Spirit e a teoria do caos

Spirit e a teoria do caos

Em vários quadrinhos de Will Eisner, mas especialmente radiografado em sua obra-prima Avenida Dropsie, de 1995, há um fator de complexidade que faz emergir dois patamares de tessitura das histórias. Explico-me: em Dropsie, há um emaranhado incontável de fatores imprevisíveis – incêndios, guerras, suicídios, mortes acidentais, mercado imobiliário, etc , etc – além de outros mais facilmente calculáveis – levas de imigrantes, intolerância étnica, crescimento industrial, etc , etc – que fazem Eisner dirigir o sentido de um bairro em Nova York, de seu precoce estabelecimento no Séc. XIX até a sua ruína, afundada por crises financeiras, manipulações especulativas e invasão de sem-teto, no final do Séc. XX. O significado que o autor queria dar a isso é bastante claro num primeiro plano: as cidades, prédios e estabelecimentos em geral possuem uma história própria, uma trajetória que se assemelha de alguma forma à de um organismo vivo; um organismo formado pelos vivos. Daí sua vivificação do espaço, o uso dos quadros vazados ou sangrados (que fazem a HQ “respirar”), de sua preocupação em trazer vida também à estrutura espacial de formação da HQ como um todo, aproveitando tanto o espaço interno quanto externo dos quadrinhos

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Botando moral

Qual o limiar da moralidade nos comics?

O artigo de S. Seelow, “Frank Miller,Batman e o choque de civilizações”, publicado no Monde, (claro, sem querer) coloca uma questão interessante, diria mesmo de ordem, sobre o universo dos quadrinhos. Entre as polêmicas em torno do neo-conservadorismo de Miller, o autor achou por bem recorrer a um atalho, para dizer o mínimo, discutível: para explicar as reações negativas de fãs (note-se: desprezando as positivas) o texto afirma categoricamente que “o universo dos comics tem inspiração majoritariamente humanista e liberal”. Não sei bem o que quis dizer com “humanista”, mas o “liberal”, claramente é evocado num sentido meio pacifista, imoralista. Vindo de um jornal francês, ironicamente, vem-nos logo a lembrança, não direi do choque, mas de certo paralelismo entre duas subculturas bem conhecidas: a dos comics americanos e a das bandes dessinées franco-belgas (camada subliminar que me parece importante).

A pergunta que falta é a seguinte: entre os principais apelos do universo cultural norte-americano (e falo, evidentemente, não apenas dos quadrinhos) não está justamente seu moralismo fantasticamente (ia dizendo: fanaticamente) monolítico? “Heróis e vilões” (mocinhos e bandidos, diriam nossos pais, avós) simbiótica, surrealisticamente unidos, do espaço sideral ao velho oeste, até que a morte os separe...? A fórmula, claro, é bem ampla, mas no caso dos quadrinhos é preciso ir além; diria que não se trata apenas de uma forte característica mas da fórmula mais geral de seu sucesso e popularidade. Mesmo no cinema, provavelmente devido a seu público mais adulto, sempre houve um equilíbrio maior de gêneros e mensagens. Nos quadrinhos, dado seu papel semi-infantil ou semi-educativo, esse recurso tornou-se uma verdadeira norma formal, tudo o mais sendo “alternativo” (sintomático o surgimento, meio freudiano, dos quadrinhos de terror-erótico...?). Natural que essa tendência se manifestasse com força em solo puritano, certo?

Tex: típico herói americano?

Vamos com calma: 

Tex, herói típico americano é, na verdade, italiano. A atração exercida pelo ambiente desértico serve universalmente como pano de fundo, neutro, a-histórico, transcultural (como naqueles fundos nebulosos de J.-L. David), para o afirmação de uma ética simples, possível apenas num espaço ideal (versões urbanas: Gotham, Metropolis, etc.). É que o velho duelo do bem contra o mal, no fundo sabemos, não é uma bobagem. Bobagem é acreditar que ele é simples ou fácil. (Mesmo um ser-de-nada como Sartre visitou "o diabo e o bom Deus"). Um herói como o amnésico Ken Parker (meu favorito), mais dado a contradições, a mudar de lado, ora com índios, ora no exército, mesmo não repetindo o sucesso de Tex, buscava a tal da “verdade”. Diria que nos quadrinhos, mesmo quando isso não é o principal, permanece certa obrigatoriedade clássica de um chiaroscuro moral. Sendo assim, quem sabe, a exemplo da história da arte, haja certa vantagem em olhar o todo em termos de "clássico" e "anti-clássico".

David: ética simples, fundo simples

Heróis como Capitão América e Super-Homem, por exemplo, mantém esse apelo e parecem mesmo inviáveis sem ele (fórmula compatível com o cômico, com o ridicularizar-se a si próprio, pelo menos desde o final dos anos 80 com a Liga da Justiça, hoje consagrada no cinema com Os Vingadores - ia me esquecendo da série Batman, anos 60!). Anti-heróis como Justiceiro, Wolverine, e mesmo europeus como um Corto Maltese, um Blueberry, são só uns semi-Pilatos: guardam a estranha “mania” de serem bonzinhos. Pagam seu tributo a César. Os recordes de bilheteria dos filmes sobre heróis indicam que o seu simbolismo, o impulso de fazer a coisa certa, permanece vivo.

Certo, existem anti-heróis autênticos e de sucesso -- mais “anti” que “heróis” --, como Elektra (novamente Miller), Ranxerox, etc. O interessante é que são personagens "sem olhar", talvez mais artísticos, mas certamente menos (ou demasiado) humanos. Paira sobre esses quadrinhos uma espécie de nuvem negra de negação e contradição. Um classicista diria que são indispensáveis na medida que permitem renovar nosso gosto pelos clássicos.

Relatividade sem relativismo, moral sem moralismo... Os quadrinhos, atenção historiadores e sociólogos, educaram uma geração!

Elektra: anti-heroína autêntica

Peripécias de Laureline e Valerian

por Ciro I. Marcondes

Uma Pilote com Valerian na capa

Os anos 1960 viram uma intensa virada de paradigma na HQ francesa (BD) graças à publicação de uma revista que faria história, responsável tanto pela maximização do quadrinho de humor escrachado (gros nez), especialmente com Asterix, como pela sua superação, através de outros gêneros que foram tomando corpo e ganhando as páginas da revista, como o faroeste (Blueberry), a aviação (Tanguy e Leverdure), e a ficção científica (Lone Sloane). Autores geniais desta nova fase da BD franco-belga debutaram na Pilote: Bilal, Moebius, Charlier, Druillet, Godard, Lob, Pichard, etc. O gênero sci-fi, intimamente associado ao quadrinho barbárico (veremos), vai ganhar cada vez mais impulso e, no anos 1970, se glorifica com a publicação de Métal Hurlant, nascida das impossibilidades editoriais da Pilote, sendo uma revista com conteúdo de imaginação mais densa e filosófica, de qualidades lisérgicas, eróticas, um ápice. Mas isso é outra história.

Um dos principais quadrinhos da Pilote responsáveis por fazer esta ponte foi justamente a série Valerian, agente espaçotemporal (ou, na edição portuguesa a que tive acesso, agente espácio-temporal), escrita por Pierre Christin e ilustrada por Jean-Claude Mézières. Longe ainda do apelo transcendental das HQs de Druillet, Moebius ou Dionet, Valerian, publicada primeiramente em 1967, é fruto da mentalidade juvenil e transitória da revista. A saga deste simpático agente responsável por patrulhar o tempo e o espaço juntamente com sua namorada Laureline tem contornos mais space-opera, com a presença de grandes impérios galácticos (o da Terra, especialmente), aventuras cruzando o espaço sideral e a aparição de inúmeras culturas alienígenas, antropomórficas ou não, chegando até povos primitivos, barbáricos, pouco evoluídos, que precisam conviver com espécies capazes de construir tecnologias que parecem feitas de pura mágica. Nada que você não tenha visto em Star Wars, mas pensado antes disso.

A origem desse afã pela ficção científica e pela fantasia (e, especialmente, pelos dois juntos no mesmo espaço) certamente está ligada, primeiro, a uma tradição oriunda da sci-fi apocalíptica (Bradbury) e aventuresca (Asimov) da literatura americana dos anos 40 e 50, além dos pulps descartáveis com monstros radioativos e ETs invasores. Os franceses, além disso, tinham em seu imaginário infanto-juvenil a presença de Jules Verne, o que certamente delineou uma tradição de sci-fi em suas fileiras culturais. Por fim, eu suspeito que a mentalidade  new age surgida com o grande despertar da cultura jovem nos anos 60 tenha de alguma forma associado o gênero sci-fi a algum tipo de escrita por excelência da utopia, considerando que o gênero tem esse privilégio de poder ser arriscar literariamente em cenários e contingências radicais para se pensar as culturas humanas, sejam elas a do futuro distante, a do passado arquetípico ou a do sonho.

Laureline: cintura de pilão

A série Valerian, agente espaçotemporal tem longa trajetória (mais de 10 álbuns produzidos pela equipe original, além de ser publicada até hoje e ser base para uma série animada) e consagrou seus autores. Christin, especialmente, chegou a trabalhar com Uderzo e produziu histórias célebres ilustradas pelo lendário Enki Bilal. O volume de Valerian que me chegou em mãos, O embaixador das sombras, é português e foi editado pela Meribérica, tendo sido lançado originalmente pela Dargaud em 1975, pertencendo, portanto, à fase mais avançada do título.

Kafka para crianças

Ponto central: a legenda a descreve bem

Narrada com desenvoltura e toda elaborada no traço elegante, um tanto cartunesco, de Mézières, esta é uma HQ que, por mais que levante algumas pretensões mais inteligentes a respeito de ética e política, não se esquiva de ser um divertimento prioritariamente juvenil. Seja no seu traço lindamente infantilizado, ou no fato de se basear em uma tradição épica (de contar grandes histórias, cheias de peripécias), tudo em Valerian nos remete ao mesmo tempo ao auge da HQ clássica, na era ouro (coisas como Flash Gordon), e a um apontamento para o futuro da HQ francesa – a sci-fi metafísica de Métal Hurlant. A beleza de ler este elo perdido está justamente em voltar a um ágil imaginário de aventuras juvenis (como os livros de Lucky Starr, de Isaac Asimov) sem que elas nos enganem por serem simplesmente pueris. Valerian nos joga no mundo das crianças, mas nos respeitando como adultos, algo que as BDs fazem sem concorrente equiparável na HQ mundial.

Em O embaixador das sombras, Valerian, Laureline e um embaixador terrestre estão se dirigindo a “Ponto Central”, uma espécie de grande babilônia espacial, ao mesmo tempo estação e um aglomerado natural de centenas de culturas de diversas partes do universo que se refugiam por lá. O local é tão vasto e incompreendido que em suas galerias há várias zonas abandonadas, aquáticas ou mesmo não-mapeadas. Em uma espécie de “golpe de Estado”, tanto Valerian quanto o embaixador são sequestrados por uns tipos um tanto terroristas, e Laureline fica sozinha na imensidão de Ponto Central, tendo em mãos apenas um animal capaz de transmutar qualquer coisa em outra (“magicamente”) e como ajudante um paspalho oficial responsável pela recepção do embaixador.

Astúcia!

O embaixador das sombras é uma HQ muito versátil, dinâmica e engenhosa por uma série de fatores: em primeiro lugar, o protagonismo é revertido. Valerian, naturalmente, é o herói da série, com sua altivez suicida e blasé, à Corto Maltese, mas, neste volume, quem manda ver é Laureline – destinada a enfrentar uma multidão de alienígenas inescrupulosos, mercenários, muitas vezes lúbricos, até que possa resgatar os “frágeis” homens sequestrados. Mais uma vez fazendo jus à tradição épica que a BD resgata dos clássicos greco-latinos (Odisseia, Eneida, etc.) Laureline não tem outra opção a não ser sobrelevar a característica épica mais polivalente: a astúcia.

Os Shingouz

Como ágil diplomata e às vezes como sorrateira negociadora, ela vai atravessando um mar kafkiano de pistas em zonas cada vez mais perigosas até que possa obter o paradeiro de Valerian. Percebam: primeiro, ela negocia com os horripilantes e pouco confiáveis Shingouz, mistura de morcegos com tamanduás, que os levam até os Kamunik, centauros medievais dados a provações e testes de resistência, que os levam até os sórdidos e ameboides Suffus, que dominam o mundo dos prazeres e das fantasias, e os reconduzem até os libidinosos Bagoulins, que, por meio de alucinações, os fazem chegar até os Groubos, que se parecem com dinossauros aquáticos e andam junto com os Zuurs, águas-vivas capazes de travar contato telepático, e assim sucessivamente...

A cadeia kafkiana pela qual essa garota tem de passar (um pequeno calvário feminino), como se pode ver, é imensa e muito fértil na variedade tanto morfológica quanto cultural de alienígenas. Certamente Christian nutria imenso prazer nesta arte demiúrgica de criação de mundos, culturas e seres que inundam a ficção-científica e a fantasia como um todo, assemelhando-se a Borges no seu bestiário (O livro dos seres imaginários). Este prazer, o de criar e o de travar contato com novos mundos, fruto da especulação livre da imaginação, certamente é um dos trunfos destes dois gêneros, que se inserem nestas zonas libertárias da mente, nestas possibilidades de desamarração do cotidiano em coisas outras, que desimpedem princípios rigorosos de realidade e nos permitem almejar saltos em queda livre existencial. Daí, talvez, a presença dos dois gêneros misturados em obras híbridas, como a space opera ou space fantasy, como já vimos em Storm, O andarilho dos limbos, Agaragem hermética e, é claro, em Star Wars.

Os Suffus

Em O embaixador das sombras, o final não desmente essa lógica híbrida, essa fusão do arcaico com o futuro tecnológico (como se, urobóricos que somos, nosso futuro avançado necessariamente nos trouxesse de volta à nossa origem primitiva – uma coisa, assim, meio 2001, meio Nietzsche). Valerian estava, afinal de contas, em uma das últimas e mais escondidas portas de Ponto Central, onde uma sociedade selvagem, aparentemente aborígine, vivendo bucolicamente na praia há milhares de anos, detém o conhecimento sobre o universo.

Os Kamunik: onde a fantasia medieval se funde ao sci-fi

Bons selvagens?

Essa regressão rosseauniana, apesar de extremamente apressada (como todo tipo de transição em Valerian) coloca em choque as duas visões tradicionais da ficção-científica apresentadas a Laureline em suas peripécias: a da babilônia futurística e mágica, onde inexiste a ética e tudo é comprado através da subversão e da perversão (do alma, dos bens materiais, do corpo); e a do paraíso utópico em que, passados todos os estágios da civilização, retorna-se a um universo zen embrionário (como um útero ou um paraíso perdido), minimalista, de eterno retorno de todas as coisas. Se uma história tão simples é capaz de trazer um pouco de Homero, Kafka, Rousseau ou Nietzsche às crianças, não há porque se queixar das incoerências e trapalhadas narrativas que poderiam ser denunciadas nesta clássica BD.

Valerian pode ter envelhecido em vários aspectos, mas o entusiasmo juvenil de sua essência permanece intocado, e é isso que importa para que siga sendo lida.

HQ em um quadro: de volta às Tartarugas Ninja, por Peter Laird e Jim Lawson

Leonardo anuncia a morte de Mestre Splinter (Peter Laird, Jim Lawson, 2003): as HQs das Tartarugas Ninja fizeram grande sucesso ao tentar parodiar o estilo e índole violentas de Frank Miller em meados dos anos 80, e até hoje são algum objeto de culto (especialmente as primeiras), com muita gente considerando-as algo "sombrias", "violentas", "underground", "sérias", etc. Mesmo assim, o jeitão pop de coisa inocente e feita pra crianças que as criações de Peter Laird e Kevin Eastman atingiram com a super popularidade do desenho animado clássico (dos anos 90) e dos filmes fez com que muita gente jamais se interessasse por estas obscuras HQs. Incluindo eu mesmo. Até agora. Não que eu tenha efetivamente corrido atrás dos gibis originais, supostamente itens de colecionador nos dias de hoje, mas o acaso e a sensacional arte do ilustrador Jim Lawson acabaram fazendo com que as TMNT topassem com os olhos daqui da Raio Laser num sebo bastante maltrapilho ("Beco"?) de Porto Alegre. A estante de quadrinho era extensa, mas a grande maioria das coisas eram HQs em formato americano de todos os tipos, coisas lançadas no Brasil, X-Men, super-heróis, coisas assim. Já quase em estado de desistência diante de tanto material inócuo e sem graça, eis que vem aos meus olhos um primeiro plano chapadão de uma tartaruga ninja ostentando terrível expressão de constrangimento, com as placas do peitoral arranhadas - excelente ilustração - e o logotipo diretaço escrito logo acima: "TMNT". Achei tudo aquilo muito cool e, devido ao estado zero bala da revista, gastei uns 4 contos nela e em mais duas outras edições para sacar de qual era. Tratava-se (informei-me depois) de uma edição da quarta fase da revista, que tem publicações irregulares, com o cânone bastante interrompido (chateando os fãs), quase sempre publicado pela editora criada pelos autores originais, a Mirage Publishing (há uma fase, hoje apócrifa, publicada pela Image). O mais legal é que, a despeito de ser uma edição americana de 2003, o texto da HQ é de ninguém menos que um dos criadores dos mutantes, o gente boa Peter Laird. Laird, surpreendentemente, mesmo décadas depois, ainda leva jeito com a coisa, foi o que percebi. De leitura rápida, cheia de imagens silenciosas e quadrinização voraz que nos faz atravessar as páginas com volúpia de coisa pop bem feita, a inconclusa história desta edição número 10 traz dois plots que começavam em edições anteriores e terminam em posteriores, à tradicional maneira americana (criada pela Marvel, especificamente). O quadro que ilustra este post é o último da história, mas ele é precedido por sinais premonitórios, com algumas sequências inteligentes, sensíveis e bem-feitas do cotidiano do Mestre Splinter: o velho rato alimenta seu gato, passarinhos, toma chá, etc, no que parece uma casa de campo onde ele pode dedicar-se aos afazeres da idade avançada. 

Há uma certa beleza de um senso-comum-zen nestas sequências, de quadrinização delicada, efeitos de câmera lenta, zoom-out, grandes primeiros-planos e recursos que, por básicos que sejam, muitos iniciantes e até quadrinistas experientes simplesmente não dominam. Splinter passa a sofrer de algum mal interno (um ataque cardíaco? Um AVC?), e lentamente vamos sendo informados de que o sensei das tartarugas está a perecer. Eu não cheguei a ler a edição número 11, então não sei se Splinter efetivamente morre. Eu sei que poderia descobrir isso baixando a próxima edição na Internet, mas, de alguma maneira, prefiro ficar com o tom de epitáfio que se carrega nesta história, e com a trajetória peculiar do volume que eu adquiri no sebo. Sei que estes quadrinhos seriados tendem inevitavelmente a se estragarem, vítimas de seu próprio modelo de novela, e prefiro, neste caso, criar algum tipo de mitologia pessoal.  Esta edição não traz apenas este plot de Splinter, mas também outros que parecem traduzir bem o estilo contemporâneo de Laird: são coisas que misturam aliens com ficção científica, nanorrobótica, terrorismo digital, coisas da cultura contemporânea, firmada de maneira madura, específica, detalhada, geeky, para adolescentes inteligentes. Claro que, coroando a pequena sorte de ter topado inadvertidamente com esta edição, fica o que me chamou a atenção originalmente: a arte de Lawson é de um detalhismo esplêndido, toda angulosa, aproveitando ao máximo os requadros dinâmicos, elegantemente plasmados nas páginas, num preto-e-branco cheio de expressões caricatas, personagens com ótimo design e um apurado senso sobre como se fazer quadrinhos de aventura sem que eles sejam simplesmente horrendos ou ridículos. As tartarugas em si, vale lembrar, pouco aparecem na história, porque passam a diegese toda sedadas, mas despertam justamente nas últimas páginas para trazer um teor dramático, espécie de falha trágica, ao final da edição. O anúncio consternado de Leonardo, porta-voz do grupo, é o suficiente para mim: não tenho intenção de ler mais coisas das TMNT, já que esta experiência basta por esta vida. (CIM)

Contos sobre a decomposição: conheça Al Feldstein

por Ciro I. Marcondes

Al Feldstein é mais um daqueles nomes que hoje pairam sob obscura sombra na história das HQs. Seu trabalho como editor, ilustrador e, principalmente, de roteirista nas clássicas publicações da EC Comics nos anos 50 (e posteriormente em MAD) hoje parece, especialmente no Brasil, relegado a um vão ostracismo, quando quadrinhos de horror, crime e ficção científica, tão populares naquela segunda aurora para o comic book, vão se tornando não apenas obsoletos, mas verdadeiras peças de arqueologia. Um pulo na banca de jornal hoje e tudo o que se vê são dezenas de publicações com os mesmos super-heróis de sempre, apenas remodelados para um design contemporâneo (de traço realista e fino, pouco estilizado, geralmente colorido em computação gráfica), com a diferença de sua ética e estética serem estrategicamente adaptados ao gosto contemporâneo. Um nojo, em geral. Quadrinhos de péssimo gosto, sem imaginação ou variabilidade de gênero.

Não deixa de ser irônico, portanto, que os quadrinhos da EC, tão vilipendiados nos anos 50 devido a uma vultosa caça às bruxas promovida tanto por setores moralistas da sociedade, quanto por intelectuais, quanto pelo próprio governo americano, sejam hoje lidos por aficcionados e colecionadores como trabalhos de qualidade estética, laboratório para grandes desenhistas (como Wally Wood, Bill Elder e John Severin) e como inventário de incríveis histórias, escabrosas, delirantes, anormais, detestáveis. O “mau gosto” e o tom altamente politicamente incorreto dos quadrinhos de horror e crime da EC, passados mais de 60 anos de suas publicações originais, se tornaram quadrinhos de culto, ousados, fora dos padrões de qualquer época para as HQs, verdadeiros tesouros elaborados por mentes delirantes que viam este salto politicamente incorreto como um passo além dos quadrinhos de aventuras, super-heróis e family strips que vinham sendo publicados nos Estados Unidos desde os anos 1930.

Al Feldstein foi um dos nomes principais desta geração e formava, juntamente com o editor-chefe Bill Gaines e o multi-talentoso roteirista e desenhista Harvey Kurtzman, a tríade que tornou a EC uma editora lendária. Caçada pela censura durante os anos de chumbo do macartismo, a EC não durou muito tempo, mas os três títulos de horror da editora, Tales from the Crypt (anteriormente Crypt of Terror), The Vault of Horror e The Haunt of Fear marcaram época ao apostar em temas-tabu como canibalismo, esquartejamento, putrefação, além de todo tipo de horror psicológico. Feldstein acreditava que era hora de a EC deixar de copiar histórias de crime que faziam sucesso em outras editoras (títulos como Crime does not Pay) e criar um gênero autêntico que os fizesse ser, por sua vez, copiados pelas outras editoras. Daí o insight de debater com Gaines a criação de revistas de horror escatológico, quase explícito, beirando o exploitation e o gore, tão populares hoje em dia, inspirado em aterradoras novelas de horror para o rádio dos anos 30.

A despeito da contribuição de Bill Gaines na hora de elaborar os argumentos, ou do resto do espetacular time da EC nos títulos de ficção-científica, guerra e crime, é o trabalho de Feldstein em Tales from the Crypt e nos outros títulos de horror que vai catapultar a EC a tornar-se o maior sucesso comercial dos quadrinhos americanos dos anos 50. Suas histórias possuíam certo senso de ironia e humor escarninho, bastante perversos, traduzidos especialmente no final com um twist grotesco de horror que nos leva, por exemplo, a imaginar situações que podem ser resumidas nas seguintes storylines: “um sujeito apaixonado por sua falecida amada que se tranca por acidente em seu mausoléu e é obrigado a se alimentar dela para sobreviver”; “um caçador e colecionar de troféus de caça que se vê caçado por um homem insano que transforma sua própria cabeça em um troféu humano”; “um homem que conduz uma carroça escondendo por dentro dela, atrás de seu corpo, um gêmeo siamês morto e apodrecido”, dentre centenas de atrocidades, enterramentos de pessoas vivas, mortes hediondas, monstros e criaturas pútridas que retornam para saciar quaisquer sedes de vingança que possuam. Para melhor pensar o estilo de Feldstein e seus quadrinhos, selecionei, para fazer um pequeno comentário, três histórias que compartilham, de alguma forma, um tema comum: a incapacidade de morrer ou os efeitos da postergação da morte.

Três níveis de postergação da morte

Na primeira delas, que vem a ser a melhor dentre as três, Feldstein cria um exótico efeito de suspense médico, deixando o leitor à deriva por quase todas as 7 tradicionais páginas das histórias da EC. The living death foi publicada em Tales from the crypt número 24, em 1951, e foi ilustrada com o traço tortuoso e deformativo de Graham Ingels, deixando os personagens da história com aspecto agressivo e grosseiro, o que não era novidade para os padrões da EC. Ao longo de uma narrativa sisuda, pontuada por muitos letreiros (este aspecto literário também era comum nos textos de Feldstein, que era mais uma mente criadora de histórias escabrosas do que propriamente um narrador habilidoso), somos apresentados a um conflito digno do final do século XIX: dois médicos, amigos de faculdade, anteveem futuros diferentes para a medicina, ao mesmo tempo em que amam a mesma mulher, Laurie. Enquanto Lester Jerome acredita que a maioria das doenças ocorre através de processos da mente (flertando com a pré-psicanálise de Charcot e Breuer, mesmo que mais de 50 anos depois que estas questões tomaram outros rumos na neurologia e na psicologia), Arnold Manning torna-se um halopata mais tradicionalista, sucesso em sua área. Jerome acaba se casando com Laurie, mas seus métodos (que incluem a hipnose) o levam ao obscurantismo, enquanto Manning alcança a glória como médico de renome. A ironia do destino leva a esposa de Jerome a desenvolver um câncer com pouquíssima probabilidade de cura. Tratada no hospital de Manning, a junta médica decide que o tratamento do médico famoso seria melhor do que os métodos pouco testados do marido dela. Laurie é tratada por Manning e morre, para o desespero de Jerome, que vocifera com olhar de desespero e vingança: “eu poderia ter salvado ela!”

A história poderia se encerrar neste caso por si só, já que estamos lendo um texto com um drama humano bastante razoável, com interessante insight sobre visões da medicina, ilustrado por uma arte simples, mas suficientemente brutal, seca e aterradora. Porém, Feldstein nos leva a um novo plot twist quando o próprio Manning é acometido por um câncer quase incurável, o que o leva a abandonar seus próprios métodos e a procurar, anos depois, o velho colega e rival pouco ortodoxo para tentar salvar sua vida. Amargurado e rancoroso, Jerome acaba aceitando realizar o tratamento por hipnose, infligindo-lhe a sugestão de “jamais morrer”, “independente de quaisquer circunstâncias”, “até que ele diga a palavra ‘Laurie’”. O que se sucede é bizarro. Manning efetivamente morre, quando seu coração sofre uma parada cardíaca, mas seu cadáver continua a emitir sons e grunhidos, mexendo-se grosseiramente, em algum centro motor, indefinidamente. E, por indefinidamente, considere-se meses. Manning treme e grunhe gemidos de dor até que a junta médica decide chamar o médico que o havia tratado: Jerome. É neste momento que emerge o único aspecto mais gore da história, justamente no último quadro, quando, em meio a resmungos, Jerome pronuncia a palavra “Laurie” e quebra a hipnose depois de meses. Instantaneamente, o corpo de Manning passa a putrefazer-se até virar uma massa disforme.

Apesar do final grosseiro (bem ao sabor da EC) e com um quê meio “WTF?”, a história de Jerome e Manning não deixa de ser uma das mais excepcionais de Feldstein, não apenas por não trazer monstros e elementos sobrenaturais, mas também por envolver sentimentos complexos como a vingança e a redenção, o amor e a competitividade profissional, além de um debate estranho a respeito do real alcance da hipnose, de um verdadeiro conceito de morte, alma, e do decaimento do corpo humano. Neste caso, o prolongamento da vida se dá por meio da sugestão sobre a mente, o que sugere uma separação em relação ao corpo, que insiste em morrer.

É um caso semelhante do que ocorre em Judy, you’re not yourself today, que Feldstein escreveu para Tales from the crypt  N° 25, ilustrada por ninguém menos que um precoce Wally Wood. Nesta curiosa história, uma formosa e loira dona de casa chamada Judy abre sua porta para uma velha mendiga que acaba por se revelar uma espécie de bruxa após praticar temível feitiço: à procura de um corpo jovem com o qual possa trocar de almas, ela encontra na beleza de Judy a saída perfeita, e executa a bruxaria. Aterradora, essa história se foca no choque com que a moça percebe a troca de corpos, tendo se tornado agora uma figura decrépita, frágil e horrenda. O marido de Judy, Donald, consegue, através de plano mirabolante, reverter o processo e assassinar a velha bruxa. O plot twist, neste caso, se dá quando, meses depois, mesmo com a velha enterrada no porão, a alma da bruxa consegue novamente fazer o feitiço se reverter, e Judy, de repente, se vê incorporada novamente no que restou, putrefato, do corpo morto. Judy se reergue, agora um monstro em decomposição, resistente à morte. 

Neste caso, a vida é prolongada por algum tipo de recurso sobrenatural, não tão sofisticado quanto a sugestão que rompe o equilíbrio entre morte e vida da história anterior, mas amparado por uma espécie de vontade recorrente e interminável de continuar vivendo, representado na alma demoníaca da bruxa. O que é mais exótico e perturbador é imaginar que, de alguma forma, e por algum mecanismo que desafia todo tipo de resolução que inclua o assassinato, o tempo, o enterro e a decomposição, os demônios sempre encontram alguma maneira de retornar e possuir os vivos.

Nossa última fábula de morte e decomposição foi retirada do imaginário do grande autor de ficção-científica Ray Bradbury, que transitava entre o pulp e a especulação filosófica, e cujas histórias foram em grande parte adaptadas por Feldstein (um grande fã do autor, que também reconhecia a qualidade da EC e firmou parceria) para os quadrinhos. The Black ferris foi publicada em Haunt of Fear N° 18, em 1953, e também apareceu por aqui na saudosa edição número 1 de Cripta do Terror, da editora Record, que saiu em 1991. Aqui, uma dupla de garotos vai a um parque de diversões velho durante uma noite sombria e presencia um acontecimento extraordinário: um homem adulto sobe na roda-gigante e, após algumas voltas controladas por um operador corcunda e cego, retorna... como um criança! O princípio todo da história é fabuloso e imaginativo, e parte da ideia de que esta roda gigante, com algum tipo de propriedade mágica sobre o tempo, acelera ou reduz (dependendo do sentido para o qual a roda está girando) o envelhecimento de quem está dentro dela. A trama se desdobra sobre um golpe praticado por este homem misterioso, que ora aparece como menino, ora aparece como adulto. O clímax ocorre justamente no final, quando as crianças procuram sabotar o plano maléfico deste homem-menino e abatem o operador cego, enquanto a roda gira para o futuro. O resultado, com a roda girando sem parar e o homem gritando freneticamente “parem a roda!”, não poderia ser menos assombroso: quando a polícia efetivamente consegue parar a roda, jaz apenas um esqueleto do homem, envelhecido “demais” pelo mecanismo de tal exótica máquina do tempo.

Se no primeiro caso temos um rompimento das relações normais entre mente e corpo através do procedimento meio mecânico e meio espiritual que é a hipnose, provocando o prolongamento de uma vida através de morte, e no segundo temos a insistência de um ser de pura vontade inefável de continuar existindo e se perpetuando (um espírito demoníaco), neste terceiro caso temos uma guinada completamente mecânica, quando o decaimento ou não do corpo e o prolongamento da vida é realizado por algo inteiramente externo: uma máquina, e, mais interessante ainda, uma máquina do tempo. Aqui, Feldstein encerra essa forçosa “trilogia” ao colocar cada um dos potenciais de ressurgimento ou apodrecimento do corpo e da alma em um limiar que inclui o mundo mecânico, da matéria, ou o mundo espiritual, da mente. Não que estas histórias, ingênuas e fabulosas apenas, em suas origens, se proponham a que sejam lidas em tal lente “metafísica”, mas não deixa de soar interessante imaginarmos que tais arquétipos como o da hipnose, dos demônios ou das máquinas do tempo possam ressoar uma significação comum, enredada: a do horror. Horror do prolongamento da vida. Horror do medo da morte.  

A morte, sempre

por Ciro I. Marcondes

Elijah faz parte da polícia filosófica e não pode morrer. Não que ele seja um imortal invulnerável, ou que não possa envelhecer. Elijah simplesmente vive em um mundo onde os seres humanos podem construir clones de si mesmos (“ecos”) que guardam em si todas as memórias precedentes, como a cópia de um arquivo de computador. Se um eco morre, os outros, como backups, carregarão as memórias e cópia idêntica do corpo físico daquele que faleceu, trazendo extensão e continuidade eternas às pessoas, que podem morrer apenas se decidirem matar todos os seus ecos.

É dentro desta lógica de imortalidade calculada em base de dados que se passa a incrível história de Os últimos dias de um imortal (Les derniers jours d’un immortel, Futuropolis, 2010), produzida  por dois talentos da BD francesa atual: o desenhista Gwen de Bonneval e o roteirista Fabien Vehlmann, que realizam trabalhos juntos desde os anos 90, quando se conheceram na cidade de Nantes. Este trabalho, talvez o mais ambicioso da dupla, esteve na seleção oficial de Angoulême em 2011, e é uma das obras mais criativas que vi em ficção científica recentemente. Singela, clean, introspectiva, cheia de pequenos apontamentos para as causas humanas, Os últimos dias de um imortal é uma graphic novel para ser lida e relida em suas várias possibilidades e penetrabilidades, como se cada enfoque (filosófico, antropológico, jurídico) dos temas abordados pela HQ fosse uma lente diferente que demandasse atenção exclusiva do leitor.

Elijah vive num mundo utópico e obedece a uma espécie de federação galáctica que controla as diversas espécies de alienígenas que precisam conviver a partir de suas brutais diferenças: fisiológicas, culturais, orgânicas, existenciais. Em um mundo ordenado e funcional que é operado por tecnologias que lembram magia, e em que os seres humanos podem desfrutar de uma imensa variedade de comportamentos culturais (como por exemplo se metamorfosearem em outros corpos para prática de sexo esportivo!), a função da polícia não deve deixar de ser filosófica. Para resolver crimes ancestrais, querelas arcaicas e impasses de profunda dimensão, um policial como Elijah deve ser um homem sereno, dotado de habilidades diplomáticas e conhecimentos de filosofia e antropologia. Em Os últimos dias de um imortal, o crime é um conceito que tange o pensamento filosófico, e não jurídico. De alguma forma, associando a motivação da criminalidade à proposição ética, e não estatística, esta HQ se aproxima de uma obra como Crime e castigo. Numa sociedade utopial, é legítimo voltar às ambições e motivações mais arraigadas para que o crime seja entendido como dedobramento de seus primeiros princípios, e sirva como complemento desta mesma sociedade.

Os últimos dias de um imortal vai desenvolvendo estes temas de maneira morosa, no traço limpo e quase juvenil, num preto-e-branco azulado, de Bonneval. A narrativa privilegia espaços abertos, modernistas, grandes quadros silenciosos, e diálogos lacônicos, ensimesmados. Em sua visão futurista soft, vamos passeando por obras de arte voadoras, espécies com um só espécime, seres que se comunicam pelo paladar, além de uma gama incrível de criaturas exóticas, como se Star Wars resolvesse dar verdadeira dimensão cultural ao seu variado número de monstros. Este aspecto, antropológico (ou antropobiológico, já que estamos falando de culturas não-humanas), soma-se ao debate diplomático e a uma ontologia da morte para cultivar verdadeiro leque de profundidades interessantes que os desdobramentos da trama são capazes de provocar.

Vale explicar: o cenário desta HQ, com seu estoicismo estético, já seria por si só uma forma provocativa e ampla de se registrar a arte dos quadrinhos, mas o roteiro de Vehlmann acaba se concentrando em aspectos ainda mais envolventes. Em primeiro lugar, Elijah vê seu melhor amigo, com que cultiva uma relação de profunda simbiose, subitamente optar pela morte, eliminando seus ecos e lentamente sumindo da memória daqueles que o conheciam. Aqui, uma instigação bastante original sobre a memória se instaura: Elijah sofre não apenas por perder o amigo, num mundo onde a mortalidade se torna cada vez mais rara, mas também por perder a memória sobre esse amigo, revelando a contradição principal dos afetos humanos: sofremos com a memória porque optamos por mantê-la, e a mantemos porque precisamos dela como alicerce de nossa própria mortalidade. Em um mundo de imortais, memórias são inúteis, porque desgastantes, e Elijah sofre com os desdobramentos desta contradição.

Sci-fi em aporia

A morte, aqui, portanto, seja a morte física ou a morte da memória, acaba encontrando-se em profundo estado de aporia, ou seja, um estado do impossível ou do impraticável (segundo Aristóteles), a divisa de onde não se pode ver a fronteira, o locus em que se instala a não-passagem, o espaço do não-ser. A aporia, portanto, é onde repousa o problema, o eterno intermediário sobre o qual não há solução, sobre o qual se reproduzem as intermitências da vida, um espaço a ser invadido, mas nunca compreendido, nunca contornado, nunca solucionado. Em conferência proferida em 1992, Jacques Derrida, em um belo texto, coloca a morte como a principal aporia, aquilo sobre o qual não podemos jamais falar. “Minha morte, ela é possível ?”, interroga-se o filósofo, como se, como evento fenomênico, fosse impossível falar-se da própria morte como se fala da morte do outro, já que a morte do outro pode ser observada, mas a de si próprio, não.

Neste caso, vale lembrar a belíssima passagem de Os últimos dias de um imortal em que Elijah recupera as memórias de um eco seu que morre devorado pelos temíveis seres Aleph: memórias traumáticas, de terrível dor e sofrimento, que levarão o protagonista a ressignificar a morte e a tomar drásticas decisões na continuidade da história. Todo este debate a respeito do desaparecimento da mortalidade leva à ideia de que este também seria o desaparecimento da aporia principal de todo o pensamento, desfazendo a aporia da morte mas criando outra, a aporia da imortalidade. Desta maneira, é neste jogo improvável entre morte e imortalidade que repousa o principal delineamento filosófico de Os últimos dias de um imortal. O que não é, afinal, a morte?

Esta questão encontra ressonância também no pensamento tardio de Jean Baudrillard (“A ilusão vital”), para quem nossa obsessão com o prolongamento da vida retoma um desejo de nossos ancestrais unicelulares, cuja carga genética era inteiramente reproduzida na divisão binária, tornando eles virtualmente imortais, exatamente da mesma forma que os “ecos” da HQ. Esta busca por uma imortalidade binária e estéril (Baudrillard chama o surgimento da divisão sexuada de “maior revolução da história”) parece ser justamente um dos últimos questionamentos da HQ. O impasse final de toda esta problemática parece ser, justamente, a resposta (impossível) da questão: desejamos/precisamos da morte?

Todo este debate, somado à crise antropológica/diplomática entre os seres Ganédons e Aleph (chegando a resvalar no terrorismo) que recai sobre a figura de Elijah, faz de Os últimos dias de um imortal uma ficção-científica toda especial, toda artisticamente entalhada, e humanisticamente perpassada. Diferentemente da BD clássica (Godard, Ribera, Forest, Druillet), que privilegia a space-opera e aventuras de fantasia, aqui temas uma renovação radical, adequada aos tempos atuais e necessária dos quadrinhos de ficção científica, voltada para um dos princípios do gênero, ainda tão translúcido: a ficção-científica deve colocar a humanidade em situações éticas impossíveis no mundo atual, mas verossímeis em um futuro presumido, e capazes de trazer respostas para perguntas de nossa época.

Não seria isso o mesmo que colocar em aporia?

Sem Palavras

 por Pedro Brandt

Conheci o trabalho do Gustavo Duarte, muito provavelmente, antes de colocar as mãos em qualquer HQ desenhada por ele. Acho que devo ter visto alguma de suas ilustrações por aí. A certeza é que o desenho dele me marcou, ficou registrado nos recônditos da mente – impressão que só foi reforçada quando li sua participação no primeiro MSP 50, em 2009. E, a partir desse momento, Gustavo entrou na minha lista de autores brasileiros a acompanhar. Pra minha sorte, desde aquele ano, ele tem lançado quadrinhos com certa regularidade. Taxi e Có! eu comprei dele, pessoalmente, na RioComicon (2010). Ambas guardam belíssimos autógrafos – e a lembrança de um breve bate-papo com Gustavo, cara gente boa. Birds comprei depois, numa loja de quadrinhos.

Essas três obras deixam bem claro que além de um desenho marcante, facilmente reconhecível como sendo do autor, Gustavo Duarte encontrou um caminho próprio dentro nas histórias em quadrinhos. Não que ele tenha reinventado a roda, ou faço algo inédito e exclusivo, mas achou uma maneira de contar histórias com características e recursos que reforçam a identidade conceitual e visual do artista.


A primeira coisa que você precisa saber sobre o trabalho de Gustavo Duarte é que ele não usa texto em seus quadrinhos. Quer dizer, claro que existe ali um texto, um roteiro. Mas você não vai ver nenhuma palavra saindo da boca de um personagem ou uma onomatopeia sugerindo um ruído. As histórias são mudas não por que os personagens não têm o que dizer. Pelo contrário. Eles conversam, gritam, ouvem música... o som está ao redor. E Gustavo comunica tudo isso com imagens.

A cultura pop permeia as criações do desenhista paulistano (da safra de 1977). Monstros, ETs, seres antropomórficos, rock, jazz, surrealismo, sonho e realidade, a vida e a morte... tudo se encontra e se confunde nas páginas das histórias de Gustavo Duarte.

Taxi, Có! e Birds, além de desenhos incríveis, têm também um acabamento editorial bastante caprichado, desde a gramatura do papel até a impressão, passando pela diagramação, paleta de cores e design. Impressionante para uma produção independente. Para mim, ficou óbvio que com um currículo desses, logo ele subiria para as “majorleagues” – ou seja, seria convidado para lançar um quadrinho por uma grande editora. O lançamento de Monstros, ano passado, confirmou esse palpite. O título saiu com a chancela de uma das mais prestigiadas editoras de livros brasileira, a Cia. das Letras, pelo selo Quadrinhos na Cia. (que tem um catálogo excelente – apesar de já ter lançado umas bobagens que eu não acreditei).

Monstros pode ser considerado o melhor trabalho em quadrinhos de Gustavo Duarte até agora. Ao mesmo tempo, não consigo classificá-lo como tal. Não por falta de qualidade, mas porque acredito que Taxi, Có!Birds e Monstros estão no mesmo nível (se fossem desenhos animados, não duvidaria de seu sucesso). Em todas elas, o desenhista mostra uma grande aptidão com aquilo que geralmente falta em muitos aspirantes e mesmo em alguns profissionais dos quadrinhos no Brasil: a habilidade narrativa, o talento para contar uma história com imagens, pegar o leitor pelo olhar, prendê-lo da primeira à última página. E fazer isso de maneira lúdica, leve (que poderia agradar leitores dos oito aos oitenta), bem-humorada e divertida.

Não é questão de saber desenhar bem. É como usar os recursos gráficos para “enganar” olhos e mentes e fazer com que no passar de um quadro pro outro, de uma página para a outra, o leitor tenha a sensação de continuidade, de movimento de espaço e tempo. Parece fácil, mas dominar a narrativa é um dos grandes desafios de quem faz história em quadrinhos – e fazer isso com uma identidade própria é para poucos mesmo.

Acho que não vale a pena comentar muito da sinopse de Monstros. Por ser uma HQ sem falas, as 80 páginas são consumidas pelos olhos rápida e vorazmente. Qualquer spoiler pode comprometer a satisfação da leitura. Então digo apenas que se você já viu algum seriado do estilo super sentai, esses de japoneses com roupas colantes coloridas, como Ultraman, Spectreman, Change-Man ou Power Ragers, você pode se identificar com a HQ. Mas antes que alguém pergunte: não é um quadrinho de super-herói!

Ano passado, na época em que Monstros chegou às livrarias, mandei por e-mail algumas perguntas pro Gustavo. Em viagem de trabalho, ele comentou que estava com pouco acesso à internet, mesmo assim, dias depois, chegaram as respostas – que, por motivos diversos, ficaram empoeirando no meu e-mail até a publicação deste texto. Em determinado momento, Gustavo comenta que pretende continuar fazendo HQs sem fala. Acho que esse formato bem-sucedido pode e merece ser explorado mais algumas vezes. No entanto, vislumbro Gustavo num projeto mais ousado (ousadia parece ser uma palavra desconhecida nos quadrinhos brasileiros recentes). E depois da leitura do Pinóquio de Winshluss, meu padrão de qualidade para quadrinhos desse tipo subiu a níveis estratosféricos.

E com quatro quadrinhos “mudos” embaixo do braço, acho que seria o momento do autor fazer seus personagens conversarem também com o auxílio dos balões de fala. A repetição, sabemos, causa desinteresse. Seja o que for, desde já, aguardo ansioso.

Entrevista Gustavo Duarte:

Como você desenvolveu a sua técnica narrativa? Sua arte tem muito de imagem em movimento, ou seja, cinema e desenhos animados. Já estudou/trabalhou na área? O que diria que aprendeu com essas linguagens?
Acho que venho desenvolvendo ainda. Quando moleque, li quadrinhos ao mesmo tempo que assistia filmes e desenhos. Isso influenciou e influencia até hoje o meu trabalho e, consequentemente, a narrativa. Nunca trabalhei com animação nem com cinema, mas acredito que são linguagens muito próximas aos quadrinhos, afinal, o objetivo é o mesmo: contar uma história se utilizando de imagens.

Os quadrinhos sem fala já viraram uma marca do seu trabalho. Pensa em seguir outros caminhos dentro da sua produção autoral? Você já fez quadrinhos com fala? O que achou do resultado?
Tenho gostado de trabalhar com histórias sem fala, mas também penso em fazer uma ou outra com fala. Já fiz algumas histórias com texto, mas nada muito grande. Gostei do resultado, mas não dá muito para comparar com as atuais já que foram histórias de poucas páginas.

Num trabalho em parceria, quem gostaria que escrevesse os textos?

Você já tem uma previsão de quais serão seus próximos trabalhos?
Agora em novembro (de 2012) começo o meu próximo livro, que será uma das graphic novels do Mauricio de Sousa. Farei uma história do Chico Bento e do Zé Lelé. E, como falamos acima, dessa vez usarei um pouco de fala. Afinal, não posso deixar de usar as palavras erradas que Chico e Zé falam.Sairá no ano que vem.

Seu traço tem muita personalidade. Quem considera suas influências? Você é autodidata?
Sou formado em Design Gráfico e desenho desde sempre. As influências são muitas. Poderíamos ficar horas falando sobre elas. Mas para citar algumas: Laerte, Ziraldo, Aragonés, Al Hirschfeld, Charles Schulz, Bill Watterson, Henfil, Will Eisner, Jim Henson...

Algumas inspirações de Monstros são mais explícitas, outras, imagino, nem tanto. Quais você diria que foram as principais referências para o livro?
Além das séries de monstros japoneses, que são as referências iniciais para a história, acho que Indiana Jones e outros filmes de aventura me influenciaram enquanto escrevia o roteiro.

É possível encontrar algumas conexões entre Monstros e as suas HQs anteriores: catástrofes, criaturas antropomórficas, bares, a vizinhança como cenário, crianças, música, automóveis antigos, o clima de sonho... diria que tudo isso aparece propositadamente, como que para fazer deste o seu universo?
Não sei se é proposital. Faço as minhas histórias com o que gostaria de ver nas que leio. Acho que é isso.

Você tem vontade de produzir uma série regular, com personagens fixos? E uma série regular, mas com conteúdos mais livre, teria vontade?
Sim, seriam experiências bacanas.

Como rolou o convite para lançar a obra pela Quadrinhos na Cia? Monstros foi feita sob encomenda para a editora? Como é o relacionamento entre as partes? O que você diria que muda (distribuição, maior tiragem, etc.) com a parceria? Já tem algum outro álbum engatilhado com a editora?
O primeiro contato veio na época da Có!,por meio do André Conti (editor). Viemos falando desde então. Ano passado (2011), apresentei a idéia de uma história de monstros japoneses invadindo Santos. O André gostou da ideia, então esse ano escrevi e desenhei o roteiro. O relacionamento tem sido ótimo desde então. Muda muita coisa. Principalmente a distribuição e a estrutura da Cia. Consegui produzir um álbum com toda a qualidade gráfica graças a isso.
E, pela primeira vez, conseguirei ter o meu livro no maior número de cidades possível.Quanto a um próximo álbum, já tenho algumas ideias para 2013. Conversarei sobre elas com o André nos próximos meses.

Você faz parte de uma geração de autores brasileiros (Bá, Moon, Grampá, etc.) que vem ganhando cada vez mais destaque. Como você enxerga a situação dos quadrinhos no Brasil para autores brasileiros?

O mercado está começando a existir no país. Isso é muito bom para nós que fazemos quadrinhos, mas ainda é muito pequeno, tanto é que os três autores que você citou vivem do mercado norte-americano. Porém, acredito que aos poucos os quadrinhos estão ganhando espaço e espero que ganhem cada vez mais.