Os fabulosos X-Pué Inchados: apologia de Chico Mozart

por

Ciro I. Marcondes

Chico Mozart

A história em quadrinhos que ilustra este texto se chama

Os fabulosos X-Pué Inchados

(número 1) e foi realizada em 1994 por dois promissores caras que – pasmem! – não se tornaram quadrinistas. O primeiro deles é este que vos escreve. Desenhei mais de 200 revistas completas entre, sei lá, 1988 e 1997, e devo ter acumulado uns... talvez quatro leitores nesta época. Meu irmão mais novo lia os gibis coagido por puro constrangimento. Creio que nem meu pai e nem minha mãe jamais leram nenhuma dessas histórias. Tudo parte de um grande conceito chamado “universo Bilak”, que talvez algum dia mereça um texto à parte. Acho que eu ainda não sei bem processar o autismo que era escrever e desenhar várias revistas completas por mês, de maneira obsessiva, e receber virtualmente

nenhum

feedback. Mesmo assim, nos idos de 1994, nesta incrível idade que são os 12 anos (nesta época, tricolor paulista bicampeão mundial seguido. Puta era de ouro), chamei um grande amigo meu, que fora colega da Escola Classe na 308 Sul desde a 4ª série, para uma empreitada de parceria.

Se você é de Brasília e tem o mínimo de vida social, deve conhecer a figura que é Chico Mozart. Naqueles idos de 1994 (

Copa dos EUA

, e tal), era apenas Chiquinho. Hoje, Chico é formado

em Artes Plásticas

pela UnB e trabalha no meio, mas o lance que realmente define sua inserção nas personas interessantes da cultura brasiliense hoje em dia é ao mesmo tempo sua onipresença e sua volatilidade: Chico está em toda parte, mas, ao mesmo tempo, está flutuando em seu denso mundo interno, em lugar nenhum, bem diferente da imagem boêmia, sem-noção e beberrona (ele é tudo isso também) que todos cultivam dele.

Conheço-o há muito, e posso dizer que o verdadeiro

self

de Chico é quase o avesso de sua imagem folclórica nos bares e cantos culturais da capital. Chico não é artista, não é bêbado, não é celebridade local, não é um cara com arquétipo

clown

. Sua natureza é uma coisa esquiva e indefinida, e é isso que o torna um sujeito bem mais raro e complexo, entre as hordas de hipsters da cidade.

Por exemplo: na quarta ou na quinta série, nós fizemos uma matéria de desenho animado na Escola Parque da 308 sul (vale lembrar coisas fantásticas que o ensino público nos trouxe nessa época: estudei música, teatro, história em quadrinhos...). Enquanto eu tentava achar um tipo de traço mais definido, mas sempre com dificuldade em proporções, sombreamento, cenários (essas coisas que definem um desenhista de verdade), eu percebia que Chico não apenas desenhava com muito mais personalidade, mas também muito mais naturalmente. Eu era, digamos, um pouco mais intelectualizado e aficcionado por cultura em geral, e existia uma coisa não-declarada: ele se sentia inseguro porque eu compensava minha falta de talento pra desenhar com palavras bonitas (depois das HQs, passei à Literatura em prosa; da Literatura em prosa, à poesia; da poesia... entrei na faculdade... e virei crítico, e aí me fodi mesmo), enquanto eu visivelmente, impacientemente, incredulamente, o invejava simplesmente porque ele tinha uma habilidade e senso estético naturais. Chico tem um traço espesso e cômico, altamente personalizado, com altas doses de cinismo e ironia presentes diretamente no estilo de ilustração. O seu desenho é sua tradução.

Em certo momento, participamos de um concurso para crianças, acho que da Folha de SP, para desenhar uma paródia do filme

Aladin

. Nós dois nos inscrevemos. O desenho do Chico era “Alodum”: um Aladin gordo, baiano, tosco, melequento, com pau de fora (acho que os idiotas da Folha não perceberam isso) – um primor rabelaisiano saído de uma mente infantil. O meu era absurdo, ridículo, e apenas lembrar daquilo baixa meus níveis de serotonina. A imagem daquele desenho sequer se forma completa na minha memória, tão rápida é a atuação do meu superego

em vetá-la. Não

duvido que me atormente em pesadelos esquecidos. Mesmo assim, arrogantemente eu achava aquele desenho do Chico uma coisa sem-noção demais para ter chance, e aquela excrescência que eu havia desenhado era, para mim, um franco favorito. No final das contas, Chico venceu o concurso, teve o desenho publicado, ganhou uma caixa de brinquedos maneiros, uma passagem para São Paulo (roubada pelo professor, que fugiu com o namorado). Eu fiquei na minha, tentando perguntar pro bom e velho deus por que o mundo tinha uma lógica tão estranha.

Um clássico duelo

Em 1994 convidei o Chico pra ser co-autor de uma nova série mensal que minha prolífica “Editora Nuvensinha” publicaria. Dentre vários títulos ridículos de 20 páginas que eu desenhava por mês, eu curtia a “clássica” série “Biss & Halk”, sobre dois irmãos que atingem o paroxismo da imbecilidade (teve mais de 50 edições!). Com Chico, resolvemos fazer uma nova série de humor, parodiando os X-Men. A premissa era até boa! O maléfico “Ratonético” arrasa o grupo de mutantes, que sofre alterações radicais: Charles Xavier sofre um terrível acidente e se transforma em um ser nojento, azul e flácido, completamente retardado, que consegue dar apenas uma ordem: “vai lá e bate nele”! A revista foi escrita e desenhada tanto por mim quanto pelo Chico. Dentre os novos X-Men recrutados havia criações promissoras como, por exemplo, a X-Pôr, uma atriz pornô que usa só uma tanguinha e sai com os peitos de fora. Ou o assustador X-Dunga, um ser irracional e assassino, que distribui caneladas nos inimigos (ironicamente, levantaria a Copa do Mundo naquele ano e viraria mentor e técnico da Seleção brasileiro em 2010); ou o grotesco X-monstricuspsicopaticusassassinicuscabeçudicusbebênicusdeoutricosmundicos, inspirado em um amigo que hoje é antropólogo da Presidência da República. Criações de Chico.

Infelizmente,

X-Pué Inchados

(o nome vem da nossa mania de chamar de “pé inchado” tudo que é ridículo, tosco, mal-acabado, etc) durou só essa edição, cuja simplória história se resumia a Ratonético indo atrás de Charles Xavier, mas não reconhecendo-o em sua nova forma obesa, enquanto o pau comia entre bandidos e mocinhos. Mas há uma página em especial em que o jovem Chico, o Chiquinho (11 anos), criou um padrão de ação narrativa digna de um

Krazy Kat

: Ratonético dá uma porrada em X-Zoiúdo, que atravessa a sarjeta do requadro e bate na lombada da página. Ao mesmo tempo X-Boi (uma criatura zoomórfica) dá uma barrigada em Ratonético, que rebate na lombada e rola até o último quadro da página, metendo a cara na lombada de baixo e atravessando-a até a página seguinte. Comparado com a regularidade boçal e insossa das minhas narrativas, aquilo era uma verdadeira obra de arte.

Chico Mozart é um sujeito com uma quantidade tão grande de histórias inacreditáveis que eu tinha o projeto de roteirizá-las para HQ, ficcionalizando um pouco, e pedir pro próprio Chico ilustrá-las, porque ele meio que está fora desse ramo de atividades há algum tempo. Ainda não chegamos a começar esse projeto, mas de qualquer forma deixo esse texto como incentivo e homenagem a essa figura cativante e indecifrável. Sei que o texto vai fazer mais sentido para quem habita a Capital Federal, mas, se você também é fã do Chico, escreva sua própria homenagem na caixa de comentários. Vida longa àquele que forjou seu próprio enterro!

Capa dupla e colorida!

Mundo de desgraçados: duas ou três coisas sobre um primeiro Mutarelli




por Ciro I. Marcondes

Levei a HQ Desgraçados, de Lourenço Mutarelli, para uma viagem em que realizaria prova para um processo seletivo bastante difícil. Como faz parte do primeiro ciclo de graphic novels do mais cult dos quadrinistas brasileiros (publicada pela Editora Vidente em 1993), era fininha e de rápida leitura. Boa para deglutir no avião e quem sabe produzir algo para a RL. Que catastrófico engano! Minha sorte foi ter lido no voo de volta. Desgraçados é da fase mais crua e indigesta deste excêntrico mestre, e sucede sua obra-prima mais perturbadora, a multipremiada Transubstanciação.


Certamente que uma HQ de tão doentio (todos sentidos) expressionismo, com cavalares doses de horror metafísico, não poderia ser uma leitura para descansar a cabeça. Mas a vida tem dessas lições de autopenitência, e com certeza estas experiências impensadas do acaso sempre aparecem para somar. Mutarelli, neste caso, é o próprio “abismo olhando de volta para você”. Vale explicar: Desgraçados é uma coleção de atrocidades brutais, rebaixando-se à mais abjeta miséria humana, com cenas de mutilação, suicídio, pedofilia, drogas pesadas, coprofilia e sadismo. Coisas que fariam arregalar os olhos dos realizadores de A serbian film. Certamente o título agressivo (minha mãe dizia que essa palavra – “desgraçado” – jamais devia sequer ser verbalizada), faz jus à exposição de miserabilia que se sucede. “A desgraça faz dos seres o que eles são”, diz a epígrafe do primeiro capítulo. Bem, como negar, não é mesmo?


Sexo em Mutarelli: "não se trata de vulgaridade" 
Por conta do forte impacto (pasoliniano, mas sem humor; sadeano, mas sem ser dionisíaco) que esta HQ enfia no leitor goela abaixo, acho que realmente não vale uma análise mais tradicional. A partir da expressão atormentada (ela foi escrita em um período controverso da vida do autor, que sofria de aguda depressão), impressões deste leitor. Em primeiro lugar, vale esquecer um pouco o traço mais fino e sofisticado (à Miguelanxo Prado) que Mutarelli desenvolveria mais tarde em suas obras mais consistentes e famosas, do detetive Diomedes (especialmente O dobro de cinco). Aqui, o uso do preto-e-branco, da deformação anatômica, da colagem e outros procedimentos mais “marginais” é intencionalmente grotesco, sem busca de qualquer elegância. A sexualidade é mostrada em corpos esquálidos, famélicos, flácidos, que despertam uma libido desesperada e incontrolável em quase todos os personagens. Não se trata de vulgaridade. Trata-se de outra coisa, uma essência erótica primitiva, claramente disposta a atravessar qualquer tipo de obstáculo, físico ou moral - disposta a sacrificar a saúde do próprio corpo, inevitavelmente.

Mutarelli vai prontificando a vida desses “desgraçados” – uma morfética que encontra o amor, depois se torna freira de um culto obscuro, depois psicopata; um loser que vê o pai se suicidar, se apaixona pela morfética, e termina, mutilado, no manicômio; um físico que se revolta contra Deus; a onipresença de uma figura diabólica – com passagens horripilantes do velho testamento, dando um tom de inevitável fatalismo à história. Acabam transbordando comentários sobre uma decadência social, urbana, científica, moral, religiosa (alô Bergman) de difícil solução, entre comentários desiludidos sobre o amor e o desejo. Derramando-se, no final (primoroso, vale dizer), pra um surrealismo (à Dalí) totalmente submerso no mundo dos sonhos, é difícil examinar o que o autor realmente queria dizer com tudo isso. Excelência dos grandes artistas, vale ressaltar.

"Excelência dos grandes artistas"

Louco de estimação
A única coisa que se pode perceber, no final das contas, é um certo (muito desregulado) sentimento de complacência que o autor repousa sobre seu protagonista quando este encontra alguma tranquilidade no manicômio, seja na figura autoritária, mas “piedosa” do psicanalista, seja na libertação pelo assassinato do mesmo, libertando também todos os outros gênios-loucos (o poeta Glauco Mattoso, amigo de Mutarelli, incluso) ao mesmo tempo. Essa relação com a loucura é o que sobra de sublime neste desfile dantesco. Não é à toa que saem da boca do psicanalista (que amestra a ideia mais genial da HQ: um “louco de estimação”) palavras do radical dramaturgo Antonin Artaud, com certeza a maior influência para esta obra: “Um louco é também um homem a quem a sociedade não quis ouvir e a quem quis impedir a implosão de insuportáveis verdades”.

Pensemos, portanto, que se Mutarelli cria um psicanalista que não acredita no próprio ofício, mas ao mesmo tempo se preocupa com seu paciente mesmo na hora de sua própria morte, ele adota a impensável atitude de viabilizar o caminho do infortúnio, fazendo questão de nos avisar que devemos dar chance ao extremo: deixar a loucura consumir os loucos, a psicopatia consumir os psicopatas, a desgraça consumir os desgraçados. Considerando a prolífica carreira e sucesso atual, nas HQs, literatura e cinema, deste autor sui-generis que é Mutarelli, convém, com satisfação, pensar que Desgraçados de alguma forma cumpriu sua tarefa de expurgar um pontinho de melancolia em sua mente. E não só na dele. 

The horror, the horror

Serviço de utilidade pública: lançamento Pindura 2012






















A ideia do calendário Pindura é tão genial que chega a ser ridícula. Como ninguém pensou nisso antes?! Se você ainda não conhece o Pindura -- premiado este ano com o troféu HQ Mix de melhor projeto editorial -- visite. Em resumo, o Pindura é um calendário temático que conta com a arte de diversos desenhistas, ilustradores, quadrinistas e designers do Brasil e exterior -- boa parte deles, atuantes no cenário de quadrinhos alternativos/ autorais.

O primeiro, de 2009, é um calendário com 12 ilustrações sobre o tema bar. Aliás, veio daí o nome "pindura" (de "pendura a minha conta aí, chefia!"). O de 2010, já contando com muito mais participantes, tem uma ilustração por semana, todas fazendo referência às paradas de ônibus de Brasília. O Pindura de 2011 chegou ousado, com ilustrações para todos os dias do ano. O tema é elevador e o formato, dessa vez, é o de calendário de folhinhas, daqueles que você arranca dia após dia.    

O Pindura 2012 é um poster de 64cm x 94cm. Colaboraram 181 desenhistas, com uma ou duas ilustrações de objetos que eles gostariam de deixar enterrados para serem encontrados pelas futuras gerações -- ou por quem quer que venha a viver na terra quando todos virarmos pó, afinal de contas, 2012 vem ai.

O Pindura é uma criação de Gomez, Stevz e Biu e é publicado pela editora redundantemente intitulada (ou genialmente intitulada, se você preferir) Pegasus Alado. 

Depois de passar pela Rio Comicon, o Pindura 2012 será lançado neste domingo, em Brasília. Na ocasião, também serão lançadas as HQs Aparecida Blues, Garoto Mickey, Peixe fora d'água e Golden Shower 2. O chapas da revista Samba estarão presentes com novidades, entre elas, a edição 2 da Kowalski. A carioca Rachel Gontijo, da A Bolha Editora estará lá com seus incríveis lançamentos (sério, dá uma olhada).Outras informações estão no cartaz. Clique em cima para ampliar. Tá lindão. (PB)



Grande Sertão: Quadrinhos



por Ciro I. Marcondes

No posfácio da edição de O olho do diabo publicada pela editora Sampa em 1993 com três histórias de Mozart Couto dos anos 80, o próprio quadrinista analisa sua narrativa de um homem que vê a família morrer nas mãos do demônio da seguinte forma: “O demônio, que na história aparece como uma ‘entidade astral’, simboliza também nossa face oculta, a ignorância, que nos guia ‘nesse mundo estranho onde não se sabe quem perde ou quem ganha’, como diz o personagem narrador”. Já na lucidez dessa sacada a gente entende um propósito mais adensado muitas vezes não muito perceptível num produto de cultura de banca como esse gibi, hoje infelizmente no ostracismo.

Quem me passou essa joia foi Pedro Brandt, sabendo que eu era ao mesmo tempo fã de duas coisas que eram clara referência ao quadrinista: filmes de faroeste e a literatura de Guimarães Rosa. O olho do diabo é daquelas HQs que, travestidas de histórias ordinárias e descartáveis, na tradição do fumetti, com tons de super-herói e horror old school, não demora a arrebatar, congelar o sangue, impressionar adultos.


A carreira de Mozart Couto é muito extensa para ser resumida aqui, então vou me ater apenas a duas histórias presentes nesta seleção, mas vale parar um pouco e refletir como estas narrativas se enquadram perfeitamente na fronteira entre o autoral e a cultura de massas, sem renegar um ou outro, com exímia qualidade gráfica, erudição e senso de aventura. Mozart Couto, pasmem, continua sendo modelo (ou deveria ser) para quadrinistas brasileiros mais jovens.

E como isso ocorre? As histórias de O olho do diabo buscam um certo alinhamento com uma tradição da literatura regional brasileira, de jagunçado ou cangaço, filiada ao nosso estilo moderno (além de Rosa, basta ler Bernardo Elis ou Mário Palmério). Mozart tem mérito em ser um dos pioneiros nessa tradução pros quadrinhos, e mais ainda por adequar as pretensões rebuscadas e historiográficas desses autores para o contexto mais fantástico, erótico e diabólico dos quadrinhos de sua geração. Em particular, vale pensar em seu interesse pela relação do jagunçado com o diabo, frequente na literatura de Rosa (e obviamente em “Grande Sertão: Veredas”. Encara aí em pdf que eu quero ver). A diferença é que, mesmo pensando em simbolismos, Mozart faz dos seus roteiros aventuras grotescas de vingança brutal, mortes hediondas e um imaginário nefasto e vil, bem mais próximo das atrocidades das histórias de Al Feldstein em Tales from the crypt do que da prosa poética e joyceana do nosso maior autor moderno.


O grande lance é que isso não minimiza a arte de Mozart Couto. Pelo contrário. A erudição está diluída num patamar bem adequado, robusto em seu engajamento nesse gênero de quadrinhos. Basta pensar nas histórias, mitos fáusticos, de danação impiedosa, pactos com o “capiroto”. Na primeira delas, que dá título ao volume, um massacre em uma fazenda, “rixa antiga” de família, leva um herdeiro a atravessar veredas em busca de um certo Antenor Balbino, velho com fama de sanguinário e diabólico, motivado por um rancor de ciúmes (uma prostituta aparece como alicerce da “perdição”, retomando narrativas míticas), envolvido em magia negra. Um jagunço, sobre Balbino: “S’or sabe, o pai dele teve um filho que nasceu ruim da cabeça. Pois num sabe que ele matou o pobre? Levou ele pra bem longe de casa e pendurou numa árvore de cabeça pra baixo! Duas semana dispois acharo o corpo!”. Como se vê, além de Rosa e Goethe, Édipo. Um Édipo pulp, diga-se.

Sertão trasheza

Mas a cereja do bolo, como não poderia deixar de ser, é a qualidade gráfica do trabalho de ilustração de Mozart. Neste sentido ele também caminha por escolas talvez fora de moda, ainda que essenciais, como a de Hal Foster, John Buscema ou Frank Frazetta. Se for assim, ler Mozart Couto reforça o incentivo para se retornar um pouco à HQ clássica. Mozart é famoso pelo detalhismo anatômico, e pra isto basta citar os sertanejos convincentes, belas mulheres e verdadeiramente horripilantes figuras sobrenaturais. Mas o que me impressiona mesmo é a qualidade de reprodução de seus cenários, minuciosos e verdadeiros. Esta força espacial de suas HQs não foge à tradição do faroeste, em que a inscrição do homem no ambiente é uma relação simbólica fundamental e inescapável.

Da mesma forma, a alternância entre cenas noturnas e diurnas, invertendo o sombreamento, e uma primorosa quadrinização dos movimentos dentro e fora dos requadros não pode nos remeter senão a um ato de maestria. Em “O olho do diabo”, a sequência do tiroteio final, em cinco grandes páginas de edição do espaço, chega a lembrar o ápice deste modelo de cena que vemos no clássico Matar ou morrer, de Zinneman, que nos ensina que, no cinema, podemos ter a perspectiva de todos heroes and villains presentes na ação. Em Mozart Couto, somos ainda premiados com um sertão mineiro visível e assombrado, com casarões e armas detalhados em minúcias.


Pulando “Shagara”, uma exótica história de alienígenas e ritos macabros no sertão, vale fechar o texto comentando “O poder de satã”, que, de certa forma, aparece como complemento a “O olho do diabo”. Nas duas histórias, a associação com o diabo surge por meio de objetos (um talismã, na primeira, e artesanatos de cerâmica, na segunda), e em ambas o demoníaco surge de maneira não-simbólica, materializando um diabo arquetípico e sinistro, talvez assustador demais para os padrões descolados das HQs de hoje. Em “O poder de satã”, porém, o pesadelo das páginas é menos delongado e mais afim às palavras iniciais de Mozart que citei antes: uma fazenda, bem familiar, recebe a visita de um estranho que os presenteia com estes tais objetos de cerâmica, muito bonitos, mas cujas inscrições exóticas chamam a atenção do patriarca.

Como deve ser numa narrativa de tiro curto, os esforços logo se resultam vãos, e a filha do patriarca se atrai pelos objetos, libertando uma força macabra, do que segue-se um pesadelo marcado por estupros, esquartejamentos e monstruosidades. Nas últimas páginas descobrimos que o patriarca, observando o padecer geral de todos os membros de sua família, fizera um pacto com o diabo décadas antes, e confessa a culpa. Mozart, também impiedoso, não abre espaço para redenção e finaliza a história no meio do ato, com um animal infernal irrompendo pelo chão do casarão e cobrando a dívida num quadro arrebatador.

Estes objetos, tão antropologicamente portadores de espíritos, são uma chave para pensarmos este demônios como conflitos humanos arraigados, ancestrais, inconscientes. No fim das contas, se Mozart recorre a um pouco de trash para criar sua metáfora de solidão e acertos com um passado que nos assombra, eu arrisco dizer que ele também acerta ao redimir os quadrinhos em suas formas mais populares. Já é esteira o suficiente para que um gênero inteiro ganhe continuidade a partir disso, seja nos traços mais modernistas de outro mestre (Flávio Colin), nos de um contemporâneo (Watson Portela), ou nos de um renovador do gênero com características mais contemporâneas (Danilo Beyruth).

HQ em um quadro: Batman ouve Charlie Parker, por Gerard Jones e Mark Badger





















Bruce "bopster" Wayne (Gerard Jones e Mark Badger, 1995): Nas últimas semanas fez-se algum barulho com uma imagem do Batman "mandando ver" na Mulher-Gato, talvez com desnecessária repercussão (na minha opinião um tipo obsessivo como o morcegão teria toda sorte de transposição e recalque libidinal, talvez encaixotando tudo num compartimento inconsciente obscuro, resultando numa assexualidade tipo... Michael Jackson?). Resolvi então acrescentar um comentário sobre outra possibilidade não-usual para o herói a partir de uma minissérie já bastante esquecida, publicada pela DC em 1995, no título "legends of the dark knight", reservado para histórias fora de cronologia . Batman: Jazz foi escrita por um roteirista pseudo-rebuscado (Gerard Jones) e um artista "bom em algum mundo ligeiramente diferente, no multiverso" (Mark Badger). Mesmo assim, vale dar uma sacada no argumento original/insólito da série: Batman vai até a uptown de Gothan para investigar as tentativas de assassinato contra um velho jazzista que seria uma sobrevivente versão do grande e revolucionário bopper, criador do jazz moderno, Charlie Parker.

É verdade que as linhas de argumento em si são bem canhestras, mas, para fãs de jazz, a HQ proporciona a chance de se ver Batman envolvido numa trama que leva o leitor a um pequeno passeio pelos fundamentos, linguagem e personagens (como Dizzy Gillespie, primeiro pintado como possível e vaidoso vilão, e depois como redentor) preceptores da era moderna, assim como a embarcar, dentro de um gibi de heróis, no tipo de narrativa paranoide, lúgubre e noir (outra referência mal-utilizada é Cidadão Kane) que envolve a rocambólica literatura sobre Jazz (cf. Cortázar, Morrison, Kerouac). Afinal, pensando de novo em mundos paralelos, a cidade de Gothan City talvez fosse mais legal não como uma coisa néon e cyberpunk-gay (como nos filmes de Joel Schumacher) ou como metrópole vazia e tecnocrática (como nos de Christopher Nolan), mas sim um local charmoso e violento cujas contradições sombrias estariam mais enraizadas na alma e chagas da cultura negra americana. Uma cidade mais romântica que gótica, com blueses e jazzes. 

É por isso que se destaca este quadro, de uma página toda com pequenos meta-requadros, em que Batman, após insidioso convite, como gentleman, adentra em um pequeno club para ver tocar o estranho e espelhadamente deslocado homem que salvara no dia anterior. É muito comum que, dentro do clichê, se traduza o jazz como uma dialogada  língua musical dos sentimentos. Partindo disso, o bebop tão famoso do sax alto de Parker soa como um tipo de confidência torturada, que alterna entusiasmo esfuziante de coisas como a noite, o calor de um shot de heroína e fulgor sexual com a devassidão langorosa da ressaca, do abismo, do mundo obscuro da depressão. Pensar que um tipo visivelmente junkie (pensa aí qual é a adesão do morcegão) como Batman fosse se encontrar no universo íntimo do jazz não poderia deixar de ser verossímil, e é por isso que este quadro, dentro das limitações da história, impacta: o herói se deixa hipnotizar, como uma criança quebrando seu espelho lacaniano, descobrindo um duplo fraturado no mundo exterior. Ele goza, e relaxa. (CIM)

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Aqualelis




por Pedro Brandt

Na contracapa de Saino a percurá — Ôtra vez, Ziraldo pergunta onde foi que Marcelo Leis, autor do livro, aprendeu a desenhar, quem foi seu professor: “Quantos museus o Lelis visitou na vida? Como foi que ele conseguiu dominar, como um mestre, a mais difícil técnica de pintura do mundo, que é a aquarela?” O talento de Lelis talvez não se explique. É um dom. E basta ver alguma de suas ilustrações para entender a estupefação do pai do Menino Maluquinho.

O “ôtra vez” no subtítulo não é à toa. O álbum foi publicado pela primeira vez em 2001, de forma independente. Esgotada há bastante tempo, Saino ganhou relançamento. Mas chega as lojas reformulada. Além das três histórias presentes na publicação original, Saino a percurá — Ôtra vez apresenta mais 10 HQs (publicadas ao longo dos últimos 15 anos), resultando em uma coletânea da produção de Lelis com (quase todas) suas histórias em quadrinhos publicadas no mercado brasileiro.

Mineiro de Montes Claros, Marcelo Lelis, 44 anos, trabalha como ilustrador do Diário de Minas. Paralelamente, produz ilustrações para livros e histórias em quadrinhos (muitas delas, para editoras estrangeiras). “Em outubro ou novembro chega às livrarias Clara dos Anjos, adaptação para os quadrinhos da obra do escritor carioca Lima Barreto, feita por mim e pelo (roteirista) Wander Antunes, para a Companhia das Letras”, adiante Lelis.

Mineirice

“Saino a percurá”, explica Lelis, é “sair à procura”, em mineirês bem carregado. “Jão Tadim, o personagem da história que dá título ao livro, é uma mistura de galinha com pato. Encerrado ali naquela fazenda aonde um galo obrigatoriamente teria que ser de briga, ele decide sair a ‘percurá’ lugares aonde poderia ser outra coisa. E, afinal, Jão somos todos nós, não satisfeitos com os papéis preestabelecidos que nos reservam”. Muitas das referências de Lelis estão com ele desde que era criança. “Quando ia para a roça, lidava com o gado e escutava os causos dos vaqueiros”, conta.

O interior de Minas, suas histórias, cenários históricos, personagens pitorescos e jeito de falar serviram de inspirações para algumas das HQs, mas não para todas. Há espaço também para observações sobre o comportamento humano e a vida em sociedade. Tudo conduzido com bom humor e algumas doses surrealismo.

Na função de roteirista, Lelis cria histórias simples, que se resolvem em poucas páginas. Nem todas, ao chegar ao último quadro, resultam em um final surpreendente ou tão interessante quanto a arte do ilustrador. Algumas delas carecem de mais desenvolvimento. Surpresa mesmo, só em Luxúria, uma das HQs mais recentes do álbum e que mostra, inclusive, como a fluência da narrativa gráfica de Lelis melhorou com o tempo. De qualquer forma, Saino a percurá — Ôtra vez é um achado, um deleite visual fruto do talento de um artista de traço original e inconfundível.

Saino a percurá — Ôtra vez
De Lelis. 96 páginas. Zarabatana Books. R$ 59.
Aqualelis é o nome do blog do autor


Entrevista:

Qual sua idade e onde nasceu?
Nasci em Montes Claros, norte de Minas Gerais, em 30 de julho de 1967.

Na contracapa, Ziraldo pergunta onde você aprendeu a desenhar. Então, qual foi a sua escola? Quem diria que são seu mestres e inspirações?
Em Montes Claros, na década de 1980 e começo dos anos 1990, era muito difícil ter acesso a publicações do dito eixo Rio-São Paulo e também do exterior. Um dos caras que me apresentaram material não encontrável por lá foi o médico e artista plástico, morto recentemente,  Kosntatin Cristoff. Como eram visitas rápidas à sua biblioteca, tudo aquilo que eu via era muito pulverizado, não dava pra me afeiçoar a uma ou outra linha. Então, me considero um artista bruto, sem muitos planejamentos, moldes, portanto, sem escolas. Tenho um pensamento que me parece estúpido mas me adequei de tal forma a essa estupidez que não consigo me livrar dela: não leio muitos autores e nem vejo muitos quadrinhos porque acabo me embrenhando em minhas lembranças e nos meus métodos próprios de narrativas gráficas. O suporte é universal: aquarela, nanquim, ou photoshop todo mundo tem acesso. É claro que as inspirações estão no ar e por mais que fujamos delas, elas nos encontram.

No texto de introdução, você comenta sobre trazer para os quadrinhos a cultura brasileira. E nas histórias, isso está bem claro. Nesse sentido, qual a sua “formação”? Vem de família mesmo ou de um interesse pessoal que surgiu com o tempo?
Vou te explicar isso contando como fiz a primeira edição de Saino a percurá. Em 2001, preenchi uma penca de papéis da lei de incentivo à cultura de Belo Horizonte e escrevi  lá, como justificativa, que faria um álbum de histórias em quadrinhos. Aprovado o projeto, não fazia a mínima ideia de como seriam as histórias. Com o prazo de execução do projeto de um ano na cabeça, me sentei uma tarde em minha mesa e escrevi todo o livro. Tudo que eu queria contar estava comigo desde a infância, quando ia para a roça, lidava com o gado e escutava os causos dos vaqueiros. Só criei os argumentos, mas o universo que me acompanha está materializado ali, naquele livro.

Você diria que Saino é seu trabalho mais importante? Por que? Por falar nisso, o que quer dizer “saino a percurá”?
Talvez sim. É um livro autoral, portanto, além do traço, é uma extensão do meu pensamento. “Saino a percurá” é “sair à procura”, na linguagem formal. Nos lugarejos próximos a Montes Claros e em todo o norte de minas e no sul da Bahia, é comum ouvir isso. Jão Tadim, o personagem da história que dá título ao livro, é uma mistura de galinha com pato. Encerrado ali naquela fazenda aonde um galo obrigatoriamente teria que ser de briga, ele decide Sair a “percurá” lugares aonde poderia ser outra coisa. E, afinal, Jão somos todos nós, não satisfeitos com os papéis preestabelecidos que nos reservam.

Acompanho o seu blog, e por ali vejo vários dos trabalhos que você desenvolve para o mercado internacional. Alguma previsão de algum deles sair no Brasil? E quais trabalhos em quadrinhos você está desenvolvendo atualmente?
Do jeito que o mercado de quadrinhos tem evoluído por aqui, eu não descarto uma edição brasileira qualquer dia desses.  Às vezes alguma editora daqui me sonda, mas eu passo a bola pros franceses porque eles detêm os direitos internacionais da obra. Estou trabalhando atualmente em Gueules noires, em parceria com o escritor Antoine Ozanam, para a editora francesa Casterman.

Quando poderemos ver um próximo trabalho autoral?
Escrevi um novo livro e estou esperando algumas respostas. Não dá pra falar muito porque não há nada de concreto ainda. Em outubro/novembro chega às livrarias Clara dos Anjos, adaptação para os quadrinhos da obra do escritor carioca Lima Barreto,  feita por mim e pelo Wander  Antunes, para a Companhia das Letras.

Você ainda é ilustrador do Estado de Minas? Acha que conseguiria viver só da sua produção em quadrinhos?
Sim, sou ilustrador do jornal Estado de Minas. Além disso, ilustro livros infantis e juvenis para editoras de São Paulo e do Rio. Difícil responder se posso viver só de quadrinhos. Hoje em dia ainda não. Vivo também deles, mas não só deles. Apesar de trabalhar para um mercado muito sólido como é o franco/belga, preciso de mais estrada por lá para me arriscar a uma dedicação exclusiva. Vejo boas perspectivas para que isso aconteça em breve, mas estipular datas é temerário. Enquanto isso,  vou construindo minha carreira por lá e por aqui.

Obituário: Sergio Bonelli (1932-2011)






















Nesta segunda-feira, Tex trocou a camisa amarela por uma preta. Zagor deixou a machadinha em casa. Dylan Dog, Martin Mystère e Julia Kendall tiveram que postergar suas investigações. Quando ficaram sabendo da notícia, Mister No e Nathan Never cancelaram as aventuras do dia. Em sinal de respeito, esses e tantos outros personagens pararam o que estavam fazendo para lamentar a morte do amigo Sergio Bonelli. O escritor e editor italiano morreu na manhã de hoje, em Monza, de razões ainda não divulgadas. Tinha 78 anos.

Estou longe de ser o maior conhecedor de Tex (criado pelo desenhista Aurelio Gallepini em parecia com Gian Luigi Bonelli, pai de Sergio) ou mesmo dos heróis citados no parágrafo anterior. Mas se me deparo com um gibi da Bonelli tenho certeza de que será uma leitura satisfatória. E isso só seria possível graças ao trabalho desenvolvido ao longo de décadas por Sergio na editora que leva seu sobrenome.

Em tempos em que o marketing ditas as regras do jogo e um personagem é morto em um dia para ser ressuscitado no outro, o respeito que Sergio Bonelli tinha por suas criações e seus leitores se torna ainda mais louvável. Em sinal de respeito, a Raio Laser tira o seu chapéu. (PB)