueriana, como veremos) da qual a HQ parte: a vida como insistência em resistir à força inelutável que é a morte.


Para quem ainda está por fora, um resumo didático: cada capítulo de Daytripper é um dia na vida de Brás de Oliveira Domingos – o nome nos leva ao Brás Cubas de Machado de Assis, curiosamente num romance que trata seu protagonista como meio para uma elaboração niilística e moderna da vida –, da infância à velhice. São dias fundamentais, marcados por experiências que dividem águas para o personagem. Cada capítulo é nomeado pela idade em que Brás está no momento. Isso não seria uma história particularmente incomum se, ao final de cada capítulo, não nos deparássemos com a morte do próprio Brás, sempre em circunstâncias acidentais, fazendo emergir um significado próprio da vida do personagem caso ela tivesse acabado com aquela idade em particular. A cada idade, somos um, e o que seremos no futuro será determinado tanto pelo acaso quanto por nossa perseverança.

Eu já havia escrito a respeito de outra HQ de Moon e Bá, bem menos ambiciosa, em que um mote similar se nos é (uau) apresentado: a ideia de que cada decisão nossa, a cada instante, gera um outro eu hipotético, que segue sua trilha paralela, que, por sua vez, a cada instante, gera outra trilhas, etc. Em Daytripper, esta ideia se amplifica com incomparável força lírica, colocando-nos diante de escolhas (ou acidentes) a respeito de quem nos tornamos, e como nos tornamos, e o que é, afinal, nossa biografia diante da dialética que plasma nossa vontade pessoal e as forças inexoráveis do acaso. Afinal, qual é a biografia de Brás de Oliveira Domingos? Ele é o jovem obituarista frustrado que morre em um assalto, nunca tendo conseguido sair da sombra do pai? É o escritor de sucesso que morre nas mãos enlouquecidas de seu melhor amigo? É o “pequeno milagre”, que, como uma flecha, atravessa o mundo e se despedaça? Moon e Bá criam um sistema de possibilidades, um roteiro de intervenções possíveis, um logaritmo gerador de vidas e mortes. O sentido da história, porém, convulsiona-se para o leitor: quem, quando e onde é você? Quem, quando e onde foi você? E, a mais importante, porque temos o poder de mudar: quem, quando e onde será você?

Quem, quando e onde será você?

Quando eventualmente afirmo que os quadrinhos são a forma de arte mais importante para o mundo que está se construindo no século 21, não tenho intenção de criar frases de efeito e bravatas. Daytripper aparece em um cenário cultural em que outros meios já problematizaram há muito a percepção da vida, do espaço, do tempo e da memória levando suas potencialidades ao limite. Vejamos Rashomon, de Kurosawa, e sua ideia de que a verdade é um consenso de causos. Vejamos O ano passado em Marienbad, de Resnais, em que se indistinguem a memória do fato, e a visão do personagem da própria visão do narrador, e a credibilidade do próprio ato de rememorar, tornando impossível sistematizar leitura para o filme. Já lemos o delírio como expressão da vida em Dom Quixote, já lemos a vida como jornada de volta às catacumbas do tempo, em Proust. Já lemos um dia como a própria vida, em Joyce. Daytripper faz de sua estrutura em quadrinhos e vidas simultâneas um projeto de probabilidades, e nos coloca no olho desta consciência de que devemos, inevitavelmente, calculá-las e agir, a cada instante. É um grande fardo e uma grande aventura. Os quadrinhos, em sua simultaneidade, seu vai-e-vem, acabam se tornando expressão máxima desta encruzilhada de probabilidades.

Para o leitor brasileiro, a beleza desta história tem ainda sabor especial, porque os gêmeos a situam numa cuidadosa seleção de memórias (não-clichês, vejam bem), de nosso imaginário cultural. O espaço, seja ele amplo (a Chapada Diamantina, as cidades de Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro), diminuto (um posto de gasolina numa estrada brasileira, uma mesa de bar, um quarto, um sítio), ou histórico (o acidente da TAM, a popularidade de um time de futebol, a tecnologia de cada época) nos é revelado com esmero e afetividade. A jornada de Daytripper, para nós, é também uma jornada enquanto brasileiros, revisitando com essa memória afetiva nossa própria trajetória nacional (muitas vezes não muito diferente da de Brás) através de objetos, marcas, formas, cores. Os personagens, tão cheios de humana complexidade, envelhecem e rejuvenescem com verossimilhança, e Daytripper não deixa de ser também um estudo sobre a fisionomia humana.


Destino schopenhaueriano

Por fim, vale pensar uma conclusão de base mais filosófica, já que, afinal de contas, a HQ trata, de maneira muito específica e direta, da vida e da morte. E é fácil levar uma leitura focando em algum tipo de épico íntimo (é um paradoxo, eu sei) que traceja o rompimento brusco entre a grandiosidade de cada momento da vida e a obtusidade da morte. Porém, pensando em um filósofo como Schopenhauer (e podemos avançar para um procedimento psicanalítico, em Freud, ou científico, em Richard Dawkins), nós somos movidos por um ímpeto originário e gerador de todas as coisas, chamado Vontade, que nos impele, em moto perpétuo, adiante.

A irrefreável Vontade é, de maneira um tanto platônica, o movimento natural e invisível de todas as coisas, combustível processador e gerador do mundo e que é, no fim das contas, o mundo em si. Essa Vontade – que é ao mesmo tempo nosso instinto de sobrevivência, o pulsar de nossa consciência, nossa sensação de presença e nossa força libidinal – se manifesta em seu duplo material, a Representação (todas as coisas que vemos, sentimos e percebemos), em cuja multiplicidade se replica, em cada mínimo ser, a centelha da Vontade. O objetivo da Vontade é, num mundo de Representação, a manutenção da própria Vontade, e isso basta enquanto “sentido da vida”. Queremos arrumar trabalho, diversão, felicidade, satisfação espiritual, afeto, sexo e reprodução simplesmente porque estes são caminhos válidos e inquestionáveis para que nossa Vontade possa continuar existindo. Aspiramos não apenas a continuar vivendo, mas à imortalidade em si. A morte, é claro, seria o cessar da Vontade.

Quando os gêmeos falam em “Você é este barco flutuando em um oceano infinito. Estas cestas contêm desejos, ambições... forças que movem sua vontade adiante”, estão trazendo este destino schopenhaueriano, com toda sua pungência, ao mundo dos quadrinhos. E que melhor mídia que os quadrinhos, com sua mistura de simultaneidade em sucessão, linguagem simbólica (palavras!) e icônica (imagens!) para nos desvelar um mundo de vontade e representação? Quando lemos Daytripper, tememos a morte (como temi no avião) e refazemos a trajetória da nossa vida com intensidade e sufocamento justamente porque esta HQ atinge o coração de nossa Vontade, acendendo-lhe a centelha iridiscente. E daí passamos a olhar quem somos, em nossas dores e amores, em percalços e desventuras, em nossas origens familiares, nossos habitats, nossos céus e infernos particulares. Coisas, é claro, que nos distraem enquanto procuramos ludibriar a presença da morte, que, como Daytripper bem mostra, está sempre à espreita, em qualquer lugar, em qualquer circunstância, a cada momento, a cada etapa da vida.

             
                  

Supernirvana: All-star Superman no Iphone






















por Ciro I. Marcondes

Nos últimos tempos, vem me ocorrendo essa necessidade inexplicável de retratações ambíguas, e é um tipo de processo um pouco angustiante, mas satisfatório. Justiça seja feita. Se em primeiro lugar veio um texto baita elogioso sobre Thor, chegou a vez de pensar novamente em Superman. Este texto já estava planejado, mas vem a calhar, já que não vale a pena ficar pensando no Super apenas como um fetiche cultural do bully ou do escoteiro. Partindo do mesmo Grant Morrison de quem parti em “Superbully Americano”, a ideia é trazer uma visão espelhada, em tudo um negativo da outra, da primeira apresentada.

Eu já vinha lendo a HQ All-star Superman antes mesmo de começar a ler o Superman crônicas, que inspirou o texto “Superbully americano”. Escrever sobre Superman já era um interesse de longa data. Acho que, nessa altura de vida e dos nossos tempos, cabe pensar um pouco num dilema difícil, que acompanha as pessoas no presente. Que tipo de homem deve-se querer ser? Deve-se avançar até o limite de sua própria potencialidade e produtividade, buscando superar sempre as próprias condições de atuação no mundo? Ou deve-se conformar com nossa condição limitada, mortal e modesta, tornando-se o homem comum uma carapuça confiável e justa, dentro da condição de cada um em alcançar a própria felicidade?

Acredito que o mito de Superman tem a ver com isso. Usei, portanto, a minissérie All-star Superman (publicada em 2007 pela Panini sob título Grandes astros Superman), cultuada parceria do escocês Grant Morrison com o célebre ilustrador Frank Quitely (publicada originalmente entre 2005 e 2008), para ao mesmo tempo instigar este tipo de questão mais filosófica sobre Superman e testar a leitura de uma HQ mais longa no Iphone, procurando pensar também na mudança de input na recepção da leitura dos quadrinhos que este tipo de gadget proporciona.

Uma tarefa, portanto, que resume certo grau de imaterialidade e eternidade (“buscar os aspectos quintessenciais da mitologia do Superman”, parafraseando Morrison) com a fortuita mudança de suporte para os quadrinhos, que pode ser bem passageira e sugere volatilidade (ler pelo Icomics no Ipad ou pelo CDisplay já é diferente, e não sabemos qual(is) modelo(s) de leitura digital pode permanecer). Vou dividir este texto, então, em pequenos blocos alternando comentários pontuais sobre All-star Superman em si e outros processando as sacadas que a dinâmica para quadrinhos que o app da DC para Iphone (que é idêntico ao da Marvel) me proporcionou. Espero que gostem da leitura.

"Não tem jeito fácil de dizer isso, então vou dizer logo!"
1 – Supercâncer: Para os que não conhecem, All-star Superman foi um segundo lançamento desta série All-star, que buscava resgatar, fora da cronologia “oficial” da DC (e pensar que agora tudo já se esculhambou mais ainda), aspectos interessantes dos heróis clássicos, revalorizando determinado conceitos. Esta história é geralmente pensada como uma espécie de criação do livro de mitologia definitivo para o Superman, trazendo de volta a beleza arquetípica de cada personagem importante envolvido em seu universo. O plot básico é muito simples, mas se complexifica: Luthor consegue fazer com que Superman entre dentro do sol para realizar um perigoso resgate. O contato tão violento com a colossal virulência energética do sol produz uma absurda sobrecarga nas células do próprio Superman (lembremos que é justamente a influência do nosso sol amarelo que dá os poderes ao herói). Ele desenvolve novos poderes, sente-se ainda mais invulnerável (e eu que já pensara que ele próprio era o limite disso tudo), mas logo descobre que esta sobrecarga fará com que, logo, suas células se convertam em energia pura. Ou seja, Superman está condenado à morte, através de uma espécie de supercâncer. Este conhecimento revoluteia em nosso herói, que, impassível e com clareza de raciocínio também amplificada, reconhece o próprio papel que exerce no planeta Terra e decide realizar doze tarefas profeticamente atribuídas e ele, afim de, determinadamente, deixar tudo organizado para que o mundo possa sobreviver “bem” sem a presença de um Superman. Cada edição da série é, ao mesmo tempo, voltada nostalgicamente a um personagem ou ambiente do universo de Superman. Assim, vamos nos deparando com enfoques distintos em Lois Lane, Jimmy Olsen, o Planeta Diário, Lex Luthor, a dinastia futura dos Supermen, os Kents, Lana Lang, Smallville, o Planeta Bizarro, Kandor, a Zona Fantasma, etc. Analisar em detalhe isso tudo seria perda de tempo e redundância. Vou me ater ao conteúdo mais reflexivo que vi na série.

2 – Um Apolo, um Buda, um Cristo: Acho um engano pensar que All-star Superman seja algum tipo de concentração mítica das características quintessenciais associadas ao Superman. Vamos pensar que, coletivamente, a figura do Superman em muito se distanciou de sua representatividade para os quadrinhos. Para quase todo cidadão comum, Superman é uma figura prototipal e genérica do super-herói em si, traduzida na fórmula “valores morais padrão (estilo “direito humanos”) + poder para resolver isso na base da porrada, ultrapassando legislações e fronteiras nacionais". Superman, na coletividade, acaba sendo mesmo um supersoldado ocidental guiado pelo senso comum, mas ao mesmo tempo incapaz de um traquejo mais malicioso com as condições mais banais da vida humana. Pensemos que ele é eternamente incapaz de resolver sua situação com Lois Lane, sendo nesse sentido bem humano, bem impotente (sabe-se lá em que graus de impotência. Vamos reconhecer que ele deve ser, quase com certeza absoluta, virgem!).

Virgem?

Frank Quitely
Não é este o Superman que Morrison inscreve em All-star Superman (ainda bem). O elegante herói que vemos aqui, de profunda (e quase religiosa) nobreza de caráter, de estoica consciência sobre sua própria condição, e possuindo enorme sagacidade e límpida inteligência, é um desdobramento da cultura quadrinística a respeito do herói, e são seus leitores fiéis é que transpiram esta nostalgia e são consumidos pelo caráter zen e holístico da história. Neste sentido, esta série atravessa o mundo científico louco e surreal de Superman, com suas cidades encolhidas e universos ao contrário, com seus viajantes no tempo e criaturas que devoram sóis. O grande magnetismo, com desdobramentos probabilísticos e quânticos que Morrison (um notório interessado em psicotrópicos fortes e contracultura transcendental) provoca com esta história não parece ser exatamente o lado humano de Superman, mas o reconhecimento de sua condição divina, num entrecruzamento de fábulas, levando tudo isso a um patamar de maturidade e fazendo do personagem uma serena e empolgante mistura de Apolo, com Cristo, com Buda.

A arte de Quitely com certeza ajuda a reforçar estas ideias. Dono de um traço leve e humanístico sem deixar de ser escultural, ele ilustra estas disposições embelezando componentes de mitologia com fascinante detalhismo, mas mantendo os personagens com expressões bem puras. Este apelo meio renascentista (a leveza dos seus gigantes sempre me pareceu um pouco botticelliana), meio barroco (neste caso, a multitude de objetos e cenários) parece mesmo transmitir esta tensão, tão secular, entre razão e espiritualidade que a série deixa transparecer.
3 – Quadrões? Adquiri as 12 edições de All-star Superman pela próprio reader da DC no Iphone, e o ato de comprá-las é simples, rápido e eficaz. Cada uma delas custou $ 1,99 e, na conversão atual do dólar, a série completa saiu por cerca de R$ 18. Achei honesto. Em princípio, a leitura de uma HQ mais densa no Iphone pode chamar atenção pelo desconforto (o aparelho, ao contrário do Ipad, é muito menor que uma revista), e muitas vezes mesmo os quadros individualizados na interface dele são menores do que os publicados em papel originalmente. Porém, o dispositivo que o aplicativo oferece pra resolver esse problema é não só interessante para travarmos um contato mais minucioso com a arte da HQ, como provoca esta sensação curiosa de aproximar as HQs do cinema. São 3 fatores que me fazem arriscar a dizer isso, e este é o primeiro deles. Explico: no Iphone, temos a opção de ver, antes ou depois de ela ocorrer, a página inteira miniaturizada, mas uns 90% da leitura se dá quadro-a-quadro, cada um deles projetados integralmente na telinha. Cada “quadrinho”, portanto, se torna um “quadrão” individualizado.

A vantagem que temos, nesse caso, é a de passear livremente pela superfície desse “quadrão”, aplicando todo tipo de zoom, ao nosso bel-prazer. Nosso olho se torna mais móvel, e nosso dedinho, correndo pela imagem, uma extensão daquele. Isso tudo me lembra a pioneira teoria cinematográfica de Hugo Munsterberg, quando ele dizia que o cinema era um dispositivo que replica nosso próprio processar mental: se o “quadrão” do cinema nos joga diante de um close-up ou um zoom, ele estaria replicando nosso ato físico de aproximar o olho de um cenário ou objeto, com a diferença de que, neste caso, estamos paradinhos na poltrona e o “mundo” se movimenta em direção a nós. No caso da HQ pelo Iphone, um fenômeno misto ocorre: nosso “olho”, mediado pelos dedos, se aproxima do “mundo” desenhado pelos quadrinhos mas, nesse caso, ele não é “dirigido” pela temporalidade cinematográfica, mas sim pela nossa velocidade própria de leitura, conforme fazemos sempre nos quadrinhos de papel.

aqui tem uma resenha em vídeo do app da Marvel:



4 – O gênio de Superman: Para mim, o melhor par de nêmesis do mundo dos super-heróis continua sendo (e creio que sempre será) a querela Superman x Lex Luthor, por suas condições que evidenciam uma proporção inversa: nosso herói é invulnerável, e poucas coisas podem realmente lhe ameaçar. Sua condição de defensor é quase um truísmo: ele deve proteger, supostamente porque não há nenhum outro capaz de fazer isso. Morrison evidencia isso no final da história, quando enquadra Superman como um tipo de consciência cósmica, enxergando os fios transcendentais que unem os aspectos da realidade e tornando sua função de defensor e unificador uma inevitabilidade.

Clark...

Porém, nosso senso comum coloca sempre Superman como condicionado por uma moralidade autoevidente, do tipo “tem um prédio em chamas? Vou lá salvar todo mundo e apagar o fogo”. Mas as nuances da moral com certeza não são autoevidentes como a cultura do bom-mocismo quer passar, e é nesse ponto que Luthor – uma figura fascista, 100% compenetrada na certeza de que sua própria inteligência e genialidade são também truísmos e de que é uma conclusão lógica que ele deva ser o governante mundial – estabelece o contraponto básico desta relação: pode um homem normal, munido apenas de arrogância, autoconfiança ensandecida e genialidade, derrotar algo fisicamente indestrutível e guiado por um senso moral comum, mas sólido e legitimado?

Aqui, Morrison dá uma resposta que subverte os clichês de ambos os personagens, sem sacrificar a tal “quintessência” deles. O “câncer” de Superman e todo o plano de matá-lo é previsivelmente uma grande arquitetação de Luthor, e até aqui nada parece estar fora do lugar. Porém, a grande sacada do escocês é a ideia de que Superman simplesmente não é quem ele parece ser. Filho de uma linhagem avançadíssima de seres alienígenas, Kal-El não herda simplesmente a sobrenaturalidade física de seus ancestrais, mas também uma inteligência sobrenatural. Lembremos que Kal-El/Superman/Clark Kent é filho de Jor-El, o mais brilhante cientista de Kripton, e Morrison o transforma também em um tipo específico de cientista. Em All-star, Superman sabe muito bem o jogo de disfarces que precisa operar em suas várias identidades na Terra, mas é a consciência sobre-humana de kriptoniano que parece ser seu local de maior conforto. Como parte de seu testamento, Superman lega à humanidade a fórmula para que, após seu fim, um novo Superman (“Superman 2”) possa ser criado. Enquanto isso, desenvolve em laboratório uma “mini-Terra” em que tudo no nosso mundo é igual, mas sem a existência do Superman. Morrison faz sua homenagem ao universo do leitor fazendo-nos perceber que esta Terra experimental é o nosso próprio mundo “real”, e Superman aparece como personagem de quadrinhos, criado por Siegel e Shuster.

Enquanto isso, Luthor é condenado à cadeira elétrica por crimes contra a humanidade, e a edição em que Clark vai entrevistá-lo para registrar suas últimas palavras é uma das melhores da série. Arrogante, Luthor não admite temores (muito menos da morte), e sua visão e simpatia pelo abobalhado Clark como o absoluto oposto de Superman é a grande aporia que faz seu plano naufragar: gênio como poucos, Luthor (como todos) não enxerga o óbvio. Na última edição, a relação finalmente se inverte e coloca os personagens em suas reais limitações. Superman já está no fim de sua vida, muito enfraquecido pela “doença”, e Luthor (por meio de algum technobubble que não me lembro direito) adquire os poderes divinais do herói por 24 horas. Tudo parece perfeito para a conquista global, se Luthor simplesmente não ficasse paralisado em meio uma epifania causada pelo estado de ser Superman, em sua consciência superior, por algumas horas. O contato não com os superpoderes, mas sim com a ontologia divinal, deixa Luthor confuso a respeito de seus propósitos, e ele reconhece uma verdade ao mesmo tempo mística e científica nas ações altruístas e na compaixão de Superman. A ironia de tudo é que este estado é provocado após Luthor ser atingido por um raio gravitacional (?) por um frágil Clark Kent, acelerando a superconsciência do vilão. No final das contas, a inteligência se prova um estado mais refinado que o de elaborar grandes planos.


5 – Fim da página: Ler quadrinhos no Iphone logicamente nos distancia do conforto físico que é o ato de virar páginas e dobrar uma revista. Esta imaterialidade não é o único problema, já que o próprio formato do Iphone é um pouco inadequado para este ato. Ler na cama, por exemplo, requer uso constante das duas mãos, e isso se torna cansativo. Essa projeção do mundo de quadrinhos para uma completa imaterialidade tem também um desdobramento na própria percepção do conteúdo, e mais dois aspectos fazem isso se aproximar de percepção imaterial que é o cinema (ninguém “toca” o filme, certo?).

Em primeiro lugar, a abstração da noção de página. Por mais que a gente vá acompanhando mais ou menos a disposição dos quadros num vislumbre rápido da página, a sensação geral é de um emaranhado impreciso de “quadrões” em sequência. Para alguns, aqui a arte dos quadrinhos perde algo essencial. Como diz o pesquisador David Carrier: “A página não é um elemento neutro, meramente passivo, e sim constitui um aspecto visual distinto e ativo”. As incríveis páginas de temporalidade simultânea, específicas das HQs, na edição da fuga de Luthor, por exemplo, passam batidas, no Iphone, a um leitor incauto. O efeito disso, portanto, é de pura virtualidade: tudo aquilo que se transmite como uma simultaneidade expressiva (a página, a ordem e a disposição dos quadros dentro da composição da página) se converte em uma simultaneidade em sucessão, quando, sintaticamente, temos que absorver a história numa linha bem mais direcional, imagem por imagem, exatamente como é a (imensa) sucessão de “quadrões” do cinema.


Este efeito se confirma com mais um recurso do reader da DC para Iphone: os movimentos de “correção” que adicionam um grau de temporalidade e duração aos quadrinhos. Ora, a gente sabe que os quadrinhos possuem uma temporalidade complexa a intricada, basta ler o velho McLoud, mas a noção de “duração” era bastante ausente, justamente porque os quadrinhos são mesmo... parados. No Iphone, cada quadrinho acaba sendo dividido em sub-partes que vão sendo mostradas, num interessante movimento automático feito pelo aplicativo, uma a uma, em detalhes, para o leitor. Assim, certo suspense pode ser acrescentado a um mesmo quadro quando, por exemplo, ao lermos o detalhes da fala de um personagem, não sabemos a forma e o teor da resposta do interlocutor no mesmo quadro (o que seria visível numa leitura de HQ física). O corretor “oculta”, então, os detalhes adicionais, não só enrijecendo a ordem com que lemos as HQs como mostrando os detalhes na medida em que vamos pressionando a tela, criando movimentos e dinâmicas específicas dentro do quadro. Esse proto-movimento nos aproxima, é claro, de imagens animadas, e muitos querem sugerir que, no futuro dos quadrinhos, está o desenvolvimento deste potencial.

(fiz um videozinho pra demonstrar esses efeitos todos. Perdoem os aspecto... hmmm... rudimentar da minha câmera)




6 – Super-nirvana: Por fim, e como conclusão, vale mais uma observação a respeito de um ato de All-star Superman. Duas edições dela são dedicadas ao aparecimento do planeta Bizarro (“Htrae”), dos confins de uma dimensão inferior, na órbita da Terra, que é invadida por genéricos “bizarros” que passam a assumir formas “bizarras” da população. Esta ideia, do Bizarro (bem popular no desenho “Superamigos”), pode parecer invenção maluca e ingênua, mas às vezes as ideias simplesmente se complementam sem a gente perceber. Se a mitologia de Superman é em tudo um conto sobre a perfeição, no planeta Bizarro tudo é tão absurdamente imperfeito que nem mesmo Superman pode fazer qualquer coisa por ele (neste caso, em sua infalibilidade, Superman é o mais inútil dos seres). Já fraco e próximo do fim, Superman é tragado para a superfície do planeta, e todo seu esforço pode ir por água abaixo porque ele já não pode voar e perde a superforça. Sua única salvação se encontra em construir um foguete e voltar para a Terra. Este plot, porém, não é mais interessante do que a aparição de Zibarro, um tipo de desdobramento do Superman de tal maneira raro em Htrae, com uma genética tão única e acidental, que possui... inteligência, consciência, talento e sentimentos. Zibarro é ridicularizado pelos outros “bizarros” por ser considerado uma aberração, e se queixa de sentir colossal solidão. Este episódio em Htrae é um dos mais poéticos da série não apenas porque, a partir de uma relação negativa, conhecemos a solidão divina do próprio Superman, mas também porque é um dos momentos em que a arte de Quitely se supera, criando uma paisagem vermelha, apocalíptica e desoladora, inundando a HQ com comovente tristeza gráfica.

Bizarro

O contraste trazido à tona por Zibarro, o poeta solitário de Htrae cujo único sonho é se sentir normal, num mundo de normais, nos traz de volta àquele primeiro questionamento, entre a ambição do “super” e o conforto estoico do “comum”. Morrison evidencia, com Luthor e com Zibarro, que “caminhar sobre ombros de gigantes” nem sempre é uma experiência de magnitude, a não ser a magnitude sublime do abismo, a terrível solidão dos deuses e gênios. Estas passagens nos transmitem as nuances da visão de mundo atribuída a Superman, e a maneira com que ele sublima todos estes paradoxos curiosamente remete a uma ideia clássica do imaginário do super-herói: a persistência. A despeito destas trevas trazidas à tona pelos outros personagens, em nenhum momento Superman, Kal-El, Clark ou todos juntos parecem hesitar. A atribuição de Superman é da autoconsciência de um destino cósmico, de uma razão já calculada sobre suas ações no mundo, de uma investigação já encerrada sobre as fronteiras da moralidade. Este Superman de Morrison é um ser olímpico, apolíneo, e a dúvida é um benefício (?) dos mortais. Diante de sua própria morte, Superman não hesita e insiste em cumprir, irrevogavelmente, todas as suas doze tarefas com perfeição, deixando a humanidade preparada para sua ausência.

Zibarro

No final da história, num ato de metempsicose que remete às experiências com o oculto de Grant Morrison, Kal-El já está numa dimensão de certo além-vida, em transfiguração da matéria que torna oblíquos o tempo e o espaço. Ele vive numa vida em que Krypton nunca foi destruída, e, conversando com seu pai Jor-El, percebe que não cumpriu todas as suas tarefas em sua materialização imediatamente anterior, na Terra. Jor-El explica que voltar no tempo, reconfigurar a realidade e mesmo transmutar-se novamente para uma vida anterior são escolhas nossas. Sem hesitar, Kal-El realiza (como um deus, vejam bem, não como humano) a escolha de retornar, tendo já, há sabe-se lá há quanto tempo, percebido o fundamento de sua persistência implacável. Superman retorna e, como tantos deuses, adquire o dom de subverter a morte. Seu retorno acontece para que ele possa salvar a Terra da destruição do nosso sol, enfermo graças à ação de Solaris, um sol maligno e artificial. Sabendo, numa consciência claramente transcendental, que suas próprias células se tornaram baterias solares e que ele mesmo se tornará umas espécie de sol, Superman sublima sua própria existência e voa para o centro da estrela que ilumina nosso planeta, não apenas recompondo-a, mas tornando-se parte dela. Isso parece ou não, afinal de contas, uma espécie de nirvana?

SUPERNIRVANA!

All-star Superman também virou, em 2011, animação pela Warner. Veja a primeira parte:








Gêmeos quânticos





















por Ciro I. Marcondes

Uma história que reune, numa tacada só, o grande potencial de invenção e ao mesmo tempo a inflexão existencialista dos quadrinhos dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá está na edição de 10 Pãezinhos lançada pela Devir em 2005, chamada Crítica. Ela se chama “Reflexões” e, com cinco páginas fugazes, acho que o que se deve dizer sobre esta história não deve, por necessidade de evitar a redundância, passar de um comentário, já que estas páginas traçam mais que uma simples narrativa, mas sim todo um conceito, uma introvisão bem sacada do mundo.

Um comentário, sim, portanto. Não gosto muito de fazer paráfrases em meus textos, mas, vejam bem, esta história é um loop de certa forma fractal e abre espaço para continuidade infinita. Sinopse: um cara entra no banheiro meio embriagado, feliz da vida por uma “gostosa!” ter dado mole pra ele após eles se esbarrarem casualmente. Logo depois, no mictório, ele percebe uma figura idêntica a ele, mas macambúzia e cabisbaixa (bastante sinistra) mijando ao seu lado. Ele se surpreende, assustado (a HQ mostra dois planos opostos entre personagens idênticos), e diz, em voz alta: “mas... você sou eu!”. A figura macambúzia explica-lhe então que ele apenas havia sido o primeiro até o momento em que ele esbarra na garota. Porém, a figura estranha e sombria explica-lhe que ele era uma outra versão do primeiro, que não havia parado para falar com a garota após esbarrar nela – e, fundamental, nenhuma garota havia dado bola para ele – e que ele entrava no banheiro ainda deprê, achando sua vida uma merda. Quando a figura triste percebe apenas que é uma pálida versão não materializada de uma possibilidade de futuro ou presente alternativo, sua voz começa a fenecer e ele desaparece, deixando nosso herói original pasmo com o fenômeno louco que simplesmente acabara de ocorrer.

Bem, estas duas primeiras páginas em si já são suficientemente intrigantes para que larguemos o gibi de lado por alguns instantes para ajustar os dados que a história simplesmente acabara de jogar para o leitor. No meu caso, os insights se desdobraram em duas tendências: 1 – lembrei de situações bastante análogas que ocorreram comigo mesmo em ocasiões da minha vida. “Poderia ter dito isso”, “poderia ter feito aquele gesto”, “poderia ter aceitado aquilo”, “poderia ter continuado aquela coisa”, “poderia ter voltado atrás”... enfim, “acho que aquela garota estava dando mole para mim, mas eu não fiz nada, mas eu poderia ter feito alguma coisa”. 2 – A história dos gêmeos insuflou-me (bela palavra) com aquele afã (outra) louco da probabilística, que me acomete, e que remete à física quântica, em que na verdade o mundo é um conjunto de dados em potencial que podem ser realizados, e que a verdade material que vemos é apenas o resultado da realização destas condições, e, especialmente, que outros mundos abrigam as probabilidades que não se realizaram (conhecem a Teoria-M?). Portanto, no caso desta história, de fato em alguma outra dimensão ou realidade existe um protagonista que não xavecou a garota, e que continua deprê, etc.

As páginas seguintes da história corroboram estas ideias, afinal, o protagonista, já pasmo diante do que ocorrera e suspeitando do equilíbrio de seu estado mental, vê aparecer novamente uma versão de si no banheiro, porém relaxado e bêbado, mijando. O preâmbulo do diálogo meio que se repete (“Você de novo”?) e a terceira versão desse mesmo cara explica-lhe que ele não era aquele outro deprê e sim ele mesmo, segundos depois, no banheiro, após a experiência de entrar em contato em primeiro lugar com a sua versão deprê. A diferença é que ele era uma versão que não havia ligado para a “nóia” da aparição da versão deprê, desencanou-se da estranheza do ocorrido e voltou logo para a festa para curtir a mina que lhe dera mole. Ou seja, a página anterior, em que o protagonista fica pasmo com o encontro com a versão deprê simplesmente não existira na realidade do protagonista desencanado. Enfim, o loop é explicado pela própria versão desencanada: “Exatamente assim. Você ta aí pensando no seu encontro, noiado... não consegue nem mijar direito... e a mina lá fora vai cansar de esperar... e vai encontrar um outro panaca. Eu nem liguei e voltei lá correndo”. Depois, finaliza: “Esse é o problema. Você não pode querer ser outro senão você mesmo. Você tem que desencanar do cara que tá do seu lado... mijar de uma vez... e tocar sua vida”.


No final das contas, parece que a lição dos gêmeos tem mesmo mais a ver com conviver pacificamente e, talvez, respeitosamente, com suas escolhas e não ficar remoendo questões e decisões passadas do que com a natureza quântica dos fios probabilísticos que tecem a realidade do mundo. De qualquer forma, não me saiu da cabeça esse loop de possibilidades que a história instala, de maneira até irônica (pois o que ocorre com o personagem é o que se apodera do leitor): o insight, no ato de mijar, sobre uma versão covarde de si mesmo que não fala com a garota é em si uma outra escolha, que desdobra um outro espaço-tempo, que o impede de sair imediatamente e ainda assim, mesmo não sendo a versão deprê, correr o risco de perder a garota, e portanto, não se tornar a versão desencanada, que só ocorre se a versão noiada parar de ser a versão noiada. O fato de a edição apresentar duas versões desenhadas da história, uma em seguida da outra, mas com divergências mínimas, das coisas, pode ou não ter a ver com esse caráter fractal. Mas, pra mim, é divertido pensar que sim.

A ideia é bonita, elegante, e prevê um multiverso em simultaneidade, com todas as versões possíveis, de todas as escolhas e ações que fazemos, coexistindo e metaforicamente insistindo (para cada um de nós) e chamando atenção sobre seu próprio “eu poderia ter sido se não tivesse...”. Pensar, no fundo, que um mundo invisível e inacessível de coisas assim segue seu curso lado-a-lado com o nosso pode até ser um tanto abstrativo, mas creio que este exemplo elucida a capacidade dos gêmeos de colocar, numa linguagem e universo informais e acessíveis, sem pingo de pedantismo, uma dimensão profunda de nossa capacidade de autorreflexão e ao mesmo tempo de reverberar escalas profundas e filosóficas da realidade. Prova maior disso é o fato de que ler a história nos introjeta estas ideias instantaneamente, com o poder singelo e leve dos quadrinhos. Já tentar parafraseá-la numa linguagem simbólica como a escrita pura, caso do que estou fazendo aqui, se torna enfadonho e confuso. Era isso, enfim: elucidar essa qualidade instantânea e imediata dos quadrinhos, pelo nanquim quântico dos gêmeos, era isso que era o propósito inicial deste comentário.  

A guerra em quadrinhos - três tempos, três autores, três visões: preview


Por Ciro Inácio Marcondes

Este é o resumo expandido do meu trabalho aprovado para as primeiras Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, que ocorre na USP em agosto. Compartilho-o com vocês. O artigo fica pronto até o fim do mês, mas só poderei mostrá-lo depois das jornadas. (CIM).

A guerra em quadrinhos: três tempos, três autores, três visões (resumo expandido)

Nascidos, em seu formato de massas, junto com o próprio século XX, os quadrinhos estiveram no centro de importantes debates sobre as guerras, e esta é uma história desconhecida. Este estudo procura demonstrar que, mesmo durante a era clássica das HQs, existia uma preocupação reflexiva e humana, associada a projetos estéticos e linguagens personalizadas, sobre os efeitos socioculturais das guerras. Três diferentes guerras, autores e momentos históricos compõem este painel, relacionando-os intrinsecamente. Além da própria leitura analítica dos quadrinhos mencionados, será necessário nos apoiarmos na trajetória histórica do quadrinho americano clássico e da EC Comics (HADJU; WRIGHT); em uma fundamentação da estética narrativa dos quadrinhos (GROENSTEEN); e em uma historiografia dos quadrinhos argentinos (RAMOS) para, por fim, nos aprofundarmos em Joe Sacco com o estudo Alternative comics, an emerging literature (HATFIELD). 

A segunda guerra foi palco para a série argentina Ernie Pike, escrita pelo célebre Héctor Oesterheld e desenhada por um jovem Hugo Pratt. Publicada entre 1957 e 58, ela utilizava como personagem o histórico jornalista de guerra americano para transmitir um humanismo declarado e trágico sobre pequenas histórias individuais escondidas nos números da grande guerra. Ernie Pike é aventuresco, idealista e consideravelmente literário, revelando amarga e tradicional visão sobre a guerra.

O segundo modelo é um pouco anterior à publicação argentina, mas esteticamente mais arrojado, cru e niilista. O quadrinista Harvey Kurtzman foi um dos responsáveis pelo sucesso e teor adulto da EC Comics nos Estados Unidos nos anos 40 e 50. Kurtzman situava suas histórias em uma guerra contemporânea à época, a da Coréia. Seu traço vigoroso e narrativas fluidas, que invertiam relações morais na guerra, são ambíguas e céticas, com visão madura e anti-romântica, sendo comum serem contadas do ponto de vista do inimigo.  

Depois do clássico e do moderno, chegamos à configuração contemporânea do quadrinista Joe Sacco a partir da análise dos dois volumes de Palestina, publicados originalmente em nos anos 90. Distante do idealismo ou do ceticismo dos outros, Sacco desenvolveu, numa graphic novel composta de dezenas de relatos que coletou em sua visita à faixa de Gaza, uma forma autobiográfica, epistolar e documental de vislumbrar a violência da guerra em quadrinhos. São patentes as influências do cinéma verité e do new journalism para compor esta visão pós-moderna e ativista dos quadrinhos, altamente consciente do potencial do meio enquanto instrumento político.

Bibliografia:

GROENSTEEN, Thierry. The system of comics. University press of Mississipi, 2009.


HATFIELD, Charles. Alternative comics: an emerging literature. University Press of Mississipi, 2005.

KURTZMAN, Harvey. Clásicos bélicos, two-fisted tales. Barcelona: Planeta DeAgostini, 2006.

OESTERHELD, Héctor; PRATT, Hugo. Sargento Kirk/Ernie Pike. Buenos Aires: Arte Gráfico Editorial, 2006.

RAMOS, Paulo. Bienvenido. Um passeio pelos quadrinhos argentinos. Campinas: Zarabatana, 2010.

SACCO, Joe. Palestina, uma nação ocupada. São Paulo: Conrad, 2000.

WRIGHT, Bradford W. Comic book nation. The transformation of youth culture in America. John Hopkin University Press, 2003.