HQ em um quadro: join the dark side, por Blain e Lanzac

Arthur Vlaminck sonha com seu ministro vestido de Darth Vader

(Christophe Blain, Abel Lanzac, 2010): sejamos francos: que interesse poderia haver em um quadrinho hiperrealista sobre a diplomacia francesa? Um quadrinho obcecado com a minúcia e a técnica do ofício, com pouco cartum, pouca narratividade, poucos pontos de virada, excessivamente repetitivo, com personagens que parecem perfeitos exemplos monótonos do que acontece em certos setores do funcionalismo público. Ora, convenhamos que está aí um pouco da graça. Quai d'Orsay (como é conhecido o Ministério das Relações Exteriores francês) teve seu roteiro concebido justamente por um diplomata que lá trabalhou no início dos anos 2000, e foi pensado em cima de vivências reais. E o fato de ser um tipo de história para insiders do mundo da diplomacia o torna um tanto enigmático e desafiador, especialmente considerando-se que a cada página conhece-se mais sobre um universo novo para a maioria das pessoas. O tom blasé (uma certa mistura do humor europeu com Dilbert) do quadrinho produz um tipo de anestesia que contamina como que por uma osmose de escritório: como o funcionário que trabalha ali dia-a-dia, vamos acompanhando reuniões enfastiantes, discursos que são refeitos mil vezes, ações megalomaníacas dos quadros superiores, etc. Acabamos nos juntando a este humor discreto erigido sobre o banal ao nos tornarmos, também, funcionários do Quai d'Orsay.

A HQ trata da trajetória de dois personagens principais: a do jovem diplomata Arthur Vlaminck, que é encarregado de escrever os discursos do Ministro das Relações Exteriores Alexandre Taillard de Vormes (baseado no ex-Ministro francês Dominique de Villepin), e a do próprio Ministro. O primeiro, em princípio acanhado, vai ganhando dimensão na medida em que começa a compreender as contradições e dificuldades hercúleas de seu ofício, sendo "seduzido" cada vez mais pelo "lado negro" da força representado pelo aspecto workaholic, midiático, idealista de fachada e contraditório do Ministro. Um interessante jogo de bastidores políticos e diplomáticos se instaura enquanto vamos acompanhando e conhecendo a maneira com que se decide uma intervenção em algum país africano, ou um discurso na ONU, por exemplo. No final das contas, o que parecia uma monótona narrativa copiosa sobre o cotidiano burocrático da diplomacia ganha ares shakespearianos quando grandes decisões precisam ser tomadas, cada palavra falada precisa ser medida e a vida de pessoas entra em jogo. Obviamente, por efeito cômico, o caso edipiano de Star Wars, em toda sua opulência dentro do pop, serviu mais aos autores do que Shakespeare, e vemos, no final do Volume 1, Vlaminck sonhando com Taillard vestido de Darth Vader (sem perder os trejeitos efusivos), procurando convencê-lo a abandonar sua vida pessoal e a se dedicar integralmente à "causa" da diplomacia. Bastante premiado (inclusive em Angoulême), Quai d'Orsay ganhou uma versão cinematográfica de sucesso em 2013, e é uma das melhores BDs francesas da atualidade. Fiquem de olho aí, editoras. (CIM).   

Flores, véu e grinalda

Flores, véu e grinalda

Lembro quando, em 1997 ou 1998, conheci o Gabriel Góes na aula de desenho do saudoso professor Marel, no Espaço Cultural Renato Russo, mais conhecido na época apenas como “508 Sul”. Ele chegou com uma pasta cheia de desenhos e eu e os outros alunos ficamos embasbacados com o que vimos. Naquele momento, tive a certeza de que Gabriel seria um desenhista profissional – o que se confirmou alguns anos depois. Os desenhos dele, desde a adolescência, se distinguiam por uma identidade muito marcante, pela maneira como ele conseguia absorver influências diversas dos quadrinhos e da cultura pop e devolver tudo aquilo com uma cara inegavelmente própria, imediatamente reconhecível como sendo dele.

E acompanhando o trabalho do Gabriel ao longo do tempo, pude perceber como o desenho dele está em constante mutação, sempre apresentando algo de novo em seu traço, seja para ilustrar algo delicado ou tosco, grosseiro ou refinado – muitas vezes, tudo isso ao mesmo tempo.

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Geração Q: os novos quadrinistas brasilienses

por Ciro I. Marcondes

fotos João Luiz Marcondes

Brasília, minha cidade, definitivamente não é para principiantes. Acossada por chuvas violentas e incessantes no verão, que depois dão lugar a uma longa e sufocante seca que dura quase 6 meses, a cidade tem fama de inóspita, pouco prática, com pouca abertura a quem vem de fora, de difícil penetração. De fato, as dificuldades para se tomar contato real com Brasília vão além de um clima pouco convidativo ou dos endereços calculáveis, matemáticos, complicados para quem vem de cidades “orgânicas”. Por mais que recentemente a última geração de brasilienses esteja se mobilizando com grande esforço para tomar conta dos incríveis espaços da cidade, promovendo grandes festas abertas, gratuitas, com vibrante intensidade cultural (até o carnaval, antes insosso e deplorável, ganhou força e levou milhares de pessoas às ruas este ano), algo de misterioso ainda se preserva nos cidadãos brasilienses. Algo que penso pertencer a uma qualidade cultural intrínseca, rarefeita, difícil de detectar, quase somente percebido pelos mesmos, pequeno segredo de uma etnografia ainda por se fazer.

Origens modernas

Falo não apenas de timidez ou de um caráter reservado (o brasiliense tem fama de recluso, antipático, mas creio que seja mais timidez mesmo), mas de todo um universo secreto, que vibra dentro dos apartamentos, das repartições e das instituições culturais da cidade. Trata-se de um universo que não se abre facilmente, autopoiético (isto é: faz sentido somente para si mesmo), o que faz da cidade um lugar paradoxalmente provinciano e ao mesmo tempo cosmopolita: o cidadão brasiliense pode se recolher em seu universo particular, mas viajou o mundo (física ou virtualmente), sabe o que faz sentido política e culturalmente nos tempos atuais, projeta sua expressão numa interface digital que o faz se reconhecer como cidadão de si próprio e ao mesmo tempo de lugar algum. Por mais orgulho que tenha de suas origens modernas, de viver sob a sombra de uma arquitetura arrojada, de se reconhecer em certa identidade geracional, ele é desde sempre cético, ecumênico, até laico.

De fato, o visitante que chegar aqui e procurar a civilização de uma cidade “orgânica” não vai encontrar nada além de frieza e vazio. Vai visitar a esplanada dos ministérios, ver monumentos estéreis, raciocinar qualquer coisa relacionando o poder público à assepsia coletiva, andar um bocado e não chegar a lugar algum. Mas isso não é Brasília assim como um cartão postal não é uma cidade. Como uma mulher à moda antiga (desculpem aí feministas), Brasília se oculta, requer que seja seduzida. O visitante que souber entrar nestes meandros, conhecer os detalhes idiossincráticos dessa maçonaria de brasilienses, vai provar deste cosmopolitismo provinciano, entender a cabeça de seus habitantes, será inevitavelmente convertido. Brasília foi formada, como se sabe, por visitantes de todo o País, e assim continua sendo. Brasília é seus estrangeiros, catequizados. 

Brasília: seca e solidão

Apesar da gentrificação crescente da cidade, motivada por um cartel da especulação imobiliária (tornando-a superpovoada, violenta, vítima de mazelas metropolitanas), Brasília ainda pode ser reconhecida em suas formas culturais. Infiltrar-se no complexo sistema de relações interpessoais que encontramos por aqui requer, por exemplo, conhecer as alteridades da cidade demonstradas em um filme premiado como A cidade é uma só, do ceilandense Adirley Queirós. Ou em extremos musicais que passam longe do imaginário construído nos anos 80, como o rap de Gog ou o college rock do finado Prot(o), que segue vivo no coração dos brasilienses. É preciso entender um pouco como se mobilizam seus artistas plásticos, dramaturgos, atores, produtores culturais, poetas, DJs, pessoas que tracejam uma linha invisível de motivações que atravessam os muitos bares, cafés, cineclubes, galerias, parques e outros espaços que concatenam uma dimensão lúdica para Brasília.

Não surpreende, portanto, que, dos anos 2000 para cá, diante de uma renaissence cultural que vem sendo empreendida especialmente por gente jovem e disposta a chamar a cidade de sua, tenha florescido uma cena de quadrinhos em Brasília. Uma primeira leva, composta de gente que já se pode dizer veterana, acabou formando ao redor do chamado “complexo Laje” (uma casa na W3 Sul que serve de ateliê e escritório aos artistas) um forte de resistência em prol da ilustração e dos quadrinhos, gerando força em torno da marca “Samba”, que já rendeu várias publicações. Além dos três “samba boys” (Gabriel Góes, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita), outros nomes interessantes vêm já ralando com quadrinhos há um certo tempo, como Evandro Esfolando e suas resenhas de shows em quadrinhos, André Valente e sua produção mezzo arté, mezzo paródica, ou Caio Gomez e o pessoal que fundou o Pimba, jornal em quadrinhos bem maneiro recém-lançado pelo “Sindicato” (outra “casa de artistas” na W3). O entusiasmo pelos quadrinhos vem de um consumo grande na cidade desde os anos 80 (que formaram essa galera) somado a uma libertação do curso de Artes Visuais da UnB em prol de um conceito mais amplo de arte, dentro do qual se incluem os quadrinhos. Assumir, dentro do curso de artes, o quadrinho como, digamos, uma “categoria primária” foi algo que foi construído de dentro para fora, a partir das demandas novas dos próprios alunos, o que faz com que hoje, por exemplo, um exímio quadrinista saído desta geração (Eduardo Belga) seja professor no Instituto de Artes.

Em 2013 tive a oportunidade de ministrar, dentro do curso de Comunicação na UnB, um curso completo sobre a História das Histórias em Quadrinhos, cujo programa se assemelhava mais ou menos a isso aqui. Poucas coisas em minha carreira como professor e pesquisador foram tão empolgantes quanto ministrar um curso de histórias em quadrinhos. São três as razões principais: primeiro, saber que você está trabalhando com um material cultural que é puro ouro: vasto, complexo, diverso. Em segundo lugar, saber que poucos sabem disso e que, para a maioria dos alunos, tudo apresentado se pareceria com o abrir de portas de universos inteiros de referências. Por fim, o modo alucinado e vívido com que fomos atravessando todas aquelas escolas de quadrinhos me fez não esquecer aquela turma e criar laços de amizade com eles e com sua produção.

Nesta turma, eu tinha alunos de cursos diversos: Cinema, História, Filosofia, Design, etc. Não posso me esquecer dos alunos dos outros cursos, especialmente os muitos de Comunicação, mas foram principalmente os alunos de Artes Visuais que deram caldo especial para aquela turma, por um motivo muito simples: eles faziam e queriam fazer mais quadrinhos. Obviamente seria arrogante eu dizer que minhas aulas deflagraram o processo todo em que mais de dez dentre aqueles alunos passaram a publicar quadrinhos com regularidade, fossem na forma de zines, fosse na Internet, fosse em outras plataformas (publicando com a geração anterior, inclusive). O fato é que as aulas serviram para congregar estes artistas semana após semana em torno do universo dos quadrinhos; serviram para catalisar o entusiasmo pelo ofício; serviram para configurar uma protocena que, hoje, um ano depois, se solidifica através de feiras de quadrinhos (há pelo menos uma por mês na cidade), projetos no Catarse, reportagens em revistas e jornais e, é claro, amadurecimento autoral e empreendimentos mais ambiciosos. Um exemplo disso é a grande popularidade da tira Batata frita murcha, cujos quatro integrantes pertencem a esta “Geração Q” (adoro dar nomes a essas coisas). Todos frequentaram minhas aulas. A tira, difundida via redes sociais, pode pecar por um certo pieguismo (vá negar!), mas é bastante original: cada um dos quadrinistas publica em um dia na semana, com uma cor específica, momentos frustrantes, insights ínfimos, pequenas delicadezas e afecções do dia-a-dia. Apesar do mote comum (que dá liga e unidade ao projeto), cada artista consegue, com histórias mínimas, manter a sua integridade autoral. Já tem mais de 23 mil fãs no Facebook, e contando.

É por isso e por outros motivos que posso dizer que: 1) sim, há uma nova geração de quadrinistas produzindo material autoral em Brasília, e esta geração se mescla com a imediatamente anterior, configurando uma cena que parece sólida (a ver), com certeza uma das mais férteis do Brasil. E, 2) posso afirmar que, diante deste cenário, a partir dos anos 2000, entender Brasília passa também por entender seus quadrinistas e a arte dos quadrinhos em geral, que já afirmei ser a mais importante para o século XXI. O quadrinho tem a virtude exclusiva de configurar o texto literário com a qualidade plástica, indiscernível, das imagens, produzindo um tipo de leitura de um hibridismo que é pura dinamite narrativa (Flusser diria: leitura em linha e de superfície ao mesmo tempo), em que o autor pode reinventar o meio a cada diferente investida. Logicamente, a capacidade que um meio como este tem de expressar a dimensão cultural profunda de uma cidade é muito grande. Brasília, a cidade que se vela, se revela por meio da melancolia, do experimentalismo ou da agressividade destes quadrinhos. Como a cidade que lhes abriga, estes quadrinistas não fazem arte de fácil deglutição, e por vezes se escondem por trás de aparente vacuidade. Para que eles possam se explicar, resolvi então convidar os quadrinistas desta novíssima Geração Q para responder quatro perguntas relativas ao mercado e à arte dos quadrinhos, precedidas por um comentário meu sobre a arte de cada um, ressaltando suas qualidades. Convido o leitor, pois, a conhecê-los. São sete entrevistas. Vá pela sombra.

As perguntas:

1 – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

2 – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

3 – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

4 – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

As respostas:

Lo-Fi Pedro D’Apremont

Lo-Fi é o nome da empreitada de Pedro D’Apremont, o mais rabugento, antissocial e irascível quadrinista desta geração. Com um traço carregado de personalidade, indefectível a cada nova produção (influência de indie comics, coisas como Seth e Dan Clowes), seus quadrinhos são os únicos no Brasil a misturar elementos como sátiras de black-metal, pós-música e deuses nórdicos obscuros em histórias de terror, além de putaria e sarcasmo. Pedro tem o mérito de manter um cast fixo em seus gibis, dando continuidade às histórias, com personagens absurdos e carismáticos, como o deus-doidão Shiva, um pé-inchado de moletom sem calça (ou seja: nu na parte de baixo) tocando o terror por onde passa. A segunda edição da Lo-Fi é de um primor tão grande que nem parece um zine. Corra atrás. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Pedro D’Apremont – Faço quadrinhos independentemente se isso é uma atividade rentável ou não, faço HQs porque sempre amei lê-las e sempre tive vontade de contar historias de um jeito gráfico. Além do mais, quadrinhos são um meio artístico de baixíssima responsabilidade financeira. Os materiais usados nos desenhos são geralmente muito baratos, você não precisa contratar outras pessoas para te auxiliarem, você pode reproduzir seus gibis em “xeroxes” que cobram 10 centavos por impressão... Apesar de você não conseguir viver de quadrinhos, pelo menos é possível você não gastar quase nenhuma grana fazendo-os, ao contrário do que acontece em outras formas de arte como cinema, escultura ou mesmo música. Mesmo quando a sua intenção é fazer um produto mais “profissional”, por assim dizer, o custo desse objeto, seja ele um gibi ou um livro, será muito mais barato do que, digamos, um disco ou um longa-metragem.

Deuses nórdicos e black metal

A trava que enfrentamos no mercado brasileiro agora não se deve a uma falta de qualidade ou variedade de trabalhos que temos aqui dentro do país, mas mais a uma falta de editoras de grande e médio porte que publiquem obras de cartunistas autorais e talentosos em grande tiragem e com boa distribuição. Enquanto contarmos apenas com a Quadrinhos na Cia (da Companhia das Letras), a Zarabatana e a Conrad, não teremos uma catálogo grande de quadrinhos acessíveis ao grande público, disponível em varias lojas distribuídas pelo país inteiro. Da mesma forma, enquanto os quadrinhos publicados em larga escala oferecerem um espectro limitado de temas, gêneros, traços e narrativas, o grosso da população brasileira ainda tratará essa forma de arte como mero entretenimento descartável e serializado.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Shiva: doidão

Pedro D’Apremont – Essa é difícil! Hehehe. Acho que eu tento sempre dialogar com aspectos aparentemente contraditórios nos meus trabalhos: quero que minhas historias sejam bem-humoradas, mas que tratem sobre assuntos pesados ou perturbadores ao mesmo tempo; que sejam simples, mas que possuam algum tipo de informação ou mensagem que não esteja visível se lidas de um jeito superficial. Acho que justamente por causa dessas intenções meu traço fica entre o cartunesco sintético e o realismo, sendo esse realismo bem relativo, hehe.

Talvez por isso eu goste tanto dos quadrinistas americanos independentes, ao estilo do Daniel Clowes, Robert Crumb e outros caras como Joe Matt e o Seth. Eles conseguem balancear todo drama, peso e seriedade dos seus quadrinhos com humor sutil e um pouco de de autoironia. Mesmo quando eles fazem alguma historia escrachada (principalmente o Crumb), eles conseguem dosar o humor no nível certo pra que o resultado não seja um besteirol tosco. O foda é que eles fazem isso parecer a coisa mais fácil do mundo! 

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Pós-música

Pedro D’Apremont – Dentro dos quadrinhos gosto principalmente da cena independente norte-americana. Parece que desde o final dos anos 80 houve uma onda forte de cartunistas maravilhosos que nunca acabou ou ameaçou entrar em hiato. Adotei o Daniel Clowes como meu mestre supremo já há algum tempo, mas ando lendo muita coisa de gente como Charles Burns, Noah Van Sciver e de alguns canadenses como o Seth (que eu já mencionei) e o Chester Brown. Fora isso, muitos amigos e colegas meus como o Góes e o André Valente, junto com os caras da Gibi Gibi e da Revista Samba têm me influenciado muito e me forçado a trabalhar cada vez mais e melhor. Principalmente a dupla Góes e Valente têm uma qualidade de desenho, traço e humor que eu invejo e aspiro a alcançar. É interessante ver o quanto o quadrinho brasileiro renasceu e adquiriu uma riqueza e refinamento em tão pouco tempo! Acredito que nós temos alguns dos melhores cartunistas e algumas das melhores publicações do mundo hoje em dia, assim como já os tivemos no passado, na geração do Angeli e do Laerte.

Alguns gêneros musicais como Black Metal, Noise, Dark Ambient e Punk também me inspiram e me ajudam a entrar no clima de algumas das minhas historias. A temática tratada nas letras desses estilos (principalmente sexo e violência) e a forma como esses temas são tratados também tem a ver com o que faço nos meus quadrinhos.  Tenho a impressão que grande parte das coisas que fiz nos meus gibis foram movidas por uma tentativa de recaptar um sentimento ou uma sensação que tive quando assisti um filme ou ouvi algum disco. Com música isso ocorre de um jeito quase imediato, pois quase sempre trabalho ouvindo algum álbum no som do escritório aqui de casa, mas lembro, por exemplo, que fiquei vários meses obcecado com Twin Peaks (tanto o seriado quanto o filme, mas principalmente o longa-metragem). Por muito tempo tentei reproduzir as emoções que essa obra me passou, às vezes procurando outras coisas que me trouxessem esse sentimento de volta, às vezes tentando passá-lo para os meus próprios quadrinhos. Isso é só um episódio, mas durante toda a minha vida eu passei por situações onde fui arrebatado por algo que eu não conseguia botar em palavras e tentava resgatar esse algo fazendo um desenho solto ou uma historia. De certa forma é sobre essa relação entre arte e nostalgia que a HQ “Érico”, que eu fiz pra Lo-Fi 2, fala. Se eu consegui me expressar bem ou não, isso já é outra historia, hehehe.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Pedro D’Apremont – Vejo o quadrinho como uma forma de arte como qualquer outra, e não como sub-gênero da literatura ou das artes plásticas. Acho que se os cartunistas, assim como os editores, tratassem as HQs como expressões artísticas autônomas, que não devem nada à prosa, as chamadas “narrativas gráficas” e “romances gráficos” seriam tratados com muito mais respeito, principalmente no Brasil.

A Ética do Tesão na Pós-Modernidade e Garota Siririca LoveLove6

É possível que você já conheça o trabalho de Gabriela Masson ou seu codinome, Gabi LoveLove 6. Ela certamente é a garota produzindo quadrinhos mais conhecida de Brasília, já despontando com seu estilo minimalista, de poucos quadros, mensagens subliminares e linguagem onírica abordando o mundo da sexualidade e da afetividade em seus dois volumes do zine

A ética do tesão na pós-modernidade.

Porém, é com a série Garota Siririca, publicada no portal da Revista Samba, que ela se projetou nacionalmente. Fortemente engajados em um feminismo que procura libertar através de um conhecimento completo do corpo feminino, os quadrinhos dela são monocromáticos, visualmente didáticos, mas charmosos, encantadores. Seus temas demolem tabus, cobrindo cada aspecto da sexualidade feminina, e às vezes resvalando também em pequenas narrativas próximas a Dykes to watch out for, de Alison Bechdel. Seu trabalho mais emocional, cheio de sutilezas, pode ser visto também em Batata Frita Murcha. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Gabi LoveLove6 – Pessoalmente creio que os quadrinhos sejam uma poderosa ferramente de comunicação e atualmente são o meio pelo qual melhor expresso o que desejo comunicar ao mundo. Percebo que graças à Internet, em especial às redes sociais, o consumo e contato com quadrinhos tem aumentado, possibilitando, por exemplo, cada vez mais projetos a serem financiados coletivamente em plataformas como o Catarse. Essa barreira entre quadrinhos e arte tem se flexibilizado cada vez mais a partir de experimentações narrativas e gráficas dentro do suporte dos quadrinhos. Mais lentamente, o tema tem sido introduzido na academia em áreas de comunicação e artes visuais. Acredito que sejam necessárias mais pesquisas sobre quadrinhos no ambiente acadêmico. Também uma maior produção de quadrinhos independentes e nacionais para maior expressividade do mercado frente à indústria de quadrinhos. Uma formação e mentalidade mais empreendedora dos próprios autores é necessária para que possam articular melhor sua circulação e construção no mercado independente em relação ao público, distribuidores, editores, produtores...

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Gabi LoveLove6 – Quadrinhos autobiográficos, sobre sexualidade, relações interpessoais e sentimentos, sob uma perspectiva feminista. Meus quadrinhos orbitam em volta destes temas. Graficamente as experiências variam de acordo com a circulação, público, temática que viso para cada projeto. Escolho abordar estes temas pois acredito que tenham importância política e que possam estimular reflexões acerca das circunstâncias sociais em que estamos submersos.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Gabi LoveLove6 – Atualmente consumo especialmente quadrinhos, fanzines e outras publicações independentes e nacionais. Também consumo livros de educação com abordagens feministas ou políticas, como os dos autores Guacira Lopes Louro e Paulo Freire. Os quadrinhos de colegas e autores de possível contato direto me influenciam fortemente especialmente em relação às experiências e métodos gráficos que utilizo na minha produção. As pesquisas em educação e política me ajudam a desenvolver as temáticas que aprecio.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Gabi LoveLove6 – Penso que, a depender da narrativa e visualidade de um determinado quadrinho, as barreiras que dividiriam este meio de outros, legitimados pelo mercado de arte, se tornam nebulosas e podem ser ultrapassadas. Porém, os autores não estão especialmente preocupados em serem acolhidos por este mercado específico, uma vez que existe um menos expressivo porém crescente mercado voltado aos quadrinhos e publicações independentes. Creio ainda que possuam preocupações acerca de desenvolver um trabalho artístico que gere reflexão e experiência sensitiva tanto quanto os artistas legitimados pelo mercado.

Lovelove 6: sutilezas

Cesariana – Lucas Marques

Lucas Marques é um caso único na HQ brasiliense de hoje em dia. Ele escreve e desenha um romance gráfico autobiográfico, fortemente influenciado pela escola indie americana (Charles Burns, Craig Thompson, etc.) que vem sendo publicado na forma de um zine muito caprichado em fascículos, Cesariana.

Delicada e ao mesmo tempo sombria, a história toca a trajetória de três adolescentes num cenário típico de classe média baixa brasiliense, com surpreendente maturidade narrativa e questionamentos de ordem filosófica (a existência de Deus, o valor do Bem, fronteiras éticas, growing pains, etc.).

Lucas pretende concluir a história em 5 edições e estamos prestes a ver nascer a terceira. Esperamos que o ótimo nível se mantenha.(CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Lucas Marques – Se eu fosse me ater a um retorno econômico certamente eu não escolheria o quadrinho como profissão. Porque além de exigir muita dedicação e tempo no processo, não são muito valorizados no mercado brasileiro e muitas vezes nem em outros países mais culturalmente abrangentes. O que me leva a insistir nessa forma de expressão é uma espécie de sentimento de fidelidade. Os quadrinhos são os responsáveis por me fazer despertar interesse pelo mundo e pela arte. Antes do meu envolvimento com os quadrinhos eu não tinha muitas coisas que me estimulassem a querer fazer algo. Mas nessa forma de linguagem eu encontrei algo muito essencial, algo que se adequava perfeitamente ao que eu julgava ser a minha forma de expressão. Me atrai muito as possibilidades do que posso fazer com imagens e palavras, é como se eu tivesse uma liberdade expressiva ilimitada e isso é muito estimulante para mim. Embora, eu também tenha muito interesse por animação e cinema.

Acho que para que o quadrinho adquira esse status de arte ou uma maior relevância no mercado - que ao que me parece tem acontecido, embora bem ao poucos - é preciso amadurecer o que se entende por essa forma de expressão, tanto o público, quanto os editores e até mesmo os próprios autores.  Aqui em Brasília, onde moro, parece que se você não está estudando para um concurso ou se iniciando numa profissão mais prática e de retorno financeiro imediato, você é uma espécie de idiota. Não estou dizendo que o que essas pessoas pensam a respeito disso não têm qualquer fundamento e que elas fazem isso por pura maldade, isso é apenas um reflexo do que a dinâmica socioeconômica lhes impõe. O fato é que geralmente se tem uma ideia muito limitada do que é cultura e da importância que ela tem na nossa sociedade. Em algum lugar que não me lembro onde ouvi dizer que a etimologia da palavra “cultura” está ligada ao processo de cultivar o plantio, preparar a terra, as sementes e esperar que ela dê frutos. Assim, temos que entender que cultura é algo indissociável de tempo, de amadurecimento. Se o nosso mercado econômico e o nossas políticas entendessem e valorizassem esse processo, acho que os artistas não teriam tantas dificuldades de sobreviver nesse meio.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Lucas Marques – Não sei definir o tipo de quadrinho que faço, consigo identificar algumas influências nele, mas não saberia defini-lo. Acho que essa parte de classificação, definição e identificação de tendências deve vir mais pela crítica e pelo público do que pelo próprio autor. Ao menos eu, em meu processo criativo, busco me desvencilhar de classificações, muitas vezes só vou descobrir depois o porquê do que fiz. Como sou um autor iniciante ainda estou buscando desenvolver e amadurecer meu estilo, acho que ele ainda está em processo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Juventude brasiliense

Lucas Marques – Busco consumir todo tipo de bem cultural que me leve a um experiência estética interessante. Os que mais tenho acesso são livros, quadrinhos, filmes e música. Geralmente nos livros, quadrinhos e filmes eu vou buscando por meio dos autores e diretores, e na música pelo gêneros e músicos que me agradam. Na literatura eu gosto muito dos clássicos, embora me falte muita coisa para conhecer, tenho um apreço muito grande pela literatura russa. Dos escritores contemporâneos que posso dizer que conheço alguma coisa, gosto muito de Gonçalo M. Tavares: é um escritor que adquiriu um prosa muito concisa e segura e um olhar muito sóbrio para as coisas que descreve. Nos quadrinhos o que mais leio são os formatos graphic novel e autobiográficas, mas procuro conhecer um pouco de tudo, embora tenha um bloqueio muito grande em ler super-heróis. Tanto no cinema, como na literatura e nos quadrinhos que são meios que lidam com a narrativa, o que eu busco é  alguma originalidade ou inovação na forma de se narrar e apresentar eventos ou ideias. Acho que o cinema influenciou muito minha forma de lidar com a narrativa, porque por muito tempo me envolvi de uma forma ou de outra com essa área, fazendo storyboard, direção de arte ou mesmo só assistindo. Aprendi a escrever roteiro no modelo cinematográfico e é o modelo que também venho usando nos quadrinhos, pelo menos os mais longos. E no “Cesariana”, meu quadrinho em produção, me baseei muito em vídeos de skate que via na adolescência.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Lucas Marques – Uma coisa que observei e aprendi durante o meu curso (Artes Plásticas) é que o termo “arte” na forma como utilizamos não é nada além de uma espécie de carimbo para qualificar algo, atribuindo-lhe um status social. É uma palavra que empregamos para legitimar ou não um tipo de material criado dentro de nossa cultura. Penso no quadrinho simplesmente como um meio, um meio de se transmitir algo com uma quantidade de recursos ilimitada, mas com suas especificidades, como em qualquer outro meio. Embora ele também possa ser diversas outras coisas, entre elas arte.

Pequi – Taís Koshino e Lívia Viganó

O trabalho constante e cada vez mais misterioso desta dupla de autoras recebe as recompensas e sofre com as intempéries de se fazer quadrinhos extremamente experimentais. Carregados de non-sense, minimalismo pueril (doodling), tiradas sarcásticas e coisas que se parecem com algo que Liniers faria após um colapso mental, os quadrinhos destas garotas passam por experiências de linguagem, trocas sensoriais, jogos de palavras, ou puro e simples mergulho no absurdo. Podem ser encontrados em vários zines publicados desde 2011 (incluindo Pequi 1 e 2), e também em um site muito maneiro com várias séries online. Para alguns leitores, o tom autista das tiras pode levar desde ao desdém até à mais legítima revolta. Eu, no entanto, recomendo fortemente a tira Vida difícil. Certamente é uma das coisas mais lúdicas produzidas por aqui. (CIM)  

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Taís Koshino e Lívia Viganó – Por que tentar outra carreira? Para nós, seguir fazendo quadrinhos é um risco necessário.

O interesse por quadrinhos no Brasil, com a chegada das graphic novels, tem aumentado, as produções têm crescido, estão surgindo novas feiras e festivais voltados para a produção independente (onde realmente há possibilidades de algo novo). É assim, aos poucos que vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Taís Koshino e Lívia Viganó – Não sei defirnir os quadrinhos que faço, eles surgem a partir de uma angústia de dizer e produzir algo. (Taís) O estilo às vezes se estabelece como uma resposta à narrativa.(Livia)

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Recentemente entramos em contato com vários quadrinistas diferentes, variados formatos de zine. É sempre bom estar aberta a novas referências, sejam elas pinturas, quadrinhos, enquadramentos num filme, ou a própria vida. (Taís e Livia)

De quadrinhos, estou pirando mais num finlandês, o Roope Eronen, e no Yuichi Yokoyama, um artista japonês do alternative manga. (Taís)

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Quadrinhos são arte.

Pequi: pegada dadaísta

Vudu Comix – Mateus Gandara, Heron Prado, Vitor Vitali

A Vudu Comix é um selo de quadrinhos voltados principalmente para o insólito, o horror, o humor negro e o fantástico. É uma das únicas iniciativa de “gênero” na HQ brasiliense contemporânea. Quem encabeça esta empreitada é Mateus Gandara, um quadrinista de traço vigoroso e sutileza poética, que melhora a cada produção lançada. Há um salto, por exemplo, entre os rascunhos de lirismo intimista em As sessões, o senso de aventura e horror gótico tresloucado em Flagelos Noturnos e a dimensão existencial primitiva, quase religiosa, em Mondo Colosso, seu melhor trabalho.

Sendo um dos desenhistas de maior personalidade da cidade, ele cada vez mais avança também na sofisticação narrativa, dispensando balões e transformando a leitura de seus quadrinhos em um processo de deslindar as possibilidades visuais de seu trabalho.

Por mais que a Vudu hoje conte apenas com a presença de Gandara, ela já teve outros colaboradores. Heron Prado, dono da tira mais non-sense e ácida do Batata Frita Murcha, é um ilustrador caótico, de desenhos rascunhados e cheios de hachuras, bom para histórias de bas-fond perturbador, caso da recente Breve, ou de suas próprias tiras publicadas no portal da revista Samba, a série Futuro de pretérito, um inventário de situações absurdas e possibilidades surrealistas. Outro nome de destaque que colaborou com a Vudu é o do roteirista Vitor Vitali, um dos mais novos nessa galera. Ele escreveu tanto Breve quanto Mondo Colosso, a primeira com pegada noir terceiromundista, e a segunda com visão mais holística, cheia de recursos de perspectiva e ponto-de-vista, aprofundando-se em possibilidades narrativas. Tem potencial, especialmente pela parca quantidade de roteiristas especializados em quadrinhos hoje em dia no Brasil. (CIM)

A colossal

Mondo Colosso

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Mateus Gandara – Particularmente, não pauto minhas escolhas de acordo com as consequências que elas podem acarretar. Já fiz isso durante um longo tempo, talvez durante toda a minha vida. Não faço isso mais. No ano passado, estive muito próximo de encerrar minha temporada nesse mundo, e isso me fez reavaliar minhas prioridades. Entre elas, quais concessões deveria fazer, no tempo que me restasse, e quais não. Nunca mais abrirei mão de fazer o que eu gosto por qualquer outro motivo que não seja o da sobrevivência, ou da manutenção da minha felicidade. Depois do amor pela vida, pela humanidade e pelo Led Zeppelin, tem o amor aos quadrinhos. Abaixo disso está todo o resto. Tenho tempo, vontade e recursos. O que me impede de só fazer o que eu gosto nessa vida tão breve? O julgamento alheio? Meu próprio julgamento? Foda-se o julgamento! Viver está além disso. E eu estou vivo. “Não me comprometo, nem mesmo em face ao armagedom!”

E tem mais: se os quadrinhos ficarem entre eu e a minha vida, fodam-se os quadrinhos também!

Para que os quadrinhos se estabeleçam no Brasil - cultural e economicamente - é preciso, nesse momento de pioneirismo, que venham à tona o máximo de quadrinistas que for possível. Todos eles, eu diria. E com coragem. É preciso que os desenhistas parem de ficar batendo punheta em casa - com seus caderninhos de desenho geniais que só os amigos veem, com seus blogs que nunca são atualizados, com suas histórias de amor e suas tragédias particulares - e comecem a desenhar aquelas histórias incríveis que eles pensam há anos, escrever aquele roteiro genial que você contou pra teu amigo deixando ele com fogo nas calças, sentar com outros quadrinistas e aprender como se faz um quadrinho, ensinar a fazer, montar um pdf, fazer um orçamento numa gráfica e imprimir um quadrinho! Eu garanto que poucas coisas são tão emocionantes na vida de um desenhista, do que ver uma história tua impressa. Ainda que seja curta. Ainda que você não tenha dado todo o sangue. Mas tá lá. E aí não tem mais volta, você vai querer mais. E então a gente começa a formar um público. Daí, um mercado.

A(o)s punheteir@s, reitero que o que eu disse anteriormente foi dito com todo o amor que posso lhes transmitir, do fundo do meu coração. De um punheteiro para o outro. O primeiro passo para deixar de ser um punheteiro, é reconhecer-se como tal. Sem julgar, só reconhecer. É isso que tu é, um descascador - uma máquina de procrastinação. E está tudo bem. Quem nunca procrastinou que atire a primeira pedra. Mas só que tu sabe desenhar e escrever, e gosta disso. E acha que é bom nisso. Então seja o punheteiro que escreve e desenha. Não julga, só faz. E faz porque gosta, não porque acha que é bom. Isso vem depois. Continua, desenha até o fim, nem que seja uma história de uma página só! Imprime, distribui. Sem nunca julgar, mas ouvindo as críticas com atenção. Vai desenhando, vai fazendo outras histórias, outras maiores. Então o processo começa a te consumir. E aí vai ficando menos deprimente ser um punheteiro. Tu até tira um tempo pra uma punheta, porque então você até precisa de uma! Depois você vai numa gráfica qualquer e imprime umas 100 cópias da tua revista. Nem começa com o papo da grana! Vende tuas revistas. Pronto!

Flagelos Noturnos

E então você passa a ser uma pessoa saudável, que faz o que gosta e que pratica uma atividade sexual perfeitamente saudável e comum, nas horas vagas. Quem sabe não se assume um quadrinista? Quem sabe até não melhora tua vida?

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Mateus Gandara – São quadrinhos narrativos lineares, a princípio, que contam histórias com início meio e fim, e com esmero visual - tendo em vista minhas influências e os mais de dez anos de estudo de desenho.  São quadrinhos com argumento enxuto, que dão maior enfoque às sensações que ao discurso. São dinâmicos e soturnos. Tematicamente, sinto que ainda não me defini completamente, mas seria algo abrangendo fantástico/sci-fi/terror/drama. Tenho vários outros projetos em gêneros diversos, com temas mitológicos, policiais e documentais, mas ainda não os botei na lenha, portanto não posso definir qual seria meu gênero predileto. Isso é até um tanto irrelevante, na verdade. Adoro todos os gêneros narrativos, e pretendo explorar todos eles. Pra mim, uma história tem que ser bem contada, independente do gênero, e que tenha nela algo de vivo, que nos faça sentir vivos, ou que nos atente pra vida. Que pulse por si, como algo vivo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Mateus Gandara – Minhas maiores inspirações para os quadrinhos, na verdade, estão no cinema. Gosto de quadrinhos que têm aspecto de filme. Gosto de síntese; de questões complexas resolvidas em gestos, situações, imagens ou com poucas palavras. Gosto do charme dos filmes europeus pós segunda guerra, e da intensidade do cinema norte americano dos anos setenta. Atualmente está difícil de gostar de cinema (no que faz referência aos quadrinhos), os EUA estão muito repetitivos! Gosto de filmes românticos. Simplesmente amo tudo do Hayao Miyazaki!

Tem o Masamune Shirow (Ghost in the Shell) e o Katsuhiro Otomo.

Considero Akira uma leitura obrigatória pra quem pretende fazer quadrinhos. Assistir ele também, várias vezes.

As sessões

Quanto aos quadrinhos, Frank Miller é incontornável; se você não vai a ele, ele vem até você. É uma das minhas primeiras referências em quadrinhos, com o Cavaleiro das Trevas e o Ronin, que eu li pela primeira vez quando tinha uns 14 anos. Alan Moore e Grant Morrison para  aprender a ser prolixo sem ser insuportável, além de suas histórias inesquecíveis – Watchmen e Grandes Astros Superman. Moebius, Dave McKean, David Mazzuchelli, Simon Bisley, Liberatori para inspirar o desenho. Neil Gaiman.

Lobo Solitário pra aprender a fazer quadrinhos, e ainda aprender alguma coisa decente para a vida. Acho o Eisner chato, apesar de sua importância para que a linguagem dos quadrinhos fosse elevada a um patamar de seriedade, em um contexto sócio/cultur... CHATO!! A não ser pelo Spirit! Spirit, sim!

A literatura é crucial para quem faz quadrinhos. Alguns autores como o Tolkien e o Asimov engrandecem muito a criatividade de uma pessoa. Adoro os livros do Mutarelli. Um deles, o Miguel e seus Demônios, me deu muita vontade de transformar em quadrinhos. Quem sabe? Tem o Cervantes, que dá uma aula de humor, dentre outras variadas qualidades da narrativa escrita. Saramago tem um estilo original (que é tipo escrever errado) que dá muita fluidez pra sua narrativa, e isso é muito importante nos quadrinhos. Gabriel Garcia Marquez, óbvio. Dashiel Hammett, Edgar Allan Poe, Jonathan Lethem e Chuck Palahniuk como maiores incentivos para os pretendidos romances policiais. Leio muito de mitologia grega e história antiga em geral. Nada é mais inspirador do que ler sobre as civilizações antigas. Sou apaixonado pela pré-história.

Em um primeiro momento, tudo o que um artista (qualquer pessoa, na verdade) consome, que seja de ordem cultural – livros principalmente -, irá ampliar as fronteiras de sua criatividade, irá expandir também sua capacidade imaginativa e apurar seu gosto por tudo quanto existe na vida, caso já não o tenha desperto. O que desperta aí é sua consciência - que é algo liberto e não algo inato. É adquirida por mérito. Uma vez desperta a consciência de um artista, tudo o que há - e muito do que não se sabe ao certo se há realmente - lhe servirá como base para a criação.

Acima de todos, eu tenho como a maior inspiração para a criação artística, quiçá para toda a vida, o filme Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa. Ali está tudo o que eu pretendo enquanto artista, tudo em que eu acredito enquanto ser consciente e tudo o que eu considero importante saber sobre o mundo.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Eu não penso nisso. Mas tenho certeza que deve culminar em um acalorado ensejo intelectual pelo o qual eu não tenho o menor interesse. Não acho que “ser arte” ou não importe muito pra qualquer coisa que “seje”.

A arte de Heron Prado

Mês

– Daniel Lopes e Augusto Botelho

Escrever, editar e publicar um zine por mês. Com este foco em mente, Daniel Lopes e Augusto Botelho realizaram o empreendimento laborial mais extenso nos quadrinhos de Brasília em 2013.

Mês teve doze edições, cada uma delas com o nome do mês de lançamento. Em 2014, via Catarse, eles reuniram todos os zines em um box-set com coisas extras. A qualidade dos zines cresce a cada edição, sendo muito tímida e amadora no começo, e se tornando mais ambiciosa, experimental e autoral no final. Geralmente Mês traz vários convidados, alguns totalmente dispensáveis e outros que também estão listados neste texto. O que é vital para a identidade e sagacidade do zine, no entanto, é o trabalho de seus editores-quadrinistas. Daniel Lopes, um disciplinado desenhista interessado pela história dos quadrinhos, nos apresenta a ótima série Marco, o macaco do espaço, formatada em tiras à moda da era de ouro, com ecos de Flash Gordon e Planeta dos Macacos, sendo ao mesmo tempo homenagem e revisão destes imaginários. Esta HQ não é apenas space-opera de aventura ligeira, mas também revisão de ideias sobre solipsismo, psiquismo, política, história, etc. Seus desenhos são elegantes e simples, com ótimo design de personagens. Já Botelho, dono de um traço mais barroco, mistura de influência de BD adulta com HQ brasileira dos anos 80, faz transparecer estes aspectos também em seus temas. Sua principal contribuição é a história longa O aguardado, mostrando uma surreal aparição do Rei Sebastião nos dias modernos, como espécie de Ronin (Frank Miller) abrasileirado, ecoando o sentido político manifestado nos protestos de 2013. Uma dupla cuja maturidade artística ainda está em processo, mas que não deve parar de trazer novidades de agora em diante. (CIM)

Daniel Lopes

Marco: referência à era de ouro

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Daniel Lopes – Acho que o negócio mesmo é arriscar e fazer o que gosta. Levei muito tempo pra começar a fazer quadrinhos, justamente pela insegurança de arriscar, por não achar que está bom o suficiente, sobre o que é um bom desenho, etc. Aqui em Brasília, conhecia já alguns casos de pessoas fazendo quadrinhos mas acho que quem realmente arriscou foi a galera da Samba, e um somatório de coisas fez o projeto ir pra frente. A qualidade gráfica, das histórias, da impressão, a situação local. Hoje dá pra ver que o público está crescendo, tem mais gente também consumindo quadrinhos, gente que antes não consumia. E tem mais gente arriscando a fazer. Essas coisas já estão acontecendo, e aos poucos vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Daniel Lopes – Faço quadrinhos há um ano apenas, acho cedo pra dizer. Mal comecei a me encontrar no tipo de história que quero fazer, ou o que quero dizer com elas. Na maioria das histórias curtas fico bastante na experimentação, testando a empaginação, adequando o desenho ao clima da história. A história mais longa que fiz foi "Marco, o Macaco do Espaço". Fui fazendo aos moldes das tiras clássicas, como Flash Gordon, e lançando em capítulos mensais. Gostei muito de fazer essa história e pude encher ela de referências, que vão desde desenhos animados e filmes de ficção científica que via quando era criança até teosofia e ufologia. Se pudesse resumir, diria que essa história é um mashup de várias coisas que eu gosto, não há nada de muito novo. Gosto dela também por não ser uma história que se leva muito a sério, acho despretensiosa. Agora no começo do ano participei do 24 horas de quadrinho, uma versão nacional do exercício proposto pelo Scott McCloud. Essa coisa meio louca de ir fazendo sem pensar muito acaba por te denunciar, você expõe suas falhas, fica muito claro pra quem conhece de onde você tá tirando a solução pras coisas. No meu caso, acho muito forte essa questão da referência, o que produzo está muito ligado com o tipo de coisa que consumo, seja no desenho ou no roteiro. Por um lado essa contaminação é produtiva, alimenta as ideias, mas tem de se tomar cuidado com isso e buscar uma autonomia.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Daniel Lopes – Sem dúvida influenciam. Leio majoritariamente quadrinhos, gosto muito de Moebius, Manara, Enki Bilal e esse pessoal da Heavy Metal/Métal Hurlant. Pra mim estão entre os melhores no desenho. Gosto também das histórias da geração britânica de roteiristas da Vertigo no final dos anos 80, Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison. Se pudesse, gostaria de escrever histórias entre essas duas vertentes. Leio também alguns mangás, hoje em dia menos, mas melhor selecionados. O fato de começar a fazer quadrinhos me fez procurar muito os independentes. O contato direto com o trabalho dos colegas sem dúvida é uma grande influência. A gente vai trocando ideia direto, conversando sobre o processo, é bastante motivador. É também uma realidade próxima da nossa, é gente começando também e tentando, testando. O contato com o público ajuda bastante a entender o que funciona ou não. Assisto muitos filmes também e leio alguns livros, a busca pela literatura é uma coisa recente pra mim. Mas pra mim essas referências são mais pro texto. Acho que muito da imagem dos quadrinhos tem essa influência direta do cinema e da televisão, nosso olho é bastante educado por essas imagens. As vezes acho que isso limita um pouco o que podemos fazer com os quadrinhos, por isso tenho tentado buscar mais referências na ilustração, que explorem os recursos gráficos.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Daniel Lopes – Tenho como formação as artes visuais, e dentro da academia há um senso comum de que quadrinhos não é arte. Arte sempre foi essa coisa elitizada, e a instituição acaba por dizer o que é arte ou não. O fato de quadrinhos ser um produto da indústria cultural só agrava as coisas, há sempre esse estigma de ser múltiplo, barato, descartável, e do outro lado todo o fetiche se constrói sobre a aura da obra de arte. Mesmo que na arte contemporânea muitas dessas questões sejam colocadas em cheque, ainda há esse pensamento conservador e segregador em relação ao que está fora e dentro da galeria. Parafraseando uma frase genial do Liniers, "se você faz quadrões é um artista sério".  É muito mais uma ideia fixa do que preconceito, visto que muitos dos professores do departamento consomem quadrinhos regularmente. Lembro de um episódio em que um professor falava sobre Winsor McCay e o colocava como "diferente" dos outros quadrinistas, como um "artista". Realmente McCay foi um autor que praticamente esgotou em termos de recursos gráficos na sua época, mas essencialmente o que faz ainda é quadrinhos, então se ele é um "artista" por que não dizer que faz "arte?". Acho que há sim grande parte da indústria de quadrinhos que considero descartável, como a maioria dos quadrinhos de super heróis e mangás shonen de hoje. É muito delicado fazer esse julgamento pois há várias questões de subjetividade e empatia do leitor com os quadrinhos que lê, e acabamos por repetir o mesmo crivo opressor da instituição. Mas há uma galera mais crítica que realmente explora a linguagem dos quadrinhos, que talvez se aproxime mais dessa discussão autorreferente das artes, como o Chris Ware, com Building Stories e David Mazzucchelli, com Asterios Polyp, pra citar alguns. Talvez esse seja o grande atrativo do mercado alternativo e quadrinhos autorais. Acho que hoje em dia é onde se acha mais coisas diferentes. Tem muita coisa boa surgindo por aqui, muita gente se publicando pela Internet, explorando os recursos gráficos no virtual e no impresso. Acho os zines FABIO, do André Valente e do Gabriel Góes, geniais, foram a minha escola da autopublicação. É interessante ver essa cena do zine ganhar força ao mesmo tempo que se utiliza de alguns recursos que conferem um determinado valor artístico pra coisa, como as impressões em papel diferente ou a tiragem numerada. Acho que gosto de como há um mercado que se sustenta pelas bordas do sistema, parasitando e ao mesmo tempo questionando.

Marco fritando

Augusto Botelho

Augusto Botelho – Antes de começar a responder as perguntas eu gostaria de deixar claro que a minha

 experiência com os quadrinhos, enquanto meio e enquanto mercado é bem recente, de pouco mais de um ano, e acho que boa parte do que penso a respeito de ambos ainda se encontra em um estágio bem inicial de amadurecimento. Se conversarmos com autores já mais experientes talvez muito dessa minha visão já seja algo passada ou ainda ingênua. De qualquer forma, o processo é esse de ir construindo mesmo e acho que é só trocando ideias que vamos construir uma reflexão maior sobre esses temas, então vamos lá:

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante dessas dificuldades, por que tentar essa carreira? O que você acha que tem de acontecer pra avançarmos nesses méritos?

Bom, a vontade de trabalhar com quadrinhos vem principalmente de uma paixão pela mídia nutrida desde moleque. Os quadrinhos se encontram entre os principais produtos que consumo e definitivamente são o principal motivo de eu ter continuado desenhando.

Existem vários extratos diferentes dentro do mercado dos quadrinhos. Talvez pra gente entender melhor seja bom fazer algumas distinções e olhar pra cada um separadamente. Existe um mercado comercial, representado principalmente por grandes editoras, que têm os recursos necessários para distribuir revistas por todo o país, ter publicações com regularidade fixa e etc. Essas grandes editoras detêm um certo monopólio do que é publicado e a esmagadora maioria do que lançam nas bancas são os quadrinhos estadunidenses de super-herói, mangás dos mais comerciais e afins.

Botelho: estilo barroco

Dentro desse mercado comercial existe também um pequeno grupo de editoras menores que têm publicado quadrinhos europeus, asiáticos e outros com uma pegada mais autoral, mas geralmente de autores clássicos ou já consolidados. Acredito que principalmente pelo fato dessas editoras não terem condição de distribuir na mesma escala que as maiores, elas têm focado os lançamentos em edições mais caras em capa dura ou de luxo para livrarias, atingindo a um público mais específico que vai de quadrinistas a estudantes universitários e pessoas mais velhas com uma estabilidade financeira maior e que já consomem quadrinhos. Então, apesar de darem uma diversificada no mercado, acabam ficando meio restritas pelo fato de que seus produtos não são muito acessíveis.

Existem também algumas publicações que vêm de editais públicos, mas tenho a impressão que é ainda uma iniciativa bem tímida por parte do poder público e que a maior parte das publicações são adaptações de clássicos literários direcionadas para uso didático em escolas.

E, por fim, existe a cena independente nacional, onde os autores não só fazem suas histórias, como editam a publicam suas revistas, vendem, distribuem e tudo mais. Costumam circular em feiras, organizadas pelos próprios autores ou entusiastas, e têm um contato mais direto com o seu público. Além de criarem redes entre os autores, que realizam trocas e fazem os trabalhos de uns e outros circularem através do País. Essa cena está passando por um momento muito rico, com novos autores e autoras surgindo a toda hora, em um movimento crescente da cena como um todo.

Ufa! Enfim, acho que o caminho mesmo é o de aumentar em todos esses nichos o espaço pra diversidade. Diversidade de autores, propostas, formatos e etc. É difícil furar o bloqueio das editoras, que dificilmente vão publicar autores que já não estejam consolidados, então acho que o caminho é a gente fortalecer cada vez mais essas nossas redes, tentar chegar em públicos diferentes e não se acomodar em pequenas zonas de conforto que possamos ter conseguido, ou venhamos a conseguir. Acho que nesse sentido iniciativas como a zine XXX são extremamente necessárias, para diversificar tanto os autores e trabalhos que circulam nesse meio, quanto o público que o consome. Em poucos meses de existência já deu pra sentir o impacto que foi a zine XXX e como ela realmente responde a uma necessidade que estava ali e que os autores (grifo no O) não estavam dando muita bola.

Talvez valha algum tipo de iniciativa conjunta dos autores para cobrar maior espaço dentro de investimentos públicos e afins, mas não sei quais seriam as perspectivas reais disso.

O aguardado

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por esse estilo?

Augusto Botelho – Acho que a minha experiência com quadrinhos ainda é bem pequena então não me sinto muito seguro pra afirmar que os quadrinhos que faço são de determinada forma ou definir um estilo porque não vejo isso como algo já definido neles. Estou ainda experimentando os tipos de desenho; composição; formas narrativas, descobrindo muitas coisas. Acredito que ainda tem muita água pra correr até eu realmente ter um estilo definido. De qualquer forma, desse um ano e pouco trabalhando com quadrinhos, algumas coisas já começaram a aparecer. No âmbito do desenho comecei trabalhando com um traço mais cheio de informação em desenhos com bastante tracejado e hachuras ou trabalhando com o pincel seco e lápis. Enfrentei algumas dificuldades quanto à clareza narrativa com tanta informação e passei por um processo de limpeza do traço. As últimas histórias foram feitas numa desenho mais linha clara, com algumas sombras em preto. No momento estou querendo juntar as duas coisas de alguma forma, voltar pro traço sujo, em especial o de pincel, mas tentar ser mais sintético e deixar áreas maiores de respiro.

Quanto à temática, até o momento meus quadrinhos têm ido por uma linha meio regional, meio fantástica, com alguma coisa de aventura. Inicialmente nos quadrinhos mais curtos fiz coisas relacionadas ao ambiente e à cidade onde vivo, e depois comecei trabalhando com adaptação de um conto do Cyl Gallindo, escritor pernambucano, o que me levou mais pra essa onda regionalista. Acho que estou variando entre essa pegada regional e uma outra de pequenas crônicas urbanas, relativas a essa experiencia da cidade. Coisas de paradas de ônibus, pichação, etc. Acho que o principal motivador dessas temáticas são as coisas que gosto e me influencio e as questões que acho importante trabalhar, eu tenho um envolvimento muito grande com o debate político (político num sentido amplo do termo, não apenas o universo de eleições, cargos políticos, etc) e acho que isso acaba aparecendo, de forma mais ou menos evidente, no meu trabalho.

Uma coisa que já percebi ser característica da minha forma de trabalhar é em geral fazer os desenhos, definir a composição da página antes de ter o texto. E várias ocasiões, em especial nas tiras do

Batata frita murcha, eu começo desenhando e o quadrinho vai se definindo a partir do desenho. O que o traço me sugere eu vou dando a forma e de um quadro pro outro o mesmo processo. Mesmo quando tenho uma história mais linear eu costumo ter em mente mais ou menos o rumo de pra onde as coisas vão, definir os thumbnails, desenhar e no final colocar o texto. É legal porque às vezes os desenhos acabam mudando o rumo da história ou ela se constrói a partir deles.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Augusto Botelho – Bom, depois dos gibis da Turma da Mônica, as primeiras coisas que peguei para ler foram quadrinhos de super-herói, que consumi durante bom tempo, então eles estão em algum lugar nas minhas referências com certeza. Volta e meio ainda vejo o que sai nesse mercado, mas olhando mais algumas séries fechadas do que as revistas mensais. Acho que um pouco do meu gosto por histórias de aventura e afins, que acabei fazendo, vem em parte daí. Mas, acho que minhas principais referências em quadrinhos são de quadrinhos europeus de autores como Hugo Pratt, Milo Manara e Moebius.   Dentro do cenário do quadrinho americano trabalhos como Sandman, do Neil Gaiman, e O Retorno do Cavaleiro das Trevas, do Frank Miller, foram marcantes. Acho que a maneira como o fantástico é trabalhado em Sandman é algo que me atrai muito, bem como nas histórias do Corto Maltese, do Pratt (em especial nas últimas). Vejo bem claramente n"O Aguardado" (meu primeiro trabalho longo e o que estou finalizando agora) essa pegada de misturar algo do campo das lendas dentro das coisas cotidianas. Tem uma série de quadrinhos do Manara chamada As Aventuras de Giuseppe Bergman (alterego do autor), que são especialmente marcantes por uma pegada bem onírica, fantástica, às vezes até surrealista e ao mesmo tempo uma certa ironia, um sarcasmo com relação ao próprio autor e à cultura ocidental que é um exemplo que tenho sempre em mente de como tratar questões políticas e ao mesmo tempo conciliá-las com uma tendência que é um pouco natural minha ao delírio. Gosto bastante também do trabalho do Oesterheld e do Breccia, na Argentina, mas conheço pouco ainda dos quadrinhos de lá, gostaria de conhecê-los mais.

Estando há um ano e pouco trabalhando e me inserindo dentro desse meio do quadrinho independente estou em um momento de muitas descobertas dentro da produção nacional, principalmente a atual e isso tem sido uma grande influência com certeza. A possibilidade de conversar com os autores, trocar referências, enfim, esse contato direto é muito frutífero. Temos conhecido muita gente massa com trabalhos incríveis nas viagens pra feiras em outros estados e a experiência tá sendo muito boa, muita coisa sendo digerida ainda, mas já dá pra citar aqui os trabalhos do pessoal da SAMBA; Vudu Comix; do Sindicato; várias das autoras que conhecemos através da zine XXX, bem como os coletivos Loki. e Invisible (ex-Libre!). Um autor que volta e meia eu estou olhando é o D'Salete, tenho o quadrinho Encruzilhada dele sempre por perto. Acho que o que quero seguir em termos de desenho depois de terminar "O Aguardado" é bem por ali, o preto e o branco bem contrastados mas com uma sujeira do pincel seco rolando ali pelo meio. A temática das histórias, pequenas crônicas urbanas de pessoas comuns também fala muito pra mim. Acho que não é à toa que quando fiz a "Risco" (história publicada na zine de Julho, cujo personagem principal é um pichador) o traço foi um traço mais sujo, no pincel.

Dentro desse cena nacional sinto que ainda tenho muito o que conhecer e ando buscando, desde o trabalho dessa galera ao de autores já clássicos, como Laerte, Fabio Zimbres e outros. Conheci recentemente através de uma publicação da Ugra o trabalho do Henry Jaepelt, que me atraiu muito pelo desenho e pela pegada surrealista.

As influências se dão de diversas maneiras. Às vezes por querer fazer igual, às vezes tentando fazer igual e vendo que aquela não é a sua pegada também (como é um pouco a minha relação, por exemplo, com o trabalho do Moebius, que já tentei muito copiar até ver que não era por ali).

Fora os quadrinhos, me influenciam bastante filmes em geral e música, brasileira em especial, de hoje e de ontem. Como falei na pergunta anterior acho que um pouco da literatura regionalista e trabalhos de autores como Suassuna também estão em ligação direta com meu trabalho mais recente.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Augusto Botelho – Acho que os quadrinhos são um potente meio de expressão e isso é facilmente constatado simplesmente dando uma olhada no que já foi produzido dentro dessa mídia. No último século não faltam exemplos de quadrinhos que exploram as mais diversas questões, experimentando com formatos, temáticas, estilos, linguagem e afins. Como toda mídia, divide características com outras mídias, mas tem outras características bem próprias. Compara-se muito o quadrinho com o cinema, por exemplo, e as duas mídias realmente têm muito em comum (até por serem ambas fruto da sociedade industrial e por terem em comum o representar do tempo, movimento, etc). Mas mesmo essa representação do tempo e do movimento se dá em cada uma de forma muito diferente. No cinema as imagens se sobrepõem no tempo, causando no olho do espectador a ilusão do movimento, no quadrinho elas estão colocadas espacialmente em sequência. Essa diferença muda muito o modo de fruição da imagem, fazendo com que, no quadrinho, o tempo do leitor seja  infinitamente mais relevante que no tempo do filme. E por conter o elemento visual, esse tempo também não é o mesmo do texto pois o leitor pode se manter em um quadro por conta do elemento visual, e ir e vir pela obra. O Underground, (segundo volume do "Promessas de Amor a Desconhecidos", do Pedro Franz), por exemplo, vem dentro de um envelope e as folhas não estão grampeadas, permitindo que o leitor posse se movimentar pela obra através de múltiplos caminhos e tempos. O trabalho meio que assume de vez que o autor não vai ter o controle sobre o tempo e o processo de leitura do seu público e é um exemplo interessante de como explorar isso.

Botelho em pala à Moebius

O que eu vejo mesmo entre os quadrinhos e os trabalhos que circulam em galerias, museus e outros desses espaços institucionais do mercado de arte é mesmo uma diferença de nicho de mercado. São nichos de mercado diferentes, com funcionamentos específicos, pré-requisitos e exigências diferentes e que atendem também, em parte, públicos diferentes. Lógico que eles possuem intersecções e talvez a tendência é isso só aumentar, à medida que cada vez mais artistas têm se utilizado do múltiplo, do livro objeto ou do zine como forma de aumentar a circulação do seu trabalho para além dos espaços expositivos; e também quadrinistas têm levado seus trabalhos para outros espaços de circulação ou incorporado vários elementos desse campo neles.

Raio Laser's Comics' Quicky #03

O biênio 2013/14 tem sido uma época boa para os quadrinhos brasileiros. Eventos como o FIQ e a Feira Plana, somados a incontáveis feiras de quadrinhos, pequenas ou grandes, espalhadas pelo País todo, mostram que, se o mercado das grandes editoras ainda é reticente em relação a publicar material nacional, no mundo independente (ou "dependente", conforme ponto de vista) a coisa fervilha. Este material pode aparecer impresso, online, em zines de luxo, publicações requintadas, xerox, em tiragens de milhares de edições ou apenas poucas dezenas, etc. Minha opinião é a de que, para que uma cena se fortaleça, é preciso um volume grande de gente participando. Joio e trigo. Coisa ruim, banal, esquecível, e coisas que ficarão para a história. A quantidade fomenta a qualidade. Com ajuda do amigo quadrinista Pedro D'Apremont, que foi nestes eventos e trouxe dezenas de quadrinhos para que eu pudesse ler (agradeço a cordialidade), selecionei algumas das coisas mais interessantes que apareceram em minhas mãos e escrevi breves comentários. Quase tudo coisa boa. Só peço ao povo dos quadrinhos (muito autolaudatório) que pare de chamar gente que está apenas fazendo um trampo honesto de "gênio", "mestre", "monstro", como vejo tanto por aí nas redes sociais. Menos, pessoal. Afinal, como diz meu amigo Chico Mozart, se vamos chamar qualquer um de gênio, que palavra vamos usar para falar de Beethoven? (CIM)  

Se quiser aparecer nesta seção (a gente tarda, mas não falha), envie seus quadrinhos para (novo endereço!):

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Ciro I. Marcondes

Samba Nº 3 – Gabriel Góes, Gabriel Mesquita e Lucas Gehre (Org., Independente, 2013, 166 p.): A Samba é uma das iniciativas mais significativas da cena dos chamados quadrinhos “dependentes” brasileiros, e este número 3, financiado via Catarse, amplamente aguardado, saiu no ano passado. Novamente temos um trabalho cuidadoso de editoração realizado pelo trio de quadrinistas brasilienses: uma capa arrojada e intrigante, uma história inteiramente “destacável” (“Galaxian”, espécie de souvenir), ótima qualidade de impressão e um louvável trabalho de curadoria (ou ao menos na intenção), já que esta edição reúne, além dos organizadores, alguns dos nomes de maior destaque deste cenário. Gente como Rafael Coutinho, Diego Gerlach, DW Ribastki, Bruno Maron, Stêvz, André Valente, etc, etc. Além disso, há a presença de quadrinistas mais jovens que avançam na publicação, como Pedro D’Apremont e Mateus Gandara. Tudo lindo, não? O problema é que, a despeito da seriedade do trabalho e das boas intenções, o resultado desta terceira Samba é irregular não pela falta de talento ou calibre nos quadrinistas escalados, mas por um certo desleixo com as histórias mesmo.

Uma quantidade considerável dos trabalhos publicados não passa de gags ou sketches, coisas tolas, esquecíveis, como é o caso do abre (com Stêvz) e do fecha (com Elcerdo) da revista. Dadaísmo e rabiscos, dois sérios problemas dos quadrinhos brasileiros. Mesmo a parte de Rafael Coutinho, grande talento, que “narra” uma história de assassinato com pontos coloridos, se perde no excesso de abstração e experimentalismo. Meio difícil de engolir. Outros trabalhos, como os de Carlos Ferreira (“misterioso” e sem graça), João Lavieri (um delírio à Spain Rodriguez), Mateus Acioly (muito zinesco) e Pedro Cobíaco (boas ilustrações que lembram o estilo de Tardi, mas com roteiro clichezento) são descartáveis e pouco acrescentam no volume que fazem na revista.  Em geral, paira o preguiçoso experimentalismo “vale qualquer coisa” e pouca coesão. Falta, claramente, um conceito que unifique a revista, um propósito que seja mais do que simplesmente juntar uma galera que ilustra pra caralho e botar pra jogo. Se o conceito for a “diversidade” esquizo pós-moderna, tudo bem, eu compreendo, é um sinal dos tempos, mas não me obriguem a gostar.

Nem tudo, porém, são pedras. Algumas das histórias em Samba 3 são mais vigorosas, revelando natural maturidade nos artistas, coisas pensadas de maneira efetivamente mais adulta e profissional.

Gerlach (sempre salvando a pátria) traz, em colorido psicodélico, a história psico, histérica, cheia de palas, de um lobisomem punk. Seu traço vem revelando um estilo cada vez mais autoral e autoconsciente, e o roteiro, cada vez menos caótico e largado, ganha força representacional. O mesmo vale para DW Ribatski, cujo estilo mais indie (lacônico, confessional, autobiográfico) dá um tom mais sóbrio à coletânea como um todo. Um alívio narrativo. Também vale destacar a história “muda”, de compleição mais expressionista/leste europeu, de Tulio Caetano, com arrojadas soluções narrativas, uma arte bastante personalizada em branco e preto, e um roteiro satírico, ácido e delirante. Há também o trabalho insólito, sempre inovador e desafiador, de Eduardo Belga, que constrói aqui uma mapa de conceitos visuais em quadrinhos, com pouca aproximação lógica, mas cujo resquício de sentido é o suficiente para ativar uma ação horripilante nos umbrais da mente.

Por fim, o que considero a grande conquista desta edição é a já citada série Galaxian, de Góes e Gehre, publicada ao longo de 2012 no site do coletivo. Trata-se de uma psicodélica saga space-opera não em quadrinhos, mas sim narrada em lindas splash-pages multicoloridas e ilustradas com o mais dedicado apuro detalhista, como se fosse uma narração arcaica em vitrais e um livro infantil ao mesmo tempo. O roteiro de Gehre, com seus impérios galácticos, futuros utópicos, fontes inesgotáveis de energia, além de heróis e vilões, é esteira para a arte de Góes florescer carregada de referências pop engraçadas, do UFC a Comandos em ação. De Star Wars a X-Men 2099. Obviamente, a chegada de mais uma Samba é uma conquista para os quadrinhos tanto de Brasília quanto nacionais. O cenário brasileiro de quadrinhos autorais tem se tornado vigoroso e o talento dos artistas amadurece no compasso das condições de produção. Há que se ter paciência, mas os frutos deste processo até agora progridem visivelmente.

Prego

Nº 5 – Alex Vieira e Guido Imbroisi (Org., Independente, 2011, 80 p.): o que vale para a Samba, de certa forma vale também para a Prego. Publicação punk de Vila Velha (ES) que reúne não apenas quadrinhos, mas também ilustrações, textos e entrevistas, esta revista indie e selo editorial tem se destacado no cenário nacional pelo design arrojado, pela multiplicidade de publicações e também por orbitar os quadrinistas mais bem relacionados nesta cena. O resultado é uma publicação de verve mais agressiva e chutada que a Samba (que quer ser mais... arté), por mais que as duas compartilhem praticamente os mesmos autores. Nesta edição número 5, já meio velha, todas as histórias giram em torno do som e da música (fazendo parte de uma trilogia “sexo, drogas e rock and roll”). Focar a revista em um tema só é um mérito, permite que se trace uma linha de coesão entre uma história e outra, fica mais fácil de se pensar um comentário a respeito. O problema é que vários dos autores parecem não ter entendido direito o que fazer com o tema, gastando tempo e trabalho com o processamento de qualquer coisa que lhes veio à mente. É o caso do próprio Alex Vieira, de Yuri Moraes e Tom Noise. Gerlach desta vez manda mal com uma história “sensorial” de uma fossa regada a música. Não vai a lugar algum.

Cynthia Bonacossa ao menos cria uma história autoirônica, em que confessa não saber o que fazer com o tema. 

Mesmo assim, há um punhado de boas colaborações, como a biografia do crítico musical Lester Bangs (de Chico Félix), num estilo que mistura Peter Bagge com Allan Sieber, quadrinho bem dosado, cheio de referências dentro e fora dos letreiros, com humor preciso, cirúrgico. “Lembrança de quinze anos”, de Fernando Saul e Xablutz, narra a relação da adolescência com a música e o universo afetivo que a circunda, com a solução (meio batida) de colocar letras de canções na caixa de letreiros enquanto a história se desenvolve. É inofensivo, mas a leitura agrada. Ao menos não é “quadrinizar” uma letra de música de Jorge Ben, como foi o caso de Nik Neves (sem comentários).

O universo afetivo da juventude também é explorado na primeira parte da série “Palhaços tristes”, de Gabriel Mesquita, que virou até (um bom) curta-metragem. Aqui, o quadrinista brasiliense desenvolve estilo bastante minimalista, um pouco inocente e pueril, ao colocar um par de patetas completamente ordinários, tristes de tão insignificantes, refletindo sobre sua própria condição numa “festinha” de classe média. A quadrinização é direta, sem firulas, e essa “pobreza” conceitual ajuda na pobreza espiritual dos personagens, ao contrário da atmosfera barroca do filme de Rafael Lobo. A melhor história da edição, porém, fica com o quadrinista português Marcos Farrajota e seu tergiversar free style, altamente ácido, sobre a cultura do punk rock nos dias de hoje. Em cinco páginas, no que parece um surto rabiscado de improviso, ele vai das “demos” podreira (Mukeka de Rato, Leptospirose, DFC, etc.) que recebe pelo correio, à saga de conseguir revendê-las em Portugal, a uma reflexão sobre o solipsismo da cultura punk nos dias de hoje, à comparação entre o som brasileiro e o português, e até a uma árvore genealógica do estilo, partindo de 1976. Finalmente, em talvez um único caso, a música tenha sido relevante na edição “musical” da Prego. O resultado em geral, porém, por irregular que seja, é positivo. Melhor queimar os fusíveis dessa galera de uma vez e deixá-los experimentar do que esperá-los apodrecer procurando fazer obras-primas.

Surfista Calhorda

– Fábio Lyra, Pablo Carranza, Porco e Presto (Org., Pula Pirata/Power Fuckers, 2013, 56 p.): Sacanear o Surfista Prateado não é uma má ideia. Quase todos os heróis de Stan Lee trazem consigo uma coisa puritana, de bons costumes e valores – é o filhinho da vovó, a família margarina, o pobre órfão cego, etc. – associados a sofrimentos terríveis, histórias de superação, contos motivacionais. Uma coisa, assim, meio dickensiana, mas, ao invés de cada história ter 700 páginas de densidade justificando essas coisas, tem 24 de puro pulp engana-trouxa. O Surfista chega realmente a ser o melhor e o pior ao mesmo tempo. Lee tinha essa intenção “nobre” de fazer um personagem metafísico, filosófico, exilado no espaço, etc. Mas o cara, lembremos sempre, parece a estátua do Oscar, usa uma prancha de surfe (?) e... não tem piroca.

Um time de depravados e escarninhos da HQ nacional resolveu fazer uma revista em formatinho virando o conceito do Surfista do avesso, provando que comics não é bem um território muito valioso para a galera que está reinventando os quadrinhos nacionais. Não tem como não apoiar. Desde o texto de abertura (de Bruno Azevêdo), que pinta o Surfista como calhorda por rejeitar sua amada Shalla Bal, até as versões de Pablo Carranza (uma coisa sem-noção em que Galactus deixa todas as mulheres do mundo com TPM, e o Surfista e Reed Richards têm de se aliviar com animais e sereias) e Fábio Lyra (em que o Surfista vira zineiro de poesia new age vagabunda), o herói é zoado de todas as maneiras possíveis: vira tema de papel de LSD, surfistinha no Havaii e refugiado do nazismo na Argentina. Galactus, por sua vez, é sempre retratado como um laricado, glutão e obtuso. A revistinha é, como se pode ver, uma mongolice, e, finda a diversão (depois de ler numa cag*da), talvez seu destino (como o de qualquer formatinho) seja o lixo, mas vale a leitura. Isso me lembra de minha ideia de botar a galera da HQ underground brasileira de hoje para fazer paródias/releituras dos abstrusos heróis clássicos brasileiros, como Capitão 7, Raio Negro e Velta. Fik dik.   

Falsidade Ideológica

Nº 1 e 2 – André Escobar (Anti-Tudo e Todos/Ninho de Vespa Quadrinhos,

 2012/13, 48 p. cada): o autor deste fanzine, famigerado Escobar, deixa claro em seu “Manifesto fanzineiro quadrinista”, logo na número 1: isso aqui é “História em Quadrinhos Brasileira de Escracho”. Dentro deste nicho, o cara acerta em cheio. Falsidade ideológica é uma espécie de zine à moda antiga feito por um punk velho que não se esquiva de sacanear a própria contracultura, o ridículo da luta “contra o sistema”, e a própria condição miserável do fanzineiro como um todo. Sua história principal, contada em quadros grandes e expressivos, meio estilo Bob Cuspe, é “Vida de artista”, em que um quadrinista (ele próprio) sequestra um ator global viciado em heroína pedindo que esse “lixo da indústria cultural” seja substituído por “cultura de qualidade”, ou seja, seus próprios quadrinhos toscos. O final anárquico e ruim pra todos não poderia ser mais clarividente sobre a condição tanto do indie maltrapilho e orgulhoso de suas porcarias quanto do mainstream obtuso e imbecilizante. Escobar dispara também sua metralhadora ambígua em direção a cotas raciais, suicídio, cocaína, Ziraldo e outros tantos temas polêmicos. Escracho de primeira. De fato, Falsidade ideológica merecia esses prêmios todos (HQ Mix, Ângelo Agostini, etc.) que ele faz questão de ironizar neste zine comédia.

Bebê GiganteTiago Elcerdo (Projeto 1000, 0004, Cachalote, 2011, 24 p.): eis mais um bom lançamento de 2011 que havíamos deixado passar. Não custa corrigir aqui. Nesta HQ completamente “silenciosa” (sem falas, como todas do projeto 1000) de Elcerdo – quadrinista de traço um tanto tremido e de alguma forma tristonho (no caso, qualidades) – acompanhamos uma espécie de vila medieval em que um casal de caçadores encontra um bebê enorme, monstruoso e voraz debaixo de uma árvore. As consequências de se levar esta criatura para casa acabam esbarrando na fronteira entre o amor humano e a brutalidade animal. Elcerdo lida muito bem com esta aporia, criando uma excelente metáfora sobre a animalidade em nós mesmos, e sua inevitabilidade em um mundo em que nossos instintos parecem cada vez mais estarem sendo submetidos a todo tipo de regulação técnica. O despojamento visual da HQ, equilibrando bem splash pages com minudências, denota sofisticação narrativa, mesmo que a leiamos em apenas um minuto. E, mesmo com um final muito aberto e um tanto confuso, Bebê Gigante é uma das melhores edições de “1000” que li até agora, mostrando que Elcerdo tem grande desenvoltura não apenas com o humor e o surreal (“Beleléu”), mas também com o drama em quadrinhos.     

Grounfff!!! Histórias estranhas. Quadrinhos malditos Nº 1Koostella (Independente, 2012, 36 p.): Koostella é um quadrinista paranaense que mora na Suíça, um tanto isolado do resto da patota indie nacional. Desde que li uma história dele na Golden Shower, virei fã. O cara tem perfeito timing para bons quadrinhos de humor, sem ser insípido, sem ser somente grosseiro, sem perder sua naturalidade autoral. Além disso, sabe cruzar referências sem que pareçam gratuitas, indo do horror brasileiro dos anos 60/70 até a trajetória completa da música pop, passando pela ficção-científica. Mas não se enganem: não há nada de esquizofrênico em seus quadrinhos. Neste ótimo zine Grounfff!!! há sim uma miscelânia de coisas, mas, como num episódio de Futurama, todas as referências estão submetidas a um mesmo substrato, que neste caso é o traço neurótico e os personagens degenerados de Koostella. Mudam-se os temas, permanece o tom de deboche sagaz em relação à cultura pop e à sociedade contemporânea. Assim, aparece aqui um misto de terror com autobiografia em uma história de estremecer os ossos sobre uma criança sendo assombrada por uma mão fantasma; ou as biografias de bandas absurdas, lunáticas, em tudo excessivas, mas que ao mesmo tempo são distorções febris de artistas reais; e por fim uma história futurista com cenários quase num tom meio arte-naïve, uma coisa assim “fantástica fábrica de chocolate”, que nos apresenta um mendigo que desconfia que as máquinas de teletransporte são, na verdade, copiadoras. Hilário. Koostella pode não reinventar a roda, e certamente está alinhado à frente de quadrinhos ácidos/cínicos/paródicos que meio que esgotaram um pouco o potencial criativo da produção brasileira há algum tempo, mas não se pode negar que, neste ramo, ele é um dos mais carismáticos.

BadonkadonkFelipe Portugal (Independente, 2013, 84 p.): vamos ser justos com Felipe Portugal: qualquer um que se preste a escrever um romance gráfico (ou uma história longa fechada, tanto faz) e lançar na forma de zine merece algum crédito. O esforço de se desenvolver arcos narrativos, solidificar personagens, construir histórias é em si um ato quase político na HQ brasileira, já que nosso cânone é composto quase inteiramente de tiras, charges e excertos satíricos.

Badonkadonk procura dialogar ao mesmo tempo com a linguagem do mangá (tem alguns estilemas tezuka-escos, mas as referências primárias são coisas mais rasteiras, como Dragon Ball e One Piece) e do videogame, sendo certamente insatisfatória no que tange a ambos. Afinal, somos apresentados a um mundo pouco contextualizado em que os personagens pipocam nas fuças do leitor como se saídos da sarjeta de um jogo de Master System tipo beat’em up, fazendo-nos engolir uma trama absurda (seria boa se fosse surrealista, mas esta qualidade é claramente involuntária), infantil e tosca. O autor, de boa fé, quer que pensemos se tratar de algo à moda antiga (?), “estilo Band Kids”. O que parecia um trunfo (a coragem de produzir o texto longo), quando inspirado em tão “inevitáveis” referências, acaba desembocando em mais um tropeço da nossa produção. De um jeito ou de outro, há ainda um caminho longo a se seguir.

Xula – Luciana Foracipe (Org., Maria Nanquim, 2014, 108 p.): seria fácil confundir a Xula, caçula entre as revistas mix indie brasileiras, com mais uma publicação despudorada, fritona, carregada na putaria e na escatologia, como tantas outras que são evacuadas na nossa cabeça todo dia nesse meio. Afinal, a Xula é, efetivamente, uma revista muito... chula: é difícil ler alguma história que não fale de cu, de merda, de piroca, de violência grotesca, coisas assim. Até aí, nada de novo no front, apenas a vaga impressão de que o quadrinista brasileiro contemporâneo tem algum problema com a fase anal freudiana. Lendo a revista, porém (que tem excelente editoração e diagramação), percebemos, em sutilezas filigrânicas, que a Xula tem alguns diferenciais. Em primeiro lugar, não são os mesmos nomes de sempre. Publicada por Luciana Foracipe, a moça responsável por um louvável trabalho de formiga de coletar e divulgar as melhores tiras em quadrinhos na Internet, Xula reúne alguns dos mais intrépidos quadrinistas nesse metiê, que agora procuram desenvoltura fora do ambiente virtual. São eles o brutalmente cínico Ricardo Coimbra, o irreversivelmente paródico Bruno Maron, o chocantemente psicótico Bruno Di Chico, e o flagrantemente irracional Calote. É um time de primeira, que procura exoticamente misturar escatologia com política, e putaria com uma visão sobre o Brasil. Por mais que, como toda revista mix, a Xula se manifeste ainda sob alguma irregularidade, é franca a intenção de se fazer quadrinhos, sim, sujos, mas em que a sujeira se revele como substância imprescindível para se compreender que porra é a sociedade em que vivemos. Coimbra e Maron são francamente superiores, ainda que os outros dois guardem suas personalidades e qualidades. O primeiro representa um mundo cinzento em que a cultura pop, o mundo midiático e o universo do consumo são insumos de uma sociedade demente e autodestrutiva. Poucos no Brasil hoje produzem com ironia tão incisiva. O segundo, na mesma linha, escrotiza com o imaginário infantil de uma geração narcísica para trazer à tona uma classe média retardada, inconsequente, oca. Se o universo agressivo de Xula pode parecer indigesto demais para alguns, há que se compreender que essa mistura entre um pensamento punk e uma leitura política do mundo nunca foram excludentes. Angeli sempre esteve aí para ligar uma coisa à outra, e esses caras são claramente seus descendentes.   

SurubotronDavi Calil (Dead Hamster, 2013, 28 p.): uma one-shot com capa à Frank Frazetta, ilustrações estilo BD contemporânea, ótima coloração, misturando temas que vão da (já tradicional) putaria à brasileira com sci-fi B? Parece um bom negócio. E é disso que se trata esta Surubotron, um verdadeiro achado em meio à anarquia de quadrinhos ruins/amadores que compõem boa parte do nosso cenário contemporâneo. Calil conta a história amalucada de um alienígena que cai na Terra e sem querer liberta uma substância (controlada por um cientista maluco) que faz todo mundo cair na suruba. E tome ótimos desenhos de sacanagem engraçada, misturados a sátiras sociais, paródias de filmes, etc. E o melhor: sem usar qualquer palavra (fazendo inveja às edições do projeto 1000). O autor não se esquiva de suas ambições e faz uma quadrinização hiperdetalhada, de leitor experiente, melhor do que muita coisa até no mercado indie americano. E é o primeiro trabalho do cara. Aguardemos mais.

Banhero Selvagem

Nº 1 e 2 – Pietro Luigi (Org., Independente, 2012/14, 22 p. e 32 p.): quando parecia que não tinha mais pra onde surgir revista de putaria, escatologia e humor doente, chega aqui no escritório da Raio Laser (a.k.a. minha casa) um pacote com a primeira Banheiro Selvagem, barbarizando pra todos os lados. O autor da empreitada fritona, carregada de bundas gigantescas, pin-ups com dinossauros e algum gore (a capa denuncia: “piadas infames, mulher pelada e violência gratuita” ou: “contém 20 mg de coliformes fecais”) é o infame Pietro Luigi, doidão de Londrina afeito a grafismos e uma estética que poderíamos até chamar rockabilly, não fosse tão torta. Há um salto grande entre a número 1 (um apanhado de desenhos histéricos, colagens pornográficas e tiras nem tão engraçadas assim) e a número 2, que se aproxima mais do padrão mix atual, com colaborações interessantes (como Chico Félix), algumas ilustrações shokantes e até uma entrevista com um bom desenhista holandês. Tudo sem perder a premissa zinesca, visceral (literalmente: vísceras aparecem logo na capa), representada especialmente pelos desenhos grosseiros, mas carismáticos, de Luigi. Vale destacar as capas, bem lisérgicas, e o texto do também infame Rogério Skylab (verdadeira peça de literatura marginal) na segunda edição. Não chega a ser state of art (óbvio), não é para ser levado a sério (evidente), mas vale como uma boa injeção de sem-noçãozice na veia. 

That's all, folks!

Escalpo e o tempo mítico

por Lima Neto

O quanto devemos ao passado? Não falamos do almoço que foi degustado ontem, mas de ações que foram tomadas há vários anos atrás e que deixam sua marca no presente com muito mais força e brutalidade que o agora. Se o tempo for visto como um fluxo contínuo de decisões e acidentes, então estas ações do passado a que me refiro são como gigantescas pedras que dilaceram e estraçalham o tempo para sempre. Estas rochas são marcos, pessoais ou coletivos, que sempre imporão sua vontade ao tímido e nascituro presente. E a série Escalpo, escrita por Jason Aaron e com arte de R.M. Guéra, gira em torno desta inevitabilidade de um passado que se impõe ao presente. Um passado violento e pessoal e, além disso, um passado ainda mais violento, o passado histórico.

Shunka e Corvo Vermelho cuidando dos negócios do Cassino Cavalo Louco

Em Escalpo, série de crime publicada no Brasil na revista Vertigo da Panini desde seu início e que se concluirá este mês em uma edição especial toda dedicada à série, conhecemos a reserva indígena fictícia de Rosa da Pradaria, e seu amargo povo remanescente dos índios Lakota. A série foca no agente especial do FBI Dashiel Cavalo Ruim e sua missão/punição de retornar à sua terra natal após mais de 15 anos para angariar provas que incriminem Lincoln Corvo Vermelho, um líder tribal às vésperas de inaugurar um cassino na reserva e movimentar milhões em dinheiro sujo. O passado de Corvo Vermelho é uma longa estrada de contravenções e assassinatos que tinham como objetivo manter o grande plano que ele havia pensado para a reserva. Ele se inicia com o duplo assassinato de agentes federais ocorrido nos anos 70, e tem entre os acusados Gina Cavalo Ruim, mãe de Dash. O desfile de personagens e seus passados entrelaçados vão construir uma tapeçaria marcada por uma violência ainda maior: a colonização e extermínio dos povos indígenas pelos invasores europeus.

Lincoln Corvo Vermelho e seu totem animal.

A desolação e a pobreza dão o tom das ruas da Rosa da Pradaria. Como bem coloca um dos personagens, a situação das reservas do centro dos Estados Unidos só pode ser entendida como um país de terceiro mundo no coração dos EUA. Confinados em suas terras, os cidadãos da reserva se afogam no álcool, o que faz das terras indígenas os lugares de maior índice de alcoolismo dos EUA. Os jovens, sem perspectivas ou opções, se dividem entre viciados e traficantes movimentando uma indústria de metanfetamina e heroína que prospera graças aos policiais tribais, muitos corrompidos pelas promessas de dinheiro fácil que os cassinos representam para as reservas. Deste mundo, poucos conseguem escapar. Dash é um deles, mas que agora retorna com uma missão que lhe foi empurrada garganta abaixo pelo agente especial Nitz, um federal veterano obcecado em vingar seus amigos e levar Corvo Vermelho para a cadeia.

Jason Aaron escreve sua saga de crime e sacrifício como um cavalo louco. Superficialmente, Escalpo pode ser descrito como uma mistura de Família Soprano com romances policiais de agentes infiltrados. Porém, a impressionante pesquisa de sua ambientação, a maestria com que tece a trama dos personagens e o ritmo estonteante da narrativa - somada à belíssima arte do sérvio R. M. Guéra – fazem de Escalpo uma espécie de Chemako on drugs. O percurso das personagens é sempre impressionante. Mas uma coisa dá o tom da narrativa: sua complexa e sofrida relação com o passado.

O retorno de Dash à Rosa da Pradaria é apenas uma volta no eterno retorno que a história exerce na narrativa.

Dar más notícias aos filhos de uma prostituta: um dia de trabalho para Dash Cavalo Ruim

A narrativa quebrada de Aaron remete diretamente a outros autores semelhantes da editora, como o Brian Azzarello ou David Lapham. Entretanto, o quebra cabeça que se monta é sempre duplo: uma situação atual e sua contraparte no passado. Em seus arcos de história iniciais, o olhar do leitor é sempre entrecortado, invadido por uma narrativa que se quer a principal, mas que se passa em um outro tempo. E neste momento a pena de Guéra brilha. Sua caracterização de personagens, com muita influência da escola italiana e francesa de faroeste, é tão precisa que garante que você identifique um personagem 30, 40 anos no passado. Esse passado é tão vivo que deixa o presente para trás. Transforma o presente em frágil memória. 

Impossível não lembrar do trabalho do pensador romeno Mircéia Eliade. Para Eliade, nas culturas míticas, há um tempo marcado pelo retorno ritual do passado. As datas comemorativas, como São João por exemplo, são um momento em que se sai do tempo mundano e individual e se retorna a um passado coletivo e mítico. É o eterno retorno de Eliade. Este retorno marca o ciclo temporal e a passagem do tempo de forma compartilhada. O ser humano atual não partilha deste eterno retorno da mesma maneira que os povos antigos. O homem moderno está preso ao tempo mundano e sua infinita evolução onde desenrola os dias em direção a um final para o qual não está preparado. O tempo sagrado do eterno retorno, heterogêneo e ditado pelo mito vai ser deixado de lado por um tempo profano, homogêneo e ilusoriamente livre. O homem moderno vai enxergar no tempo profano a possibilidade de escrever sua própria história, sem perceber que de fato é uma peça minúscula dentro de uma história muito maior dominada por uma minoria que impõe sua narrativa ao cotidiano deste homem moderno.

Flashback com Gina Cavalo Ruim e Lincoln Corvo Vermelho.

Esse conflito entre uma forma sagrada e coletiva de agir e uma liberdade profana e ilusória é uma boa metáfora para o grande pano de fundo da Rosa da Pradaria e seus habitantes. Todos os personagens de Escalpo se encontram emaranhados nas cordas que lhes dão a ilusão de movimento.

Corvo Vermelho, um personagem de carisma ímpar, esticou as cordas da tradição para que estas se dobrassem à sua vontade. Dash Cavalo Ruim foge de suas cordas apenas para se ver emaranhado por outras ainda mais traiçoeiras. Outros personagens, como Gina Cavalo Ruim e o índio branco Diesel, lutam para que suas cordas não sejam trocadas pelos fios profanos do tempo histórico. Enquanto que personagens como o testa-de-ferro Shunka e Carol Corvo Vermelho sabem o que é preciso para sobreviver em um mundo sem redenção. 

Esse balé estressante de esforços quase sempre culmina na mais palpável frustração. O passado dos personagens de Escalpo não permite que eles se arrastem para muito longe de Rosa da Pradaria. Nessa realidade pós-faroeste, tempo profano e sagrado sucumbem e se misturam na esmagadora gravidade que a história vai instaurar nesse povo. Em Escalpo não há heróis, nem vilões, só há vermes se contorcendo para se verem livres de seu passado, e falhando miseravelmente. 

Música para sonhos: A pior banda do mundo

por Ciro I. Marcondes*

O que pode haver em comum entre o kammerspiel (gênero de filmes alemães dos anos 1920, voltado à classe operária), Reinhart Koselleck (historiador da segunda guerra mundial) e Hermann Rorschach (psiquiatra suíço que desenvolveu o famoso teste... e que batizou também um personagem de quadrinhos)? Em princípio, nada – ou tudo. E este é o mote desenvolvido por José Carlos Fernandes na história em quadrinhos portuguesa A pior banda do mundo: os elementos que compõem as fiações do nada. Todos estes nomes são realojados, em algum momento, em personagens obscuros, excêntricos, desvalidos, que habitam uma espécie de cidade de sonhos, onde o descartável e o inútil encontram sua ontologia, onde uma paranormalidade de boteco vai obcecar pessoas acanhadas, onde os ofícios mais inadequados e obsoletos continuam a existir de maneira cíclica, eterna, interminável. Um mundo dentro do nosso próprio mundo, escondido em suas entrelinhas, abafado nas funções ordinativas da nossa realidade.

É assim, redimensionando as proporções com que os elementos do mundo se encontram nas coisas mesmas, que o autor cria um verdadeiro fenômeno de atravessamento em quadrinhos. O sistema é muito simples: a cada duas páginas ocorre na cidade um sketch, espécie de ensaio de algo improvável de acontecer. Em um momento, acompanhamos o esdrúxulo ensaio da pior banda do mundo, que toca junta há 30 anos, mas os músicos não conseguem chegar a um consenso quanto a qual música estão tocando.

Em outro sketch, temos a história de uma caixa de correio que recebe as sugestões utópicas dos cidadãos. Em outro, duas velhas irmãs ouvem em suas cabeças a música que o obececado compositor do andar de cima nunca conseguiu realizar após anos de tentativas. Outro ainda, igualmente  fantástico, nos leva a um quarto de hotel em que o hóspede atual sonha os sonhos do hóspede anterior, e ainda há aquele em que um personagem se descobre como sonho de uma outra pessoa.

Para esta miríade de personagens e situações insólitas, que se situam entre a poesia e o conto fantástico, Fernandes vai espalhando nomes de suas referências, sempre de maneira bem humorada, convidando o leitor a uma verdadeira caçada a seus easter eggs: aparecem, por exemplo, os nomes de Roy Lichtenstein, F.W. Murnau, Bela Lugosi, etc. De alguma forma, o autor espalha e compartilha seu mapa de delírios e sonhos tanto através da paisagem surrealista da cidade, quanto em seu universo de influências e subtextos. Este universo se revela no gesto de renomeação e duplicação do nosso mundo, exalando erudição, mas não só isso. O tom modesto do texto, a coloração pastel das páginas e o aspecto encurvado, espremido, dos personagens, denotam equilíbrio entre ambição e simplicidade, deixando a leitura lúdica, curiosa, aguda.

A origem desta mistura entre modéstia, poesia, erudição e um senso de humor muito específico é difícil de determinar. Poderíamos pensar em coisas semelhantes ao vermos os filmes de Wes Anderson, Aki Kaurismäki ou Hong Sang-Soo. Ou lendo as HQs de Lourenço Mutarelli e os contos de Murilo Rubião. Há um DNA que mistura surrealismo, existencialismo e humor que pontualmente aparece em expressões culturais aqui e ali. Porém, é certamente no imaginário de Jorge Luis Borges que encontramos um parentesco mais afinado, unindo certa curiosidade filosófica debochada ao fascínio por mundos adimensionais que ocorrem dentro das mais diminutas manifestações da nossa percepção. Assim, a obsessão do músico Sikorsky – da Pior banda… – em escrever a peça musical perfeita para o mais banal cotidiano ecoa na obsessão de Pierre Menard – de Ficções, de Borges – em reescrever, palavra por palavra, o Quixote de Cervantes. Da mesma forma, o peso e a densidade das palavras buscada pelos irmãos Nazca lembra a metafísica que tange a biblioteca de Babel em Borges.

Uma literatura borgeana de boa qualidade já é rara pela própria rarefação indefectível do gênio do autor argentino. Imagine então encontrarmos em quadrinhos algo que encante com a mesma propriedade, ainda mais partindo de um estado lacônico, estatelado no tempo, tipicamente português, como o que encontramos na HQ de José Carlos Fernandes?

A pior banda do mundo, lançada originalmente nos anos 1990, pode hoje ser considerada já um clássico, em que a norma é a fragmentação e no qual o punch line das piadas nunca acontece, mergulhando o leitor em uma ansiedade cíclica pela solução de mistérios indecidíveis, de coincidências inalcançáveis. É neste hiato que mora o pensamento poético. É nesta vala que a pior banda do mundo toca sua música.   

* Publicado originalmente no jornal de quadrinhos Suplemento.

Chninkel: o grande poder da obra-prima

por Ciro I. Marcondes

Um Chninkel

Às vezes no deparamos com uma obra-prima assim de supetão, sem qualquer previsão, buscando apenas uma leitura descompromissada. Não que eu não esperasse nada ao abrir O grande poder de Chninkel (Le grand pouvoir de Chninkel), obra em quadrinhos que impressiona já numa breve folheada, graças ao vigor e à robustez dos desenhos barbáricos do grande ilustrador polonês Grzegorz Rosinski. Conhecendo também o trabalho do clássico roteirista belga Jean Van Hamme – que, entre outras coisas, trouxe ao mundo a série de fantasia Thorgal, a detetivesca XIII e as aventuras do bilhardário Largo Winch –, era de se esperar algo refinado, num primeiro escalão de BDs estilo Métal Hurlant, cheio de aventuras prodigiosas e cenários hiperimaginativos. Porém, vale frisar, eu não esperava uma obra-prima.

Mas o que qualifica esta BD como obra-prima? Chninkel foi publicado em 1986 na revista belga (A Suivre), editorada pela Casterman, e, em alguns aspectos, é a típica HQ francobelga dos anos 1980: passa-se em um mundo de fantasia cheio de raças exóticas, guerras intermináveis e déspotas execráveis; além disso, é imersa em um quase interminável ciclo de aventuras e peripécias, num modelo epopeico, que carregam o leitor rumo a uma clássica jornada heroica; por fim, doses generosas de violência e erotismo confirmam a tendência desta HQ em capturar os aspectos mais gerais que definiram esta época como uma das mais vertiginosas da BD.

A exuberante arte de Rosinski

Para além dos clichês já representados no próprio background da história, Chninkel se destaca por ser um tipo de parábola religiosa que é, ao mesmo tempo, uma paródia e uma crítica ao universo do evangelismo. Sua história é a de Daar, um mundo em constante guerra, dominado por três imortais e seus povos, que subjugam e escravizam tantos outros: Zembria, a ciclope, que rege um grupo de ferozes amazonas; Barr-Find, o mão-negra, líder de um grupo barbárico de humanos; e Jargoth, o perfumado, que lidera uma raça de elfos que voam em orquídeas carnívoras. No meio de eterna guerra entre os três imortais, uma raça de escravos chamada Chninkel (uma espécie de ratinho antropomorfo) luta por sua própria sobrevivência. As sete páginas iniciais, que mostram o contexto e os atos sanguinolentos de batalha, são particularmente primorosas – apocalípticas, exuberantes, desoladoras.

Um dos chninkels, J’On, sobrevive a uma batalha avassaladora, e, ao ver-se só em meio a uma multidão de cadáveres, presencia a aparição de um monólito negro (tal qual em 2001) que se apresenta como o Grande U’N, mestre criador de mundos. A figura divinal explica-lhe então a sua insatisfação com o mundo em guerra e confere uma missão ao pobre Chninkel: no curso de cinco cruzamentos de sóis (o “ano” no mundo de Daar) ele deve conseguir acabar com todas as guerras em seu mundo. J’On, percebendo sua pequenez diante de tamanha responsabilidade, questiona o criador de mundos sobre porquê ele ser o escolhido, no que a figura divinal responde: “Eu sou encarregado por uma infinidade de outros mundos e de milhares de milhares de seres que criei. Você pensa que eu tenho tempo de procurar qualquer outro neste mundo aqui? Será, portanto, você, J’On, o escolhido”.

Enquanto U’N parece uma figura divinal tirânica, amarga e opressora tal qual Jeová no Velho Testamento, J’On vai se transformando, pouco a pouco, de uma figura à Moisés (afinal, ele tem de livrar seu povo da escravidão e ouve diretamente um chamado de seu Deus) em uma à Jesus Cristo. Logo percebemos que O grande poder de Chninkel tem uma clara intenção de produzir uma reflexão sobre a ética da Bíblia como um todo. Se, em algum momento, pensamos que há nesta HQ certo proselitismo cristão, percebemos, ao final da leitura, que seu verdadeiro sentido reside em ironizar o monoteísmo como um todo, colocando todas as complexas linhas narrativas e desdobramentos da trama à mercê de um ato egoico, paranoico e vingativo concentrado nas mãos de uma imagem onipotente.

"Doses generosas de violência... e erotismo"

Excelente design de criaturas

J’On, assim, vai viver uma série de peripécias que deflagram sentido claramente mitológico, concentradas em cenas e atos que se configuram como parábolas, e onde rapidamente percebemos figuras e atos presentes nas próprias fileiras dos evangelhos, como Maria Madalena, Judas, os evangelistas, a travessia do deserto, etc. Estas peripécias são narradas com tal desenvoltura, envolvendo-nos em meio a raças particulares, cenários exóticos e coadjuvantes carismáticos, que a linhagem bíblica que parece a todo tempo nortear a história não impede que nos surpreendamos a cada instante. Cada solução pensada por Van Hamme para as armadilhas que a jornada reserva são carregadas de soluções criativas, saídas inesperadas, pequenos milagres que, no contexto da história, não parecem forçados. Cada sincronismo presente na narrativa lembra mais, efetivamente, um evento mitológico do que um deux ex machina, ainda que este recurso seja utilizado no final, mas mergulhado em franca ironia.

Excelente design de máquinas

A arte de Rosinski ajuda tudo a se tornar mais épico, com o amplo uso de splash-pages, megarrequadros e lettering expressivo. Além disso há um aproveitamento do preto-e-branco robusto e sensual, com detalhamento minucioso nas expressões dos personagens e excelente design de criaturas, máquinas e cenários. Seus quadros contêm intensa movimentação, praticamente sem linhas de ação, fazendo-nos supor este movimento, tal qual um Delacroix, a partir de uma cinética inerente à expressão do desenho. Em cada mínimo detalhe, um primor.

Chninkel por vezes é tão intenso em seus movimentos que parece que estamos vendo uma animação, ao invés de lendo uma HQ.

Parábola sobre o poder

Por fim, como se tudo isso não fosse suficiente para caracterizar

O grande poder de Chninkel como uma obra-prima dos quadrinhos, falta falar sobre o próprio poder em si, o que talvez seja a elaboração mais sutil, e ao mesmo tempo a mais importante da HQ. Vamos lembrar, em primeiro lugar, que J’On não sabe exatamente qual a natureza de seu poder “milagroso”, e a todo instante ele questiona se sua “visão” do U’N não foi um sonho ou uma alucinação. Sem qualquer poder que lhe esteja disponível, cabe a ele o tempo inteiro exercer seu poder de dúvida, um pouco como Jesus em A última tentação de Cristo, e se deixar levar pela missão como que por intuição. Assim, o pobre Chninkel é também uma espécie de Forrest Gump, e as coisas vão se sucedendo como que se fossem ao mesmo tempo milagres e coincidências. Esta perspectiva abre um olhar muito interessante sobre a natureza, digamos, gnóstica do mundo, onde existe uma dupla face de acontecimentos, uma na esfera do divino e do sobrenatural, e outra nas leis da física e da materialidade. Os acontecimentos, de qualquer forma, são os mesmos, e o leitor deve escolher qual a percepção que melhor lhe sensibiliza, duvidando junto com o Chninkel e tendo de oscilar entre interpretar a história como uma fábula paródica (no caso do poder ser falso) ou como uma fábula holística (no caso dele ser real). Vivenciar estes acontecimentos, no fim das contas, seja qual fora a sua natureza, é o que parece contar.

A própria natureza do poder em si, bastante tolkeniana (que, por sua vez, é também cristã), é problematizada a partir do momento em que percebemos que J’On não ostenta um poder bélico, ou mesmo sobrenatural, mas sim demarca sua posição política com ideias e uma intervenção não-violenta, tal qual Ghandi, através do diálogo e do poder de arrebanhar seguidores. O poder de O grande poder de Chninkel é, portanto, um poder moral, um poder invisível, presente em qualquer um, e não apenas em um escolhido por Deus. Esta mensagem, a de que as forças motivadoras que transformam a humanidade estão nos indivíduos, ecoa mais em um existencialismo sartreano do que propriamente na doutrina Cristã. A ironia é que, para ser impulsionado a, sozinho, libertar seu povo, J’On precisa ter uma alucinação religiosa. A religião é colocada como uma falsa força-motriz, um poder motivador capaz de mover montanhas não por sua natureza sobrenatural, mas sim por sua força de congregação social, tal qual pensava, por exemplo, Durkheim. Fica a impressão de que J’On poderia realizar toda a sua façanha sem qualquer visão ou “missão” divina, apenas acreditando em sua força individual. Porém, resta também a questão dialética que diz que ele também não poderia fazê-lo, afinal, a religião seria a única motivação capaz de movimentar esforço tão descomunal. Impasses de um texto ambíguo.

A despeito do final sinistro e assombroso, mais afeito a um niilismo hipercínico, parodiando o apocalipse bíblico, todo o caráter épico de O grande poder de Chninkel, associado às suas várias matrizes de interpretação e à sua arte de primeira grandeza, nos levam a pensá-lo como uma das obras definitivas da BD. Obviamente é difícil pensar em uma obra de ficção nas histórias em quadrinhos atuais que levante tantas questões, e ao mesmo tempo com tanta estranheza e tanto impacto estético. Certamente traduzi-lo para o português deveria ser uma prioridade e uma urgência.