Gêmeos quânticos





















por Ciro I. Marcondes

Uma história que reune, numa tacada só, o grande potencial de invenção e ao mesmo tempo a inflexão existencialista dos quadrinhos dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá está na edição de 10 Pãezinhos lançada pela Devir em 2005, chamada Crítica. Ela se chama “Reflexões” e, com cinco páginas fugazes, acho que o que se deve dizer sobre esta história não deve, por necessidade de evitar a redundância, passar de um comentário, já que estas páginas traçam mais que uma simples narrativa, mas sim todo um conceito, uma introvisão bem sacada do mundo.

Um comentário, sim, portanto. Não gosto muito de fazer paráfrases em meus textos, mas, vejam bem, esta história é um loop de certa forma fractal e abre espaço para continuidade infinita. Sinopse: um cara entra no banheiro meio embriagado, feliz da vida por uma “gostosa!” ter dado mole pra ele após eles se esbarrarem casualmente. Logo depois, no mictório, ele percebe uma figura idêntica a ele, mas macambúzia e cabisbaixa (bastante sinistra) mijando ao seu lado. Ele se surpreende, assustado (a HQ mostra dois planos opostos entre personagens idênticos), e diz, em voz alta: “mas... você sou eu!”. A figura macambúzia explica-lhe então que ele apenas havia sido o primeiro até o momento em que ele esbarra na garota. Porém, a figura estranha e sombria explica-lhe que ele era uma outra versão do primeiro, que não havia parado para falar com a garota após esbarrar nela – e, fundamental, nenhuma garota havia dado bola para ele – e que ele entrava no banheiro ainda deprê, achando sua vida uma merda. Quando a figura triste percebe apenas que é uma pálida versão não materializada de uma possibilidade de futuro ou presente alternativo, sua voz começa a fenecer e ele desaparece, deixando nosso herói original pasmo com o fenômeno louco que simplesmente acabara de ocorrer.

Bem, estas duas primeiras páginas em si já são suficientemente intrigantes para que larguemos o gibi de lado por alguns instantes para ajustar os dados que a história simplesmente acabara de jogar para o leitor. No meu caso, os insights se desdobraram em duas tendências: 1 – lembrei de situações bastante análogas que ocorreram comigo mesmo em ocasiões da minha vida. “Poderia ter dito isso”, “poderia ter feito aquele gesto”, “poderia ter aceitado aquilo”, “poderia ter continuado aquela coisa”, “poderia ter voltado atrás”... enfim, “acho que aquela garota estava dando mole para mim, mas eu não fiz nada, mas eu poderia ter feito alguma coisa”. 2 – A história dos gêmeos insuflou-me (bela palavra) com aquele afã (outra) louco da probabilística, que me acomete, e que remete à física quântica, em que na verdade o mundo é um conjunto de dados em potencial que podem ser realizados, e que a verdade material que vemos é apenas o resultado da realização destas condições, e, especialmente, que outros mundos abrigam as probabilidades que não se realizaram (conhecem a Teoria-M?). Portanto, no caso desta história, de fato em alguma outra dimensão ou realidade existe um protagonista que não xavecou a garota, e que continua deprê, etc.

As páginas seguintes da história corroboram estas ideias, afinal, o protagonista, já pasmo diante do que ocorrera e suspeitando do equilíbrio de seu estado mental, vê aparecer novamente uma versão de si no banheiro, porém relaxado e bêbado, mijando. O preâmbulo do diálogo meio que se repete (“Você de novo”?) e a terceira versão desse mesmo cara explica-lhe que ele não era aquele outro deprê e sim ele mesmo, segundos depois, no banheiro, após a experiência de entrar em contato em primeiro lugar com a sua versão deprê. A diferença é que ele era uma versão que não havia ligado para a “nóia” da aparição da versão deprê, desencanou-se da estranheza do ocorrido e voltou logo para a festa para curtir a mina que lhe dera mole. Ou seja, a página anterior, em que o protagonista fica pasmo com o encontro com a versão deprê simplesmente não existira na realidade do protagonista desencanado. Enfim, o loop é explicado pela própria versão desencanada: “Exatamente assim. Você ta aí pensando no seu encontro, noiado... não consegue nem mijar direito... e a mina lá fora vai cansar de esperar... e vai encontrar um outro panaca. Eu nem liguei e voltei lá correndo”. Depois, finaliza: “Esse é o problema. Você não pode querer ser outro senão você mesmo. Você tem que desencanar do cara que tá do seu lado... mijar de uma vez... e tocar sua vida”.


No final das contas, parece que a lição dos gêmeos tem mesmo mais a ver com conviver pacificamente e, talvez, respeitosamente, com suas escolhas e não ficar remoendo questões e decisões passadas do que com a natureza quântica dos fios probabilísticos que tecem a realidade do mundo. De qualquer forma, não me saiu da cabeça esse loop de possibilidades que a história instala, de maneira até irônica (pois o que ocorre com o personagem é o que se apodera do leitor): o insight, no ato de mijar, sobre uma versão covarde de si mesmo que não fala com a garota é em si uma outra escolha, que desdobra um outro espaço-tempo, que o impede de sair imediatamente e ainda assim, mesmo não sendo a versão deprê, correr o risco de perder a garota, e portanto, não se tornar a versão desencanada, que só ocorre se a versão noiada parar de ser a versão noiada. O fato de a edição apresentar duas versões desenhadas da história, uma em seguida da outra, mas com divergências mínimas, das coisas, pode ou não ter a ver com esse caráter fractal. Mas, pra mim, é divertido pensar que sim.

A ideia é bonita, elegante, e prevê um multiverso em simultaneidade, com todas as versões possíveis, de todas as escolhas e ações que fazemos, coexistindo e metaforicamente insistindo (para cada um de nós) e chamando atenção sobre seu próprio “eu poderia ter sido se não tivesse...”. Pensar, no fundo, que um mundo invisível e inacessível de coisas assim segue seu curso lado-a-lado com o nosso pode até ser um tanto abstrativo, mas creio que este exemplo elucida a capacidade dos gêmeos de colocar, numa linguagem e universo informais e acessíveis, sem pingo de pedantismo, uma dimensão profunda de nossa capacidade de autorreflexão e ao mesmo tempo de reverberar escalas profundas e filosóficas da realidade. Prova maior disso é o fato de que ler a história nos introjeta estas ideias instantaneamente, com o poder singelo e leve dos quadrinhos. Já tentar parafraseá-la numa linguagem simbólica como a escrita pura, caso do que estou fazendo aqui, se torna enfadonho e confuso. Era isso, enfim: elucidar essa qualidade instantânea e imediata dos quadrinhos, pelo nanquim quântico dos gêmeos, era isso que era o propósito inicial deste comentário.